terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 45


 Em Westhaven, no tribunal quieto e apático, Wayne Corrigan concluía sua réplica aos argumentos de Gordon Jefferson.

— E assim, esperamos que o tribunal tenha o cuidado de proteger o direito constitucional do Sr. Harris ao devido processo e seu direito de defrontar seu acusador. Confirmamos mais uma vez que não temos inten­ção de prejudicar Amber Brandon ou causar nenhum outro trauma. Apenas desejamos chegar à verdade, e cremos ser esse o mínimo que nosso sistema judicial deva permitir a qualquer acusado. Obrigado.

Ele tomou o seu lugar ao lado de Tom Harris. Tom havia estado olhando para o relógio. Eram quase quatro horas da tarde.

Os três juizes também haviam estado a olhar para o relógio. O do meio, o mais velho, ajuntou seus papeis.

— Obrigado, Sr. Corrigan, e obrigado, Sr. Jefferson e Sr. Ames. Os argumentos foram completos e bem apresentados. O tribunal entrará em recesso por hoje. Teremos uma decisão para os senhores até quinta-feira, depois de amanhã.

BAM! O meirinho bateu o martelo e ordenou:

— Levantem-se todos! — e todos se levantaram, e os juizes saíram. Ames e Jefferson pareciam um pouco sombrios, raivosos mesmo; ao se levantarem, fuzilaram Corrigan e Tom com um olhar cuidadosamente esculpido, e deixaram o tribunal.

— Hum — murmurou Corrigan. — Não achei que me saí tão bem assim.

— Achei que se saiu otimamente — comentou Tom. Corrigan deu de ombros.

— Bem... temos estado orando. Está nas mãos do Senhor. — Ele deu um sorriso amarelo, olhou para o chão, e admitiu: — Mas não sei, Tom. Às vezes ponho-me a pensar se sou apenas uma porcaria de advogado ou se Deus prefere ficar fora dos tribunais. Não tenho tido muitos motivos para me sentir bem ultimamente.

O sorriso de Tom veio lá de dentro.

— Oh, aconteça o que acontecer, não se zomba de Deus. Ele é Senhor, Wayne. Seja como for que ele queira que isto seja resolvido, aceitarei. — Ele deu um tapa nas costas de Corrigan. — Vamos comer alguma coisa.

Corrigan remexeu-se um pouco.

— Espero que tenha algum dinheiro com você.

— Umm... tenho três dólares, eu acho.

— Está bem. Acho que esse tanto eu tenho.

— Iremos ao McDonald's!

O lago estava calmo, como um espelho, refletindo as árvores da margem com linhas distintas, sólidas e as cores vívidas da primavera,enquanto logo acima da superfície da água miríades de insetos dançavam ao sol como minúsculas faíscas douradas. O pescador solitário sentava-se em seu barco de alumínio, contente com o silêncio, contente por estar a sós. Ele tinha seus cinqüenta e tantos anos, cabelos pretos salpicados de branco e um rosto jovem; usava calças de brim e camisa de flanela, e um chapéu mole de pescador que tinha de ter sido o seu predileto por anos. Os peixes não estavam mordendo muito a isca, mas ele estava tendo a paz que havia ido buscar, e estava satisfeito. No momento, reclinava-se pregui­çosamente contra uma almofada do barco, apenas flutuando, relaxando, e não pensando muito.

Lá pelo meio do dia, ele ouviu um ruído e as suaves batidas de remos, e espiou por baixo da aba do chapéu. Sim, vinha vindo alguém na sua direção num pequeno bote de madeira.

Quando o visitante chegou mais perto, o pescador sentou-se ereto. Ele conhecia aquele homem levemente rotundo, de óculos e de chapéu de palha. Não eram exatamente amigos, mas já se haviam cruzado em diversas ocasiões. O que estava ele fazendo ali? Este era supostamente um escon­derijo de pescadores.

O visitante olhou por cima do ombro, sorriu, e continuou a remar para aproximar-se, sem dizer palavra alguma.

O pescador teve uma sensação sinistra a respeito desse encontro. Se o visitante não ia falar, então ele falaria.

— Jim?

Jim olhou por cima do ombro.

— Ei, Owen. — Com umas últimas pancadas dos remos, ele fez o botezinho encostar ao lado do outro. Owen usou um curto pedaço de corda para unir os dois barcos. — Ah, muito obrigado.

— A que devo esta visita? — perguntou Owen Bennett. — Espero que não sejam negócios. Estou fora do escritório no momento.

— Oh, achei que este seria um ótimo lugar para termos uma conver­sinha, só eu e você. — Jim voltou o olhar na direção do balneário. Algumas famílias faziam piquenique perto da margem do lago. — Mas falarei baixi­nho, Owen. O som está realmente se propagando hoje.

Owen abaixou a voz e falou:

— Então, diga a que veio. Estou muito ocupado fazendo nada hoje e gostaria de voltar a essa atividade.

Jim arrancou do peito um profundo suspiro, descansou os braços sobre os joelhos, e apenas ficou olhando para Owen por um momento.

— Irei direto ao assunto, mas mesmo isso levará algum tempo. Suponho que você tem-se mantido informado a respeito daquele caso em Baskon?

Owen fitou-o com olhar perplexo e depois meneou a cabeça.

— Nunca ouviu falar do lugar?

— Não, sinto muito.Bem... Eu também nunca tinha ouvido falar dele. Nem queria, exceto que a ACAL iniciou uma ação judiciai lá, e sei que estavam pensando em procurar você a respeito. Eles estavam indo atrás de uma escola cristã novamente, e acharam que tinham todos os seus patos enfileirados, inclusive você.

— Bem, se é um caso que está pendente, obviamente não posso discuti-lo...

Jim ergueu a mão.

Oh, não, não... não se preocupe com isso. Não precisamos discutir o caso, não senhor. Podemos falar a respeito de outras coisas.

— Está bem.

Jim olhou através do lago, reunindo seus pensamentos. — Podemos falar a respeito de alguns itens pessoais, suponho... como uma sociedade secreta em particular, a Ordem Real e Secreta da Nação? Owen sorriu.

— Ora essa, se eu falasse a respeito dela, não permaneceria secreta, não é mesmo?

Jim assentiu com a cabeça.

— É o que entendi. Sabe, estou abismado em ver quantos dos meus supostos amigos sabem tudo acerca desse bando, menos o que quero descobrir.

— É apenas uma sociedade, Jim. Nada com que se preocupar. Jim não estava disposto a deixar o assunto passar.

— Ehhhh... você tem de entender, um homem na minha posição fica meio assustado quando homens na sua posição começam a proteger-se mutuamente e manter pequenos segredos entre si. Bem, eu disse peque­nos segredos, mas não sei de que tamanho eles são, sei?

Owen manteve os lábios firmemente fechados. Essa reunião era de Jim; ele que se incumbisse da conversa. Foi o que Jim fez.

— Ouvi dizer que Carl Santinelli é membro, e isso me preocuparia, pelo tanto que o nome dele é mencionado em Washington. Pensar que vocês dois são amigos do peito na mesma sociedade secreta me arrepia um pouquinho os cabelos.

Owen ficou um tanto tenso, e sua voz adquiriu certa aspereza.

— Isso para mim levanta uma pergunta óbvia, embora eu duvide que venha a obter uma resposta: Como foi que descobriu?

— Estive lendo umas cartas, Owen. Uma porção de cartas. — Jim fitou-o diretamente.

— Cartas escritas por Sally Beth Roe.

Acertou em cheio. Jim podia ver uma reação inegável em todo o rosto de Owen. Owen abaixou a cabeça e resmungou:

— Caramba.— Ora, todos nós temos alguns esqueletos nos armários, Owen. Você sabe isso a meu respeito, e sei isso a seu respeito.

Owen não conseguiu conter a curiosidade.

— O quê... Ela escreveu a você?

— Oh, não. Escreveu ao diretor daquela escola cristã — acho que para dar-lhe umas informações confidenciais e ajudá-lo.

— Bem... espero que você possa reconhecer a diferença entre a verdade e mentiras vingativas.

— Mmmm... uma das primeiras coisas que ela escreveu foi que não estava morta, e fiquei impressionado com a sua veracidade.

— Jim, acho que você está falando por enigmas!

— Ora, está bem, faça-me parar se já tiver ouvido esta: Sally Roe escreveu toda uma pilha de cartas ao diretor daquela escola, acho que para ajudá-lo. O único problema foi que ele jamais recebeu as cartas porque alguém se intrometeu na correspondência dos Estados Unidos e surrupiou todas elas. E quem fez isso foi a chefe do correio local, que era também a acusadora na ação judicial, mas ela concordou em cooperar e nos disse aonde mandou todas as cartas. Você nem pode imaginar: o Instituto Summit! Alguns agentes do FBI foram lá e encontraram cada uma das cartas nas mãos de — está pronto para isto? — Carl Santinelli, o próprio Sr. ACAL. Ele está metido em grandes apuros no momento.

— Isso nada tem a ver comigo. Jim ficou um tanto chocado.

— Onde está o velho espírito de equipe, Owen? Achei que vocês dois eram irmãos na sociedade secreta.

— Não quer dizer nada.

— Está bem, está bem, tentaremos não culpar ninguém por associação.

— Eu apreciaria muito.

— Mas apenas para minha informação, todos vocês, sócios da Nação, não têm algum tipo de anel de membro, um anel de ouro esquisito com uma cara feia desenhada em cima dela, e com o seu nome secreto de código dentro?

— Eu não tenho nenhum anel desses.

— Ora, sei que não está com o seu. Sally Roe está com ele. Bem, estava com ela. Agora está conosco.

Owen apenas ficou olhando.

— Sim, é o seu mesmo. Verificamos seu nome secreto contra as listas oficiais dos membros da Nação. "Gawaine", não é verdade?

O rosto de Owen era como pedra fria.

— Que jogo está jogando aqui?

— O jogo que todos jogamos, Owen. Sally diz que o aprendeu com você. É por isso que ela guardou o anel todos esses anos. É um ás muito bom para ela jogar, e torna crível a sua história, especialmente visto que outroanel lhe caiu nas mãos, um que pertencia a um seu irmão mais novo na Nação, James Bardine, um advogado noviço metido a importante da firma de Santinelli. O anel de Bardine apareceu no dedo de uma satanista. — Jim acrescentou com um toque apropriado, sinistro. — Uma mulher que foi contratada para matar Sally Roe. — Ele acrescentou depressa: — A assassina deu-se mal. Ela própria foi morta, e agora temos esse anel também.

— Portanto, isso mais ou menos une vocês quatro nessa coisa: você, Carl Santinelli, James Bardine, e aquela senhora satanista.... pode dizer mulher, ou como a quiser chamar.

Jim tirou o chapéu e enxugou a testa.

— Owen, estou disposto a apostar que você já sabe o resto, toda a ação judicial a respeito de aquela garotinha ter tido algum tipo de colapso psicótico ou de personalidade, e da ACAL culpar a escola cristã apenas para meter o governo pela porta da escola, e... Bem, foi um belo plano, sim senhor. — Jim olhou diretamente para Owen ao fazer seu próximo comentário. — Para proteger esse plano valia a pena matar Sally Roe ... para proteger esse plano valia a pena encobrir o fato de que alguém tentou matar Sally Roe. Para proteger esse plano valia a pena intrometer-se na correspondência e sair caçando Sally Roe por aí.

Owen ocupou-se com sua vara de pescar, e não olhou para cima. — Jim, creio que estou ficando cansado da sua companhia.

— O nenê era seu, não era?

Owen ficou rígido por um momento. Se Jim estava tentando chocá-lo, a tentativa foi bem sucedida. Ele abaixou a mão e começou a desamarrar a corda que unia os dois barcos.

— Acho melhor você ir embora.

Jim colocou sua mão sobre a de Owen a fim de detê-lo.

— Você estava no conselho consultivo do Centro Ômega, e conseguiu-lhe aquela posição no Centro depois que ela se formou em Bentmore. Você passava uma porção de tempo com ela, não é mesmo, todas as vezes que voava até lá para reuniões com Steele e os outros?

— Até que ela teve aquele nenê em vez de abortar. Ora, essa era uma encrenca no meio da sua carreira! Ela podia ter movido uma ação contra você para obter sustento para a criança, exposto a coisa toda ao público, certo? Que jeito melhor de resolver o problema do que removendo o único elo tangente entre vocês dois — e destruir a mulher ao fazer isso?

Owen endireitou-se desafíadoramente.

— Você realmente pretende argumentar que sou eu o culpado pelas incríveis ilusões de Sally Roe?

Você acredita nesse negócio de espíritos, não acredita?

— Isso é coisa pessoal minha.

— E naquela época, ela acreditava neles — com bastante ajuda sua e daquele bando lá do Ômega.— Isso nada prova.

— Quem disse que os jornais e a televisão alguma vez precisaram provar algo tão suculento quanto isto? Eles publicarão agora e provarão mais tarde. Você mesmo lhes passou uns petiscos de tempos em tempos, você sabe disso.

— E podíamos passar-lhes outros mais — você devia saber disso! Jim assentiu com a cabeça.

— É, isso mesmo. Poderíamos tornar a vida bem difícil um para o outro, sem dúvida. — Então ele deu uma risada. — Mas realmente me divirto com o quadro que me vem à cabeça de você ouvindo um caso trazido pelos seus companheiros de irmandade na ACAL, sabendo que eles tentaram proteger seu caso matando uma mulher com quem já teve um caso. Veja se consegue algo melhor que isso, Owen!

Owen Bennett olhou através do lago e pensou por um momento.

— Então, o que quer? Jim sorriu.

— Será que consegui, Owen? Será que realmente tenho uma alavanca para mexer com você?

Owen retorquiu rispidamente:

— O que quer?

— Lembre-se de que o som se propaga. — Jim deteve-se a pensar por um momento. — Owen, acho que tenho sido um Ministro da Justiça bem bom, e acho que poderia fazer um trabalho melhor ainda se certas pessoas pegassem toda a sua influência e a fossem usar em outras partes. Quero tirar essa trela do meu pescoço.

Owen parecia sombrio.

— Não fui eu que a coloquei aí.

— Mas você tem influência com o pessoal que colocou. É um de seus melhores jogadores.

— Não posso traí-los, Jim. Você sabe disso. Jim deu de ombros.

— Bem, suponho que sempre poderia demitir-se.

— Também não posso fazer isso. Jim estava resoluto.

— Estou-lhe dando uma escolha, Owen.

Tom Harris agarrou o jornal Estrela do Condado de Hampton na varanda da frente da sua casa e voltou para dentro saudado pelo aroma de pãezinhos quentes, ovos, fritada de batatas, toicinho defumado, uma refeição daquelas.

— O que há de novo? — perguntou Marshall.— Oh, muita coisa — disse Tom, examinando atentamente a primeira página.

Era a manhã de sexta-feira; tinha sido uma semana como nenhuma outra, e o grupo central, os jogadores principais, estavam reunidos na casa de Tom para um grande café da manhã, apenas para estarem juntos: Ben e Bev Cole, Mark e Cathy Howard, Marshall e Kate Hogan, e Tom. Apenas Tom. Se a assistente social Irene Bledsoe tinha ouvido falar de toda essas mudanças, não estava admitindo, e até então não estava atendendo aos chamados de Tom.

Ben perguntou:

— Algum discurso dos rapazes da ACAL a respeito da decisão do tribunal?

— Uma questão meio irrelevante agora, de qualquer maneira — disse Mark. — A ação judicial foi cancelada. Está tudo encerrado de vez.

— Que pena — brincou Tom. — Eu estava com hora marcada para depor na semana que vem. Agora perderei essa experiência maravilhosa.

— Mas ainda não está terminado, pelo menos por enquanto — disse Bev. — Isto é, estamos falando de uma grande investigação aqui. Estamos falando de algumas pessoas irem parar na cadeia!

Marshall sorriu um sorrisinho amarelo e meneou a cabeça.

— Provavelmente não.

— Você está louco?

— Às vezes, fico sem saber... Mark perguntou:

— Ora, as autoridades irão examinar isso?

— Meu amigo do FBI, John Harrigan, acha que não. Existem casos e casos. Alguns você investiga, outros, não. Uma coisa como esta... bem, uma embrulhada muito complexa; existe muita coisa relacionada a ela ocorrendo em muitos lugares, e não se pode prender todo o mundo.

— Ei, escutem isto — disse Tom. — Aqui está uma declaração de Gordon Jefferson. Tem até uma foto dele aqui, de pé no lado de fora do tribunal...

— Espere — disse Ben. — Quero sentar. Tom leu a declaração do advogado da ACAL.

— Sinceramente lamentamos esta monumental falha da justiça e dos direitos das crianças em toda a parte. O relógio do progresso foi atrasado severamente por essa decisão. Se o tribunal tivesse decidido em favor da criança, esta ação judicial poderia ter continuado, e poderíamos ter lutado contra o flagelo do fanatismo e da intolerância religiosa contra nossos filhos. A Sra. Brandon deseja que eu expresse seu profundo pesar e seus agradecimentos a todos os que a apoiaram em toda a parte, e seu sonho querido de que a luta por nossos filhos continue. No momento, ela pediu, e concordamos, que a ação seja cancelada, que apanhemos o que sobrou, e que continuemos com nossas vidas da melhor maneira possível.Kate ficou abismada.

— Que monte de mentiras!

— Mas que golpe publicitário! — disse Marshall. — Política oficial da ACAL: Não importa o que aconteça, dê uma de herói!

— Deixe-me ver isso — veio uma voz lá da cozinha. Tom entregou o jornal à própria Lucy Brandon quando ela chegou à sala. Ela examinou atentamente a história e apenas meneou a cabeça. — Cancelei aquela ação na terça-feira, antes da audiência! — Ela passou o jornal para Ben e disse enraivecida: — Mas eles jamais contarão isso, não é mesmo?

Tom comentou:

— Wayne Corrigan e eu estávamos sem saber porque Ames e Jefferson nos fuzilaram com o olhar. Eles sabiam que a ação havia sido cancelada!

— Mas mesmo assim queriam aquela decisão — disse Marshall. — Cada passinho ajuda.

— Bem, para falar a verdade — disse Mark — acho que eles se saíram muito bem. Os juizes passaram umas diretrizes bem restritas.

Ben vasculhou o jornal sombriamente.

— Nada mais a respeito de Joey e Carol Parnell. Bev colocou a mão no ombro de Ben.

— Ben, você acabou de conseguir seu emprego de volta. Não vá sair atrás de outro suicídio falso. Deixe isso para os tiras de Claytonville.

Mas Ben estava obviamente frustrado.

— É que estou achando muito difícil ser paciente com toda essa falta de ação que estou vendo!

— Eu deveria tê-lo avisado sobre essa parte — disse Marshall. — É difícil fazer as autoridades agirem quando o caso é tão vago e inexplicável... e quando as autoridades fazem parte do problema.

Ben passou o jornal para Marshall, ainda furioso.

— Ora, este é policial que vai fazer por merecer o que ganha. Tem de haver uma forma de detê-los!

Marshall examinou rapidamente as primeiras páginas e então sorriu.

— Acho que conseguimos.

— Conseguimos, coisa nenhuma! Não houve investigação, nenhuma prisão, nem mesmo a história verdadeira nos jornais acerca do que de fato aconteceu. Todos nós sabemos o tipo de coisa com que essa gente se está safando!

— Oh... nós os ferimos, Ben. Nós os ferimos. Ganhamos esta rodada. — Marshall passou o jornal para Kate. — E... bem, acho que temos uma boa chance de recuperar os nossos prisioneiros de guerra também.

— Josias e Rute? — perguntou Tom.

Marshall fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Se socar uma toupeira em seu quintal, terá matado a toupeira do quintal do seu vizinho também. Veremos.— E a nossa desaparecida em ação? — perguntou Kate.

— Sally... — disse Marshall. O pensamento era doloroso.

— O que Harrigan disse?

Marshall hesitou um pouco antes de responder a essa pergunta.

— É uma situação difícil. Kholl e sua gente aparentemente estavam no meio de um ritual satânico no porão de Goring quando os agentes federais chegaram lá. Eles precisavam ter tido uma vítima, mas não havia sinal de Sally, e Kholl não está falando. A única coisa que encontraram foram as cartas de Sally. Ela podia ter escapado, ou talvez os satanistas — Kholl e seu bando — a tivessem matado e dado um sumiço no corpo antes que os agentes federais chegassem. Simplesmente não sabemos.

Tom ficou muito sombrio.

— Devemos-lhe tudo. Ela tem de estar viva em algum lugar.

— Vamos estar orando por aquela garota, com toda a certeza — disse Bev.

— E quero vê-la — disse Tom. — Depois de ler todas as suas cartas, sinto-me como se a conhecesse. Não. De fato a conheço.

— Uma mulher incrível — disse Kate.

— Era mesmo — disse Marshall.

Nos arredores de Claytonville, um pintor de paredes encostou seu furgão amassado e carregado de escadas no acostamento da rodovia e saltou alguém que lhe havia pedido carona.

— Está certa de que não quer que eu a leve mais adiante? Não tem nada aqui por perto.

— Não, obrigada — disse Sally Roe.

Ela ficou ali no acostamento, uma nômade muito cansada, suja, man­chada, de calças de brim, jaqueta azul enodoada, e lenço xadrez, vendo o velho furgão afastar-se, fazendo ruído, o escapamento soltando fumaça, as molas curvando-se debaixo de todas as escadas e latas de tinta.

Sentia-se exatamente como o furgão. Seus rosto estava sulcado com os quilômetros, sua alma estava exausta de dor, seu corpo estava contundido e amolgado pelos maus tratos. Mas... ela ainda estava rodando, ainda resfolegando pelo caminho, e pelo menos agora sabia que tinha um bom motivo.

Atravessou a rodovia assim que teve uma chance e meteu-se no mato, seguindo a velha estrada sulcada dos topógrafos que ela havia percorrido na escuridão da noite... Quando tinha sido isso? Parecia que fazia anos. Quase duvidou que fosse a mesma estrada, pois tinha um aspecto muito diferente à luz do dia — convidativa, tranqüila, debaixo de um dossel formado pelas folhas frescas, recém-nascidas da primavera, e de forma alguma o inferno horripilante, infestado de demônios que tinha sido na última vez em que ali estivera.

Ela andou certa distância, seguindo a estrada sinuosa pelas subidas e baixadas que a trilha fazia através da espessa floresta, da galharia emara­nhada e dos galhos baixos. Não se lembrava de ter sido tão longe assim. Talvez tivesse perdido uma volta em algum lugar. Talvez tivesse escondido aquela caminhonete um pouco bem demais.

Oh! Ali, através dos galhos e das folhas, ela entreviu uma tinta azul conhecida. Bem! Ainda estava ali!

Mota e Signa postavam-se perto da velha caminhonete Chevrolet, as mãos nas espadas, olhos alertas, esperando a chegada de Sally. Seus guerreiros haviam guardado de perto aquela máquina desde que Sally a deixara ali. A criançada nas bicicletas sujas, os caminhantes, os que praticavam a equitação, e quaisquer pretensos vândalos tinham todos passado por ela sem a ver, por isso o veículo permanecia intocado, levemente fechado no meio do mato crescido, mas pronto para rodar.

Sally afastou as plantas novas para passar, tirando as chaves do bolso da jaqueta. A porta abriu-se com o conhecido rangido; o cheiro da cabine era o mesmo; ela ainda se lembrava de evitar aquele pequeno rasgo no banco para que ele não ficasse maior. Seu coração dançou um tantinho. Essa velha caminhonete era uma bênção porque era familiar, era sua, era um pedaço de sua casa.

O motor gemeu um pouco, hesitou, girou algumas vezes, e então, com a bombada bem acostumada de Sally no acelerador — algo que tinha de ser feito bem certinho — ele pôs-se a funcionar!

Mota e Signa deram-lhe um empurrão, e com pouca dificuldade, ela fez a caminhonete virar na direção oposta. Os dois guerreiros pularam na rabeira, e puseram-se todos a caminho de Baskon.