Wayne Corrigan havia lido o
relatório detalhado do Dr. Mandanhi a respeito da condição de Amber Brandon. A
maior parte era tão técnica que seria necessário outro perito para refutá-lo,
se fosse refutável. Uma coisa ficava clara mesmo para um leitor leigo do
documento: Mandanhi responsabilizava a Academia do Bom Pastor pelos problemas
de Amber, e tinha uma baixa opinião do cristianismo. Essa deposição não seria
fácil.Entretanto, Mandanhi era um homem manso, e não desagradável de trato.
Tinha uns quarenta e poucos anos de idade, era originário do Leste Indiano, bem
vestido, educado, profissional. Os advogados Ames e Jefferson sentavam-se um
de cada lado dele, como haviam feito com Irene Bledsoe, mas não pareciam tão
nervosos com relação a ele quanto a Bledsoe. Aparentemente estavam seguros de
que Mandanhi podia cuidar de si mesmo.
Corrigan começou com alguns
pontos básicos.
— Então, o senhor poderia,
para que fique registrado, revisar os sintomas básicos de trauma de Amber?
Mandanhi trouxe algumas
notas, mas não parecia precisar delas.
— O comportamento de Amber e
típico de qualquer criança da mesma idade que tenha passado por extenso trauma
emocional: molhar a cama, rabugice, náusea ocasional, e freqüentes escapes
fantasiosos... uma perda da realidade, paranóia, o medo de inimigos invisíveis
— assombração, bicho-papão, esse tipo de coisa.
— E o senhor atribui tudo
isso ao ambiente da escola cristã? Ele sorriu.
— Não inteiramente. Poderia
haver outros fatores, mas as difusas implicações religiosas do currículo da
escola seriam, em minha opinião, suficientes para exacerbar os distúrbios
emocionais pré-existentes em Amber. As doutrinas cristãs de pecado e de um Deus
de ira e julgamento, bem como a imposição cristã de culpa e responsabilidade,
se assimilariam imediatamente na estrutura de identidade pré-estabelecida da
criança, produzindo todo um novo conjunto de razões para ela ficar insegura e
com medo do seu mundo.
— O senhor discutiu qualquer
parte disto com o pastor da Igreja do Bom Pastor, ou com o diretor da escola?
— Não, senhor, não discuti.
— Então como sabe com certeza
de que a escola estava impondo algum tipo de culpa ou temor sobre a criança?
— Examinei a menina, e sei
que ela foi à escola. Não é difícil inferir uma conexão clara.
Corrigan fez algumas marcas
na margem de sua cópia do relatório de Mandanhi.
— Agora... falando da tal
Ametista, o poneizinho em que Amber se transforma... Qual foi o termo que o
senhor usou?
— Desordem dissociativa, ou
neurose histérica, do tipo dissociativo.
— Umm... certo. Poderia explicar
exatamente o que é?
— Basicamente, e um distúrbio
ou alteração nas funções normalmente integrativas da identidade, da memória ou
do consciente.
— Vou precisar disso em
termos mais simples, doutor.
Ele sorriu, pensou por um
momento, e em seguida tentou novamente.— O que Amber está exibindo é o que
chamamos de Desordem de personalidade Múltipla; é uma condição na qual duas ou
mais personalidades distintas existem dentro de uma só pessoa. Essa desordem é
quase sempre causada por algum tipo de violência, geralmente sexual, ou severo
trauma emocional O início ocorre quase invariavelmente durante a infância, mas
muitas vezes não é descoberto até mais tarde na vida. Estatisticamente, ocorre
de três a nove vezes com mais freqüência no sexo feminino do que no masculino.
— Poderia descrever-nos
algumas destas complicações que o senhor enumerou?
Mandanhi consultou sua
própria cópia do relatório.
— Sim. Complicações,
dificuldades que podem surgir quando esta desordem se manifesta.
Corrigan examinou a lista.
— Violência externa?
— Sim. Um afastamento total
das normas sociais de comportamento, das inibições sociais. Fúria cega, danos a
outras pessoas...
— E berreiro, chutes,
resistência à autoridade?
— Oh, sim.
— Tentativas de suicídio?
— Muito comuns.
— E Amber?
Mandanhi pensou por um
momento, depois meneou a cabeça.
— O caso dela parece bem moderado
nessa área. Corrigan encontrou outra palavra.
— O que é coprolalia?
— Linguagem violenta,
obscena, geralmente involuntária. Corrigan parou nessa aí.
— Involuntária?
— A vítima não tem o menor
controle sobre o que diz; a expressão é espontânea e pode incluir ruídos de
animais, grunhidos, latidos, sibilos e assim por diante.
— Umm... e blasfêmias? —
Corrigan sentiu uma necessidade de explicar. — Umm... vituperações, obscenidades,
declarações caluniosas contra uma divindade?
— Sim. Muito freqüente.
— E então existem... estados
alterados de consciência?
— Sim, transes.
— E de acordo com a sua
experiência, esse tipo de coisa é geralmente — ou quase sempre — causado por
severo trauma emocional ou abuso sexual?
— Correto.— E é isso o que o
senhor está assumindo com relação à Academia do Bom Pastor?
— É.
— Mas o senhor não conversou
com o pessoal da escola a esse respeito. — Não.
— Entendo. — Corrigan
rabiscou algumas anotações e leu mais algumas notas. — A imprensa parece ter
opiniões firmes acerca do que acontecia na escola, e disse algumas coisas bem
duras a respeito de Tom Harris. Os jornalistas conseguiram algumas das
informações de que dispõem com o senhor, doutor?
— Não falei com eles
pessoalmente, não. Corrigan ergueu uma sobrancelha.
— Mas é razoável pensar que
suas opiniões, de uma forma ou de outra, tenham ido parar nas mãos da imprensa?
Ele não pareceu muito
contente ao ter de responder.
— Creio que sim.
— E o Departamento de
Proteção à Criança?
Mandanhi olhou para os
advogados. Eles não pareciam muito angustiados.
— O DPC recebeu uma cópia
completa do meu relatório, e tenho conferenciado com eles regularmente.
Para Corrigan, isso não foi
uma surpresa completa, mas mesmo assim ele sentiu um toque de raiva.
— Então... devem pensar que a
Academia é um lugar bem perigoso para crianças.
— O senhor teria de perguntar
a eles.
A voz de Corrigan elevou-se
apenas um tantinho.
— O que lhes disse?
Mandanhi refugou diante da
pergunta.
— O que eu lhes disse?
— O senhor conferenciou
regularmente com eles. Deu-lhes a entender que a escola é um lugar perigoso
para crianças?
— Não lhe posso dizer o que
eles acreditam. Corrigan abandonou a pergunta.
— Então, suponho que, pelo
mesmo motivo, o senhor não pode explicar por que não houve uma ampla devassa da
escola e do seu pessoal, e de todos os pais que têm filhos matriculados lá?
Mandanhi deu de ombros.
— Não é minha
responsabilidade saber. Não tomo decisões.
— Por acaso a representante
do DPC com a qual o senhor conferenciou freqüentemente seria Irene Bledsoe?
— Sim.
Corrigan nada disse em
resposta a isso; apenas anotou.— O senhor já ouviu falar de uma Senhorita Nancy
Brewer, professora da quarta série na Escola de Primeiro Grau de Baskon?
— Não, senhor.
— Já ouviu falar do currículo
Descobrindo o Verdadeiro Eu que a Srta. Brewer ensina à sua classe de
quarta-série?
— Não, senhor.
— Então o senhor não tem
conhecimento, doutor, de que a Srta. Brewer ensina regularmente as crianças a
relaxarem, atingirem estados susceptíveis de consciência, e entrarem em
contato com guias íntimos?
A pergunta prendeu o
interesse de Mandanhi, mas ele ainda teve de replicar.
— Não.
— O senhor sabia que, antes
de Amber ser matriculada na escola cristã, ela era aluna da classe da Srta.
Brewer e cursou esse currículo?
Isso prendeu mais ainda o interesse
de Mandanhi. Sua expressão tornou-se um tanto sombria.
— Eu não tinha conhecimento
disso.
— O senhor está familiarizado
com uma organização local chamada Círculo Vital?
— Sim.
— O senhor sabe que eles
praticam regularmente técnicas de alteração do consciente tais como ioga,
meditação e... — Corrigan pausou e então atingiu o termo com ênfase — ...
canalização por transe?
— Tenho conhecimento disso.
— Tem conhecimento de que
Lucy Brandon e sua filha Amber estão intimamente envolvidas com esse grupo e suas
práticas?
— Sim.
Corrigan não estava esperando
todas essas respostas afirmativas; estava um tanto chocado.
— Então, o senhor pode por
favor explicar exatamente como pode estar tão certo de que apenas a Academia do
Bom Pastor deve ser culpada pelo comportamento anormal de Amber?
Ele sorriu.
— Não culpo a Academia pelo comportamento
de Amber; culpo-a pelo trauma que precipitou o comportamento.
Corrigan teve de se
controlar. Aquele homem estava começando a incomodá-lo.
— Mas tendo em vista o que
está acontecendo na escola primária e no Círculo Vital, o senhor pode concordar
que um comportamento como o de Amber pode ser ensinado e condicionado em uma
criança pequena sem trauma severo?
Mandanhi riu.
— Já que me está perguntando,
direi que não reconheço a validade de qualquer coisa que possa estar
acontecendo na escola primária ou no Círculo Vital. Vejo essas coisas como
altamente subjetivas, até mesmo como questões religiosas, algo que prefiro não
tratar clinicamente.
— Portanto o comportamento de
Amber, em sua opinião, deve indicar severo trauma emocional como sua única
causa?
— Foi o que escrevi, e é essa
a minha opinião.
Corrigan deteve-se por um
momento. Ele estava frustrado, mas tentou não demonstrá-lo. Voltou a outras
notas que havia rabiscado no relatório.
— Então, doutor, entre os
cristãos, o pessoal do Círculo Vital, a Srta. Brewer, e mesmo Amber, parece que
temos uma porção de opiniões diferentes sobre o que essa Ametista realmente é.
— Não sou responsável por
nenhuma opinião além da minha — interpôs o doutor.
— O senhor concordaria que
Amber é capaz de comunicar-se com esse... seja o que for?
— Isso não é atípico para um
dissociador. As diversas personalidades geralmente têm consciência umas das
outras, muitas vezes conversarão, e às vezes chegarão a discordar e discutir.
— E é normal para Amber
desligar-se e não se lembrar do tempo passado quando Ametista está-se
manifestando?
— É muito típico.
— E que diz de conhecimento
especial? É possível Ametista conhecer informação que Amber não poderia
possivelmente conhecer ou ter tido oportunidade prévia de ficar sabendo?
Mandanhi hesitou.
— Não estou certo de poder
responder isso. A desordem de fato apresenta uma porção de questões por
vezes...
— Tais como?
— Oh... Meus colegas e eu
temos sempre ficado mistificados por essa característica que o senhor
mencionou, conhecimento especial — alguns chamariam de clarividência ou
percepção extra-sensorial. Mas outro fenômeno que sempre encontramos nessa
desordem é uma mudança fisiológica real na pessoa afetada. A personalidade
normal pode não precisar de óculos de forma alguma, enquanto a personalidade
alternativa sim; ou ambas podem usar óculos, mas o grau ser bem diferente. As
pressões sangüíneas podem diferir, ou a reação a certos medicamentos; os
índices de sangramento e coagulação podem ser diferentes, e chegamos mesmo a
observar uma clara e mensurável mudança na composição do sangue.
Corrigan tomou nota de tudo
aquilo.
— Alguma explicação, doutor?
Mandanhi sacudiu a cabeça e sorriu.
— Existe muito ainda que não conhecemos
sobre nós mesmos, Sr. Corrigan.Corrigan havia ouvido o suficiente. Estava
pronto para sua próxima testemunha.
— Como se sentiria o senhor
se eu conversasse com Amber sobre isto? Ela estaria disposta a conversar sobre
o assunto?
Mandanhi considerou a
pergunta.
— Não vejo como pudesse
causar algum dano, contanto que o senhor se limitasse a perguntas e
comportamento razoáveis para com a criança.
— Bem, estava pensando que
gostaria que nosso próprio psicólogo também examinasse Amber.
Subitamente Jefferson saltou
sobre o assunto.
— Não, Corrigan. Esqueça.
Isso não vai acontecer.
Corrigan viu que tinha tocado
num nervo exposto em algum lugar.
— Ei, o que é isso? O Dr.
Mandanhi não parece pensar que será prejudicial.
Ames foi deveras veemente.
— Você não vai chegar nem
perto daquela criança! Ela já sofreu o suficiente!
Corrigan voltou-se para o Dr.
Mandanhi.
— Que me diz, doutor? Acha
que não haveria problema? Mandanhi olhou para os advogados e percebeu o que
seus olhos queriam dizer.
— Bem... suponho que não, Sr.
Corrigan. Suponho que seria prejudicial.
— O senhor supõe?
— Seria prejudicial.
— Esqueça! — disse Jefferson.
Pode esperar sentado, pensou Corrigan.