terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 40


 Os santos estavam ajoelhados. A divisão estava sumindo. Mark havia dedicado múltiplas horas do seu tempo e grandes medidas de seu cuidado pessoal a curar e restaurar os doloridos e feridos dentre seu rebanho, desfazendo firmemente, e com oração, a confusão emaranhada que Destruidor e suas hordas haviam criado na igreja. Havia sido necessário um tanto de verdadeiro quebrantamento, um tanto de arrependimento e um tanto de perdão de todos os lados, mas isso havia acontecido, e ainda estava acontecendo, em um coração de cada vez.

Os Jessups ficaram tão magoados e consternados que foi preciso cuidadosos e amorosos apelos por parte dos Walroths para que eles voltassem à comunhão; Judy Waring estava abrigando bastante amargura contra gente como Donna Hemphile que a havia usado — e à sua boca — para prejudicar o povo de Deus. Mas teve de admitir, afinal, que foram a sua boca e o seu coração, e começou a reviravolta com essas duas áreas de sua vida. Cada um deles precisou reavaliar totalmente sua opinião sobre Tom Harris, e ainda estavam nesse processo enquanto oravam.

Não foi uma restauração fácil para nenhum deles, mas à luz da revelação do seu inimigo, tinham uma escolha clara: voltar ao exército de Deus e lutar contra o mal que estava naquele instante destruindo-os, às suas famílias e à sua fé cristã, ou... continuar a ser destruídos.

Resolveram unir-se no exército divino e lutar fortemente.

Os anjos mantinham-se quietos, escondidos, e sem falar muito enquanto secretamente se posicionavam em pontos estratégicos por todo o país, esperando que o "incêndio" de Tal começasse.

Mota, o polinésio, e Signa, o oriental, tinham muitos pontos a cobrir por toda a área de Baskon, mas dispunham agora de guerreiros mais do que suficientes, que cuidadosa e metodicamente os cobriam. Terga, o príncipe da cidade de ego sensível, estava ficando nervoso com a súbita maré de orações que vinha dos santos reunidos, mas até então não havia percebido a atividade que todas aquelas preces estavam precipitando. Ademais, ele tinha ouvido a notícia dos poderes acima dele: a mulher havia sido capturada; o perigo havia terminado.

Cree, o índio americano, e Si, do leste indiano, haviam voltado de novo ao Centro Ômega para Estudos Educacionais, e estavam agora postando guerreiros angelicais como cargas de explosivos nos lugares certos por todo o campus. Era um trabalho entediante, perigoso, sendo a descoberta o maior dos perigos. Enquanto rastejavam por ali ou debaixo do chão, moviam-se por sob a superfície do lago, iam furtivamente de árvore em árvore, ou passavam horas totalmente imóveis debaixo de pedras, barcos ou prédios a fim de evitar serem descobertos. Quase sempre conseguiam ver Barquit, o Príncipe de Ômega, disparando para cá e para lá, seus olhos por toda a parte, rindo e exultando a cada progresso feito nas classes e nas oficinas de trabalho, depois rosnando e cuspindo ante qualquer movimen­to desajeitado por parte dos seus demônios ou de sua gente-marionete lá em baixo. Ele ainda dominava totalmente e controlava suas hordas demo­níacas com pulso de ferro. Agora que a mulher havia sido capturada, ele não sentia qualquer temor ou preocupação, e obviamente tencionava permanecer para sempre em seu posto.

Por fora, a Universidade Bentmore parecia a mesma antiga alma mater de tijolos vermelhos permanentemente estabelecida que sempre tinha sido, e as classes iam a todo vapor como sempre.

Na esfera espiritual, entretanto, Corruptor, o rotundo senhor de desinformação e indulgência carnal de Bentmore, movia-se como um dirigível sobre o campus, procurando qualquer dano em que a escola pudesse ter incorrido resultante daquele recente e violento intercâmbio com os guerreiros dos Céus. Ah! Destruidor nada mais era do que um poço de preocupação ansioso para não perder o seu status! Dano? Quase não havia nenhum digno de nota. O professor Lynch havia estado um tanto adoentado ultimamente, mas afinal ele estava ficando velho, e havia muitos outros no lugar de onde ele tinha vindo. Com a mulher capturada, o futuro estava escancarado.Do outro lado do rio, em cima da Companhia Norte-Americana de Latas, Chimon, o europeu, e Scion, das Ilhas Britânicas, estavam de volta, escondidos atrás de uma das muitas chaminés de ventilação da fábrica. As coisas pareciam calmas em Bentmore naquele momento, mas quando o incêndio de Tal tivesse início, haveria barulho o bastante.

Chimon e Scion estavam procurando esconderijos e enviando tropas a ocupá-los. O depósito perto do rio podia abrigar uma miríade mais ou menos; o cais no lado de Bentmore também serviria muito bem, por estar mais perto do campus. As tropas moviam-se silenciosa e rapidamente. Um movimento em falso, uma chispa luminosa fora de hora, podia colocá-los a todos em perigo.

A cada ponto ao longo da jornada de Sally, a cada fortaleza de Satanás, os anjos se posicionavam e então esperavam o sinal.

Mas todos eles sabiam que estavam esperando mais tempo do que haviam previsto.

Nos picos acima do Summit, Tal e Guilo vigiavam e escutavam a fim de ter alguma indicação do que poderia estar acontecendo lá dentro. Atrás deles, um exército oculto jazia à espera, pronto.

— A qualquer momento — disse Tal mais de uma vez. — A qualquer momento.

Num sentido puramente físico, o chalé do Sr. Goring era uma atraente estrutura em formato de A, construída com madeira grosseiramente talha­da e uma frente de vidro que ia até o teto e oferecia uma vista maravilhosa das montanhas. Poderia ter servido muito bem como um pavilhão para esquiadores ou um retiro nas montanhas.

Num sentido espiritual, era um ninho de marimbondos, tumultuado, espumante de maldade, e Sally pôde senti-lo mesmo antes que seus captores a conduzissem através da porta da frente. Ela sabia que estava sendo vigiada de cada direção; podia discernir o ódio opressivo, sufocante que cobria o lugar como uma bruma de chumbo.

Destruidor já se encontrava no chalé, forçando passagem à sala de estar, empurrando para o lado os demônios e assistentes do Homem Forte com rude atrevimento. E lá foi ele adentrando o covil do Homem Forte, marchando empertigado pela estreita passagem formada por duas filas alinhadas de senhores demoníacos de todo o mundo, até que enfim se postou na presença do Homem Forte.— Meu Ba-al — disse em voz bem alta, com uma mesura um tanto exibicionista — trago-lhe Sally Beth Roe!

O Homem Forte tinha ouvido a nuvem demoníaca em alvoroço, e agora podia ver Kholl e seus homens trazendo Sally Roe à porta da frente. Ele moveu a cabeça em aprovação cuidadosamente medida.

— Trouxe mesmo. Trouxe mesmo.

Os senhores demoníacos ergueram as espadas para começar a dar vivas. O Homem Forte grunhiu, os braços estendidos:

— Esperem! — Eles se detiveram bruscamente e fitaram-no. — Primeiro veremos se existe alguma coisa para aplaudir.

A pesada porta de pranchões fechou-se atrás de Sally e de seus captores. Estavam em pé na espaçosa e confortável sala de estar do Sr. Goring. Num dos lados, havia enorme lareira de pedras; no outro lado, uma parede de vidro trazia as montanhas para dentro; o teto de vigas expostas pairava acima deles até o cume do telhado, e da maciça viga da cumeeira, rústicas luminárias de ferro pendiam de longas correntes.

Três homens ergueram-se de seus lugares perto do fogo. Sally reco­nheceu Steele, e o sorriso satisfeito deste deixava patente que ele a reconhecia.

Foi Goring quem ordenou.

— Tragam-na aqui e façam-na sentar.

Kholl estava atrás de um pouco de glória. Ele agarrou o braço de Sally e a puxou para diante, mantendo-a constantemente desequilibrada, e depois, com um aperto cruel que lhe machucou o braço, jogou-a sobre o sofá. Com apenas alguns gestos discretos, ele ordenou aos seus quatro capangas que montassem guarda em torno dela.

— Senhores — disse ele com arrogância — trago-lhes Sally Beth Roe.

Os três homens postaram-se diante dela, fitando-a com grande interes­se. O homem de cabelos grisalhos com a barba perfeitamente aparada e o colar de osso olhou para o homem alto, de cabelos prateados, com cara de executivo, e então ambos olharam para Steele.

— É ela — disse Steele. — Muito bem, Sr. Kholl. Aceitaremos a nossa conta com o senhor imediatamente. Entretanto, se concordar, poderemos precisar ainda dos seus serviços.

Kholl sorriu, lançando a Sally um malicioso olhar de esguelha.

— Seria um prazer.

— Então, por favor, fique mais um pouco, o senhor e o seu pessoal. Tentaremos resolver este negócio o mais rápido possível.

— Não tem pressa.

Com Sally colocada seguramente no sofá, e debaixo de guarda compe­tente, os três cavalheiros descontraíram-se e tomaram seus assentos, osdois homens mais velhos em outro sofá de frente para Sally, e Steele numa grande cadeira preguiçosa entre os dois sofás, de frente para o fogo. Steele deu inicio à conversa.

— Sally, deixe-me apresentar-lhe meus dois amigos. — Ele indicou o homem com a barba perfeitamente aparada. — Este é o Sr. Emile Goring, presentemente diretor de finanças da Associação Mannesville, um pensador ambiental e humanitário de renome internacional, e mobilizador de pro­jetos globais. É um dos principais acionistas e diretor em mais de quarenta firmas mundiais de óleo, gás, transportes, exportações, mineração e assim por diante.

Sally olhou na direção de Goring, que lhe fez um movimento de cabeça com expressão sombria, mas ainda fascinada.

Steele queria certificar-se de que Sally ficasse impressionada.

— Conseqüentemente, o que o Sr. Goring desejar fazer, tem os meios para fazer. Ele e seus associados são importantes contribuidores e agentes para empreendimentos como o Instituto Summit; este instituto é parte de sua visão, e não estaria aqui se não fosse por seus esforços.

— O outro cavalheiro é o Sr. Carl Santinelli, Sócio Sênior na firma de Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon, uma das firmas de advocacia mais poderosas no país e, de certo modo, a nau capitania da ACAL. É homem de grandes causas de lei e de jurisprudência, um ativista judicial da mais alta ordem, e definitivamente não um homem com quem se intrometer.

Sally olhou para Santinelli, e recebeu um olhar fixo, frio e perscrutador, de volta.

Então Steele voltou-se para Goring e Santinelli.

— Sr. Goring e Sr. Santinelli, apresento-lhes a Srta. Sally Beth Roe, antiga Diretora dos Recursos para Currículos Primários do Centro Ômega para Estudos Educacionais, condenada por homicídio, ex-detenta, operária de produção na Fábrica de Portas Bergen, e, mais recentemente, nômade.

Goring e Santinelli continuaram a estudá-la como se estivessem olhan­do para uma verdadeira raridade.

Steele relaxou em sua cadeira e a estudou por si mesmo.

— Tem sido uma aventura e tanto, não?

— Tem, sim — respondeu ela.

— Estou vendo que as raízes do seu cabelo estão começando a aparecer. Realmente sinto falta de ver seu chame jante cabelo ruivo. E desde quando você usa óculos coloridos?

Ela suspirou e tirou-os, esfregando os olhos cansados. — Tudo um disfarce, naturalmente. — Depois ela admitiu com amargura. — E muito inútil.

— Muito inútil — concordou Steele. — Mas você compreende, não é mesmo, por que precisamos capturá-la? A pergunta enraiveceu-a.

— É minha impressão, Sr. Steele, que o senhor e seus associados me querem morta, e eu gostaria de saber porquê.

— Ora, vamos! Uma pessoa tão brilhante e experiente quanto você deveria saber o quanto nos atrapalha. Quanto àquele atentado inicial contra a sua vida, direi sem rodeios. Foi erro crasso, um fiasco infeliz perpetrado por uns incompetentes que acharam que nos agradariam. Não gostamos. Matá-la dessa forma nunca foi a nossa intenção original.

— Então qual era a sua intenção original? Santinelli sorriu.

— Nossa intenção original era a ação judicial contra a Academia do Bom Pastor em Baskon, a cidade em que atualmente reside. O fato de você ter tropeçado no meio do nosso projeto foi surpresa total para nós.

Sally precisava confirmar aquilo de que desconfiava.

Vocês são, em última instância, os responsáveis pela ação judicial contra a escola cristã?

Santinelli assentiu com a cabeça.

— Lucy Brandon primeiro entrou em contato com a nossa filial local da ACAL, a filial entrou em contato com a associação estadual, a associação estadual entrou em contato conosco, e resolvemos que o caso poderia vir a ser proveitoso. Imediatamente, colocamos nossa força e influência por trás dele.

— Mas não por causa da criança, Amber, naturalmente?

Santinelli trocou um olhar com os outros. Essa mulher era tão esperta quanto Steele havia dito que era.

— Obviamente, você não tem ilusões sobre a nossa preocupação com a segurança, os direitos e o bem-estar das crianças, especialmente visto que a ACAL defende com regularidade os interesses dos pornógrafos e abusadores de crianças. — Ele se recostou no sofá com o queixo levantado, batendo de leve com as pontas dos dedos umas nas outras, observando-lhe os olhos à espera de uma reação.

Ele forçou um canto da boca a se espichar para cima e fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Como bem pode imaginar, o verdadeiro objetivo da ação judicial não é a concessão de indenização à acusadora, mas o de abrir um precedente legal, o de moldar e ajustar a lei, até reescrever a lei, através de um caso ideal para o estabelecimento de um precedente.

Steele contribuiu:

— A Srta. Roe está bastante familiarizada com a nossa pauta para transformação social através de educação pública controlada pelo estado. Ela foi importante contribuidora para esse esforço em certa época.

Santinelli assentiu com a cabeça, impressionado.

— Portanto, você percebe que grande impedimento à nossa causa os cristãos representam enquanto lhes for permitido criar e educar seus próprios filhos segundo suas crenças bíblicas. Mesmo antes de seus anos no Ômega, estávamos procurando legislação e precedente legal que pudesse ser usado a fim de sufocar esse impedimento. Demorou todo esse tempo para que isso ocorresse.

— Mas ocorreu! — exclamou Goring com um sorriso triunfante. Santinelli permitiu-se o mesmo sorriso e continuou:

— A última legislação para nosso uso foi o Decreto Federal de Assistên­cia a Creches e a Escolas Primárias Particulares, e o Decreto de Direitos Civis Munson-Ross, cada um deles uma pilha bastante confusa de leis que, como havíamos esperado, teria de ser testada e esclarecida pelos tribunais. O caso da Academia do Bom Pastor parecia feito sob medida para esse propósito. Não apenas envolvia fundos federais gastos numa escola cristã, e daí a intervenção e controle do governo, como também incluía o ângulo útil, inflamatório de abuso infantil, algo que podíamos usar a fim de incitar o apoio da imprensa e da mentalidade pública, fazendo com que todos eles passassem para o nosso lado independente das verdadeiras questões. Com o público chocado e preocupado com a proteção de crianças inocentes, seríamos vistos como nada menos do que defensores das crianças ao estabelecer através da abertura de precedentes o direito e o dever de o estado controlar a educação religiosa.

Ele não pôde resistir a uma risada de prazer, antes de prosseguir.

— Mesmo após o trauma inicial, real ou forjado, contra a criança ter-se desvanecido no passado e sido esquecido, as leis ainda estarão nos livros, e o governo firmemente plantado dentro das paredes da igreja.

— Conforme você mesma ensinou e aprendeu — continuou Santinelli — uma vez que esse controle da instrução religiosa seja estabelecido, a eliminação metódica e gradual de toda instrução religiosa é apenas questão de tempo. E então pessoas como você foi terão tremendo poder, de longo alcance, para controlar e moldar, sem resistência, cada segmento da próxima geração.

Sally assentiu com a cabeça. Ela havia aprendido esse catecismo. Goring apanhou o fio da narrativa.

— Bem, parecia prometedor, naturalmente. Mas isso foi antes de você surgir por acaso. Pode imaginar o choque que foi ficar sabendo que você havia saído da prisão e que morava na própria cidade onde havíamos movido a ação judicial. Pior do que isso foi a maneira pela qual descobri­mos: O nosso pequenino troféu, a própria criança em questão, suposta­mente a pura, totalmente inocente vítima de fanáticos e violentadores cristãos, de súbito escolheu exibir sua verdadeira natureza certo dia no Correio local. Ah! Vejo que se lembra do incidente! De todas as pessoas que poderiam presenciar a explosão, tinha de ser você!

— Quando a Sra. Brandon levou o incidente ao conhecimento de seus advogados, eles nos avisaram, e, sabendo quem você era, vimos um risco substancioso de que você reconhecesse a condição da criança, especial­mente visto que você havia escrito o currículo que a causara. Percebemos que você poderia prejudicar severamente o nosso caso se resolvesse apresentar-se.

Santinelli permitiu-se uma risada pesarosa.

— Mas realmente, ainda não havíamos decidido qual seria o nosso curso de ação quando um membro mal orientado — ex-membro agora — de nossa equipe tomou as rédeas na questão e contratou os serviços de uma assassina.

— Com essa parte você está bem familiarizada — afirmou Goring.

— Oh, sim.

— E isso — disse Santinelli — nos traz ao motivo pelo qual temos todos estado envolvidos nessa bela perseguição. Srta. Roe, se você tivesse morrido então, poderíamos ter absorvido o erro e continuado com nosso plano, em nada prejudicado pela impulsividade do nosso amigo. — Ele suspirou. — Mas sendo a pessoa impressionante que é, você não apenas viveu, mas matou a assassina e a deixou lá a fim de criar todo o tipo de pergunta se fosse encontrada, e escapou com o anel que a assassina usava no dedo, um anel que podia eventualmente ligar todo o negócio malvado a nós.

Sally nada disse, e tentou evitar que seu rosto dissesse alguma coisa.

— A assassina era espertinha. Era amante daquele ex-membro de nossa equipe, e surrupiou o anel dele, acreditamos, com o propósito de chanta­gem e manipulação. Aquele anel poderia ter contado a qualquer um quem era seu verdadeiro dono, tudo o que seria necessário era a obtenção das listas de membros da Nação nos quais todos os nomes codificados estão enumerados. Os dois itens estão agora, acreditamos, em sua posse?

— Estou preparada para negociar — replicou ela. Todos eles sufocaram uma risada e trocaram olhares.

Steele aventurou uma pergunta que todos achavam desnecessária.

— Então... está disposta a renunciar às listas e ao anel em troca de alguma coisa? E o que seria essa coisa?

Sally olhou todos eles nos olhos e falou claramente.

— Que vocês abandonem a ação judicial, deixem a escola cristã em paz, e permitam que Tom Harris possa reaver os filhos.

Dessa vez eles não sufocaram a risada de forma alguma, mas deliciaram-se plenamente com o apelo dela.

— E depois - disse Goring — você nos devolverá as listas e o anel para dispormos deles?

— Podemos certamente conversar sobre isso; estou certa de que poderemos chegar a um acordo.

Santinelli inclinou-se para diante.— É uma corrente o que vejo em torno do seu pescoço?

Kholl certificou-se de que era. Ele forçou a cabeça dela para o lado e agarrou a corrente, puxando-a com força de sob a blusa.

Um anel de ouro pendia na ponta.

Com um safanão cruel que a ergueu do sofá e penetrou-lhe no pescoço, ele agarrou de súbito a corrente e arrancou-a. Sally foi parar no tapete com um grito de dor, apenas para ser erguida pelos capangas e atirada sobre o sofá novamente.

— Ei, parem com isso! — ordenou Goring. Depois ele apontou o pescoço dela que sangrava. — Coloquem um pano sobre isso. Não quero que manche o sofá.

Um dos homens de Kholl colocou um lenço em torno do pescoço de Sally.

Kholl balançou o anel acima da palma de Santinelli, e em seguida deixou-o cair.

Santinelli examinou o anel.

— Mm-hm. O Anel de Fraternidade na Ordem Real e Sagrada da Nação. Um objeto sagrado, é certo. — Ele olhou enraivecido para Sally. — Sagrado demais para estar em sua posse... ou continuar em sua posse.

Sally segurou o lenço de encontro ao pescoço, atordoada e esvaziada em seu espírito, e estremecendo pela dor causticante do ferimento.

— Estou vendo que pertence a esse grupo.

Santinelli olhou para o Anel de Fraternidade em sua própria mão.

— Oh, a Nação consiste de muitos irmãos, todos em lugares vitais: no governo, nos bancos, nos tribunais federais, nos colegiados e conselhos das universidades. Você conheceu bem o Owen Bennett, claro, e estou certa de que já leu uma quantidade impressionante de nomes nessas listas que roubou. Como qualquer outra sociedade secreta, ajudamos todos os nossos iniciados a se estabelecerem nos lugares certos, e cuidamos dos interesses uns dos outros, contanto, naturalmente, que o interesse de cada homem se conforme aos interesses da sociedade.

— Aparentemente, os interesses de James Bardine não se conformaram. Santinelli sorriu.

— Ah, sim, aquele "ex-membro de nossa equipe" tem um nome. Então foi você que ligou para o nosso escritório? Soube que a nossa recepcionista recentemente informou uma interlocutora anônima sobre a sua morte prematura. — Ele deixou o anel ficar caindo de uma mão para a outra. — Fraternidade é uma coisa; violação de sagrados votos de sangue de manter segredo é outra.

Ela olhou pelas janelas na direção das montanhas.

— Há algumas coisas que é melhor manter lacradas, Srta. Roe. Se pudesse ter dado uma volta pelos arredores, ou caminhado pela cidade de Summit e encontrado algumas das pessoas que estão aqui esta semana,teria encontrado muitas diferentes organizações esotéricas representadas, e alguns... indivíduos... bem... singulares. Somos todos uma família global, como sabe; esse é o brado unificador de cada coração. Proclama­mos essa idéia aqui e em toda a parte, da mesma forma que você própria a proclamou, e ensinamos que todos são iguais. — Ele pausou para causar efeito. — Mas não revelamos a mais ninguém o fato de que alguns são superiores a outros, e muito mais capazes de governar.

Ele colocou o anel sobre a mesinha de centro e depois olhou para ela diretamente.

— Confio que agora você avalia plenamente o que está em jogo aqui, quão implacáveis e determinados somos, e quanto a sua situação é deses­peradora. Não estamos aqui para negociar, Srta. Roe, mas para pôr um fim na ameaça que você representa para nós. Exatamente que processo será necessário para conseguir isso dependerá em grande parte de você mesma.

— Ele olhou para Kholl. — Estou certo de que pouco conforto lhe trará saber que o Sr. Kholl e seus quatro comparsas são membros da mesma ordem secreta à qual pertencia a sua assassina, uma seita satânica conhe­cida como Vidoeiro Quebrado. São um bando implacável que viceja com derramamento de sangue, tortura, sacrifício humano. Muito repugnante.

— Ele voltou o olhar a Sally. — Srta. Roe, somos decentes, e não lhe desejamos mais desconforto do que você possa tornar necessário. Para falar às claras, seu destino depende de seu desempenho.

Natã, o árabe, e seu pequeno bando de sentinelas continuava defen­dendo o caminhão do correio à medida que este se aproximava mais e mais de Ashton. Armoth, o africano, havia voado adiante a fim de avisar Krioni e Triskal, os anjos de guarda da cidade. Era apenas uma questão de tempo antes que Destruidor soubesse da carta que aquele caminhão transportava.

No jardim de ervas que não ficava longe do chalé de Goring, um grupo de mais ou menos trinta participantes se reunia ao ar fresco e perfumado para um período de trabalho matinal, conduzido por um famoso cantor. O jovem de cabelos loiros havia trazido seu violão, e havia umas canções planejadas para antes de sua palestra sobre "Ecologia: A Fusão da Terra e do Espírito."

Havia certa euforia no grupo. Essas pessoas jamais haviam estado tão perto assim de alguém tão famoso, e ele não era a única pessoa famosa sentada ali entre o alecrim, o tomilho e as orelhas de burro. Dois ministros de estatura mundial que apareciam nos noticiários também estavam pre­sentes, bem como o diretor de filmes místicos de ficção científica cujo nome era conhecido por todos, e cujos personagens dos filmes eram agora brinquedos de plástico no quarto de cada criança no pais e lá fora.

O cantor loiro dedilhou o violão, e todos se puseram a cantar uma de suas conhecidas baladas. O momento era mágico.

Os demônios entre eles também estavam se deleitando. Adoração e atenção tais como as que estavam agora recebendo eram como uma boa massagem nas costas, e eles chegavam mesmo a se contorcer e remexer de gozo a cada compasso do sentido duplo cuidadosamente disfarçado da música.

Huh? O que foi aquilo? Os demônios viraram as cabeças a fim de olhar na direção do distúrbio.

Dois guerreiros demoníacos chegavam, deslizando por cima do topo do Pavilhão Goring, aparentemente rumando para o chalé de Goring. Levavam entre si o vulto murcho, lasso de um demônio estropiado, ainda ganindo e berrando de agonia. Com um som suave, farfalhante, eles passaram bem acima do jardim de ervas e em seguida desapareceram por trás da alta cerca viva.

Os demônios no jardim de ervas se remexeram, alvoroçaram e resmun­garam uns para os outros. O que foi aquilo? O que foi aquilo? O que aconteceu?

Alguns médiuns haviam comparecido, e os demônios grudados em seus cérebros ficaram tão alvoroçados quanto os outros. Os médiuns puderam sentir imediatamente.

O jovem loiro chegou a parar a música.

— O que é?

— Um distúrbio — informou uma advogada que era médium.

— Sim — confirmou um professor de quinta série, os olhos fechados. — Algum tipo de má energia. Há algo errado em algum lugar.

No chalé, Destruidor se deliciava com toda a conversa, o mesmo ocorrendo com o Homem Forte, embora esse último se impacientasse.

Por que esperar tanto? rosnou ele. Faça-a falar, e depois dê cabo dela! O Plano está esperando!

— Destruidor! — veio uma voz áspera do lado de fora do prédio. Era um dos capangas de Destruidor. — Um guerreiro traz notícias!

— Agora não! — vociferou Destruidor, querendo ver o que aconteceria à mulher.

— Vá! — disse o Homem Forte.

Ele foi, saindo para fora do chalé a fim de escutar um espírito de aparência lastimável.

— O que aconteceu com você?

O demônio sentou-se sobre as ancas no chão, as asas estendidas como lonas negras e esfarrapadas, amassadas, flácidas e cheias de buracos. Sua cabeça estava toda machucada, e ele se apoiava a fim de evitar cair.

— Atacamos um caminhão do correio que ia para Ashton. Destruidor abaixou-se bastante.

— Você disse Ashton?

O demônio começou a tombar.

Destruidor agarrou-o pelo pescoço e fê-lo ficar ereto com um safanão.

— Você disse Ashton?

O demônio deu uma resposta indistinta e fraca.

— Ashton. A carta está indo para Ashton, e os Exércitos Celestiais a guardam.

Destruidor disparou uma olhada para dentro do chalé. O Homem Forte ainda observava o interrogatório de Sally Roe. Ainda estava impaciente. Ele queria resultados. Se não obtivesse resultados, e depressa, certas cabeças iriam rolar.

Destruidor quase podia sentir sua cabeça rolando. Ele deixou o demô­nio cair pesadamente ao chão, depois fez sinal aos seus capitães que se reuniram em torno dele.

— Há uma carta destinada a Ashton, guardada pelo Exército Celestial. Eles não a guardam a troco de nada! — Seu rosto enrugou-se grotescamente ao pensar nisso. — Sally Roe pode ter escrito a alguém lá.

Os capitães se entreolharam boquiabertos.

— Então? — exigiu Destruidor. — Vocês me ouviram?

— Ashton! — exclamou um deles.

— Não podemos voltar lá! — disse outro. Destruidor pediu silêncio com um gesto rápido.

— Apenas dêem uma olhada, e façam-no na surdina. Estou certo de que não é nada com que nos preocuparmos, apenas uma cartinha.

Eles olharam uns para os outros.

— Qual de nós deveria ir? — perguntaram-se. Destruidor reteve um berro e, em vez disso, sibilou:

— Que tal todos vocês? E levem alguns guerreiros a mais.

Todos foram, reunindo tantos demônios desordeiros quantos quises­sem ir.

Destruidor apressou-se de volta ao chalé de Goring. O Homem Forte ouvia atentamente o interrogatório de Sally e não perguntou o motivo da interrupção.

Destruidor não tinha nenhuma intenção de contar-lhe.

Em Ashton, Krioni e Triskal podiam ver o caminhão do correio entran­do nos limites da cidade, bem no horário. Infelizmente, a preciosa carta que trazia estava com um dia de atraso.Triskal olhou pata o oeste.

— Até agora, nenhum problema. Krioni não se mostrava otimista.

— Eles virão aqui.