terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 27


 A universidade Bentmore aninhava-se, quase se escondia, dentro da apertada rede de tijolos vermelhos de uma grande metrópole. Em todas as direções, bastava apenas atravessar a rua para se encontrar barulho, lixo, tráfego e problemas de crescimento da cidade. Ela havia sobrevivido à ascensão e à queda de um conjunto habitacional de baixo nível no seu flanco norte; no lado oeste, as padarias, alfaiatarias e tinturarias estavam agora nas mãos das terceiras gerações; ao leste, os rebocadores ainda puxavam as balsas para cima e para baixo no rio turvo, o ronco de seus motores audível através do campus quando o vento soprava na direção certa; ao sul, diversos novos apartamentos haviam-se tornado a única coisa que se podia ver naquela direção, e agora as ruas daquele lado estavam cheias de grandes carros velhos dirigidos por gente aposentada que dirigia devagarinho.

No centro de tudo aquilo, Bentmore sobrevivia, firme e sólida em tijolos vermelhos e pedras brancas, seus salões, dormitórios, bibliotecas e laboratórios espalhados por igual sobre o terreno coberto de grama, suas calçadas de tijolos que formavam desenhos irradiando a cada ponto do campus como raios que partiam de cada entrada, cruzamento e ligação como se fossem rotas comerciais.

Ao olho humano, Bentmore parecia um oásis de paz, reflexão e aprendizado no meio do rebuliço que a cercava; na esfera espiritual, o verdadeiro problema existia dentro de suas fronteiras, não fora delas.

Guilo encontrou-se com Tal e seus mais importantes guerreiros no telhado da velha Companhia de Latas Norte-Americana, localizada bem na frente do campus do outro lado do rio. Abaixo de seus pés, latas de sopa, latas de suco, latas de frutas e latas de sardinhas tomavam formato e passavam com alarido pelas janelas, num desfile rolante sem fim; do outro lado do rio, ainda velada pela neblina matutina, a velha Bentmore estava envolta num silencio agourento.

Guilo postou-se ao lado de Tal para dar o seu relatório. Ele estava nervoso, agitado, pronto para uma briga, a mão descansando no cabo da espada.

— Alguns dos seus melhores guerreiros estão ali. Os grandes enganado­res, os grandes construtores do reino vindouro do Inimigo, todos super­visionados por um animal gigantesco que se dá o nome de Corruptor.— Já ouvi falar nele — disse Tal. — Ele tem poder e grande capacidade de enganar, mas não muita velocidade ou esperteza na batalha.

— Uma vantagem, isso é certo. Mas se trabalharmos às escondidas, há muito que podemos fazer antes que ele perceba.

Natã espiou através da neblina e achou ter visto alguns espíritos vultosos deslizando ocasionalmente entre as estruturas, mas a maioria deles estava invisível.

— Eles ficam escondidos, enfiados dentro dos prédios.

— Muito ocupados — disse Armoth. — As aulas estão em andamento.

— Corruptor está um tanto confortável no momento, e desatento — disse Guilo — mas Destruidor vai ser outro problema. Está vindo para cá agora, com todas as suas tropas. Então, a velha Bentmore vai ficar como uma colméia de marimbondos descansando. É só sacudir uma árvore, e....

— Eles nos dominarão — disse Tal. — Os encrenqueiros de Destruidor em Baskon estão se saindo bem no momento; a nossa cobertura de oração está mais fraca do que nunca, e ficamos com as forças seriamente depau­peradas. Confrontações diretas serão arriscadas. Teremos de depender bastante de ação furtiva e estratégia...

Guilo permitiu-se uma risada rápida, abafada, enquanto fitava o cam­pus.

— Quero relembrar a todos: eles poderiam comer-nos vivos.

Os bancos por aqui e por ali no campus ainda estavam molhados de orvalho e neblina, mas Sally encontrou uma escrivaninha confortável escondida nas estantes da Biblioteca de Pesquisa. Até então ela não tinha visto ninguém do pessoal da biblioteca que reconhecesse, e isso a havia deixado um pouco mais à vontade. Graças a uma pequena tinturaria no lado oeste do campus, suas roupas melhores, como calças, blusa e jaqueta fina, estavam limpas e passadas; ela havia trocado seu conjunto de viandante desconhecida por um conjunto mais apresentável, e guardado sua mochila, substituindo-a por uma sacola menos indiscreta. Ela conseguia lembrar-se da aparência elegante e profissional que tinha doze anos atrás, com conjuntos cuidadosamente combinados e os cabelos muito bem presos. Hoje, o melhor que podia com a sua aparência era o ar casual e doze anos mais velho, com óculos de lentes coloridas e cabelos tingidos de preto presos da melhor maneira que conseguiu. Tinha apenas de esperar que parecesse suficientemente diferente da Sally Roe de quem as pessoas se lembrariam.

 Oh, eu devia estar tão orgulhosa da minha vocação de educadora! Enquanto sento-me aqui e observo os estudantes de pós-graduação passando neste lugar, trabalhando para conseguir seus mestrados da mesma forma que fiz, posso ver o mesmo orgulho em seus rostos, posso sentir a mesma conduta pseudo-intelectual Para falar a verdade, vejo a mim mesma como era então. A velha forma de Bentmore não foi quebrada. Posso adivinhar o que estão pensando: são os conquistado­res do mundo, missionários de uma mensagem audaz de mudança global

E eu diria que estão certos. Bentmore ainda está produzindo grandes educadores, grandes agentes de mudança. Eles serão os professores, os administradores, os diretores, os autores, os que tentarão influenciar os legisladores. Uma nação os seguirá; eles reestruturarão toda uma cultura.

Sally olhou o relógio. Já passava das nove da manhã; alguém deveria estar na sala do Professor Lynch a essa altura, ou a secretária ou o próprio Lynch. Esse seria o maior de todos os riscos, mas ela precisava entrar em contato com ele. Dentre todas as pessoas, ele deveria ter algumas das respostas de que ela precisava.

Ela averiguou o nome e o número dele no catálogo do campus, e por mais surpreendente que fosse, após doze anos Samuel W. Lynch ainda era o diretor da Faculdade de Educação. Tanto quanto podia se lembrar, ele era definitivamente perfeito para o posto, sempre um homem imponente de grande conhecimento, estatura e força.

Um estudante de graduação alto e atlético havia acabado de usar o telefone público que ficava na parede atrás dela. Ela aproveitou a oportu­nidade. Tentaria marcar uma entrevista com Lynch, talvez durante as horas normais de expediente. Tudo o que podia esperar era que o homem não fosse tão brilhante quanto se recordava; talvez ele não se lembrasse de quem ela era.

Wayne Corrigan e Gordon Jefferson, o advogado da ACAL, jamais seriam bons amigos, isso era fácil de ver.

— Sr. Jefferson, estou simplesmente dizendo que temos o direito de confrontar a pessoa que nos acusa! — Corrigan estava-se sentindo muito vigoroso, e tinha a boca tão perto do bocal do telefone que Jefferson ouvia um rugido toda a vez em que Corrigan pronunciava um s ou um f.

Jefferson revidou com igual firmeza, e até um tanto depreciativamente.

— Quem o acusa, Sr. Corrigan, é Lucy Brandon, não Amber, e o senhor já tomou o depoimento da Sra. Brandon de forma tão dura que lhe causou terrível perturbação! Não nos passaria pela cabeça colocar Amber na mesma situação.

— Não queremos causar nenhum sofrimento a Amber — de forma alguma! Trabalharemos com restrições, seremos delicados. Mas até agora tudo o que ouvimos, todos os testemunhos, todas as queixas, vieram através de Lucy Brandon ou do Dr. Mandanhi. A verdadeira queixosa neste caso não é nenhuma dessas pessoas, mas a própria Amber.

— Amber não vai testemunhar ou ser forçada a passar por um depoi­mento. Lutaremos contra isso, senhor!

— Precisamos ter o testemunho direto de Amber com relação às queixas apresentadas contra os meus clientes.

— Seria traumático demais para ela. Ela já está tão profundamente ferida por esses acontecimentos infelizes que simplesmente não podemos per­mitir que seja traumatizada mais ainda por ser forçada a passar pela tensão e dor de um depoimento e um julgamento.

— Então queremos que o nosso psicólogo a examine. Pelo menos então teríamos nosso próprio laudo perito para equilibrar o testemunho do Dr. Mandanhi

— De jeito nenhum! Amber não deve ser envolvida neste caso de forma alguma. Precisa ser mantida isolada dele; precisa ser protegida de qualquer outro abuso e intimidação!

Corrigan suspirou e olhou ao outro lado da escrivaninha para Marshall, que estava ouvindo e observando atentamente o lado de Corrigan da conversa. Marshall fez um gesto de torcer as mãos como se tivesse torcendo um braço invisível e sussurrou:

— Dê-lhe duro!

— Temo não poder desistir nessa questão — disse Corrigan a Jefferson. — Se o senhor não mudar de idéia, então teremos de pedir ao tribunal que obrigue-a a ficar disponível e a testemunhar.

— Estamos preparados para isso — disse Jefferson.

— Muito bem, então.

Corrigan desligou, e depois pensou por um momento.

— Talvez eu tenha sido muito duro com Lucy Brandon. Agora eles estão escondendo Amber debaixo de sete chaves.

Marshall assentiu enfaticamente com a cabeça.

— Claro. Irene Bledsoe, e Lucy Brandon, e esse tal de Dr. Mandanhi podem dizer tudo o que quiserem, mas Amber é a chave em toda esta coisa. Enquanto Ametista estiver fazendo das suas, Amber vai constituir um risco real.

— Claro, mas se apenas pudermos colocá-la naquele banco de teste­munhas, ou fazer com que o nosso próprio perito a examine... Isto é, se pudéssemos apenas fazer com que Ametista se manifestasse uma vez, poderíamos levantar o argumento de que o comportamento de Tom ao confrontar Ametista foi justificado. — Ele sorriu. — Não seria ótimo se conseguíssemos que Ametista destruísse o tribunal? Poderíamos ganhar este caso.

— Eles sabem disso.

— Bem, nós sabemos o que aconteceu no Correio, e isso os assusta.Precisamos reforçar essa defesa; temos o testemunho ocular de Alice Buckmeier, mas outra testemunha seria melhor ainda, especialmente se Lucy decidir de alguma forma guardar para si parte do que disse no depoimento.

Marshall respondeu:

— Bem, ainda temos aquela outra moça, Debbie, que trabalha no Correio com Brandon. Alice diz que ela estava presente, mas não sei dizer a quem ela seria leal.

— O jeito é intimá-la e descobrir.

— E também temos a vítima do ataque de Ametista. Corrigan fez que sim com a cabeça.

— Nosso maior mistério por resolver. Ela é como um fantasma, sabe? Temos retratos dela, testemunhos oculares sobre ela, fatos e informação a respeito dela, mas no que tange ao que ela tem a ver com este caso, é como uma miragem, simplesmente não está ali.

— Então force esse negócio da Amber. Vá em frente e peça uma audiência. A ACAL bem que poderia tomar uma dose do próprio remédio. Mesmo que não faça nada mais por nós, nos dará tempo. Nunca se sabe quando algo grande vai estourar.

Corrigan estava atraído pela idéia.

— Amber, temos de colocá-la no banco das testemunhas!

Claire Johanson falou com o Dr. Mandanhi por telefone apenas minutos após Jefferson ter encerrado a ligação com Wayne Corrigan.

— Doutor, o seu relatório está muito fraco.

O Dr. Mandanhi ficou perplexo, e também um tanto impaciente. — Ora... que relatório é esse, o primeiro ou o segundo, ou a segunda versão do primeiro?

Claire fez uma careta de desagrado só porque o Dr. Mandanhi não a veria pelo telefone.

— A primeira versão do segundo relatório, a que estabeleceu que Amber está numa condição mental delicada demais para prestar depoimento ou testemunhar.

— E do que está falando ao dizer que está muito fraco?

— Ele não tem persuasão suficiente; seria muito fácil a defesa diminuir-lhe a importância. Corrigan vai pedir uma audiência que decidirá se Amber deveria ou não ser forçada a depor, e precisamos de algo mais forte para apresentar ao tribunal.

Mandanhi pausou por um momento. Ele estava claramente desconten­te. — Srta. Johanson, já passamos por esse caminho antes. A senhorita não achou que o meu primeiro relatório também estivesse suficientemente forte!— Bem, é assim que são as coisas.

— Srta. Johanson, quando a senhorita me envolveu nisto, dei a minha opinião mais justa, mais objetiva no tocante à condição de Amber. Con­cordei com a senhorita e com a mãe da menina que a criança havia sido prejudicada. Por que isso não bastou?

Claire estava sentindo a pressão de cima e agora do doutor abaixo dela.

— Porque, Dr. Mandanhi, num tribunal judicial o argumento tem de ser vigoroso, precisa ter poder esmagador de persuasão. Sua primeira versão foi muito... muito...

— Muito factual? — sugeriu Mandanhi. — A senhorita preferiria que eu mentisse e inventasse trauma adicional somente para obter uma decisão favorável do tribunal?

— Inventar, não, doutor. Exagerar talvez, apenas tornar a sua opinião mais vigorosa.

— Bem, acho que foi o que fiz com o meu primeiro relatório. Dei-lhe o que a senhorita queria, e acho que mais do que os fatos justificavam. Agora quer que eu faça isso de novo?

Claire hesitou. Então disse bruscamente:

— Com os fatos que temos em mão, seu segundo relatório podia ser exagerado. Torne-o mais forte, torne-o persuasivo! Não deveria ser muito difícil mostrar como a tensão sobre Amber poderia causar-lhe dano psico­lógico permanente.

— Está me pedindo para mentir?

— Estou pedindo que use os fatos, seja um defensor, e proteja Amber. Ela não deve depor!

Sally conseguiu marcar uma hora com o Professor Samuel W. Lynch, e conseguiu chegar à sua sala na hora, às 6 da tarde. Era um horário estranho, mas ele geralmente ficava em sua sala até essa hora de qualquer forma, e estaria feliz em vê-la.

Ele tinha uma nova sala agora, no segundo andar do Prédio Whitcombe, o principal eixo na Faculdade de Educação Bentmore. O Prédio Whitcom­be era uma estrutura mais nova de aço, mármore e vidro que se erguia dez andares acima do restante do campus. Aparentemente Bentmore se orgu­lhava das contribuições que fazia para a educação e desejava exibir esse orgulho de forma grandiosa.

A Sala 210 era mais do que apenas uma sala; era toda a ponta norte do andar, separada por uma parede de vidro com magníficas portas duplas. A secretária também estava trabalhando depois do expediente, e podia olhar por aquela parede de vidro de onde se sentava e enxergar qualquer pessoa que estivesse vindo pelo corredor. Ela viu Sally assim que esta saiu do elevador, mas não pareceu demorar-se demais naquela olhada. Isso era animador.

Sally passou pelas portas e tentou dirigir-se à secretária de certa distância.

— April Freeman para falar com o Professor Lynch.

A senhora sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça.

— Sim, a moça do Register?

— Essa mesma.

— Muito bem, ótimo. — Ela apanhou seu telefone e apertou um botão. — A senhora do Register está aqui para vê-lo. — Ela olhou para Sally. — Ele a atenderá num minuto. Pode sentar-se.

Sally ficou em pé perto do sofá na área de espera, mas não se sentou nele. Estava desconfortável demais para sentar-se, e pronta a correr. A mentira a respeito de ser uma repórter do jornal universitário estava funcionando por enquanto, mas se alguém pensasse em ligar para o escritório do Bentmore Register a fim de averiguar qualquer coisa, seu disfarce seria coisa do passado. Além disso, já havia um homem sentado ali, e ela o tinha pego olhando-a uma vez, embora supostamente estivesse lendo uma revista. Talvez ele estivesse lendo aquela revista, mas talvez não estivesse. O que estava fazendo ali às seis horas da tarde? Do jeito como ela se sentia naquele momento, cada pessoa naquele lugar era um assassino em potencial.

Seu coração estava batendo violentamente; se as mãos tremessem muito mais, daria para ver. Tentou respirar fundo algumas vezes a fim de controlar-se.

— Srta. Freeman!

Aquela voz! Após doze anos, ainda se lembrava. Ela voltou-se.

Ali estava o Professor Samuel W. Lynch. Oh! Aquele tremor estava tão grande que tinha de ser perceptível! Ela enrijeceu o corpo para manter-se firme, forçou um sorriso e estendeu a mão.

— Alô.

Ele tomou-lhe a mão.

— Um prazer. Venha por aqui.

Ele voltou-se, e ela o acompanhou de volta ao escritório.

Isso não estava certo. Não era doze anos depois. Tinha de ser doze anos antes. Ele não havia mudado. Ainda era o mesmo cavalheiro gordo e distinto de cabelos grisalhos, o mesmo pedagogo eloqüente que ela havia admirado. Ela o teria reconhecido em qualquer lugar.

Será que ela lhe era familiar? Centenas de estudantes deviam ter passado pela vida dele desde a última vez em que ela estivera ali; com certeza seu rosto estaria perdido atrás de todos os outros.

Ele a conduziu para dentro do seu escritório e ofereceu-lhe uma confortável cadeira estofada. Ela sentou-se imediatamente e descobriu-se olhando para todas as coisas. As paredes forradas de livros nesse cômodo erguiam-se a tão grande altura que ela sentiu-se como se estivesse sentada no fundo de um poço profundo. O cômodo estava num silêncio mortal, como uma cripta.

Lynch assentou-se atrás da escrivaninha e relaxou por um momento, estudando o rosto dela, as mãos cruzadas na frente do peito.

Ela devolveu-lhe o olhar e tentou sorrir. Estava começando a sentir o silêncio. Isso não estava certo. Alguém devia estar dizendo alguma coisa a essa altura.

— Então você trabalha com o Register? — perguntou ele, ainda descon­traído, reclinando-se na cadeira.

— Sim, comecei este trimestre.

— E qual é a sua área de estudos?

— Hum... economia. Ele sorriu.

— Muito bom. O que acha de Parker?

Ô. Seria um teste? Quem era Parker? Era homem ou mulher? Será que Parker era alguém vivo? Sally tateou.

— Oh... ainda confundo os mestres. Acabei de transferir-me... Ele riu.

— Não tem importância. Ficará conhecendo-os, e estou certo de que eles a ficarão conhecendo. Descobrirá que somos uma instituição cordial, uma grande família. De onde você e?

Ela estava fingindo um sotaque.

— Oh, Knoxville, no Tennessee.

Ela abriu o caderno apenas para ter algo que fazer, algo que preenches­se o tempo incômodo, vazio. Sua mente se apagara subitamente como se uma nuvem escura a tivesse penetrado. Num momento ela sabia o que ia dizer, e no momento seguinte sentiu que parte de seu cérebro havia morrido.

E o Professor Lynch mantinha-se apenas sentado ali, sem dizer coisa alguma. O silêncio encheu a sala como água profunda; o ar quente, abafado pressionava de todos os lados.

— Umm... Apenas queria fazer-lhe algumas perguntas... — disse Sally, tirando um caderno de sua sacola e folheando-o. Onde estavam as pergun­tas? Ela as havia escrito ali, mas agora... — Estou apenas tentando achar as minhas perguntas; estavam aqui, em algum lugar.

— Não fique nervosa — disse Lynch. — Não vou mordê-la. Ela riu. Então ele havia percebido!

— Obrigada. Ainda sou um pouco caloura neste tipo de coisa. — Ela encontrou as perguntas. — Oh! Cá estamos. Achei que seria interessante investigar uma história de sucesso de Bentmore e escrever um artigo sobre Owen Bennett.

Ele sorriu.

— Ahhh... Daria uma história interessante. Owen Bennett é um homem fascinante.

— Ele foi catedrático aqui por muitos anos, pelo que fiquei sabendo.

— Oh, sim! Mas, escute, poderia dar-me licença por apenas um minuto?

— Certamente.

Ele ergueu-se da cadeira e saiu apressado da sala, deixando-a sozinha no fundo desse poço escuro, opressivo.

O silêncio fechou-se em torno dela novamente, mais pesado do que nunca. Tinha dificuldade em respirar, como se seu peito estivesse sendo esmagado, como se o ar fosse espesso demais para ser aspirado. Tinha de ser sua imaginação, a tensão, o nervosismo.

Ela fechou os olhos e abriu-os de novo. A sala ainda parecia escura. Talvez mais escura.

No alto acima dela, as paredes contendo centenas de livros em todas aquelas prateleiras pareciam estar inclinando-se mais e mais na direção do centro do aposento. Era de admirar que todos os livros — e alguns deles eram volumosos — não estivessem escorregando das prateleiras e caindo estrondosamente sobre ela. Ao mesmo tempo, o teto, distante que era, parecia estar-se afastando cada vez mais, tornando esse poço, esse abismo, essa armadilha mais funda ainda.

Sally fechou os olhos. Não queria acreditar que seus velhos atormenta­dores estivessem escondidos por ali. Ela não podia aceitar que talvez estivesse presa nesse abismo com eles, sem escape, indefesa, sem escolha, a não ser esperar o primeiro estrépito de suas mandíbulas invisíveis.

Mas por mais que tentasse, não podia livrar-se dessa... dessa presença. Não, não era que as paredes e os livros estivessem se fechando sobre ela. Essas ilusões apenas nasciam de um terror íntimo, devorador. Havia alguma outra coisa penetrando nesse aposento, algo de seus pesadelos infantis — aquela coisa de terror, firme, inexorável que avançava lentamente, aquele bicho papão, aquele monstro, aquele inimigo invisível, voraz, imbatível, do qual, por mais depressa que corresse, não conseguia escapar. Ele estava ali, em algum lugar, escondido atrás dos livros, talvez contorcendo-se para passar através deles, fitando-a fixamente, vendo-a afundar na cadeira, vendo-a tremer e suar.

Suas palmas estavam deixando marcas molhadas nos braços da poltro­na. Sua pele estava formigando.

Ela tinha de sair dali. Havia cometido um erro; entrara numa armadilha mortal. Esse aposento estava vivo com maldade, prestes a esmagá-la.

Ela viu! Um grito escapou-lhe da garganta antes que pudesse detê-lo. Logo atrás da escrivaninha, diretamente à frente de onde ela estava sentada, uma fileira de olhos enraivecidos, dourados, fitavam-na furiosa­mente da prateleira. Seus próprios olhos piscaram, fechando-se. Ela pen­sou melhor sobre aquilo, e abriu-os novamente.

Eles ainda estavam lá, imóveis. Mas... não. Não eram olhos. Ela exalou devagar e tentou com todas as forças controlar suas emoções e seus pensamentos. Fitou-os deliberadamente; olhou-os fixamente, chegando mesmo a desafiá-los.

Eram quatro símbolos dourados nas lombadas de quatro volumes de encadernação ornamentada. Ainda pareciam estar fitando-a fixamente. Ela tentou subjugar a imaginação. Tinha de ser objetiva a respeito daquilo.

Inclinou-se na direção deles. Eram caras. Caras medonhas, triangulares, todas olhando fixamente, todas aparentemente rosnando para ela. Peque­nos gárgulas. Olhos profundos, vazios, quase como cavidades. Dentes à mostra. Testas altas, brilhando.

Seu coração começou a disparar. O queixo caiu, e ela, paralisada, fixou neles os olhos. Com dedos amortecidos e desajeitados, ela puxou uma corrente que estava à volta do pescoço. Os dois anéis surgiram do escon­derijo e ela os segurou lado a lado em frente do rosto, olhando-os e depois além deles, olhando as caras nos quatro volumes.

Idênticos.