terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 31


 "Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões, e moí­do pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados."

Bernice Krueger leu em voz baixa as palavras de sua Bíblia enquanto Sally acompanhava na Bíblia que havia trazido da casa de Sara Barker. Elas estavam sentadas a uma mesinha isolada no Restaurante do Danny, na rua principal, não longe do Clarim. Haviam feito o pedido do almoço, que estava a caminho, e agora, enquanto tomavam café, davam uma segunda olhada no texto que Hank usara para o sermão naquela manhã, alguns versículos de Isaías 53.

Bernice leu o versículo seguinte. "Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos."

— Pecado e redenção — disse Sally. Bernice ficou impressionada.

— Certo. Então você sabe alguma coisa sobre isto.

— Não, não de verdade. É uma frase que ouvi em alguns círculos, aparentemente uma forma rápida de definir a típica opinião cristã das coisas. Sempre detestamos essa idéia. Bernice tomou um golinho do seu café.

— Quem é esse "nós"? Sally livrou-se da pergunta.

— Apenas uns velhos amigos.

— E o que detestavam a respeito disso?

Sally tomou um golinho do seu café. Era um meio eficaz de conseguir tempo a fim de formular uma resposta.

— A noção de pecado, acho. Já é difícil o bastante qualquer pessoa sentir-se bem a seu próprio respeito, e parecia muito negativo e opressivo ensinar que somos todos miseráveis, imprestáveis pecadores. O cristianis­mo foi a maldição da humanidade, escravizando-nos e impedindo-nos de alcançar o nosso verdadeiro potencial. — Ela sentiu que precisava limitar aquilo. — De qualquer forma, era o que pensávamos.

— Muito bem, então era isso o que você pensava a respeito da parte do pecado. — Bernice sorriu, e deu umas batidinhas na passagem de Isaias 53 que ainda estava aberta debaixo do nariz de Sally. — Mas você captou a parte da redenção? Deus a ama, e enviou seu Filho para pagar por esse pecado com sua própria morte na cruz.

Agora Sally se lembrava que a Tia Bárbara e a Sra. Gunderson lhe haviam dito isso.

— Foi o que me disseram.

— Mas voltando ao que a Bíblia diz sobre o pecado, desde quando isso é um choque tão grande? Os seres humanos vêm provando por milhares de anos de que tipo de material são feitos. Ouça, os problemas dos homens não são resultado de política ou economia ou ecologia ou níveis de consciência; a ética corrompida do homem é a causa de seus problemas..

Sally ouviu. Aquilo penetrou. Era uma maneira simples de expressar a coisa, e ela não havia demonstrado a veracidade daquelas palavras em sua própria vida?

— Acho que concordo com você nesse ponto. Mas deixe-me confirmar uma coisa: depreendo que a Bíblia é o padrão ético pelo qual definimos o que é "corrompido"?

Bernice assentiu firmemente com a cabeça.

E o que é bom, o que é justo. Sally ponderou aquilo.

— Sendo esse o caso, imagino que esse padrão nos coloca a todos do lado errado da cerca.

— Acho que você descobrirá que essa idéia é aceitável se for honesta consigo mesma. Já viveu o tempo suficiente para saber do que nós, os seres humanos, somos capazes.

Sally chegou a dar uma risada. — Oh, sim, de fato.

— E aqui está a resposta de Deus para isso. — Bernice apontou as frases e as revisou. — Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores... foi traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniqüidades... o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de todos nós.

— Por quê?

Bernice pensou por um momento.

— Bem, vamos falar de justiça. Você faz alguma coisa errada, vai parar na prisão, certo?

Sally concordou definitivamente.

— Certo.

— Agora, no sentido ideal, deixando de lado todos os buracos legais, existem apenas duas maneiras de sair de lá: mudar as regras de modo que o que você fez não seja errado e assim você não seja culpada, ou pagar o preço.

— Tentei mudar as regras — admitiu Sally.

— Bem, no plano de Deus, regras são regras, porque, se não fossem, não teriam muito valor, e certo e errado não teriam significado. Então, o que sobra? O preço. É aí que entra o amor de Deus. Ele sabia que jamais conseguiríamos pagar nós mesmos o preço, por isso ele o fez por nós. Tomou a forma de homem, tomou sobre si todos os nossos pecados, e morreu numa cruz romana há dois mil anos.

Sally examinou de novo a passagem.

— E então, diga-me: funcionou? Bernice inclinou-se para a frente e disse:

— Julgue você mesma. A Bíblia diz que a conseqüência do pecado é a morte, mas depois que Jesus pagou esse preço, ele ressurgiu dos mortos no terceiro dia, por isso alguma coisa ficou diferente. Ele conquistou o pecado, de modo que conseguiu conquistar o preço do pecado. Claro que funcionou. Sempre funciona. Jesus satisfez a justiça divina naquela Cruz. Ele suportou plenamente o castigo, e Deus jamais precisou entortar as regras. É por isso que chamamos a Jesus de nosso Salvador. Ele derramou seu próprio sangue em nosso lugar, e morreu, e depois ressurgiu do túmulo a fim de provar que havia vencido o pecado e que nos podia libertar. — Agora Bernice começava a ficar emocionada. — E sabe o que me faz vibrar com relação a isso? É que significa que somos especiais para ele; ele realmente nos ama, e nós... temos algum significado, estamos aqui por um motivo! E sabe o que mais? Não importa quais sejam os seus pecados, não importa onde estivermos ou em que condição estivermos, podemos ser perdoados, libertos e limpos, uma ficha limpa!

O almoço chegou — duas sopas e duas saladas. Sally sentiu-se agradecida pela pausa na conversa. Deu-lhe uma oportunidade de pensar e indagar.Afinal, quem havia dado àquela mocinha o roteiro? Como é que ela podia dizer tantas coisas que falavam tão diretamente à situação de Sally?

Bem, Bernice freqüentava a igreja do Pastor Hank Busche, e ele tinha um jeito de acertar o prego bem na cabeça. Sua sugestão de que ela lesse o Salmo 119 fora perfeita, e o sermão dessa manhã sobre Isaías 53 fora apenas um pouco mais da mesma mensagem perfeita feita sob medida, exatamente o que ela estava necessitando ouvir.

Mas ainda existia um problema em tudo isso. Sally comeu um pouco de sua salada enquanto considerava a próxima pergunta, e depois formu­lou-a como se fosse um comentário.

— Não me sinto perdoada.

Bernice respondeu: — Você já pediu a Deus que a perdoe?

— Nunca cheguei mesmo a acreditar em Deus, pelo menos não no sentido tradicional.

— Bem, ele existe.

— Mas como posso saber isso?

Bernice olhou para Sally e parecia conhecer o seu coração. Ela respon­deu simplesmente:

— Você sabe.

— Então...

Sally deteve-se abruptamente, e comeu um pouco mais de salada. Ela não podia fazer a pergunta que tinha em mente. Pareceria tola demais, infantil demais, como uma pergunta idiota que já havia sido respondida. Mas mesmo assim... ela tinha de ouvir uma resposta direta, algo que pudesse levar consigo sem nenhuma dúvida.

— Bem, espero que seja indulgente e me permita uma pergunta...

— Claro.

— É fácil falar em termos confortáveis, generalizados, genéricos...

— Pode ser tão especifica quanto quiser.

— Será... — Ela se deteve novamente. De onde vinha aquela emoção? Ela a empurrou para baixo com outro bocado de salada. Agora sentia-se bem. Parecia seguro perguntar.

— Será que Jesus morreu por mim?

Bernice não respondeu leviana ou frivolamente. Ela olhou Sally nos olhos e deu uma resposta firme, serena.

— Sim, ele morreu por você.

— Por mim, por... — Ela teve de lembrar-se do pseudônimo. — Por Betty Smith? Quero dizer, Bernice, você não me conhece...

— Ele morreu por Betty Smith da mesma forma que morreu por Bernice Krueger.

Bem, ela obteve a sua resposta.

— Está bem.

Esse foi o último item daquele tópico. Bernice percebeu que sua convidada do almoço se sentia pouco à vontade, e não quis piorar as coisas. Sally temia ter-se aberto apenas um pouquinho demais com uma estranha inocente, e não se atrevia a arriscar arrastar aquela moça simpática para dentro das suas dificuldades.

Bernice recorreu a uma conversa puramente social.

— Então, quanto tempo faz que está viajando? Sally ficou com medo até dessa pergunta.

— Oh... um mês mais ou menos, algo assim.

— De onde é, originalmente?

— Isso tem importância?

Depois dessa, a conversa ficou difícil, e ambas o lamentaram. Exceto por prosa fiada e conversa puramente social, o almoço foi mais importante do que quaisquer outras palavras. As saladas desapareceram, as tigelinhas de sopa foram esvaziadas, os minutos passaram suavemente.

— Gostei de conhecê-la — disse Bernice.

— Acho melhor eu voltar para a casa da Sara — disse Sally.

— Mas, escute... por que não passa pelo Clarim quando tiver uma oportunidade? Poderíamos almoçar juntas de novo.

O primeiro impulso de Sally foi o de recusar, mas por fim ela se permitiu relaxar, confiar só um pouquinho, e aceitar o convite.

— Bem... claro, gostaria disso. Bernice sorriu.

— Vamos lá, eu a levarei de carro de volta à pensão da Sara.

O velho sítio perto de Baskon havia estado deserto por anos, o celeiro vazio ficava cinzento. Desde que o dono havia morrido, nenhum ser humano jamais fora visto no lugar, nem um som ouvido, nenhuma luz brilhado — exceto por algumas noites a respeito da qual ninguém devia saber.

Nessa noite, o brilho opaco alaranjado de velas aparecia através das rachaduras no revestimento de tábuas e através das trincas na porta empenada pelo tempo do velho e amplo celeiro. Dentro dele, vozes humanas sussurravam, murmuravam e ribombavam em cantilenas e fór­mulas cabalísticas ritmadas.

Havia cerca de vinte pessoas ali dentro, todas vestindo roupões pretos exceto por uma mulher de branco, em pé diante de um grande pentagrama sulcado no chão de terra nua. No centro do pentagrama, duas pernas traseiras tiradas de uma cabra jaziam cruzadas formando um X, e uma vela ardia em cada uma das cinco pontas do pentagrama.

À cabeceira do círculo, a mulher de branco conduzia a reunião, falando em tons baixos e claros, um grande cálice de prata nas mãos estendidas.— Assim como desde o princípio, os poderes serão invocados através de sangue, e a restituição por nossa mão equilibrará a balança.

— Assim seja — entoaram os outros.

— Invocamos os poderes e agentes das trevas a fim de testemunharem esta noite a nossa aliança consigo.

— Assim seja!

Asas demoníacas farfalharam nos caibros enquanto espíritos sinistros, destrutivos, puseram-se a reunir, olhando para baixo com brilhantes olhos amarelos e sorrisos dentuços, espojando-se em toda a adoração e atenção.

Na parte mais alta do telhado, agarrado aos caibros e supervisionando aquilo tudo, Destruidor podia formar silenciosamente com a boca as palavras da cerimônia ao mesmo tempo em que as ouvia.

— Possa a sua fúria ser inflamada contra os nossos inimigos, contra todos os que se opõem. Possa o seu favor estar conosco ao lhes dedicarmos esta oferta.

— Assim seja!

— Que a mulher possa ser encontrada!

— Assim seja!

— Assim seja — concordaram os demônios, trocando olhares.

— Será — disse Destruidor. — Será.

— Que ela possa ser retirada do esconderijo, e esmagada como pó — declarou a mulher.

— Assim seja — entoaram os outros.

Os demônios assentiram com as cabeças e cacarejaram sua aprovação, as asas vibrando de prazer. Outros espíritos chegaram. Os caibros, palhei­ro, as empenas do telhado enchiam-se com eles.

— Derrota e divisão para os cristãos, má saúde, má vontade.

— Assim seja.

Destruidor falou rapidamente aos demônios que se reuniam, apontan­do para um e para outro, designando hordas para cada tarefa enquanto os espíritos murmuravam sua aceitação.

— Possam eles conceder uma decisão do tribunal em nosso favor! Damos-lhes o coração e a mente da Juíza Emily Fletcher!

— Assim seja.

Destruidor correu os olhos à volta de seu grupo e finalmente repousou sobre um espírito mais avultado, pesadão, empoleirado num suporte diagonal. Ele já lidara com tribunais; seria responsável por essa parte.

— E agora... — A mulher levou o cálice de prata na direção dos lábios. — Através de sangue selamos o sucesso dos poderes, a morte de Sally Beth Roe, e a derrota dos cristãos!

— Assim seja.

Todos os demônios inclinaram-se para a frente e esticaram os pescoços,querendo ver. Deram risadinhas, babaram, e trocaram tapinhas e cutucões. Destruidor ficou embriagado de alegria.

A mulher puxou o capuz para trás e tomou um gole do cálice. Quando retirou a taça, a mancha de sangue fresco de cabra permaneceu em seus lábios.

Claire Johanson, a suma sacerdotisa do bando, passou a taça a Jon, que bebeu e passou-a à próxima pessoa, e cada bruxo e bruxa bebeu com o fim de selar as maldições.

A seguir, em coro, os braços atirando-se para cima, bruxos e bruxas emitiram um berro lúgubre: — Assim seja!

— Vão! — ordenou Destruidor com uma batida seca de asas e apontando com um gesto do dedo torto.

Os espíritos saqueadores arremeteram do celeiro, despejando do telhado como a fumaça preta de um incêndio, como morcegos de uma caverna. Dispersaram-se em todas as direções, uivando e cacarejando, cheios de voluptuosa e destrutiva maldade.

Na manhã da segunda-feira, o dia da audiência em Westhaven, o pastor Mark Howard ficou grato por ter chegado à igreja antes de todos os outros. Tinha esperança de poder limpar a bagunça antes que qualquer criança da escola a visse.

Ele já havia aberto o prédio da escola e aumentado o aquecimento; portanto o local estava pronto, e ainda tinha quarenta e cinco minutos antes que os pais começassem a deixar ali os seus filhos. Ele dirigiu-se apressado ao porão da igreja, abriu o seu gabinete e agarrou o telefone.

Foi com voz baixa e sombria que falou, quase como se tivesse medo de ser ouvido.

— Bom dia, Marshall. Aqui é Mark. Desculpe acordá-lo tão cedo. Por favor, venha até a igreja imediatamente. Vou chamar o Ben e espero tê-lo aqui também. Sim, imediatamente. Obrigado.

Ele abriu o armário de materiais de limpeza que ficava debaixo da escada e agarrou um esfregão e um balde. Estava tão aborrecido que se esqueceu de que precisaria de uma lata de lixo também. Com o coração disparado, subiu correndo e saiu para a varanda da frente da igreja.

O sangue na porta da frente estava seco. Seria preciso esfregar um pouco para tirá-lo.

Oh! Preciso pegar a lata de lixo! Não, ainda não. É melhor eu esperar até Marshall e Ben chegarem. Espero que eles cheguem aqui antes das crianças. Ó Senhor Jesus, oramos para que o seu sangue derramado cubra e proteja este lugar!

Vamos, caras, depressa! Não posso deixar estas coisas aqui!

Aos pés de Mark, cruzados para formar um X e manchando de vermelho os degraus da igreja, estavam as duas pernas dianteiras de um animal, muito provavelmente uma cabra.

Às nove horas daquela manhã, representantes da imprensa, da ACAL, da liga Nacional sobre Educação, e mesmo de algumas igrejas convergiram à Sala 412 do Tribunal Federal em Westhaven, o tribunal da Meritíssima Emily R. Hetcher.

Wayne Corrigan e Tom Harris já se encontravam sentados à mesa da defesa; Gordon Jefferson e Wendell Ames, advogados de Lucy Brandon, estavam sentados e prontos para o combate, com Lucy sentada entre os dois. Na primeira fileira da tribuna, o Dr. Mandanhi esperava para depor.

O repórter Chad Davis, do Noticiário do Canal Sete, KB2T, estava presente, rondando por ali em busca de qualquer petisco ou comentário noticioso, enquanto Roberto Gutierrez arrumava a câmara de televisão.

John Ziegler também se encontrava presente, e Paula, a fotomaníaca, já havia tirado algumas fotos — sem ser convidada — de Tom e Corrigan.

A meirinha colocou-se de pé.

— Levantem-se todos. O tribunal está agora reunido, presidido pela Meritíssima Emily R. Fletcher.

A juíza ocupou o seu lugar atrás da bancada.

— Obrigada. Por favor, sentem-se.

Eles se assentaram. Até ali as coisas iam exatamente como da última vez, e da mesma forma que da última vez, a juíza encarapitou seus óculos de leitura sobre o nariz e examinou os documentos que tinha diante de si.

— A defesa requereu a audiência de hoje a fim de ser determinado se a criança neste caso, Amber Brandon, deveria ou não ser isentada de qualquer depoimento ou testemunho. É do conhecimento do tribunal que os advogados de acusação se opõem enfaticamente a qualquer depoimen­to ou testemunho por parte da criança, e portanto foi requerido que o tribunal se pronuncie sobre a questão.

Ela ergueu os olhos e pareceu apenas um tantinho impaciente com o assunto todo.

— Sr. Corrigan, por favor, prossiga. Corrigan ergueu-se.

— Obrigado, Meritíssima. Nosso pedido é bastante simples, e nada irregular. A queixa contra o meu cliente inclui acusações de perseguição, discriminação e comportamento religioso chocante. Mas permita-me re­lembrar ao tribunal que até agora, nenhum testemunho relacionado a essas acusações partiu da principal testemunha da acusadora, a própria Amber, mas sim de segunda mão, através da mãe de Amber, Lucy Brandon, e da testemunha perita da acusadora, o Dr. Mandanhi. Solicitamos diversas vezes falar com Amber, fazer com que nosso próprio psicólogo a visite de modo que as opiniões do Dr. Mandanhi possam ser contrabalançadas pelas de outro perito. Mas o advogado da acusadora tem-se recusado terminan­temente a cooperar, e estamos preocupados por achar que o direito que meu cliente tem de confrontar o seu acusador esteja sendo infligido. Além disso, sem oportunidade de questionar Amber e ouvir o seu testemunho por nós mesmos, não temos garantia de que o testemunho indireto vindo através da Sra. Brandon e através do Dr. Mandanhi não esteja de alguma forma colorido, modificado ou enfeitado.

— Os advogados acusadores têm insistido que Amber está numa condi­ção delicada demais, numa idade frágil demais para passar pelo depoimen­to ou por um julgamento no tribunal. Mas podemos assegurar-lhes que não recorreríamos de forma alguma a táticas ríspidas.

— Também o registro mostra claramente que Amber é uma criança voluntariosa e que declarou fatos conflitantes, mesmo para a mãe. Além disso, a mãe de Amber testemunhou no depoimento que existem outras influências afetando a vida de Amber às quais ela foi exposta fora da escola. Apenas a própria Amber pode responder às muitas perguntas não respon­didas que afloram nessas áreas.

— Tudo o que estamos solicitando é ser-nos permitido ouvir os detalhes da própria Amber, e que o nosso próprio psicólogo tenha permissão de examinar Amber a fim de confirmar ou refutar as conclusões do Dr. Mandanhi.

Corrigan tomou o seu lugar, e a juíza deu a palavra a Wendell Ames.

Ames não era tão empolgante de observar quanto o mais jovem Jefferson, mas irradiava uma dignidade de experiência que era em si mesma persuasiva.

— Meritíssima, todo este caso está sendo trazido ao tribunal por causa do severo prejuízo causado a uma criança inocente, cuja extensão é claramente mostrada nos depoimentos e nos relatórios do Dr. Mandanhi. Como advogados da acusadora, desejamos corrigir um erro, reparar uma injustiça, e de alguma forma desfazer o dano que foi causado. Nunca foi nossa intenção, como seres humanos responsáveis, apenas aumentar a dor de Amber, fazendo-a passar pelo processo de julgamento, trazendo à tona todas as suas antigas feridas, e tornando públicas as suas dores.

— Apresentamos um parecer adicional do Dr. Mandanhi, detalhando pata o tribunal o atual estado emocional de Amber e estabelecendo que não seria no melhor interesse dela ser obrigada a testemunhar ou prestar um depoimento. Se o tribunal assim o exigir, o Dr. Mandanhi está aqui para testemunhar em pessoa quanto à fragilidade do estado de espírito e das emoções de Amber nesta ocasião.

A juíza Fletcher olhou para o Dr. Mandanhi e depois para Ames.

— O doutor teria outras declarações a fazer que não estão incluídas em seu parecer escrito?— Estou certo de que ele poderia esclarecer para o tribunal quaisquer itens que o tribunal possa precisar que sejam esclarecidos.

A juíza examinou rapidamente o relatório de Mandanhi. — Acho que está bastante claro. Qualquer outro testemunho oral muito provavelmente seria cumulativo.

— Muito bem.

— Alguma coisa mais?

— Sim. Embora existam fortes argumentos nos dois lados, seria a nossa esperança que o bom senso e a decência falem mais alto e mais persuasi­vamente do que qualquer argumento, e que o tribunal poupe a essa criança inocente a dor e a tristeza de reviver as suas mágoas, de enfrentar o desafio e a duvida da defesa, de ser colocada em exibição, por assim dizer, em tribunal aberto.

— Compreendemos o processo legal, naturalmente. Compreendemos que o acusado realmente tem o direito de confrontar aquela que o acusa. Mas relembramos ao tribunal que estamos diante de um caso de abuso infantil, um fato que os acusados já admitiram.

— Protesto — disse Corrigan. — A defesa não admitiu tal coisa. Ames respondeu:

— Meritíssima, eu simplesmente me referia àquilo que já foi estabeleci­do, que surras realmente ocorrem na escola, e que a escola realmente ensina doutrinas difusas e inoportunas...

A juíza estava um tanto impaciente.

— Os depoimentos são claros com relação ao que a escola pratica e ensina, Sr. Ames. Se os acusados desejarem defender suas práticas, isso de forma alguma constitui admissão de culpa. Sustento o protesto.

Ames reuniu seus pensamentos e continuou.

— De qualquer forma, Meritíssima, afirmamos que Amber é uma criança de tenra idade que precisa ser protegida. Essa é, afinal, a motivação por trás desta ação judicial em primeiro lugar. Dado isso, devemos pleitear que o tribunal poupe a Amber qualquer outra dor e trauma mediante decisão de que ela não precisa depor e que não precisa testemunhar, nem passar por algum outro exame extenuante por mais outro psicólogo.

Ames sentou-se.

A juíza olhou para Corrigan.

— Alguma coisa mais? Corrigan levantou-se.

— Suponho que poderia ser eficaz apontar o motivo pelo qual nada mais tenho a dizer. Se, conforme argumentam os acusadores, Amber Brandon está num estado de espírito e de emoção tão lamentável que simplesmente deve ser impedida de testemunhar ou participar de um julgamento, só nos resta ter de aceitar a palavra do senhor advogado a esse respeito, sem ter como descobrir quanto essas alegações são verdadeiras. Amber poderia de fato estar numa condição tão má assim, mas jamais poderíamos confir­mar isso. Os acusadores poderiam estar conduzindo uma dissimulação esperta, proposital, mas jamais poderíamos saber isso também. Os advo­gados da acusadora obviamente acham que sabem tudo o que precisam saber a respeito de Amber e aquilo pelo qual ela alega ter passado nas mãos dos acusados, mas o acusado e seu advogado não sabem virtualmente nada além de boatos filtrados que nos foram fornecidos até agora. Sem Amber, estamos sendo restringidos, responsabilizados pela apresentação de uma defesa persuasiva, mas proibidos de chegar ao verdadeiro cerne da ques­tão, à verdadeira fonte dessas reclamações. Repito mais uma vez, não queremos ferir Amber de forma alguma ou aumentar o seu trauma — se houve algum trauma. Simplesmente desejamos chegar aos fatos de forma que possamos preparar-nos para responder às acusações. A senhora tem o nosso resumo quanto à lei que mostra que Amber tem de ser colocada à disposição.

Corrigan sentou-se, e a juíza olhou para Ames e Jefferson.

— Alguma outra coisa?

— Não, Meritíssima — disse Ames.

— O tribunal entrará em recesso, então, e se reunirá de novo às duas da tarde para a minha decisão.

— Levantem-se todos — disse a meirinha, e todos se levantaram, e lá se foi a juíza.

Tom sussurrou para Corrigan:

— Como acha que nos saímos? Corrigan não se mostrava muito contente.

— Não tenho a menor idéia. Acho que foi o argumento mais fraco que jamais apresentei em favor de alguma coisa. — Ele se irritou, se enfureceu, repassando mentalmente a audiência. — Eu deveria ter enfatizado mais a lei; ela supostamente está do nosso lado... Você viu a reação da juíza ao depoimento de Mandanhi? Aceitou-o como se fosse a absoluta verdade!

— Que tal almoçarmos? — perguntou Tom.

Corrigan acompanhou-o para fora do tribunal, ainda resmungando consigo mesmo.