Bernice Krueger leu em voz
baixa as palavras de sua Bíblia enquanto Sally acompanhava na Bíblia que havia
trazido da casa de Sara Barker. Elas estavam sentadas a uma mesinha isolada no
Restaurante do Danny, na rua principal, não longe do Clarim. Haviam
feito o pedido do almoço, que estava a caminho, e agora, enquanto tomavam café,
davam uma segunda olhada no texto que Hank usara para o sermão naquela manhã,
alguns versículos de Isaías 53.
Bernice leu o versículo
seguinte. "Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se
desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós
todos."
— Pecado e redenção — disse
Sally. Bernice ficou impressionada.
— Certo. Então você sabe alguma
coisa sobre isto.
— Não, não de verdade. É uma
frase que ouvi em alguns círculos, aparentemente uma forma rápida de definir a
típica opinião cristã das coisas. Sempre detestamos essa idéia. Bernice tomou
um golinho do seu café.
— Quem é esse
"nós"? Sally livrou-se da pergunta.
— Apenas uns velhos amigos.
— E o que detestavam a
respeito disso?
Sally tomou um golinho do seu
café. Era um meio eficaz de conseguir tempo a fim de formular uma resposta.
— A noção de pecado, acho. Já
é difícil o bastante qualquer pessoa sentir-se bem a seu próprio respeito, e
parecia muito negativo e opressivo ensinar que somos todos miseráveis,
imprestáveis pecadores. O cristianismo foi a maldição da humanidade,
escravizando-nos e impedindo-nos de alcançar o nosso verdadeiro potencial. —
Ela sentiu que precisava limitar aquilo. — De qualquer forma, era o que
pensávamos.
— Muito bem, então era isso o
que você pensava a respeito da parte do pecado. — Bernice sorriu, e deu umas
batidinhas na passagem de Isaias 53 que ainda estava aberta debaixo do nariz de
Sally. — Mas você captou a parte da redenção? Deus a ama, e enviou seu Filho
para pagar por esse pecado com sua própria morte na cruz.
Agora Sally se lembrava que a
Tia Bárbara e a Sra. Gunderson lhe haviam dito isso.
— Foi o que me disseram.
— Mas voltando ao que a
Bíblia diz sobre o pecado, desde quando isso é um choque tão grande? Os seres
humanos vêm provando por milhares de anos de que tipo de material são feitos.
Ouça, os problemas dos homens não são resultado de política ou economia ou
ecologia ou níveis de consciência; a ética corrompida do homem é a causa de
seus problemas..
Sally ouviu. Aquilo penetrou.
Era uma maneira simples de expressar a coisa, e ela não havia demonstrado a
veracidade daquelas palavras em sua própria vida?
— Acho que concordo com você
nesse ponto. Mas deixe-me confirmar uma coisa: depreendo que a Bíblia é o
padrão ético pelo qual definimos o que é "corrompido"?
Bernice assentiu firmemente
com a cabeça.
— E o que é bom, o que
é justo. Sally ponderou aquilo.
— Sendo esse o caso, imagino
que esse padrão nos coloca a todos do lado errado da cerca.
— Acho que você descobrirá
que essa idéia é aceitável se for honesta consigo mesma. Já viveu o tempo
suficiente para saber do que nós, os seres humanos, somos capazes.
Sally chegou a dar uma risada.
— Oh, sim, de fato.
— E aqui está a resposta de
Deus para isso. — Bernice apontou as frases e as revisou. — Ele tomou sobre si
as nossas enfermidades, e as nossas dores... foi traspassado pelas nossas
transgressões, e moído pelas nossas iniqüidades... o Senhor fez cair sobre ele
a iniqüidade de todos nós.
— Por quê?
Bernice pensou por um
momento.
— Bem, vamos falar de
justiça. Você faz alguma coisa errada, vai parar na prisão, certo?
Sally concordou
definitivamente.
— Certo.
— Agora, no sentido ideal, deixando
de lado todos os buracos legais, existem apenas duas maneiras de sair de lá:
mudar as regras de modo que o que você fez não seja errado e assim você não
seja culpada, ou pagar o preço.
— Tentei mudar as regras —
admitiu Sally.
— Bem, no plano de Deus,
regras são regras, porque, se não fossem, não teriam muito valor, e certo e
errado não teriam significado. Então, o que sobra? O preço. É aí que entra o
amor de Deus. Ele sabia que jamais conseguiríamos pagar nós mesmos o preço, por
isso ele o fez por nós. Tomou a forma de homem, tomou sobre si todos os nossos
pecados, e morreu numa cruz romana há dois mil anos.
Sally examinou de novo a
passagem.
— E então, diga-me: funcionou?
Bernice inclinou-se para a frente e disse:
— Julgue você mesma. A Bíblia
diz que a conseqüência do pecado é a morte, mas depois que Jesus pagou esse
preço, ele ressurgiu dos mortos no terceiro dia, por isso alguma coisa ficou
diferente. Ele conquistou o pecado, de modo que conseguiu conquistar o preço do
pecado. Claro que funcionou. Sempre funciona. Jesus satisfez a justiça divina
naquela Cruz. Ele suportou plenamente o castigo, e Deus jamais precisou
entortar as regras. É por isso que chamamos a Jesus de nosso Salvador. Ele
derramou seu próprio sangue em nosso lugar, e morreu, e depois ressurgiu do
túmulo a fim de provar que havia vencido o pecado e que nos podia libertar. —
Agora Bernice começava a ficar emocionada. — E sabe o que me faz vibrar com relação
a isso? É que significa que somos especiais para ele; ele realmente nos ama, e
nós... temos algum significado, estamos aqui por um motivo! E sabe o que
mais? Não importa quais sejam os seus pecados, não importa onde estivermos ou
em que condição estivermos, podemos ser perdoados, libertos e limpos, uma ficha
limpa!
O almoço chegou — duas sopas
e duas saladas. Sally sentiu-se agradecida pela pausa na conversa. Deu-lhe uma
oportunidade de pensar e indagar.Afinal, quem havia dado àquela mocinha o
roteiro? Como é que ela podia dizer tantas coisas que falavam tão diretamente à
situação de Sally?
Bem, Bernice freqüentava a
igreja do Pastor Hank Busche, e ele tinha um jeito de acertar o prego
bem na cabeça. Sua sugestão de que ela lesse o Salmo 119 fora perfeita, e o
sermão dessa manhã sobre Isaías 53 fora apenas um pouco mais da mesma mensagem
perfeita feita sob medida, exatamente o que ela estava necessitando ouvir.
Mas ainda existia um problema
em tudo isso. Sally comeu um pouco de sua salada enquanto considerava a próxima
pergunta, e depois formulou-a como se fosse um comentário.
— Não me sinto perdoada.
Bernice respondeu: — Você já
pediu a Deus que a perdoe?
— Nunca cheguei mesmo a
acreditar em Deus, pelo menos não no sentido tradicional.
— Bem, ele existe.
— Mas como posso saber isso?
Bernice olhou para Sally e
parecia conhecer o seu coração. Ela respondeu simplesmente:
— Você sabe.
— Então...
Sally deteve-se abruptamente,
e comeu um pouco mais de salada. Ela não podia fazer a pergunta que tinha em
mente. Pareceria tola demais, infantil demais, como uma pergunta idiota que já
havia sido respondida. Mas mesmo assim... ela tinha de ouvir uma resposta direta,
algo que pudesse levar consigo sem nenhuma dúvida.
— Bem, espero que seja
indulgente e me permita uma pergunta...
— Claro.
— É fácil falar em termos
confortáveis, generalizados, genéricos...
— Pode ser tão especifica
quanto quiser.
— Será... — Ela se deteve
novamente. De onde vinha aquela emoção? Ela a empurrou para baixo com outro
bocado de salada. Agora sentia-se bem. Parecia seguro perguntar.
— Será que Jesus morreu por mim?
Bernice não respondeu leviana
ou frivolamente. Ela olhou Sally nos olhos e deu uma resposta firme, serena.
— Sim, ele morreu por você.
— Por mim, por... — Ela teve
de lembrar-se do pseudônimo. — Por Betty Smith? Quero dizer, Bernice, você não
me conhece...
— Ele morreu por Betty Smith
da mesma forma que morreu por Bernice Krueger.
Bem, ela obteve a sua
resposta.
— Está bem.
Esse foi o último item
daquele tópico. Bernice percebeu que sua convidada do almoço se sentia pouco à
vontade, e não quis piorar as coisas. Sally temia ter-se aberto apenas um
pouquinho demais com uma estranha inocente, e não se atrevia a arriscar
arrastar aquela moça simpática para dentro das suas dificuldades.
Bernice recorreu a uma
conversa puramente social.
— Então, quanto tempo faz que
está viajando? Sally ficou com medo até dessa pergunta.
— Oh... um mês mais ou menos,
algo assim.
— De onde é, originalmente?
— Isso tem importância?
Depois dessa, a conversa ficou
difícil, e ambas o lamentaram. Exceto por prosa fiada e conversa puramente social,
o almoço foi mais importante do que quaisquer outras palavras. As saladas
desapareceram, as tigelinhas de sopa foram esvaziadas, os minutos passaram
suavemente.
— Gostei de conhecê-la —
disse Bernice.
— Acho melhor eu voltar para
a casa da Sara — disse Sally.
— Mas, escute... por que não
passa pelo Clarim quando tiver uma oportunidade? Poderíamos almoçar
juntas de novo.
O primeiro impulso de Sally
foi o de recusar, mas por fim ela se permitiu relaxar, confiar só um pouquinho,
e aceitar o convite.
— Bem... claro, gostaria
disso. Bernice sorriu.
— Vamos lá, eu a levarei de
carro de volta à pensão da Sara.
O velho sítio perto de Baskon havia estado deserto por anos, o celeiro vazio ficava cinzento. Desde que o dono havia morrido, nenhum ser humano jamais fora visto no lugar, nem um som ouvido, nenhuma luz brilhado — exceto por algumas noites a respeito da qual ninguém devia saber.
Nessa noite, o brilho opaco
alaranjado de velas aparecia através das rachaduras no revestimento de tábuas e
através das trincas na porta empenada pelo tempo do velho e amplo celeiro.
Dentro dele, vozes humanas sussurravam, murmuravam e ribombavam em cantilenas e
fórmulas cabalísticas ritmadas.
Havia cerca de vinte pessoas
ali dentro, todas vestindo roupões pretos exceto por uma mulher de branco, em
pé diante de um grande pentagrama sulcado no chão de terra nua. No centro do
pentagrama, duas pernas traseiras tiradas de uma cabra jaziam cruzadas formando
um X, e uma vela ardia em cada uma das cinco pontas do pentagrama.
À cabeceira do círculo, a
mulher de branco conduzia a reunião, falando em tons baixos e claros, um grande
cálice de prata nas mãos estendidas.— Assim como desde o princípio, os poderes
serão invocados através de sangue, e a restituição por nossa mão equilibrará a balança.
— Assim seja — entoaram os
outros.
— Invocamos os poderes e agentes
das trevas a fim de testemunharem esta noite a nossa aliança consigo.
— Assim seja!
Asas demoníacas farfalharam
nos caibros enquanto espíritos sinistros, destrutivos, puseram-se a reunir,
olhando para baixo com brilhantes olhos amarelos e sorrisos dentuços,
espojando-se em toda a adoração e atenção.
Na parte mais alta do
telhado, agarrado aos caibros e supervisionando aquilo tudo, Destruidor podia
formar silenciosamente com a boca as palavras da cerimônia ao mesmo tempo em
que as ouvia.
— Possa a sua fúria ser
inflamada contra os nossos inimigos, contra todos os que se opõem. Possa o seu
favor estar conosco ao lhes dedicarmos esta oferta.
— Assim seja!
— Que a mulher possa ser
encontrada!
— Assim seja!
— Assim seja — concordaram os
demônios, trocando olhares.
— Será — disse Destruidor. —
Será.
— Que ela possa ser retirada
do esconderijo, e esmagada como pó — declarou a mulher.
— Assim seja — entoaram os
outros.
Os demônios assentiram com as
cabeças e cacarejaram sua aprovação, as asas vibrando de prazer. Outros
espíritos chegaram. Os caibros, palheiro, as empenas do telhado enchiam-se com
eles.
— Derrota e divisão para os
cristãos, má saúde, má vontade.
— Assim seja.
Destruidor falou rapidamente
aos demônios que se reuniam, apontando para um e para outro, designando hordas
para cada tarefa enquanto os espíritos murmuravam sua aceitação.
— Possam eles conceder uma
decisão do tribunal em nosso favor! Damos-lhes o coração e a mente da Juíza
Emily Fletcher!
— Assim seja.
Destruidor correu os olhos à
volta de seu grupo e finalmente repousou sobre um espírito mais avultado,
pesadão, empoleirado num suporte diagonal. Ele já lidara com tribunais; seria
responsável por essa parte.
— E agora... — A mulher levou
o cálice de prata na direção dos lábios. — Através de sangue selamos o sucesso
dos poderes, a morte de Sally Beth Roe, e a derrota dos cristãos!
— Assim seja.
Todos os demônios
inclinaram-se para a frente e esticaram os pescoços,querendo ver. Deram
risadinhas, babaram, e trocaram tapinhas e cutucões. Destruidor ficou
embriagado de alegria.
A mulher puxou o capuz para
trás e tomou um gole do cálice. Quando retirou a taça, a mancha de sangue
fresco de cabra permaneceu em seus lábios.
Claire Johanson, a suma
sacerdotisa do bando, passou a taça a Jon, que bebeu e passou-a à próxima
pessoa, e cada bruxo e bruxa bebeu com o fim de selar as maldições.
A seguir, em coro, os braços
atirando-se para cima, bruxos e bruxas emitiram um berro lúgubre: — Assim seja!
— Vão! — ordenou Destruidor
com uma batida seca de asas e apontando com um gesto do dedo torto.
Os espíritos saqueadores
arremeteram do celeiro, despejando do telhado como a fumaça preta de um
incêndio, como morcegos de uma caverna. Dispersaram-se em todas as direções,
uivando e cacarejando, cheios de voluptuosa e destrutiva maldade.
Na manhã da segunda-feira, o dia da audiência em Westhaven, o pastor Mark Howard ficou grato por ter chegado à igreja antes de todos os outros. Tinha esperança de poder limpar a bagunça antes que qualquer criança da escola a visse.
Ele já havia aberto o prédio
da escola e aumentado o aquecimento; portanto o local estava pronto, e ainda
tinha quarenta e cinco minutos antes que os pais começassem a deixar ali os seus
filhos. Ele dirigiu-se apressado ao porão da igreja, abriu o seu gabinete e
agarrou o telefone.
Foi com voz baixa e sombria
que falou, quase como se tivesse medo de ser ouvido.
— Bom dia, Marshall. Aqui é
Mark. Desculpe acordá-lo tão cedo. Por favor, venha até a igreja imediatamente.
Vou chamar o Ben e espero tê-lo aqui também. Sim, imediatamente. Obrigado.
Ele abriu o armário de
materiais de limpeza que ficava debaixo da escada e agarrou um esfregão e um
balde. Estava tão aborrecido que se esqueceu de que precisaria de uma lata de
lixo também. Com o coração disparado, subiu correndo e saiu para a varanda da
frente da igreja.
O sangue na porta da frente
estava seco. Seria preciso esfregar um pouco para tirá-lo.
Oh! Preciso pegar a lata de
lixo! Não, ainda não. É melhor eu esperar até Marshall e Ben chegarem. Espero
que eles cheguem aqui antes das crianças. Ó Senhor Jesus, oramos para que o seu
sangue derramado cubra e proteja este lugar!
Vamos, caras, depressa! Não
posso deixar estas coisas aqui!
Aos pés de Mark, cruzados
para formar um X e manchando de vermelho os degraus da igreja, estavam as duas
pernas dianteiras de um animal, muito provavelmente uma cabra.
Às nove horas daquela manhã, representantes da imprensa, da ACAL, da liga Nacional sobre Educação, e mesmo de algumas igrejas convergiram à Sala 412 do Tribunal Federal em Westhaven, o tribunal da Meritíssima Emily R. Hetcher.
Wayne Corrigan e Tom Harris
já se encontravam sentados à mesa da defesa; Gordon Jefferson e Wendell Ames,
advogados de Lucy Brandon, estavam sentados e prontos para o combate, com Lucy
sentada entre os dois. Na primeira fileira da tribuna, o Dr. Mandanhi esperava
para depor.
O repórter Chad Davis, do
Noticiário do Canal Sete, KB2T, estava presente, rondando por ali em busca de
qualquer petisco ou comentário noticioso, enquanto Roberto Gutierrez arrumava a
câmara de televisão.
John Ziegler também se
encontrava presente, e Paula, a fotomaníaca, já havia tirado algumas fotos —
sem ser convidada — de Tom e Corrigan.
A meirinha colocou-se de pé.
— Levantem-se todos. O
tribunal está agora reunido, presidido pela Meritíssima Emily R. Fletcher.
A juíza ocupou o seu lugar
atrás da bancada.
— Obrigada. Por favor,
sentem-se.
Eles se assentaram. Até ali
as coisas iam exatamente como da última vez, e da mesma forma que da última
vez, a juíza encarapitou seus óculos de leitura sobre o nariz e examinou os
documentos que tinha diante de si.
— A defesa requereu a audiência
de hoje a fim de ser determinado se a criança neste caso, Amber Brandon, deveria
ou não ser isentada de qualquer depoimento ou testemunho. É do conhecimento do
tribunal que os advogados de acusação se opõem enfaticamente a qualquer
depoimento ou testemunho por parte da criança, e portanto foi requerido que o
tribunal se pronuncie sobre a questão.
Ela ergueu os olhos e pareceu
apenas um tantinho impaciente com o assunto todo.
— Sr. Corrigan, por favor,
prossiga. Corrigan ergueu-se.
— Obrigado, Meritíssima.
Nosso pedido é bastante simples, e nada irregular. A queixa contra o meu cliente
inclui acusações de perseguição, discriminação e comportamento religioso
chocante. Mas permita-me relembrar ao tribunal que até agora, nenhum
testemunho relacionado a essas acusações partiu da principal testemunha da
acusadora, a própria Amber, mas sim de segunda mão, através da mãe de Amber,
Lucy Brandon, e da testemunha perita da acusadora, o Dr. Mandanhi. Solicitamos
diversas vezes falar com Amber, fazer com que nosso próprio psicólogo a visite
de modo que as opiniões do Dr. Mandanhi possam ser contrabalançadas pelas de
outro perito. Mas o advogado da acusadora tem-se recusado terminantemente a
cooperar, e estamos preocupados por achar que o direito que meu cliente tem de
confrontar o seu acusador esteja sendo infligido. Além disso, sem oportunidade
de questionar Amber e ouvir o seu testemunho por nós mesmos, não temos garantia
de que o testemunho indireto vindo através da Sra. Brandon e através do Dr.
Mandanhi não esteja de alguma forma colorido, modificado ou enfeitado.
— Os advogados acusadores têm
insistido que Amber está numa condição delicada demais, numa idade frágil
demais para passar pelo depoimento ou por um julgamento no tribunal. Mas
podemos assegurar-lhes que não recorreríamos de forma alguma a táticas
ríspidas.
— Também o registro mostra
claramente que Amber é uma criança voluntariosa e que declarou fatos
conflitantes, mesmo para a mãe. Além disso, a mãe de Amber testemunhou no
depoimento que existem outras influências afetando a vida de Amber às quais ela
foi exposta fora da escola. Apenas a própria Amber pode responder às muitas
perguntas não respondidas que afloram nessas áreas.
— Tudo o que estamos
solicitando é ser-nos permitido ouvir os detalhes da própria Amber, e que o
nosso próprio psicólogo tenha permissão de examinar Amber a fim de confirmar ou
refutar as conclusões do Dr. Mandanhi.
Corrigan tomou o seu lugar, e
a juíza deu a palavra a Wendell Ames.
Ames não era tão empolgante
de observar quanto o mais jovem Jefferson, mas irradiava uma dignidade de
experiência que era em si mesma persuasiva.
— Meritíssima, todo este caso
está sendo trazido ao tribunal por causa do severo prejuízo causado a uma
criança inocente, cuja extensão é claramente mostrada nos depoimentos e nos
relatórios do Dr. Mandanhi. Como advogados da acusadora, desejamos corrigir um
erro, reparar uma injustiça, e de alguma forma desfazer o dano que foi causado.
Nunca foi nossa intenção, como seres humanos responsáveis, apenas aumentar a
dor de Amber, fazendo-a passar pelo processo de julgamento, trazendo à tona
todas as suas antigas feridas, e tornando públicas as suas dores.
— Apresentamos um parecer
adicional do Dr. Mandanhi, detalhando pata o tribunal o atual estado emocional
de Amber e estabelecendo que não seria no melhor interesse dela ser obrigada a
testemunhar ou prestar um depoimento. Se o tribunal assim o exigir, o Dr. Mandanhi
está aqui para testemunhar em pessoa quanto à fragilidade do estado de espírito
e das emoções de Amber nesta ocasião.
A juíza Fletcher olhou para o
Dr. Mandanhi e depois para Ames.
— O doutor teria outras
declarações a fazer que não estão incluídas em seu parecer escrito?— Estou
certo de que ele poderia esclarecer para o tribunal quaisquer itens que o
tribunal possa precisar que sejam esclarecidos.
A juíza examinou rapidamente
o relatório de Mandanhi. — Acho que está bastante claro. Qualquer outro testemunho
oral muito provavelmente seria cumulativo.
— Muito bem.
— Alguma coisa mais?
— Sim. Embora existam fortes
argumentos nos dois lados, seria a nossa esperança que o bom senso e a decência
falem mais alto e mais persuasivamente do que qualquer argumento, e que o
tribunal poupe a essa criança inocente a dor e a tristeza de reviver as suas
mágoas, de enfrentar o desafio e a duvida da defesa, de ser colocada em
exibição, por assim dizer, em tribunal aberto.
— Compreendemos o processo
legal, naturalmente. Compreendemos que o acusado realmente tem o direito de
confrontar aquela que o acusa. Mas relembramos ao tribunal que estamos diante
de um caso de abuso infantil, um fato que os acusados já admitiram.
— Protesto — disse Corrigan.
— A defesa não admitiu tal coisa. Ames respondeu:
— Meritíssima, eu
simplesmente me referia àquilo que já foi estabelecido, que surras realmente
ocorrem na escola, e que a escola realmente ensina doutrinas difusas e
inoportunas...
A juíza estava um tanto
impaciente.
— Os depoimentos são claros
com relação ao que a escola pratica e ensina, Sr. Ames. Se os acusados
desejarem defender suas práticas, isso de forma alguma constitui admissão de
culpa. Sustento o protesto.
Ames reuniu seus pensamentos
e continuou.
— De qualquer forma,
Meritíssima, afirmamos que Amber é uma criança de tenra idade que precisa ser
protegida. Essa é, afinal, a motivação por trás desta ação judicial em primeiro
lugar. Dado isso, devemos pleitear que o tribunal poupe a Amber qualquer outra
dor e trauma mediante decisão de que ela não precisa depor e que não precisa
testemunhar, nem passar por algum outro exame extenuante por mais outro
psicólogo.
Ames sentou-se.
A juíza olhou para Corrigan.
— Alguma coisa mais? Corrigan
levantou-se.
— Suponho que poderia ser eficaz
apontar o motivo pelo qual nada mais tenho a dizer. Se, conforme argumentam os
acusadores, Amber Brandon está num estado de espírito e de emoção tão
lamentável que simplesmente deve ser impedida de testemunhar ou participar de
um julgamento, só nos resta ter de aceitar a palavra do senhor advogado a esse
respeito, sem ter como descobrir quanto essas alegações são verdadeiras. Amber
poderia de fato estar numa condição tão má assim, mas jamais poderíamos confirmar
isso. Os acusadores poderiam estar conduzindo uma dissimulação esperta,
proposital, mas jamais poderíamos saber isso também. Os advogados da acusadora
obviamente acham que sabem tudo o que precisam saber a respeito de Amber e
aquilo pelo qual ela alega ter passado nas mãos dos acusados, mas o acusado e
seu advogado não sabem virtualmente nada além de boatos filtrados que nos foram
fornecidos até agora. Sem Amber, estamos sendo restringidos, responsabilizados
pela apresentação de uma defesa persuasiva, mas proibidos de chegar ao
verdadeiro cerne da questão, à verdadeira fonte dessas reclamações. Repito
mais uma vez, não queremos ferir Amber de forma alguma ou aumentar o seu trauma
— se houve algum trauma. Simplesmente desejamos chegar aos fatos de forma que
possamos preparar-nos para responder às acusações. A senhora tem o nosso resumo
quanto à lei que mostra que Amber tem de ser colocada à disposição.
Corrigan sentou-se, e a juíza
olhou para Ames e Jefferson.
— Alguma outra coisa?
— Não, Meritíssima — disse
Ames.
— O tribunal entrará em
recesso, então, e se reunirá de novo às duas da tarde para a minha decisão.
— Levantem-se todos — disse a
meirinha, e todos se levantaram, e lá se foi a juíza.
Tom sussurrou para Corrigan:
— Como acha que nos saímos?
Corrigan não se mostrava muito contente.
— Não tenho a menor idéia.
Acho que foi o argumento mais fraco que jamais apresentei em favor de alguma
coisa. — Ele se irritou, se enfureceu, repassando mentalmente a audiência. — Eu
deveria ter enfatizado mais a lei; ela supostamente está do nosso lado... Você
viu a reação da juíza ao depoimento de Mandanhi? Aceitou-o como se fosse a
absoluta verdade!
— Que tal almoçarmos? —
perguntou Tom.
Corrigan acompanhou-o para
fora do tribunal, ainda resmungando consigo mesmo.