— Não fale com Hogan — disse
sua ex-bondosa amiga Claire Johanson. — Não diga nada a ele ou a ninguém
daquela gente! Poderia ser muito ruim para você se não proteger qualquer
conhecimento que tenha!
Lucy tentou manter baixa a
voz a fim de que Debbie não ouvisse. — Claire, o que aconteceu?
— Não aconteceu nada!
— Recebi um chamado de Gordon
Jefferson igual ao seu. Ele não foi nada bondoso. Ficou a me dizer que estaria
em apuros com a lei se alguma coisa vazasse, e eu nem mesmo sabia do que ele falava...
Claire não respondeu
imediatamente. Ela trabalhava numa réplica que fosse segura — ou
definitivamente enganadora. — É que a audiência perante o Tribunal Federal de Recursos
está chegando, e as coisas estão ficando críticas, só isso. Acho que nos fez
ficar nervosos.
— E por que vir para cima de
mim?
— Não é só você. Estamos
apertando todos, mesmo nós próprios. Muita informação está escapando, e poderia
arruinar o nosso caso. Temos de ser cuidadosos. Estou certa de que compreende
isso.
— Tudo isto parece muito
súbito.
— Bem, apenas parece assim.
Não se preocupe. Apenas mantenha-se quieta, e não fale das coisas com ninguém.
Tenho de desligar.
Clique.
Vou explodir, pensou Lucy.
Vou ficar louca, uma perfeita doida varrida. Não agüento mais nada disto! Tilin!
Um freguês estava no balcão. Não, não posso ver ninguém, simples-mente não
posso falar com ninguém. Só quero dar o fora daqui Mas aonde eu poderia ir?
Como explicaria à minha filha? E o apuro no qual me meti?
Tilin!
Oh, onde está Debbie? Lucy
olhou para o relógio. Oh, maravilha! Está no intervalo de folga, provavelmente
do outro lado da rua comprando goma de mascar sem açúcar ou algo assim.
— Já vou.
Ela se concentrou, tentando
acalmar-se, e saiu para a frente.
O freguês era Tom Harris.
Ambos imediatamente
sentiram-se sem graça e chegaram mesmo a afastar-se um pouquinho.
— Oh, desculpe — disse Tom. —
Isto é, não tenho de...
Lucy olhou de um lado para
outro. Não havia mais ninguém no saguão.
— Bem, posso servi-lo.
Tom afastou-se do balcão. Ele
estendeu os braços a fim de colocar alguns pacotes na frente de Lucy.
— Queria mandar isto para os
meus pais.
Lucy puxou os pacotes para
perto de si, virou-os, virou-os novamente, leu os endereços, leu-os novamente,
e mesmo assim não sabia o que havia lido. Simplesmente não conseguia pensar.
Deveria pesar os pacotes? Ela colocou os três juntos na balança e mexeu
desajeitada nos pesos deslizantes. Não, não, assim não funcionaria, não os
três juntos...
Ela colocou os pacotes no
balcão e sem erguer os olhos tentou dizer
— Sinto muito que tudo isso
tenha acontecido — mas sua voz estava demasiadamente fraca e trêmula.
Mesmo assim, Tom ouviu-a.
— Claro. Eu também.
Ela tentou concentrar-se nos
pacotes.
— Bem, acho que não devíamos
falar sobre isso.
— Compreendo.
— Acha que Amber está
possuída?
A pergunta não escorregou
para fora simplesmente — Lucy a empurrou para fora. Ela queria saber.
Mas Tom Harris sentia-se
amordaçado e agia como tal. Embora quisesse responder, ele podia apenas olhar
para ela com óbvia frustração.
— Você sabe que não posso
falar sobre isso.
— Eu preciso saber.
Por mim.
Ele meneou a cabeça
tristemente, dolorosamente. — Não posso falar a respeito. Mas, escute... Ela
escutou.
— Umm... Jesus Cristo
conquistou as forças espirituais do mal na Cruz. A Bíblia diz que ele as
desarmou e as expôs ao público. Ele tem toda a autoridade sobre elas, e deu
essa autoridade ao seu povo, aos que verdadeiramente crêem nele. Ele é a
resposta. Isso é tudo o que posso dizer.
— Alguma vez já viu alguém
possuído? Tom pegou de volta os seus pacotes.
— Gostaria de lhe contar tudo
sobre isso. Talvez quando esta ação judicial tiver terminado, hein? Eu... ouça,
não se ofenda, está bem? Mandarei estes pacotes mais tarde.
Ele saiu apressado pela
porta, deixando Lucy com suas perguntas sem resposta.
— Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon — disse a recepcionista.
— O Sr. Bardine, por favor —
disse a voz da mulher no outro lado.
A recepcionista hesitou. —
Umm... sinto muito informar-lhe, mas o Sr. Bardine faleceu. A senhora tinha
algum negócio em andamento com ele? Podemos arranjar para que outra pessoa
termine isso.
A pessoa do outro lado da
linha ficou compreensivelmente chocada pela notícia. — Você disse que o Sr.
Bardine faleceu?
— Sim, sinto muito dizer-lhe
isso. Ele morreu num desastre de automóvel há algumas semanas. Foi um grande
golpe para todos nós aqui na firma.
— Bem, estou... eu também
estou chocada ao saber disso.
— Sinto muito. Talvez queira
falar com o Sr. Mahoney, o chefe do Sr. Bardine. Talvez ele possa ajudá-la.
— Oh, não, obrigada. Deixe-me
pensar sobre isso primeiro.
— Muito bem. Obrigada por
ligar.
— Até logo.
A recepcionista desligou o
telefone e voltou a datilografar uma carta numa sofisticada máquina de escrever
eletrônica, sentada diante de uma escrivaninha enorme de nogueira escura e
arremates de latão, num luxuoso escritório atapetado, de paredes muito altas
forradas de madeira e luminárias enfeitadas, enquanto sócios seniores, sócios
juniores vestidos para o sucesso, assistentes legais agressivos, secretárias
ambiciosas, e poderosos visitantes incógnitos movimentavam-se com os lábios
apertados e os queixos erguidos para cima e para baixo nos corredores, com
suas pastas, arquivos legais, ou blocos de papel amarelo.
Os escritórios de Evans,
Santinelli, Farnsworth e McCutcheon em Chicago eram mais do que um palácio;
eram uma fortaleza de poder e tecnocracia legal, onde conhecimento e poder eram
sinônimos e tempo era dinheiro — muito dinheiro. Ali os czares da lei
estabelecida por precedente legal e os arquitetos dos precedentes legais
preparavam o futuro desafiando, torcendo, espichando e até mesmo cruzando a
lei, voltando-a em seu favor tão longe e tão freqüentemente quanto seu
dinheiro, habilidade, conexões e poder permitiam.Esses eram os escritórios da
elite: os que promoviam os favorecidos e destronavam os dispensáveis, os que
garantiam o sucesso e os que instigavam a ruína.
No topo dessa torre de
marfim, no pináculo da pirâmide, estava o impiedoso e poderoso Sr. Martinelli.
— Boa tarde, Sr. Santinelli —
disse a recepcionista.
— Boa tarde — replicou ele
com um sorriso desmaiado, obrigatório, estendendo a mão para receber a carta
recém-datilografada. — Estarei conduzindo uma reunião especial na próxima meia
hora; não quero nenhum chamado, nenhuma interrupção.
— Sim, senhor.
Santinelli continuou pelo
corredor até alcançar uma porta alta e imponente de mogno. Um assistente
abriu-a bem em tempo para ele passar, e depois fechou a porta após ele como a
laje sobre uma cripta.
Santinelli encontrava-se na
sala particular de conferências adjacente ao seu escritório, um lugar à prova de
som, secreto, e bastante lúgubre. O madeiramento parecia ainda absorver a luz,
e as cortinas de veludo que caíam do teto ao chão ainda estavam fechadas sobre
as janelas.
Três homens em pé, num grupo
fechado numa das pontas do aposento, falavam em vozes abafadas. Cumprimentaram
Santinelli com a cabeça quando ele entrou.
Um deles era Kholl, o homem a
quem fora confiada a tarefa de eliminar Sally Beth Roe.
Santinelli fez algumas
apresentações rápidas.
— Senhores, permitam-me
apresentar-lhes formalmente o Sr. Kholl, que nos ajudara com os assuntos
urgentes atuais. Sr. Kholl, apresento-lhe o Sr. Evans, sócio desta firma, por
ora dedicando-se em tempo integral aos nossos problemas legais presentes, e o
Sr. McCutcheon, nosso diretor de administração e finanças.
— Um prazer — disse Kholl.
— Já falei com o Sr. Goring
no Summit e o Sr. Steele no Centro Ômega — relatou Santinelli. — Está claro
para todos nós que Sally Roe tenta descobrir o proprietário daquele anel que
ela tirou do dedo da Von Bauer, e usa o pagamento da Von Bauer a fim de
financiar a investigação que faz por todo o país. Eles concordam conosco que as
listas são suficientes para levá-la ao falecido James Bardine, o que significa
que ela terá de vir aqui, embora não possamos saber quando. O Sr. Kholl colocou
guardas no prédio para essa eventualidade, e, naturalmente, podemos ter a sua
garantia, Sr. Kholl, de que o fracasso da Universidade Bentmore não se
repetira?
— Da última vez fomos um
pouco discretos demais, eu diria - respondeu o Sr. Kholl. — Tenho aqui o dobro
do pessoal que coloquei em Bentmore, e nossas técnicas serão muito mais diretas
desta vez.— A audiência no Tribunal Federal de Recursos será na segunda-feira —
continuou Santinelli, furioso. — Uma decisão em nosso favor não será grande
consolo se Roe ainda estiver às soltas. Quando ela vier, pode trazê-la a esta
sala e matá-la aqui mesmo, pelo que me diz respeito.
Kholl reprimiu uma risada.
Bem no outro lado da mesa de conferência, Destruidor e os doze guerreiros grotescos que o ladeavam não reprimiram suas risadas de forma alguma, mas deleitaram-se plenamente com a idéia da matar aquela mulher.
A risada de Destruidor era,
contudo, breve complacência. Ele ainda trazia os ferimentos e a vergonha do seu
recente encontro com o Homem Forte, e agora sua animação ao pensar na morte
iminente de Sally Roe misturava-se ao desespero.
Você a apanhará desta vez!
grunhiu ele, as asas abertas de
raiva, o dedo torto apontando ao outro lado da mesa. Você a apanhará e
matará! Então gritou aos seus guerreiros:
— Cerquem este lugar, e
coloquem sentinelas por toda a cidade! Ela não nos fugirá desta vez!
Os guerreiros precipitaram-se
para fora da sala com um trovejante brado de guerra, quase loucos de sede por
sangue.
Destruidor olhou furioso para
Kholl, e resmungou consigo mesmo: Venha a nós, Sally Roe. Seja qual for a sua
condição, com Cruz ou sem Cruz, desta vez nada nos deterá. Nada!
Nos arredores de Chicago, Sally Roe encontrava-se sentada no quarto miserável e mofado de um hotel barato, olhando fixamente para o telefone e sem saber o que fazer em seguida. Então James Bardine estava morto! Não era pouco o tempo que ela havia passado preparando-se para confrontá-lo face a face, para fazer tudo culminar, e havia chegado tão perto, mas agora o que podia fazer? Bem, não adiantava nada visitar Evans, Santinelli, Farnsworth e McCutcheon. O homem que procurava já não estava lá.
Mas, obviamente, Bardine não
era o único jogador naquele jogo; havia outros jogadores e estrategistas, desde
o policial desajeitado em Baskon aos moldadores de mentes em Ômega, aos mais
altos níveis da instituição educacional da Universidade Bentmore, e até além
dela. Todos sabiam a respeito dela, todos queriam aquele anel, e todos pareciam
muito determinados a matá-la.
Com relutância, ela trouxe de
volta à mente um antigo pensamento que havia cogitado diversas vezes nas
últimas semanas. Havia um último estratagema que ela podia tentar, uma forma
ou-faz-ou-morre de encontrar e identificar as pessoas responsáveis por todo
esse pesadelo. Ela havia dito ou-faz-ou-morre? Seria morrer, muito
provavelmente, se Deus não houvesse por bem poupá-la.
Engraçado. Antes de ter
encontrado Jesus, ela não via razão para viver, mas temia a morte. Agora ela
tinha uma razão para viver, mas não temia a morte de forma alguma. Era um tipo
estranho de paz, uma sensação fascinante de descanso e tranqüilidade no fundo
da alma. Algum dia ela teria de analisar aquilo e esclarecer o que exatamente
lhe havia acontecido, se vivesse o suficiente para tal. Se não... Bem, talvez
já tivesse vivido o suficiente.
Ela de novo tirou o caderno,
e começou a escrever sua última carta a Tom Harris.
Natã e Armoth mostravam-se
tensos de antecipação e preocupados com a estratégia, mas se postavam ali ao
lado de Sally quando ela começou aquela carta.
— A palavra do seu
testemunho, o sangue do Cordeiro, e ela não ama tanto a vida que se furte à
morte — disse Natã.
— São três — disse Armoth.
A caneta de Sally deslizou
pelo papel.
Tom, esta será minha última carta para você. Já lhe contei tudo o que fiz, e tudo o que sei, e falei-lhe do meu encontro com o Deus e Salvador a quem você serve. O que mais poderia restar além de ver você face a face e finalmente pôr um paradeiro em todas essas dificuldades?
Não existe dúvida em minha
mente de que a ACAL mexeu uns pauzinhos importantes, ou vice-versa, e que eles
se ligam ao atentado à minha vida, que deve estar ligado com o ataque contra
você e a sua escola. Agora tenho o anel de ouro tirado da que quase foi minha
assassina bem como os quatro volumes da História e Rol da Ordem Real e Sagrada
da Nação que provam ter o anel pertencido ao agora falecido James Everett
Bardine, um advogado que gozava de muito boas graças com a ACAL. Tenho também
outras informações, muitas das quais já forneci em minhas cartas, que devem vir
a ser valiosas para você na defesa contra essa ação judicial
Tudo o que me resta fazer
agora é voltar a Baskon para ajudar o seu advogado a montar a defesa, e em última
instância depor em tribunal aberto a seu favor.
Acredito ter chegado a hora
de você me procurar. Por favor, entre em contato comigo no Hotel Caravana.
O jovem funcionário do Correio ensacava a correspondência para o malote da noite quando uma senhora de calças de brim e uma jaqueta azul chegou ao balcão com mais cartas. Ele tinha pressa; o caminhão chegaria a qualquer momento. Atendeu rapidamente a freguesa, colocou o selo necessário, e jogou o resto da correspondência no malote.
Lá estava o caminhão! Ele
agarrou o malote e dirigiu-se à porta dos fundos.
A senhora saiu pela porta da
frente, contente por ter chegado em tempo.
Na pressa, uma carta caiu do
malote, indo parar no chão debaixo do balcão da frente, e ficou ali virada para
baixo.
Estava endereçada a Bernice
Krueger, aos cuidados do Clarim de Ashton.