terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 38


 Na manhã de segunda-feira, sem aviso prévio e sem que ninguém esperasse, a máquina de Fax no escritório do

Clarim de Ashton chilreou seu toque eletrônico e mal foi ouvida acima do tumulto pré-publicação que geralmente marcava as manhãs de segun­da-feira. Bernice não ouviu nada; ela estava no escritório fechado a vidro de Marshall, tentando convencer a Padaria do Eddy a comprar apenas outros cinco centímetros de coluna para ela não ter de preencher aquele espaço com ditos idiotas de uma linha só.

— Ei, escute — dizia ela — faremos a rosquinha maior, e em seguida aumentaremos a caneca de café, sabe, mostrando mais vapor saindo ou alguma coisa assim. Os leitores vão cair por ele direitinho. Claro que sim!

— Bernice! — gritou Cheryl através do vidro. — Está chegando um fax para você!

Bernice ergueu os olhos para Cheryl.

— O quê?

Cheryl disse algo em resposta, e tudo o que Bernice pôde ouvir através do vidro foi a palavra fax. O resto ficava por conta de quem pudesse ler lábios.

Um fax? De quem? Até ali, ela não podia pensar em nada.

O telefone grasnou em seu ouvido. Ele precisava responder.

— Oh, sim. Bem, pense sobre isso, está bem, Eddy? Farei um desconto para você. Bem, deixe-me pensar sobre isso. Está bem, até logo.

Cheryl bateu de leve na porta, abriu uma fresta, e jogou a folha de papel para dentro, ainda quente da máquina de fax.

Bernice agarrou-a antes que ela flutuasse para o chão e deu uma olhada.

Oh! Era de Cliff Bingham, seu contato em Washington, D.C.! Ela se havia esquecido totalmente dele. Ora, ora! Ele havia encontrado o currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu para as quartas séries na Biblioteca do Congresso e mandado para ela a página do titulo com uma nota rabiscada no topo: "Bernice, era este aqui que você queria? — Cliff."

Ela sorriu. Bem, Cliff, você se saiu bem, mas Marshall já viu o currículo; você chegou tarde demais. Mesmo assim, obrigada.

Ela foi até seu arquivo rolante de telefones para encontrar o número de Cliff, encontrou-o, e apanhou o telefone. Apertou as teclas do número, e deu outra olhada à primeira página enquanto esperava que o telefone tocasse e alguém respondesse.

Foi então que ela o viu. Bateu o telefone no gancho. Correu os olhos pela página de novo a fim de ter certeza. Examinou a data da publicação.

Pegou o telefone e bateu com força as teclas do número da residência dos Coles em Baskon.

— Alô? — Era Bev Cole.

— Alô, Bev. Aqui é Bernice Krueger em Ashton.

— Oh, oi! Quem diria!

— Preciso falar com Marshall imediatamente!

— Hooo, bem, ele não está, e não sei onde está.

— Tenho de — oh, bolas! Ele disse quando estaria de volta?

— Não, ele corre tanto por ai que nunca sei onde está, ele e o Ben.

— Bev, escute, vou mandar uma coisa para o Marshall pelo fax. Ele deveria poder apanhá-lo na Judy, certo?

— Oh, sim, se ela estiver aberta.

— Vou mandar um fax para o Serviço de Secretaria da Judy agora mesmo, e você diz a ele para ir lá imediatamente pegar, está bem?

— Está bem, direi. Ei, você parece excitada.

— Oh, estou um tanto nervosa. Vejo você depois. Tchau!

Ela saiu aos trambolhões do escritório e dirigiu-se diretamente à máqui­na de fax.

Marshall, onde está você?

Lucy Brandon repassava a correspondência da manhã, separando-a, colocando-a em todas as caixas postais e designando-a às quatro rotas diferentes de entrega. Ela estava doente, nervosa, esgotada e exausta, e agora começava a detestar seu trabalho, especialmente quando chegavam cartas de "S. B. Roe".

Como essa ai, acabada de sair do malote, em sua mão ao mesmo tempo em que pensava sobre ela! Quantas eram como essa? Tinham de ser mais de trinta. Trinta e tantos envelopes, todos estufados com diversas folhas do mesmo papel pautado de caderno, todas escritas com a mesma caligrafia fluída apenas visível através do envelope, e todas endereçadas a Tom Harris.

Então, acho que quando mandar esta aqui adiante, estarei infrin­gindo a lei federal mais de trinta vezes. Que idéia. E se eu a entregasse a Tom Harris? E se eu a introduzisse na caixa do carteiro dele, apenas uma dessas cartas, só uma vez?

— Bom dia, Lucy!

Ela literalmente deu um pulo, derrubando a carta no chão. O sargento Haroldo Mulligan!

— Sargento! O que está fazendo aqui atrás? Quase me matou de susto! Ele se abaixou e apanhou a carta do chão.

— Ah, outra delas, hein? Ela tentou tomá-la dele.

— Sim, muito obrigada — Ele não soltou.

— Não, calma agora, Lucy. Tenho ordens com relação a qualquer outra correspondência da Srta. Você-sabe-quem.

Ela não ligou.

— Devolva-me essa carta, Sargento! É correspondência dos Estados Unidos!

— O quê?

Ele chegou mesmo a agarrar-lhe o braço com força e empurrá-la contra a parede! Ele a machucava, e ela simplesmente não podia acreditar!

Ele lhe disse em voz baixa, ameaçadora, o que ela nunca antes havia ouvido dele.

— E o que é que você acha que vai fazer com ela, hein, Lucy? Pensa que talvez a mande para onde está endereçada? Hein?

— Solte-me!

— Escute o que digo, mocinha! Qualquer outra carta de Roe, você coloca bem na minha mão, bem aqui, entendido? Você não mexe com ela, nem mesmo pensa sobre ela, ou vai ter um grande e horroroso monte de problemas!

Lucy ficou com medo.

— Estou fazendo o que me mandaram fazer, Haroldo, você sabe disso. Por favor, solte-me!

— Apenas quero ter certeza de que estamos entendidos quanto a isto...

— Por favor — veio uma voz lá da frente. Era Marshall Hogan.

Ora, bolas, quanto disto aqui ele viu? Mulligan imediatamente mudou sua postura agressiva para uma que parecia brincar com Lucy, e soltou-a.

— É isso aí, Lucy, cuide-se!

Ele saiu pelos fundos com a carta no bolso.

Debbie dirigiu-se ao balcão para servir o ruivo grandalhão.

Lucy apressou-se à frente.— Eu o atenderei.

Debbie afastou-se, mas podia ver que Lucy não tinha condições de cuidar de ninguém. Tarde demais, todavia. Não podiam falar a respeito de uma coisa dessas na frente de um freguês. Ela voltou à separação de cartas, mas manteve-se de olho na chefe.

— Quero um livrinho de selos — disse Marshall gentilmente.

Ela enfiou a mão na gaveta debaixo do balcão. Suas mãos tremiam visivelmente, e ela não conseguia olhar para cima.

— Está em apuros? — perguntou Marshall.

— Por favor, não posso falar com você — disse ela à beira das lágrimas.

— Então apenas venda-me os selos — disse ele. — Faça isso primeiro. Finalmente ela encontrou um livrinho de selos e os colocou sobre o balcão.

Ele tinha colocado outra coisa sobre o balcão também.

— Este é o relatório do Legista Joey Parnell sobre a mulher que suicidou-se, supostamente Sally Beth Roe. Está vendo a descrição? Cabelos pretos, de vinte e poucos anos. Aqui... olhe isto. — Ele colocou uma fotografia à frente dela e continuou falando em tom baixo, suave. — Esta é uma foto policial dela. Ela era fichada na polícia. Agora, sei que você sabe que cara tem a verdadeira Sally Roe; você identificou uma foto dela no seu depoimento. Mas esta é a mulher que foi encontrada morta. Era membro de um bando secreto de bruxos que se chamam pelo nome de Vidoeiro Quebrado, e quando ela tentou matar Sally Roe, trabalhava para alguém — trazia consigo dez mil dólares.

Lucy baixou os olhos à foto, ainda tremendo mas ouvindo. Marshall continuou:

— Agora, aquele tira que acabou de maltratá-la lá atrás fez tudo o que pôde para encobrir tudo e fazer parecer suicídio, e achamos que sabemos porquê: ele pertence a esse bando; está envolvido na coisa toda. Para falar a verdade, esse bando inclui umas pessoas bem importantes no Circulo Vital — alguns de seus próprios amigos, inclusive Claire Johanson e Jon Schmidt.

Marshall esperou apenas um momento para aquilo penetrar, e depois concluiu:

— Quanto a Sally Roe, temos boas evidências de que ainda está viva em alguma parte, provavelmente escondida para salvar a vida. Portanto, a questão que gostaria que considerasse é esta: Por que os mesmos amigos que a estão ajudando nessa ação judicial desejariam que Sally Roe fosse morta?

Lucy não disse uma palavra. Podia somente deixar-se ficar ali, comple­tamente imóvel, o olhar fixo nas fotografias enquanto lágrimas inundavam-lhe os olhos.Marshall conseguiu a resposta no rosto dela. Ele apanhou de volta o relatório do legista e as fotos e passou a Lucy um pedaço de papel.

— É neste número que poderá encontrar-me, na casa de Ben e Bev Cole. Chame a qualquer hora.

Ele pagou o livrinho de selos e saiu. Lucy não se moveu, mesmo enquanto o dinheiro que Marshall havia deixado para os selos permanecia no balcão à sua frente.

Debbie viu a coisa toda. Agora chegava de apenas observar. Ela ia fazer algo a respeito.

A correspondência... Esqueci-me da correspondência!

Bernice entrou no seu Fusquinha e se mandou para o Correio de Ashton um tanto tarde naquela manhã.Com toda aquela agitação, a tarefa diária de apanhar a correspondência não lhe havia passado pela cabeça.

Ela entrou no saguão, disse alô ao Lou, o jovem funcionário, e abriu a Caixa Postal do Clarim de Ashton.

Krioni estava ao seu lado, tão interessado na correspondência matutina quanto ela. Ele procurava uma carta importante de Sally Roe.

Bernice repassou rapidamente os folhetos não solicitados, as contas, as cartas ao editor... Ah, havia alguns cheques de pagamento dos anúncios e classificados; esses eram sempre bons.

Nada de extraordinário, tudo rotina. Ela deixou cair toda a correspon­dência em sua grande sacola de plástico e dirigiu-se à porta.

Esse era um horrendo acontecimento! Krioni disparou através do teto do Correio e encontrou-se com Triskal bem acima dali.

— Nada! — disse ele.

Triskal não estava pronto para essa noticia.

— Nada? Nenhuma carta?

Eles podiam ver Bernice entrando de volta em seu carrinho, demasia­damente calma e tranqüila.

— Não chegou aqui — disse Krioni, agitado, frustrado, e pensando depressa. — Está perdida... Extraviou-se... Não sei! É melhor avisarmos Natã e Armoth. Se não fizermos o fogo começar em tempo, Sally Roe estará praticamente morta!

A última carta de Sally para Tom Harris estava aberta sobre a escriva­ninha de Claire Johanson, e Claire estava ao telefone.

— O Hotel Caravana — dizia ela. — Acho que a nossa mágica funcionou afinal de contas; esta é a primeira vez que Roe revelou seu paradeiro. Parece que ficará lá por algum tempo; está esperando que Tom Harris entre em contato com ela. — A pessoa no outro lado ficou alvoroçada. — Bem, ficarei mais descansada quando a tivermos, antes que ela escreva para mais alguém. E ficarei tranqüila de todo quando ela estiver morta. — Mais grasnados alvoroçados do outro lado. — Sim, estou certa de que o Sr. Santinelli se alegrará. Dê-lhe lembranças nossas.

Claire desligou, descansou o queixo sobre os nós dos dedos, e sorriu ao sargento Harold Mulligan.

— Harold, sirva-se de alguma bebida.

Natã disparou através do telhado do Correio perto de Chicago e sobrevoou as cabeças dos ocupados funcionários, olhando de um lado e de outro, curvando-se e deixando-se cair sobre mesas, balcões e carrinhos, em seguida indo parar debaixo das mesas, voando apenas centímetros acima do linóleo, os olhos penetrantes esquadrinhando cada pedaço de papel, cada item de propaganda não solicitada, cada...

Lá! Logo debaixo do balcão da frente, virada para baixo, estava a carta perdida endereçada a Bernice Krueger. Ia ser necessário dar andamento a algumas medidas especiais para fazê-la chegar a Ashton em tempo. Ele agarrou-a, arqueou-se para cima, e procurou pela sala o malote certo no qual colocá-la.

Arrancada! A carta já não estava em sua mão! Ele rodopiou a tempo de ver um diabrete descarado segurando a carta nas garras, com um sorriso dentuço, pairando no ar com o movimento de asas pretas borradas.

— Ôôô — disse o demônio — o que temos nós aqui?

Natã não tinha tempo para aquilo. A espada estava em sua mão no mesmo instante.

UUF! Um chute de um pé preto, cheio de garras! Outro espírito dirigiu-se a ele vindo do lado, espada pronta!

Natã rebateu a espada do demônio para o lado com a sua, depois devolveu-lhe o chute, arremessando-o através da parede do prédio.

Outro espírito caiu de cima; Natã se atirou para o lado a fim de desviar-se do ataque de uma espada, depois cortou o espírito ao meio.

Onde estava aquele diabrete? Lá! Escondendo-se atrás da bancada de separar a correspondência!

Dois outros espíritos! Deviam ter ouvido que havia uma luta ali. Natã mergulhou na direção do primeiro, a espada em riste, mas o outro espírito agarrou-lhe o tornozelo e deu-lhe um puxão para trás. Sua espada cortouos ares, e isso foi tudo. O primeiro demônio estava pronto agora com sua própria espada, rindo e babando. O agarrador-de-tornozelo ainda puxava, suas garras enterrando-se.

Bem, use o que tem, pensou Natã. Suas asas rugiram com força, puxando-o para diante. Com força incrível e no momento perfeito, ele rodou a perna num chute alto, impetuoso, dando ao agarrador-de-torno­zelo uma volta emocionante até que Natã o fez cair com força de rachar o crânio sobre o seu companheiro. Os dois se apagaram.

Lá ia o diabrete com a carta! Natã arremeteu de lado e atingiu-o na barriga. As pernas flutuaram até o chão enquanto o diabrete se dissolvia. Natã agarrou a carta, deu uma busca rápida, depois enfiou-a com força no malote certo. Ela seguiria no próximo caminhão.

Quanto aos demônios, Natã sabia que podia haver encrenca — alguns deles haviam escapado conhecendo a existência dessa carta.

Na sala de conferência hermética de Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon, Santinelli desligou seu telefone particular e olhou ao outro lado da mesa ao ansioso Sr. Kholl.

— Sr. Kholl, acabaram de me dar uma boa notícia. É melhor reunir os seus agentes escolhidos.

Essa "boa notícia" passou pelas tropas demoníacas como uma onda de choque, e quando Destruidor voou através do telhado do prédio de escritórios dos advogados para reunir as suas hordas, descobriu subitamen­te que dispunha de todos os amigos e lacaios concordantes de que precisava para terminar o serviço, especialmente os demônios do Vidoeiro Quebrado. Eles vinham como um enxame de todos os setores do céu, dando vivas e berrando, querendo tomar parte nesse momento glorioso.

— Eu sabia! — vangloriou-se ele, como uma boa medida de alívio. — Eu sabia que daria certo! O nosso Judas conseguiu por fim, e agora Sally Roe terá o seu Getsêmani! Nós a tomaremos! — Em seguida, ele acrescentou para si mesmo: — E a jogarei como um presente na cara do Homem Forte!

Os demônios resmungavam, sacudiam a cabeça afirmativamente, e roncavam sua aprovação e admiração pela grande sabedoria de Destruidor, enquanto vinham pousar sobre o telhado; pairavam acima dele, zumbiam em círculos fechados em torno do prédio e tropeçavam mesmo uns nos outros.

Esse enxame heterogêneo, sedento de sangue, precisava entrar na linha. Destruidor alçou vôo ao céu onde cada brilhante olho amarelo podia vê-lo, e abanou sua ardente espada vermelha em amplos círculos para chamar-lhes a atenção. A maioria deles acalmou-se e ouviu. Os outros se ocupavam demais vaiando, berrando e praticando luta.

— Tropas! — bradou Destruidor.

Seus doze capitães convergiram imediatamente.

— Precisamos limpar este jardim e selecionar os melhores! Escolham guerreiros para a nossa missão, e mandem a ralé para o Alto Comando. O Homem Forte que os ponha a trabalhar!

Logo os capitães tinham peneirado meticulosamente os espíritos; os melhores guerreiros estavam prontos, as espadas rebrilhando. Os bagun­ceiros, diabretes e atormentadores foram enviados ao Alto Comando, e partiram resmungando muito.

Destruidor, satisfeito, dirigiu-se à grande horda.

— Prepararemos o caminho para o Vidoeiro Quebrado! Morte à mulher!

— Morte à mulher! — gritaram unânimes, e com uma explosão de asas, arremeteram ao céu.

A quilômetros de distância, Tal, Natã e Armoth viram os demônios, como um enxame de morcegos aos berros, dando vivas, elevarem-se sobre Chicago, dirigindo-se ao sul. Era um exército de morte para Sally Roe, uma nuvem preta de destruição.

Tal havia recebido a notícia de Natã acerca da última carta de Sally.

— Então, vai chegar um dia mais tarde. Nosso fogo estará atrasado, e Sally logo estará nas mãos deles!

— Podemos detê-los? Tal meneou a cabeça.

— Está tudo em movimento agora. Estamos comprometidos.

— Temos guerreiros posicionados para monitorarem tudo — assegurou Natã ao seu capitão.

— Mas Destruidor a tomará — replicou Tal, a voz enfraquecida pela dor que aquilo lhe causava. — E fará o que bem entender com ela...

Mal Marshall voltou de sua excursão ao Correio para comprar selos, saiu de novo, desta vez dirigindo-se ao Serviço de Secretaria da Judy, muito curioso e devidamente espicaçado por Bernice e seu enlouquecedor talento para o suspense. Pelo que Bev Cole havia dito, o destino do mundo dependia de Marshall pegar fosse lá o que fosse que Bernice lhe mandava pelo fax.

Sally Roe permanecia em seu quartinho mofado no Hotel Caravana, sentada na única cadeira, lendo uma Bíblia dos Gideões."Quem nos separará do amor de Cristo?" leu ela. "... estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor."

Ela fechou os olhos, deu graças, e continuou a ler, apenas esperando hora após hora em seu quartinho.

Marshall encostou no pequeno estacionamento à frente do escritório de Judy. Bem, havia alguém lá? As luzes estavam acesas dentro, mas não havia sinal de Judy. Algo que se parecia com um bilhete estava afixado sobre a placa de ABERTO pendurada na janela. Ele desceu para ir dar uma olhada.

Nos arrabaldes de Chicago, dois carros saíram da rodovia principal, desceram um quarteirão, e diminuíram a velocidade o tempo suficiente para que seus ocupantes dessem boa olhada no Hotel Caravana.

— Humm, então este é o Caravana — disse o Sr. Kholl, correndo rapidamente os olhos pelo velho hotel. — O orçamento com o qual a Roe está operando não é grande coisa.

— Que lixo — disse um dos assassinos favoritos de Kholl, uma jovem rija com longos cabelos loiros que podia ter passado por aluna de uma faculdade.

O Hotel Caravana não era daqueles que dá gosto olhar. Muito tempo atrás, antes que as auto-estradas desviassem todo o tráfego interestadual, aquele lugar havia provavelmente sido um negócio lucrativo e respeitável, abrigando viajantes cansados durante a noite. Agora, as coisas haviam mudado, os quatorze quartinhos se encontravam em péssimas condições, o gramado havia dado lugar às ervas daninhas, e a maior parte dos clientes ali eram provavelmente do tipo mal-afamado.

— Em que quarto ela está? — perguntou um homem alto, de aparência jovem. Era quem havia chegado à distancia de uma lamina de faca de Sally Roe no campus da Universidade Bentmore. Ainda tinha sua faca, e aguar­dava ansiosamente um encontro mais longo, mais satisfatório.

— Quatorze — informou Kholl — bem na ponta, perto da estrada. Não teremos de passar por nenhum dos outros quartos. Ela está facilitando a coisa.

Kholl estacionou o carro logo adiante do hotel, e o outro carro encostou atrás. No total, oito pessoas saíram dos dois carros. Kholl fez um leve movimento afirmativo de cabeça aos quatro homens do segundo carro, e eles se espalharam imediatamente rua acima e rua abaixo, cobrin­do cada saída de escape do hotel.

— Muito bem, belezinha — disse Kholl — verifique para ter certeza. A jovem foi à frente deles, encaminhando-se à recepção do hotel. Kholl e os outros dois permaneceram na calçada, conversando e parecendo despreocupados.

Ela saiu de novo, e apontou discretamente para o Número 14.

— Vamos — disse Kholl.

— Oh, olá — disse Judy. — Está esperando há muito?

— Não, não muito — disse Marshall. — Cerca de dez minutos, acho. — Ele havia visto o bilhetinho que ela grudara na janela: "VOLTO EM DEZ MINUTOS."

— Tive de ir buscar uma nova fita para a máquina de escrever. Mal consigo ler as minhas últimas cartas. — Ela tinha um saquinho de papel na mão, o que significava que sua missão havia sido bem sucedida.

— Acho que tenho um fax à minha espera.

— Oh, isso mesmo, tem sim.

Judy destravou a porta e deixou-o entrar.

— Ele veio não faz muito tempo. Acho que o coloquei... Deixe-me ver, onde foi que o coloquei?

A jovem loura bateu na porta do Número 14.

Sally ficou tensa, fechou os olhos, e fez uma oração rápida. Então, ergueu-se da cadeira e aproximou-se da porta.

— Quem é?

— Arrumadeira — disse a mulher.

Por fim, Judy encontrou a folha de papel que havia acabado de sair da máquina de fax.

— Oh, aqui está.

Marshall apanhou-a e agradeceu. Ora, isso parecia familiar. Era mesmo desapontador. Não havia dito a Bernice que já tinha visto o currículo? Por que todo o barulho? Vir até o escritório da Judy para isso?

Mas o que era aquele bilhete de Bernice no topo? Ela havia escrito com grossa caneta de ponta de fibra.

— Está bem, um momento — disse Sally, e olhou à volta do quarto uma última vez. Estava pronta. Foi até a porta e colocou a mão na maçaneta."Marshall", dizia o bilhete de Bernice, "você viu isto? ligue-me." Saindo do bilhete, uma enorme flecha desenhada com caneta de ponta grossa escorria pela página a um circulo evidente na parte de baixo.

Dentro do circulo encontrava-se o nome da autora do currículo — a verdadeira autora.

Sally Beth Roe.

BAAM! Aporta escancarou-se de chofre e quase pegou em cheio o rosto de Sally. Kholl estava por cima dela, depois outros dois vultos sombrios. Braços tatearam e a agarraram, o quarto rodopiou à volta dela, ela caiu ao chão, o rosto batendo de encontro ao tapete gasto. Um joelho pontudo enfiou-se nas costas dela, prendendo-a no chão com tanta força que ela achou que suas costelas iriam rebentar. Eles agarraram-lhe os braços e os torceram para trás até ela gritar de dor, depois amarraram-nos com laçada após laçada apertada e cortante de corda.

AAU! Kholl agarrou um punhado de cabelos e, com um safanão, ergueu-lhe a cabeça do tapete. Ela não podia respirar. Ele segurou uma faca prateada, brilhante contra a garganta dela.

— Dê um pio, e isto aqui entra.

Ela fechou a boca bem apertada, tentando conter os gritos de dor e terror que não conseguia evitar.

O quarto estava cheio de gente, rebuscando cada canto, cada gaveta, debaixo do colchão, despejando o conteúdo de sua mochila, revistando tudo o que era seu.

— Você sabe o que estamos procurando — disse Kholl bem no seu ouvido. Ele agarrou-lhe uma das mãos amarradas e forçou o indicador a abrir.

— Diga-nos onde está o anel, e onde estão as listas, ou começo a cortar.

— Se eu contar, você apenas fugirá com elas para si mesmo! — disse Sally. A faca tocou a base do dedo dela. Ela soltou as palavras como uma golfada. — Direi àqueles que o mandaram aqui! Entregue-me a eles!

A faca permaneceu no lugar. Sally exclamou:

— Você quer ser pago, não quer?

A faca ficou onde estava; o aperto que Kholl mantinha no dedo dela não diminuiu. Ela podia sentir o gume daquela faca contra a pele, e orou enquanto uma eternidade se passava.

Destruidor estava no quarto, nada disposto a perder o prêmio uma vez que o havia encontrado.

Leve-a ao Alto Comando, disse ele a Kholl.Kholl inclinou-se sobre Sally, cada fibra do seu ser anelando por enterrar-lhe a faca no coração. Ele hesitou, a respiração ofegante.

Destruidor colocou a mão na espada. Você a levará ao Alto Comando, ao Homem Forte, e fará isso agora!

Depois do momento mais longo, mais agonizante, sem motivo aparen­te, Kholl retirou a faca e soltou-lhe o dedo.

Sally achou que iria desmaiar. Quase vomitava.

— Ponham-na de pé!

Ela foi apanhada bruscamente do chão num instante por nada menos do que quatro enormes bandidos, que a seguraram com força, impedindo-a de mover-se. Agora ela podia ver o rosto de Kholl fitando-a furioso, os olhos cheios de ódio. Olhos demoníacos.

PÁÁ! A mão dele parecia de ferro ao acertar-lhe o queixo, face e nariz. Ela quase perdeu os sentidos. Sangue morno começou a pingar-lhe do nariz e escorrer pela boca.

Kholl agarrou-a outra vez pelos cabelos e segurou a faca bem debaixo do nariz dela.

— Vamos levar você aos nossos amigos. Eles vão receber o pacote todo bem no colo, e ouça o que digo agora: é melhor que lhes dê tudo o que quiserem quando quiserem, porque estarei lá, e se eles não conseguirem o que querem, vão entregá-la a mim. A mim, entendeu?

— Cooperarei.

— Nem um pio!

— Nem um pio.

Kholl olhou-a com toda a lascívia e desejo assassino do próprio Diabo, e então deu a ordem:

— Vamos.

A jovem loura enfiou tudo o que Sally possuía na mochila e um bandido a apanhou com força.

Em plena luz do dia, como um desfile horripilante, Kholl foi à frente do seu bando de marginais com a prisioneira, amarrada com corda e o nariz ainda sangrando, saindo do Número 14 para a rua. Sally podia ver umas frestas sendo abertas nas cortinas do outro lado do pátio, mas ninguém se atrevia a pôr o rosto para fora. Mesmo a dona do lugar, uma mulher feiosa de seus cinqüenta anos que acendia um cigarro no toco do outro, viu-os de relance e depois voltou-se, tendo o cuidado de cuidar da própria vida.

Eles levaram Sally ao primeiro carro, empurraram-na com força no banco de trás, entre dois homens — um deles era o jovem esfaqueador que ela havia encontrado em Bentmore — e saíram dali sem pressa, desimpe­didos e sem contestação.O Hotel Caravana estava quase invisível debaixo de um enxame de espíritos maléficos rastejantes, sibilantes. Cada pessoa em cada prédio era motivada por medo, interesse próprio, e até mesmo auto-engano. Não, ninguém viu nada. Não era o que parecia ser — apenas parecia ser assim. Não tinha nada a ver com eles. Uma porção desse tipo de coisa acontecia em lugares como esse; e daí?

Destruidor e seus doze guerreiros-chave voavam logo acima dos auto­móveis, cautelosos e preparados para qualquer resistência angelical. A resistência não veio. Eles viram alguns guerreiros angelicais, mas os guerreiros não se mexeram para atacá-los; sem dúvida, se sentiam intimi­dados pelo grande número de demônios.

— Háááá! — riu Destruidor, dando uma cotovelada no mais próximo dos seus guerreiros. — O que foi que eu disse? A força deles se foi! Tal não tem mais gente de que se gabar, e... — Ele estava encantado com a própria esperteza. — ... Acredito que os surpreendemos! Antes que possam ajuntar mais forças, arrebatamos a nova santinha deles bem debaixo de seus narizes!

Enquanto os dois automóveis dobravam na principal auto-estrada e voavam por ela, muitos dos melhores guerreiros de Natã estavam à mão para vigiar, escondidos nas sombras, agachados atrás de árvores, carros estacionados, e casas. Eles mantinham atenta vigilância, mas não intervie­ram. O aviso espalhou-se rápida e claramente entre todos eles: Aquele era o momento de Destruidor, e o maior risco que o Capitão Tal jamais correra.

Lá na rodovia interestadual, um caminhão do Correio rodava depressa, saindo de Chicago rumo ao sul e dirigindo-se às colinas ondulantes do Meio Oeste e à graciosa cidadezinha universitária de Ashton.

A bordo, num malote, apenas um tanto suja e amassada a essa altura, estava aquela carta endereçada a Bernice Krueger.