terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso- parte 2 - capítulo 25

Wayne Corrigan havia lido o relatório detalhado do Dr. Mandanhi a respeito da condição de Amber Brandon. A maior parte era tão técnica que seria necessário outro perito para refutá-lo, se fosse refutável. Uma coisa ficava clara mesmo para um leitor leigo do documento: Mandanhi responsabilizava a Academia do Bom Pastor pelos problemas de Amber, e tinha uma baixa opinião do cristianismo. Essa deposição não seria fácil.Entretanto, Mandanhi era um homem manso, e não desagradável de trato. Tinha uns quarenta e poucos anos de idade, era originário do Leste Indiano, bem vestido, educado, profissional. Os advogados Ames e Jeffer­son sentavam-se um de cada lado dele, como haviam feito com Irene Bledsoe, mas não pareciam tão nervosos com relação a ele quanto a Bledsoe. Aparentemente estavam seguros de que Mandanhi podia cuidar de si mesmo.

Corrigan começou com alguns pontos básicos.

— Então, o senhor poderia, para que fique registrado, revisar os sinto­mas básicos de trauma de Amber?

Mandanhi trouxe algumas notas, mas não parecia precisar delas.

— O comportamento de Amber e típico de qualquer criança da mesma idade que tenha passado por extenso trauma emocional: molhar a cama, rabugice, náusea ocasional, e freqüentes escapes fantasiosos... uma perda da realidade, paranóia, o medo de inimigos invisíveis — assombração, bicho-papão, esse tipo de coisa.

— E o senhor atribui tudo isso ao ambiente da escola cristã? Ele sorriu.

— Não inteiramente. Poderia haver outros fatores, mas as difusas implicações religiosas do currículo da escola seriam, em minha opinião, suficientes para exacerbar os distúrbios emocionais pré-existentes em Amber. As doutrinas cristãs de pecado e de um Deus de ira e julgamento, bem como a imposição cristã de culpa e responsabilidade, se assimilariam imediatamente na estrutura de identidade pré-estabelecida da criança, produzindo todo um novo conjunto de razões para ela ficar insegura e com medo do seu mundo.

— O senhor discutiu qualquer parte disto com o pastor da Igreja do Bom Pastor, ou com o diretor da escola?

— Não, senhor, não discuti.

— Então como sabe com certeza de que a escola estava impondo algum tipo de culpa ou temor sobre a criança?

— Examinei a menina, e sei que ela foi à escola. Não é difícil inferir uma conexão clara.

Corrigan fez algumas marcas na margem de sua cópia do relatório de Mandanhi.

— Agora... falando da tal Ametista, o poneizinho em que Amber se transforma... Qual foi o termo que o senhor usou?

— Desordem dissociativa, ou neurose histérica, do tipo dissociativo.

— Umm... certo. Poderia explicar exatamente o que é?

— Basicamente, e um distúrbio ou alteração nas funções normalmente integrativas da identidade, da memória ou do consciente.

— Vou precisar disso em termos mais simples, doutor.

Ele sorriu, pensou por um momento, e em seguida tentou novamente.— O que Amber está exibindo é o que chamamos de Desordem de personalidade Múltipla; é uma condição na qual duas ou mais personalida­des distintas existem dentro de uma só pessoa. Essa desordem é quase sempre causada por algum tipo de violência, geralmente sexual, ou severo trauma emocional O início ocorre quase invariavelmente durante a infân­cia, mas muitas vezes não é descoberto até mais tarde na vida. Estatistica­mente, ocorre de três a nove vezes com mais freqüência no sexo feminino do que no masculino.

— Poderia descrever-nos algumas destas complicações que o senhor enumerou?

Mandanhi consultou sua própria cópia do relatório.

— Sim. Complicações, dificuldades que podem surgir quando esta desordem se manifesta.

Corrigan examinou a lista.

— Violência externa?

— Sim. Um afastamento total das normas sociais de comportamento, das inibições sociais. Fúria cega, danos a outras pessoas...

— E berreiro, chutes, resistência à autoridade?

— Oh, sim.

— Tentativas de suicídio?

— Muito comuns.

— E Amber?

Mandanhi pensou por um momento, depois meneou a cabeça.

— O caso dela parece bem moderado nessa área. Corrigan encontrou outra palavra.

— O que é coprolalia?

— Linguagem violenta, obscena, geralmente involuntária. Corrigan parou nessa aí.

— Involuntária?

— A vítima não tem o menor controle sobre o que diz; a expressão é espontânea e pode incluir ruídos de animais, grunhidos, latidos, sibilos e assim por diante.

— Umm... e blasfêmias? — Corrigan sentiu uma necessidade de expli­car. — Umm... vituperações, obscenidades, declarações caluniosas contra uma divindade?

— Sim. Muito freqüente.

— E então existem... estados alterados de consciência?

— Sim, transes.

— E de acordo com a sua experiência, esse tipo de coisa é geralmente — ou quase sempre — causado por severo trauma emocional ou abuso sexual?

— Correto.— E é isso o que o senhor está assumindo com relação à Academia do Bom Pastor?

— É.

— Mas o senhor não conversou com o pessoal da escola a esse respeito. — Não.

— Entendo. — Corrigan rabiscou algumas anotações e leu mais algumas notas. — A imprensa parece ter opiniões firmes acerca do que acontecia na escola, e disse algumas coisas bem duras a respeito de Tom Harris. Os jornalistas conseguiram algumas das informações de que dispõem com o senhor, doutor?

— Não falei com eles pessoalmente, não. Corrigan ergueu uma sobrancelha.

— Mas é razoável pensar que suas opiniões, de uma forma ou de outra, tenham ido parar nas mãos da imprensa?

Ele não pareceu muito contente ao ter de responder.

— Creio que sim.

— E o Departamento de Proteção à Criança?

Mandanhi olhou para os advogados. Eles não pareciam muito angustia­dos.

— O DPC recebeu uma cópia completa do meu relatório, e tenho conferenciado com eles regularmente.

Para Corrigan, isso não foi uma surpresa completa, mas mesmo assim ele sentiu um toque de raiva.

— Então... devem pensar que a Academia é um lugar bem perigoso para crianças.

— O senhor teria de perguntar a eles.

A voz de Corrigan elevou-se apenas um tantinho.

— O que lhes disse?

Mandanhi refugou diante da pergunta.

— O que eu lhes disse?

— O senhor conferenciou regularmente com eles. Deu-lhes a entender que a escola é um lugar perigoso para crianças?

— Não lhe posso dizer o que eles acreditam. Corrigan abandonou a pergunta.

— Então, suponho que, pelo mesmo motivo, o senhor não pode explicar por que não houve uma ampla devassa da escola e do seu pessoal, e de todos os pais que têm filhos matriculados lá?

Mandanhi deu de ombros.

— Não é minha responsabilidade saber. Não tomo decisões.

— Por acaso a representante do DPC com a qual o senhor conferenciou freqüentemente seria Irene Bledsoe?

— Sim.

Corrigan nada disse em resposta a isso; apenas anotou.— O senhor já ouviu falar de uma Senhorita Nancy Brewer, professora da quarta série na Escola de Primeiro Grau de Baskon?

— Não, senhor.

— Já ouviu falar do currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu que a Srta. Brewer ensina à sua classe de quarta-série?

— Não, senhor.

— Então o senhor não tem conhecimento, doutor, de que a Srta. Brewer ensina regularmente as crianças a relaxarem, atingirem estados susceptí­veis de consciência, e entrarem em contato com guias íntimos?

A pergunta prendeu o interesse de Mandanhi, mas ele ainda teve de replicar.

— Não.

— O senhor sabia que, antes de Amber ser matriculada na escola cristã, ela era aluna da classe da Srta. Brewer e cursou esse currículo?

Isso prendeu mais ainda o interesse de Mandanhi. Sua expressão tornou-se um tanto sombria.

— Eu não tinha conhecimento disso.

— O senhor está familiarizado com uma organização local chamada Círculo Vital?

— Sim.

— O senhor sabe que eles praticam regularmente técnicas de alteração do consciente tais como ioga, meditação e... — Corrigan pausou e então atingiu o termo com ênfase — ... canalização por transe?

— Tenho conhecimento disso.

— Tem conhecimento de que Lucy Brandon e sua filha Amber estão intimamente envolvidas com esse grupo e suas práticas?

— Sim.

Corrigan não estava esperando todas essas respostas afirmativas; estava um tanto chocado.

— Então, o senhor pode por favor explicar exatamente como pode estar tão certo de que apenas a Academia do Bom Pastor deve ser culpada pelo comportamento anormal de Amber?

Ele sorriu.

— Não culpo a Academia pelo comportamento de Amber; culpo-a pelo trauma que precipitou o comportamento.

Corrigan teve de se controlar. Aquele homem estava começando a incomodá-lo.

— Mas tendo em vista o que está acontecendo na escola primária e no Círculo Vital, o senhor pode concordar que um comportamento como o de Amber pode ser ensinado e condicionado em uma criança pequena sem trauma severo?

Mandanhi riu.

— Já que me está perguntando, direi que não reconheço a validade de qualquer coisa que possa estar acontecendo na escola primária ou no Círculo Vital. Vejo essas coisas como altamente subjetivas, até mesmo como questões religiosas, algo que prefiro não tratar clinicamente.

— Portanto o comportamento de Amber, em sua opinião, deve indicar severo trauma emocional como sua única causa?

— Foi o que escrevi, e é essa a minha opinião.

Corrigan deteve-se por um momento. Ele estava frustrado, mas tentou não demonstrá-lo. Voltou a outras notas que havia rabiscado no relatório.

— Então, doutor, entre os cristãos, o pessoal do Círculo Vital, a Srta. Brewer, e mesmo Amber, parece que temos uma porção de opiniões diferentes sobre o que essa Ametista realmente é.

— Não sou responsável por nenhuma opinião além da minha — interpôs o doutor.

— O senhor concordaria que Amber é capaz de comunicar-se com esse... seja o que for?

— Isso não é atípico para um dissociador. As diversas personalidades geralmente têm consciência umas das outras, muitas vezes conversarão, e às vezes chegarão a discordar e discutir.

— E é normal para Amber desligar-se e não se lembrar do tempo passado quando Ametista está-se manifestando?

— É muito típico.

— E que diz de conhecimento especial? É possível Ametista conhecer informação que Amber não poderia possivelmente conhecer ou ter tido oportunidade prévia de ficar sabendo?

Mandanhi hesitou.

— Não estou certo de poder responder isso. A desordem de fato apresenta uma porção de questões por vezes...

— Tais como?

— Oh... Meus colegas e eu temos sempre ficado mistificados por essa característica que o senhor mencionou, conhecimento especial — alguns chamariam de clarividência ou percepção extra-sensorial. Mas outro fenô­meno que sempre encontramos nessa desordem é uma mudança fisioló­gica real na pessoa afetada. A personalidade normal pode não precisar de óculos de forma alguma, enquanto a personalidade alternativa sim; ou ambas podem usar óculos, mas o grau ser bem diferente. As pressões sangüíneas podem diferir, ou a reação a certos medicamentos; os índices de sangramento e coagulação podem ser diferentes, e chegamos mesmo a observar uma clara e mensurável mudança na composição do sangue.

Corrigan tomou nota de tudo aquilo.

— Alguma explicação, doutor? Mandanhi sacudiu a cabeça e sorriu.

— Existe muito ainda que não conhecemos sobre nós mesmos, Sr. Corrigan.Corrigan havia ouvido o suficiente. Estava pronto para sua próxima testemunha.

— Como se sentiria o senhor se eu conversasse com Amber sobre isto? Ela estaria disposta a conversar sobre o assunto?

Mandanhi considerou a pergunta.

— Não vejo como pudesse causar algum dano, contanto que o senhor se limitasse a perguntas e comportamento razoáveis para com a criança.

— Bem, estava pensando que gostaria que nosso próprio psicólogo também examinasse Amber.

Subitamente Jefferson saltou sobre o assunto.

— Não, Corrigan. Esqueça. Isso não vai acontecer.

Corrigan viu que tinha tocado num nervo exposto em algum lugar.

— Ei, o que é isso? O Dr. Mandanhi não parece pensar que será prejudicial.

Ames foi deveras veemente.

— Você não vai chegar nem perto daquela criança! Ela já sofreu o suficiente!

Corrigan voltou-se para o Dr. Mandanhi.

— Que me diz, doutor? Acha que não haveria problema? Mandanhi olhou para os advogados e percebeu o que seus olhos queriam dizer.

— Bem... suponho que não, Sr. Corrigan. Suponho que seria prejudi­cial.

— O senhor supõe?

Seria prejudicial.

— Esqueça! — disse Jefferson.

Pode esperar sentado, pensou Corrigan.