terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 37


 Lucy Brandon podia sentir o couro cabeludo arrepiando e o estômago formando um nó. Esse era o segundo telefonema desse tipo que havia recebido hoje, interrompendo seu trabalho no Correio e deixando-a morta de susto.

— Não fale com Hogan — disse sua ex-bondosa amiga Claire Johanson. — Não diga nada a ele ou a ninguém daquela gente! Poderia ser muito ruim para você se não proteger qualquer conhecimento que tenha!

Lucy tentou manter baixa a voz a fim de que Debbie não ouvisse. — Claire, o que aconteceu?

— Não aconteceu nada!

— Recebi um chamado de Gordon Jefferson igual ao seu. Ele não foi nada bondoso. Ficou a me dizer que estaria em apuros com a lei se alguma coisa vazasse, e eu nem mesmo sabia do que ele falava...

Claire não respondeu imediatamente. Ela trabalhava numa réplica que fosse segura — ou definitivamente enganadora. — É que a audiência perante o Tribunal Federal de Recursos está chegando, e as coisas estão ficando críticas, só isso. Acho que nos fez ficar nervosos.

— E por que vir para cima de mim?

— Não é só você. Estamos apertando todos, mesmo nós próprios. Muita informação está escapando, e poderia arruinar o nosso caso. Temos de ser cuidadosos. Estou certa de que compreende isso.

— Tudo isto parece muito súbito.

— Bem, apenas parece assim. Não se preocupe. Apenas mantenha-se quieta, e não fale das coisas com ninguém. Tenho de desligar.

Clique.

Vou explodir, pensou Lucy. Vou ficar louca, uma perfeita doida varrida. Não agüento mais nada disto! Tilin! Um freguês estava no balcão. Não, não posso ver ninguém, simples-mente não posso falar com ninguém. Só quero dar o fora daqui Mas aonde eu poderia ir? Como explicaria à minha filha? E o apuro no qual me meti?

Tilin!

Oh, onde está Debbie? Lucy olhou para o relógio. Oh, maravilha! Está no intervalo de folga, provavelmente do outro lado da rua comprando goma de mascar sem açúcar ou algo assim.

— Já vou.

Ela se concentrou, tentando acalmar-se, e saiu para a frente.

O freguês era Tom Harris.

Ambos imediatamente sentiram-se sem graça e chegaram mesmo a afastar-se um pouquinho.

— Oh, desculpe — disse Tom. — Isto é, não tenho de...

Lucy olhou de um lado para outro. Não havia mais ninguém no saguão.

— Bem, posso servi-lo.

Tom afastou-se do balcão. Ele estendeu os braços a fim de colocar alguns pacotes na frente de Lucy.

— Queria mandar isto para os meus pais.

Lucy puxou os pacotes para perto de si, virou-os, virou-os novamente, leu os endereços, leu-os novamente, e mesmo assim não sabia o que havia lido. Simplesmente não conseguia pensar. Deveria pesar os pacotes? Ela colocou os três juntos na balança e mexeu desajeitada nos pesos deslizan­tes. Não, não, assim não funcionaria, não os três juntos...

Ela colocou os pacotes no balcão e sem erguer os olhos tentou dizer

— Sinto muito que tudo isso tenha acontecido — mas sua voz estava demasiadamente fraca e trêmula.

Mesmo assim, Tom ouviu-a.

— Claro. Eu também.

Ela tentou concentrar-se nos pacotes.

— Bem, acho que não devíamos falar sobre isso.

— Compreendo.

— Acha que Amber está possuída?

A pergunta não escorregou para fora simplesmente — Lucy a empurrou para fora. Ela queria saber.

Mas Tom Harris sentia-se amordaçado e agia como tal. Embora quisesse responder, ele podia apenas olhar para ela com óbvia frustração.

— Você sabe que não posso falar sobre isso.

Eu preciso saber. Por mim.

Ele meneou a cabeça tristemente, dolorosamente. — Não posso falar a respeito. Mas, escute... Ela escutou.

— Umm... Jesus Cristo conquistou as forças espirituais do mal na Cruz. A Bíblia diz que ele as desarmou e as expôs ao público. Ele tem toda a autoridade sobre elas, e deu essa autoridade ao seu povo, aos que verda­deiramente crêem nele. Ele é a resposta. Isso é tudo o que posso dizer.

— Alguma vez já viu alguém possuído? Tom pegou de volta os seus pacotes.

— Gostaria de lhe contar tudo sobre isso. Talvez quando esta ação judicial tiver terminado, hein? Eu... ouça, não se ofenda, está bem? Man­darei estes pacotes mais tarde.

Ele saiu apressado pela porta, deixando Lucy com suas perguntas sem resposta.

— Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon — disse a recepcionista.

— O Sr. Bardine, por favor — disse a voz da mulher no outro lado.

A recepcionista hesitou. — Umm... sinto muito informar-lhe, mas o Sr. Bardine faleceu. A senhora tinha algum negócio em andamento com ele? Podemos arranjar para que outra pessoa termine isso.

A pessoa do outro lado da linha ficou compreensivelmente chocada pela notícia. — Você disse que o Sr. Bardine faleceu?

— Sim, sinto muito dizer-lhe isso. Ele morreu num desastre de automó­vel há algumas semanas. Foi um grande golpe para todos nós aqui na firma.

— Bem, estou... eu também estou chocada ao saber disso.

— Sinto muito. Talvez queira falar com o Sr. Mahoney, o chefe do Sr. Bardine. Talvez ele possa ajudá-la.

— Oh, não, obrigada. Deixe-me pensar sobre isso primeiro.

— Muito bem. Obrigada por ligar.

— Até logo.

A recepcionista desligou o telefone e voltou a datilografar uma carta numa sofisticada máquina de escrever eletrônica, sentada diante de uma escrivaninha enorme de nogueira escura e arremates de latão, num luxuo­so escritório atapetado, de paredes muito altas forradas de madeira e luminárias enfeitadas, enquanto sócios seniores, sócios juniores vestidos para o sucesso, assistentes legais agressivos, secretárias ambiciosas, e poderosos visitantes incógnitos movimentavam-se com os lábios aperta­dos e os queixos erguidos para cima e para baixo nos corredores, com suas pastas, arquivos legais, ou blocos de papel amarelo.

Os escritórios de Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon em Chicago eram mais do que um palácio; eram uma fortaleza de poder e tecnocracia legal, onde conhecimento e poder eram sinônimos e tempo era dinheiro — muito dinheiro. Ali os czares da lei estabelecida por precedente legal e os arquitetos dos precedentes legais preparavam o futuro desafiando, torcendo, espichando e até mesmo cruzando a lei, voltando-a em seu favor tão longe e tão freqüentemente quanto seu dinheiro, habilidade, conexões e poder permitiam.Esses eram os escritórios da elite: os que promoviam os favorecidos e destronavam os dispensáveis, os que garantiam o sucesso e os que instigavam a ruína.

No topo dessa torre de marfim, no pináculo da pirâmide, estava o impiedoso e poderoso Sr. Martinelli.

— Boa tarde, Sr. Santinelli — disse a recepcionista.

— Boa tarde — replicou ele com um sorriso desmaiado, obrigatório, estendendo a mão para receber a carta recém-datilografada. — Estarei conduzindo uma reunião especial na próxima meia hora; não quero nenhum chamado, nenhuma interrupção.

— Sim, senhor.

Santinelli continuou pelo corredor até alcançar uma porta alta e impo­nente de mogno. Um assistente abriu-a bem em tempo para ele passar, e depois fechou a porta após ele como a laje sobre uma cripta.

Santinelli encontrava-se na sala particular de conferências adjacente ao seu escritório, um lugar à prova de som, secreto, e bastante lúgubre. O madeiramento parecia ainda absorver a luz, e as cortinas de veludo que caíam do teto ao chão ainda estavam fechadas sobre as janelas.

Três homens em pé, num grupo fechado numa das pontas do aposento, falavam em vozes abafadas. Cumprimentaram Santinelli com a cabeça quando ele entrou.

Um deles era Kholl, o homem a quem fora confiada a tarefa de eliminar Sally Beth Roe.

Santinelli fez algumas apresentações rápidas.

— Senhores, permitam-me apresentar-lhes formalmente o Sr. Kholl, que nos ajudara com os assuntos urgentes atuais. Sr. Kholl, apresento-lhe o Sr. Evans, sócio desta firma, por ora dedicando-se em tempo integral aos nossos problemas legais presentes, e o Sr. McCutcheon, nosso diretor de administração e finanças.

— Um prazer — disse Kholl.

— Já falei com o Sr. Goring no Summit e o Sr. Steele no Centro Ômega — relatou Santinelli. — Está claro para todos nós que Sally Roe tenta descobrir o proprietário daquele anel que ela tirou do dedo da Von Bauer, e usa o pagamento da Von Bauer a fim de financiar a investigação que faz por todo o país. Eles concordam conosco que as listas são suficientes para levá-la ao falecido James Bardine, o que significa que ela terá de vir aqui, embora não possamos saber quando. O Sr. Kholl colocou guardas no prédio para essa eventualidade, e, naturalmente, podemos ter a sua garantia, Sr. Kholl, de que o fracasso da Universidade Bentmore não se repetira?

— Da última vez fomos um pouco discretos demais, eu diria - respon­deu o Sr. Kholl. — Tenho aqui o dobro do pessoal que coloquei em Bentmore, e nossas técnicas serão muito mais diretas desta vez.— A audiência no Tribunal Federal de Recursos será na segunda-feira — continuou Santinelli, furioso. — Uma decisão em nosso favor não será grande consolo se Roe ainda estiver às soltas. Quando ela vier, pode trazê-la a esta sala e matá-la aqui mesmo, pelo que me diz respeito.

Kholl reprimiu uma risada.

Bem no outro lado da mesa de conferência, Destruidor e os doze guerreiros grotescos que o ladeavam não reprimiram suas risadas de forma alguma, mas deleitaram-se plenamente com a idéia da matar aquela mu­lher.

A risada de Destruidor era, contudo, breve complacência. Ele ainda trazia os ferimentos e a vergonha do seu recente encontro com o Homem Forte, e agora sua animação ao pensar na morte iminente de Sally Roe misturava-se ao desespero.

Você a apanhará desta vez! grunhiu ele, as asas abertas de raiva, o dedo torto apontando ao outro lado da mesa. Você a apanhará e matará! Então gritou aos seus guerreiros:

— Cerquem este lugar, e coloquem sentinelas por toda a cidade! Ela não nos fugirá desta vez!

Os guerreiros precipitaram-se para fora da sala com um trovejante brado de guerra, quase loucos de sede por sangue.

Destruidor olhou furioso para Kholl, e resmungou consigo mesmo: Venha a nós, Sally Roe. Seja qual for a sua condição, com Cruz ou sem Cruz, desta vez nada nos deterá. Nada!

Nos arredores de Chicago, Sally Roe encontrava-se sentada no quarto miserável e mofado de um hotel barato, olhando fixamente para o telefone e sem saber o que fazer em seguida. Então James Bardine estava morto! Não era pouco o tempo que ela havia passado preparando-se para confron­tá-lo face a face, para fazer tudo culminar, e havia chegado tão perto, mas agora o que podia fazer? Bem, não adiantava nada visitar Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon. O homem que procurava já não estava lá.

Mas, obviamente, Bardine não era o único jogador naquele jogo; havia outros jogadores e estrategistas, desde o policial desajeitado em Baskon aos moldadores de mentes em Ômega, aos mais altos níveis da instituição educacional da Universidade Bentmore, e até além dela. Todos sabiam a respeito dela, todos queriam aquele anel, e todos pareciam muito deter­minados a matá-la.

Com relutância, ela trouxe de volta à mente um antigo pensamento que havia cogitado diversas vezes nas últimas semanas. Havia um último estratagema que ela podia tentar, uma forma ou-faz-ou-morre de encontrar e identificar as pessoas responsáveis por todo esse pesadelo. Ela havia dito ou-faz-ou-morre? Seria morrer, muito provavelmente, se Deus não houvesse por bem poupá-la.

Engraçado. Antes de ter encontrado Jesus, ela não via razão para viver, mas temia a morte. Agora ela tinha uma razão para viver, mas não temia a morte de forma alguma. Era um tipo estranho de paz, uma sensação fascinante de descanso e tranqüilidade no fundo da alma. Algum dia ela teria de analisar aquilo e esclarecer o que exatamente lhe havia acontecido, se vivesse o suficiente para tal. Se não... Bem, talvez já tivesse vivido o suficiente.

Ela de novo tirou o caderno, e começou a escrever sua última carta a Tom Harris.

Natã e Armoth mostravam-se tensos de antecipação e preocupados com a estratégia, mas se postavam ali ao lado de Sally quando ela começou aquela carta.

— A palavra do seu testemunho, o sangue do Cordeiro, e ela não ama tanto a vida que se furte à morte — disse Natã.

— São três — disse Armoth.

A caneta de Sally deslizou pelo papel.

Tom, esta será minha última carta para você. Já lhe contei tudo o que fiz, e tudo o que sei, e falei-lhe do meu encontro com o Deus e Salvador a quem você serve. O que mais poderia restar além de ver você face a face e finalmente pôr um paradeiro em todas essas dificuldades?

Não existe dúvida em minha mente de que a ACAL mexeu uns pauzinhos importantes, ou vice-versa, e que eles se ligam ao atentado à minha vida, que deve estar ligado com o ataque contra você e a sua escola. Agora tenho o anel de ouro tirado da que quase foi minha assassina bem como os quatro volumes da História e Rol da Ordem Real e Sagrada da Nação que provam ter o anel pertencido ao agora falecido James Everett Bardine, um advogado que gozava de muito boas graças com a ACAL. Tenho também outras informações, muitas das quais já forneci em minhas cartas, que devem vir a ser valiosas para você na defesa contra essa ação judicial

Tudo o que me resta fazer agora é voltar a Baskon para ajudar o seu advogado a montar a defesa, e em última instância depor em tribunal aberto a seu favor.

Acredito ter chegado a hora de você me procurar. Por favor, entre em contato comigo no Hotel Caravana.

O jovem funcionário do Correio ensacava a correspondência para o malote da noite quando uma senhora de calças de brim e uma jaqueta azul chegou ao balcão com mais cartas. Ele tinha pressa; o caminhão chegaria a qualquer momento. Atendeu rapidamente a freguesa, colocou o selo necessário, e jogou o resto da correspondência no malote.

Lá estava o caminhão! Ele agarrou o malote e dirigiu-se à porta dos fundos.

A senhora saiu pela porta da frente, contente por ter chegado em tempo.

Na pressa, uma carta caiu do malote, indo parar no chão debaixo do balcão da frente, e ficou ali virada para baixo.

Estava endereçada a Bernice Krueger, aos cuidados do Clarim de Ashton.