No centro de tudo aquilo,
Bentmore sobrevivia, firme e sólida em tijolos vermelhos e pedras brancas, seus
salões, dormitórios, bibliotecas e laboratórios espalhados por igual sobre o
terreno coberto de grama, suas calçadas de tijolos que formavam desenhos
irradiando a cada ponto do campus como raios que partiam de cada entrada,
cruzamento e ligação como se fossem rotas comerciais.
Ao olho humano, Bentmore
parecia um oásis de paz, reflexão e aprendizado no meio do rebuliço que a cercava;
na esfera espiritual, o verdadeiro problema existia dentro de suas fronteiras,
não fora delas.
Guilo encontrou-se com Tal e
seus mais importantes guerreiros no telhado da velha Companhia de Latas
Norte-Americana, localizada bem na frente do campus do outro lado do rio.
Abaixo de seus pés, latas de sopa, latas de suco, latas de frutas e latas de
sardinhas tomavam formato e passavam com alarido pelas janelas, num desfile
rolante sem fim; do outro lado do rio, ainda velada pela neblina matutina, a
velha Bentmore estava envolta num silencio agourento.
Guilo postou-se ao lado de
Tal para dar o seu relatório. Ele estava nervoso, agitado, pronto para uma
briga, a mão descansando no cabo da espada.
— Alguns dos seus melhores
guerreiros estão ali. Os grandes enganadores, os grandes construtores do reino
vindouro do Inimigo, todos supervisionados por um animal gigantesco que se dá
o nome de Corruptor.— Já ouvi falar nele — disse Tal. — Ele tem poder e grande
capacidade de enganar, mas não muita velocidade ou esperteza na batalha.
— Uma vantagem, isso é certo.
Mas se trabalharmos às escondidas, há muito que podemos fazer antes que ele
perceba.
Natã espiou através da
neblina e achou ter visto alguns espíritos vultosos deslizando ocasionalmente
entre as estruturas, mas a maioria deles estava invisível.
— Eles ficam escondidos, enfiados
dentro dos prédios.
— Muito ocupados — disse
Armoth. — As aulas estão em andamento.
— Corruptor está um tanto
confortável no momento, e desatento — disse Guilo — mas Destruidor vai ser
outro problema. Está vindo para cá agora, com todas as suas tropas. Então, a
velha Bentmore vai ficar como uma colméia de marimbondos descansando. É só
sacudir uma árvore, e....
— Eles nos dominarão — disse
Tal. — Os encrenqueiros de Destruidor em Baskon estão se saindo bem no momento;
a nossa cobertura de oração está mais fraca do que nunca, e ficamos com as
forças seriamente depauperadas. Confrontações diretas serão arriscadas.
Teremos de depender bastante de ação furtiva e estratégia...
Guilo permitiu-se uma risada
rápida, abafada, enquanto fitava o campus.
— Quero relembrar a todos:
eles poderiam comer-nos vivos.
Os bancos por aqui e por ali no campus ainda estavam molhados de orvalho e neblina, mas Sally encontrou uma escrivaninha confortável escondida nas estantes da Biblioteca de Pesquisa. Até então ela não tinha visto ninguém do pessoal da biblioteca que reconhecesse, e isso a havia deixado um pouco mais à vontade. Graças a uma pequena tinturaria no lado oeste do campus, suas roupas melhores, como calças, blusa e jaqueta fina, estavam limpas e passadas; ela havia trocado seu conjunto de viandante desconhecida por um conjunto mais apresentável, e guardado sua mochila, substituindo-a por uma sacola menos indiscreta. Ela conseguia lembrar-se da aparência elegante e profissional que tinha doze anos atrás, com conjuntos cuidadosamente combinados e os cabelos muito bem presos. Hoje, o melhor que podia com a sua aparência era o ar casual e doze anos mais velho, com óculos de lentes coloridas e cabelos tingidos de preto presos da melhor maneira que conseguiu. Tinha apenas de esperar que parecesse suficientemente diferente da Sally Roe de quem as pessoas se lembrariam.
E eu diria que estão certos.
Bentmore ainda está produzindo grandes educadores, grandes agentes de mudança.
Eles serão os professores, os administradores, os diretores, os autores, os que
tentarão influenciar os legisladores. Uma nação os seguirá; eles reestruturarão
toda uma cultura.
Sally olhou o relógio. Já
passava das nove da manhã; alguém deveria estar na sala do Professor Lynch a essa
altura, ou a secretária ou o próprio Lynch. Esse seria o maior de todos os
riscos, mas ela precisava entrar em contato com ele. Dentre todas as pessoas,
ele deveria ter algumas das respostas de que ela precisava.
Ela averiguou o nome e o
número dele no catálogo do campus, e por mais surpreendente que fosse, após
doze anos Samuel W. Lynch ainda era o diretor da Faculdade de Educação. Tanto
quanto podia se lembrar, ele era definitivamente perfeito para o posto, sempre
um homem imponente de grande conhecimento, estatura e força.
Um estudante de graduação
alto e atlético havia acabado de usar o telefone público que ficava na parede
atrás dela. Ela aproveitou a oportunidade. Tentaria marcar uma entrevista com
Lynch, talvez durante as horas normais de expediente. Tudo o que podia esperar
era que o homem não fosse tão brilhante quanto se recordava; talvez ele não se
lembrasse de quem ela era.
Wayne Corrigan e Gordon Jefferson, o advogado da ACAL, jamais seriam bons amigos, isso era fácil de ver.
— Sr. Jefferson, estou
simplesmente dizendo que temos o direito de confrontar a pessoa que nos acusa!
— Corrigan estava-se sentindo muito vigoroso, e tinha a boca tão perto do bocal
do telefone que Jefferson ouvia um rugido toda a vez em que Corrigan
pronunciava um s ou um f.
Jefferson revidou com igual
firmeza, e até um tanto depreciativamente.
— Quem o acusa, Sr. Corrigan,
é Lucy Brandon, não Amber, e o senhor já tomou o depoimento da Sra. Brandon de
forma tão dura que lhe causou terrível perturbação! Não nos passaria pela
cabeça colocar Amber na mesma situação.
— Não queremos causar nenhum
sofrimento a Amber — de forma alguma! Trabalharemos com restrições, seremos
delicados. Mas até agora tudo o que ouvimos, todos os testemunhos, todas as
queixas, vieram através de Lucy Brandon ou do Dr. Mandanhi. A verdadeira
queixosa neste caso não é nenhuma dessas pessoas, mas a própria Amber.
— Amber não vai testemunhar
ou ser forçada a passar por um depoimento. Lutaremos contra isso, senhor!
— Precisamos ter o testemunho
direto de Amber com relação às queixas apresentadas contra os meus clientes.
— Seria traumático demais
para ela. Ela já está tão profundamente ferida por esses acontecimentos
infelizes que simplesmente não podemos permitir que seja traumatizada mais
ainda por ser forçada a passar pela tensão e dor de um depoimento e um
julgamento.
— Então queremos que o nosso
psicólogo a examine. Pelo menos então teríamos nosso próprio laudo perito para
equilibrar o testemunho do Dr. Mandanhi
— De jeito nenhum! Amber não
deve ser envolvida neste caso de forma alguma. Precisa ser mantida isolada
dele; precisa ser protegida de qualquer outro abuso e intimidação!
Corrigan suspirou e olhou ao
outro lado da escrivaninha para Marshall, que estava ouvindo e observando
atentamente o lado de Corrigan da conversa. Marshall fez um gesto de torcer as
mãos como se tivesse torcendo um braço invisível e sussurrou:
— Dê-lhe duro!
— Temo não poder desistir
nessa questão — disse Corrigan a Jefferson. — Se o senhor não mudar de idéia,
então teremos de pedir ao tribunal que obrigue-a a ficar disponível e a
testemunhar.
— Estamos preparados para
isso — disse Jefferson.
— Muito bem, então.
Corrigan desligou, e depois
pensou por um momento.
— Talvez eu tenha sido muito
duro com Lucy Brandon. Agora eles estão escondendo Amber debaixo de sete
chaves.
Marshall assentiu
enfaticamente com a cabeça.
— Claro. Irene Bledsoe, e
Lucy Brandon, e esse tal de Dr. Mandanhi podem dizer tudo o que quiserem, mas
Amber é a chave em toda esta coisa. Enquanto Ametista estiver fazendo das suas,
Amber vai constituir um risco real.
— Claro, mas se apenas
pudermos colocá-la naquele banco de testemunhas, ou fazer com que o nosso
próprio perito a examine... Isto é, se pudéssemos apenas fazer com que Ametista
se manifestasse uma vez, poderíamos levantar o argumento de que o comportamento
de Tom ao confrontar Ametista foi justificado. — Ele sorriu. — Não seria ótimo
se conseguíssemos que Ametista destruísse o tribunal? Poderíamos ganhar este
caso.
— Eles sabem disso.
— Bem, nós sabemos o
que aconteceu no Correio, e isso os assusta.Precisamos reforçar essa defesa;
temos o testemunho ocular de Alice Buckmeier, mas outra testemunha seria melhor
ainda, especialmente se Lucy decidir de alguma forma guardar para si parte do
que disse no depoimento.
Marshall respondeu:
— Bem, ainda temos aquela
outra moça, Debbie, que trabalha no Correio com Brandon. Alice diz que ela
estava presente, mas não sei dizer a quem ela seria leal.
— O jeito é intimá-la e
descobrir.
— E também temos a vítima do
ataque de Ametista. Corrigan fez que sim com a cabeça.
— Nosso maior mistério por
resolver. Ela é como um fantasma, sabe? Temos retratos dela, testemunhos
oculares sobre ela, fatos e informação a respeito dela, mas no que tange ao que
ela tem a ver com este caso, é como uma miragem, simplesmente não está ali.
— Então force esse negócio da
Amber. Vá em frente e peça uma audiência. A ACAL bem que poderia tomar uma dose
do próprio remédio. Mesmo que não faça nada mais por nós, nos dará tempo. Nunca
se sabe quando algo grande vai estourar.
Corrigan estava atraído pela
idéia.
— Amber, temos de colocá-la
no banco das testemunhas!
Claire Johanson falou com o Dr. Mandanhi por telefone apenas minutos após Jefferson ter encerrado a ligação com Wayne Corrigan.
— Doutor, o seu relatório
está muito fraco.
O Dr. Mandanhi ficou
perplexo, e também um tanto impaciente. — Ora... que relatório é esse, o
primeiro ou o segundo, ou a segunda versão do primeiro?
Claire fez uma careta de
desagrado só porque o Dr. Mandanhi não a veria pelo telefone.
— A primeira versão do
segundo relatório, a que estabeleceu que Amber está numa condição mental
delicada demais para prestar depoimento ou testemunhar.
— E do que está falando ao
dizer que está muito fraco?
— Ele não tem persuasão
suficiente; seria muito fácil a defesa diminuir-lhe a importância. Corrigan vai
pedir uma audiência que decidirá se Amber deveria ou não ser forçada a depor, e
precisamos de algo mais forte para apresentar ao tribunal.
Mandanhi pausou por um
momento. Ele estava claramente descontente. — Srta. Johanson, já passamos por
esse caminho antes. A senhorita não achou que o meu primeiro relatório também
estivesse suficientemente forte!— Bem, é assim que são as coisas.
— Srta. Johanson, quando a
senhorita me envolveu nisto, dei a minha opinião mais justa, mais objetiva no
tocante à condição de Amber. Concordei com a senhorita e com a mãe da menina
que a criança havia sido prejudicada. Por que isso não bastou?
Claire estava sentindo a
pressão de cima e agora do doutor abaixo dela.
— Porque, Dr. Mandanhi, num
tribunal judicial o argumento tem de ser vigoroso, precisa ter poder esmagador
de persuasão. Sua primeira versão foi muito... muito...
— Muito factual? — sugeriu
Mandanhi. — A senhorita preferiria que eu mentisse e inventasse trauma
adicional somente para obter uma decisão favorável do tribunal?
— Inventar, não, doutor.
Exagerar talvez, apenas tornar a sua opinião mais vigorosa.
— Bem, acho que foi o que fiz
com o meu primeiro relatório. Dei-lhe o que a senhorita queria, e acho que mais
do que os fatos justificavam. Agora quer que eu faça isso de novo?
Claire hesitou. Então disse
bruscamente:
— Com os fatos que temos em
mão, seu segundo relatório podia ser exagerado. Torne-o mais forte, torne-o
persuasivo! Não deveria ser muito difícil mostrar como a tensão sobre Amber
poderia causar-lhe dano psicológico permanente.
— Está me pedindo para
mentir?
— Estou pedindo que use os
fatos, seja um defensor, e proteja Amber. Ela não deve depor!
Sally conseguiu marcar uma hora com o Professor Samuel W. Lynch, e conseguiu chegar à sua sala na hora, às 6 da tarde. Era um horário estranho, mas ele geralmente ficava em sua sala até essa hora de qualquer forma, e estaria feliz em vê-la.
Ele tinha uma nova sala
agora, no segundo andar do Prédio Whitcombe, o principal eixo na
Faculdade de Educação Bentmore. O Prédio Whitcombe era uma estrutura mais nova
de aço, mármore e vidro que se erguia dez andares acima do restante do campus.
Aparentemente Bentmore se orgulhava das contribuições que fazia para a
educação e desejava exibir esse orgulho de forma grandiosa.
A Sala 210 era mais do que
apenas uma sala; era toda a ponta norte do andar, separada por uma parede de
vidro com magníficas portas duplas. A secretária também estava trabalhando
depois do expediente, e podia olhar por aquela parede de vidro de onde se
sentava e enxergar qualquer pessoa que estivesse vindo pelo corredor. Ela viu
Sally assim que esta saiu do elevador, mas não pareceu demorar-se demais
naquela olhada. Isso era animador.
Sally passou pelas portas e
tentou dirigir-se à secretária de certa distância.
— April Freeman para falar com
o Professor Lynch.
A senhora sorriu e acenou
afirmativamente com a cabeça.
— Sim, a moça do Register?
— Essa mesma.
— Muito bem, ótimo. — Ela
apanhou seu telefone e apertou um botão. — A senhora do Register está
aqui para vê-lo. — Ela olhou para Sally. — Ele a atenderá num minuto. Pode
sentar-se.
Sally ficou em pé perto do
sofá na área de espera, mas não se sentou nele. Estava desconfortável demais para
sentar-se, e pronta a correr. A mentira a respeito de ser uma repórter do
jornal universitário estava funcionando por enquanto, mas se alguém pensasse em
ligar para o escritório do Bentmore Register a fim de averiguar qualquer
coisa, seu disfarce seria coisa do passado. Além disso, já havia um homem
sentado ali, e ela o tinha pego olhando-a uma vez, embora supostamente
estivesse lendo uma revista. Talvez ele estivesse lendo aquela revista, mas
talvez não estivesse. O que estava fazendo ali às seis horas da tarde? Do jeito
como ela se sentia naquele momento, cada pessoa naquele lugar era um assassino
em potencial.
Seu coração estava batendo
violentamente; se as mãos tremessem muito mais, daria para ver. Tentou respirar
fundo algumas vezes a fim de controlar-se.
— Srta. Freeman!
Aquela voz! Após doze anos,
ainda se lembrava. Ela voltou-se.
Ali estava o Professor Samuel
W. Lynch. Oh! Aquele tremor estava tão grande que tinha de ser perceptível! Ela
enrijeceu o corpo para manter-se firme, forçou um sorriso e estendeu a mão.
— Alô.
Ele tomou-lhe a mão.
— Um prazer. Venha por aqui.
Ele voltou-se, e ela o
acompanhou de volta ao escritório.
Isso não estava certo. Não
era doze anos depois. Tinha de ser doze anos antes. Ele não havia
mudado. Ainda era o mesmo cavalheiro gordo e distinto de cabelos grisalhos, o
mesmo pedagogo eloqüente que ela havia admirado. Ela o teria reconhecido em
qualquer lugar.
Será que ela lhe era
familiar? Centenas de estudantes deviam ter passado pela vida dele desde a
última vez em que ela estivera ali; com certeza seu rosto estaria perdido atrás
de todos os outros.
Ele a conduziu para dentro do
seu escritório e ofereceu-lhe uma confortável cadeira estofada. Ela sentou-se imediatamente
e descobriu-se olhando para todas as coisas. As paredes forradas de livros
nesse cômodo erguiam-se a tão grande altura que ela sentiu-se como se estivesse
sentada no fundo de um poço profundo. O cômodo estava num silêncio mortal, como
uma cripta.
Lynch assentou-se atrás da
escrivaninha e relaxou por um momento, estudando o rosto dela, as mãos cruzadas
na frente do peito.
Ela devolveu-lhe o olhar e
tentou sorrir. Estava começando a sentir o silêncio. Isso não estava certo.
Alguém devia estar dizendo alguma coisa a essa altura.
— Então você trabalha com o Register?
— perguntou ele, ainda descontraído, reclinando-se na cadeira.
— Sim, comecei este
trimestre.
— E qual é a sua área de
estudos?
— Hum... economia. Ele
sorriu.
— Muito bom. O que acha de
Parker?
Ô. Seria um teste? Quem era
Parker? Era homem ou mulher? Será que Parker era alguém vivo? Sally tateou.
— Oh... ainda confundo os
mestres. Acabei de transferir-me... Ele riu.
— Não tem importância. Ficará
conhecendo-os, e estou certo de que eles a ficarão conhecendo. Descobrirá que
somos uma instituição cordial, uma grande família. De onde você e?
Ela estava fingindo um
sotaque.
— Oh, Knoxville, no
Tennessee.
Ela abriu o caderno apenas
para ter algo que fazer, algo que preenchesse o tempo incômodo, vazio. Sua
mente se apagara subitamente como se uma nuvem escura a tivesse penetrado. Num
momento ela sabia o que ia dizer, e no momento seguinte sentiu que parte de seu
cérebro havia morrido.
E o Professor Lynch
mantinha-se apenas sentado ali, sem dizer coisa alguma. O silêncio encheu a
sala como água profunda; o ar quente, abafado pressionava de todos os lados.
— Umm... Apenas queria
fazer-lhe algumas perguntas... — disse Sally, tirando um caderno de sua sacola
e folheando-o. Onde estavam as perguntas? Ela as havia escrito ali, mas
agora... — Estou apenas tentando achar as minhas perguntas; estavam aqui, em
algum lugar.
— Não fique nervosa — disse
Lynch. — Não vou mordê-la. Ela riu. Então ele havia percebido!
— Obrigada. Ainda sou um
pouco caloura neste tipo de coisa. — Ela encontrou as perguntas. — Oh! Cá
estamos. Achei que seria interessante investigar uma história de sucesso de
Bentmore e escrever um artigo sobre Owen Bennett.
Ele sorriu.
— Ahhh... Daria uma história
interessante. Owen Bennett é um homem fascinante.
— Ele foi catedrático aqui
por muitos anos, pelo que fiquei sabendo.
— Oh, sim! Mas, escute,
poderia dar-me licença por apenas um minuto?
— Certamente.
Ele ergueu-se da cadeira e
saiu apressado da sala, deixando-a sozinha no fundo desse poço escuro,
opressivo.
O silêncio fechou-se em torno
dela novamente, mais pesado do que nunca. Tinha dificuldade em respirar, como
se seu peito estivesse sendo esmagado, como se o ar fosse espesso demais para
ser aspirado. Tinha de ser sua imaginação, a tensão, o nervosismo.
Ela fechou os olhos e
abriu-os de novo. A sala ainda parecia escura. Talvez mais escura.
No alto acima dela, as
paredes contendo centenas de livros em todas aquelas prateleiras pareciam estar
inclinando-se mais e mais na direção do centro do aposento. Era de admirar que
todos os livros — e alguns deles eram volumosos — não estivessem escorregando
das prateleiras e caindo estrondosamente sobre ela. Ao mesmo tempo, o teto,
distante que era, parecia estar-se afastando cada vez mais, tornando esse poço,
esse abismo, essa armadilha mais funda ainda.
Sally fechou os olhos. Não
queria acreditar que seus velhos atormentadores estivessem escondidos por ali.
Ela não podia aceitar que talvez estivesse presa nesse abismo com eles, sem
escape, indefesa, sem escolha, a não ser esperar o primeiro estrépito de suas
mandíbulas invisíveis.
Mas por mais que tentasse,
não podia livrar-se dessa... dessa presença. Não, não era que as paredes
e os livros estivessem se fechando sobre ela. Essas ilusões apenas nasciam de
um terror íntimo, devorador. Havia alguma outra coisa penetrando nesse
aposento, algo de seus pesadelos infantis — aquela coisa de terror,
firme, inexorável que avançava lentamente, aquele bicho papão, aquele monstro,
aquele inimigo invisível, voraz, imbatível, do qual, por mais depressa que
corresse, não conseguia escapar. Ele estava ali, em algum lugar, escondido
atrás dos livros, talvez contorcendo-se para passar através deles, fitando-a
fixamente, vendo-a afundar na cadeira, vendo-a tremer e suar.
Suas palmas estavam deixando
marcas molhadas nos braços da poltrona. Sua pele estava formigando.
Ela tinha de sair dali. Havia
cometido um erro; entrara numa armadilha mortal. Esse aposento estava vivo com
maldade, prestes a esmagá-la.
Ela viu! Um grito escapou-lhe
da garganta antes que pudesse detê-lo. Logo atrás da escrivaninha, diretamente
à frente de onde ela estava sentada, uma fileira de olhos enraivecidos,
dourados, fitavam-na furiosamente da prateleira. Seus próprios olhos piscaram,
fechando-se. Ela pensou melhor sobre aquilo, e abriu-os novamente.
Eles ainda estavam lá,
imóveis. Mas... não. Não eram olhos. Ela exalou devagar e tentou com todas as
forças controlar suas emoções e seus pensamentos. Fitou-os deliberadamente;
olhou-os fixamente, chegando mesmo a desafiá-los.
Eram quatro símbolos dourados
nas lombadas de quatro volumes de encadernação ornamentada. Ainda pareciam
estar fitando-a fixamente. Ela tentou subjugar a imaginação. Tinha de ser
objetiva a respeito daquilo.
Inclinou-se na direção deles.
Eram caras. Caras medonhas, triangulares, todas olhando fixamente, todas
aparentemente rosnando para ela. Pequenos gárgulas. Olhos profundos, vazios,
quase como cavidades. Dentes à mostra. Testas altas, brilhando.
Seu coração começou a
disparar. O queixo caiu, e ela, paralisada, fixou neles os olhos. Com dedos amortecidos
e desajeitados, ela puxou uma corrente que estava à volta do pescoço. Os dois
anéis surgiram do esconderijo e ela os segurou lado a lado em frente do rosto,
olhando-os e depois além deles, olhando as caras nos quatro volumes.
Idênticos.