terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 22

Pingo. Pingo. Pingo.

A torneira parecia delimitar segmentos de tempo, anunciando a passa­gem de um momento, e outro momento, e outro momento, e outro momento, como um relógio, nunca parando, nunca diminuindo a marcha, num pingar constante, momentos passando.

O tráfego fluía do lado de fora da janela do banheiro, mas Sally não o ouvia. Uma sirene silvou uma vez, mas ela não se mexeu ou percebeu. Não tinha força, nem disposição para levantar-se do lugar onde se encontrava ali no chão do banheiro, as costas contra a parede azul-claro, as mãos frouxas sobre o colo, a cabeça descansando contra o reboco duro, mas nem tentando se afastar do desconforto.

Ela simplesmente permanecia ali, os olhos vazios fixos naquela banhei­ra, ouvindo a torneira pingando, vendo cada gota crescer na ponta do cano e depois, espichando-se com o peso, soltar-se e desaparecer.

Pingo. Pingo. Pingo.— Srta. Roe, achou que não havia lei superior à sua própria pessoa?

— Não existe realidade superior, senhor, à que eu mesma criei. Pingo. Pingo. Pingo.

— Você honestamente não se lembra de ter apanhado a sua filha e segurado-a debaixo da água, afogando-a?

— Já lhe disse antes, eu não estava lá; foi Jonas.

— Mas você admitiu ter afogado a sua filha!

— Jonas executou o ato. Meu ser superior o quis, ele executou... Pingo. Pingo. Pingo.

— Encontramos a acusada no banheiro... Ela parecia atordoada...

— E que foi que ela lhe disse?

— Disse: "Oh, não! Matei o meu nenê." Pingo. Pingo. Pingo.

—... senhoras e senhores jurados, ouviram um relato do inconcebível... Esta vil criatura, destituída de consciência, sem remorso...

Destituída de consciência, sem remorso. Destituída de consciência, sem remorso. Destituída de consciência, sem remorso.

Uma criança num quintal infinito sem cerca. A criadora e arbitradora de toda a realidade. O centro de seu próprio universo. Nada certo, nada errado. Apenas o próprio eu. O eu é tudo o que importa.

Pelo menos, era assim que costumava ser.

Sally moveu-se só um tantinho. O chão duro de linóleo fazia-lhe lembrar onde se encontrava: seu glorioso universo. Um banheiro pequeno, frio, ecoante, com a torneira de uma banheira a pingar, habitado por uma assassina, uma vadia, uma vagabunda, um fracasso, um vidro vazio drenado constantemente por dez anos de existência sem sentido, sem rumo, um pedaço de carne descartado que ninguém queria.

Agora ela estava sentada no linóleo, a cabeça contra a parede, o cotovelo descansando sobre o vaso sanitário, ao lado da banheira na qual ela havia tirado a vida da filha.

Seu universo. Seu destino. Sua verdade.

Ela não tinha lágrimas. Estava vazia demais para chorar, não havia alma dentro de si. Continuava a respirar, mas não porque o desejasse. Apenas acontecia. A vida apenas acontecia. Ela apenas acontecia, e não sabia por quê.

Os espíritos a encontraram: Desespero, Morte, Loucura, e agora Suicí­dio. Eles atacaram-na, sussurraram-lhe, arranharam-lhe a alma, uma camada de cada vez. Assassina, disseram. Assassina imprestável, culpada!Jamais conseguirá fazer o bem! Não há nada de bom em você! Não pode ajudar ninguém! Por que não desiste de tudo?

É solitário neste universo, pensou ela. Supostamente é minha cria­ção, mas agora estou perdida nele. Gostaria de ter certeza a respeito de alguma coisa. Gostaria de poder encontrar uma cerca no fim deste quintal.

Ah, mas é tarde demais para isso agora.

A mão caiu-lhe do colo e bateu de leve contra o lado da banheira.

Uma cerca.

Não, não era um grande pensamento; não era uma idéia emocionante, e não causou a menor mudança na sua respiração ou no seu pulso. Era apenas uma noção, uma sugestão vaga de possibilidade, uma simples proposição para debater um pouco: essa banheira podia ser uma cerca.

Ela olhou a banheira; tocou a porcelana fria, de um azul-esverdeado. Eu podia fazer de conta, pensou ela. Só para fins de discussão, eu podia fingir que isto é uma cerca, um limite, uma fronteira.

Uma fronteira que atravessei, e que não devia ter atravessado.

Ela permitiu que seus pensamentos continuassem por conta própria e apenas deu-se o prazer de ouvi-los agrupando-se e conferenciando em sua cabeça.

E se o que aconteceu aqui foi errado?

Ah, vamos, de acordo com quem? Não existem absolutos; não se pode saber nada com certeza.

E se existirem, e se eu puder?

Mas como?

Mais tarde, mais tarde. Apenas responda à primeira pergunta.

E se foi errado?

Sim.

Então sou culpada. Fiz uma escolha errada, pulei a fronteira, fiz algo errado.

Mas pensei que fronteiras existissem apenas na própria mente!

Fiz algo errado. Quero pensar isso, pelo menos uma vez.

Por quê?

Porque preciso de uma cerca. Mesmo que esteja no lado errado dela, preciso de uma cerca. Preciso estar errada. Preciso ser culpada.

Por quê?

Porque...

Sally movimentou-se. Ela pressionou a mão firmemente contra o lado da banheira onde sua filha havia morrido. Moveu os lábios enunciando sem som as palavras, em seguida sussurrou-as, depois as disse em voz alta:

— Porque pelo menos então eu saberia onde estou! Aparentemente ela acordara uma emoção adormecida; a dor engolfou-a subitamente, uma dor no fundo da alma, e com dentes cerrados e um gemido sufocado, ela bateu com força no lado da banheira: Oh, Deus!

Descansou contra a parede de reboco duro novamente, ofegante de dor, raiva e desespero.

— Oh, Deus, ajude-me!Desespero escorregou e caiu. Suas garras haviam perdido o controle.

Pronto. Ela havia dito aquilo. Seguira a proposição até a conclusão, tinha todo o seu acessozinho, e agora havia terminado. Não sabia dizer se se sentia melhor. Sentia-se um tanto tola por falar em voz alta consigo mesma, ou com Deus, qualquer que fosse o caso. Não importava.

Por algum motivo, sentiu um peso em torno do pescoço, contra o peito. Sua mão dirigiu-se ao anel pendurado ali. Ela o tirou para fora e olhou-o novamente. O pequenino e feio gárgula arreganhou os dentes para ela.

E então uma lembrança a atingiu. Atingiu-a com tanta força e tão repentinamente que ela ficou abismada por ter ficado escondida tanto tempo.

— O anel! O anel de Owen!

Irene Bledsoe estava visivelmente constrangida.

— Sr. Harris, seus amigos terão de permanecer aqui.

Naquelas circunstancias, Tom jamais se sentira melhor. Estava sentado no mesmo banco duro de madeira no mesmo saguão frio e ecoante de mármore no tribunal de Claytonville; viera ali para outra visita pré-arran­jada com os filhos, e mais uma vez Irene Bledsoe comandava tudo.

Mas dessa vez ele estava ladeado por...

— Sra. Bledsoe, este é o meu pastor, Mark Howard, e o meu advogado, Wayne Corrigan.

Os dois homens ofereceram as mãos, e ela as apertou por necessidade, mas sem se mostrar inteiramente cordial.

— Alô. Como disse, o Sr. Harris somente terá permissão para ver os filhos sozinho.

Corrigan estava em plena forma.

— Estamos aqui a convite do Sr. Harris, e o acompanharemos durante a visita. Se a senhora se recusar a permitir, terá de comparecer ao tribunal para demonstrar justa causa. — Após dizer isto, sorriu.

A Bledsoe estava indignada e precisou até procurar suas palavras.

— O senhor... Este é... este é um encontro particular! O Sr. Harris precisa ver os filhos sozinho!

— Então tenho a certeza de que a senhora ficará feliz em permanecer aqui conosco enquanto ele o faz?

— Não foi isso o que eu quis dizer e o senhor sabe! A visita tem de ser entre o Sr. Harris e seus filhos com uma assistente social presente.

— Isso quer dizer a senhora?

— Naturalmente!

Corrigan tirou seu bloco de anotações.

— Por ordem de quem?

Ela procurou ganhar tempo.— Eu... eu teria de averiguar.

— Se não se importa — disse Tom — gostaria de ver os meus filhos. Eles estão esperando por mim, não estão?

— Um momento — disse ela, erguendo a mão. — O senhor trouxe os questionários que lhe mandei?

Corrigan tinha algo a dizer a respeito disso também.

— Em vista da ação judicial pendente, aconselhei o meu cliente a adiar o preenchimento de quaisquer levantamentos psicológicos ou outros testes por enquanto.

A resposta dela foi fria a ameaçadora.

— O senhor compreende, naturalmente, que isto atrasará a hora de devolvermos as crianças à guarda do Sr. Harris?

— De acordo com as fichas do DPC, vocês nunca devolveram criança alguma aos pais sem primeiro ter tido um julgamento mesmo, de forma que no momento estamos resignados a isso. Agora, se pudermos prosse­guir com a visita...

Ela cedeu.

— Muito bem. Não querem me acompanhar?

Ela pôs-se a caminhar rumo à grande escadaria de mármore novamente, o póque, póque, póque dos saltos ecoando pelo saguão como que a anunciar a sua autoridade, e talvez a expressar também a sua afronta. Eles chegaram ao segundo andar, passaram pela grande e repulsiva porta e entraram na antecâmara onde John, o guarda, estava postado de novo. Ele pareceu um tanto surpreso ao ver três homens em vez de apenas um, mas como eles vieram com a Bledsoe, achou que devia estar bem.

— Oi, meninos!

Com gritos de alegria, Rute e Josias correram para o pai. Tom caiu sobre um joelho a fim de abraçá-los e por algum motivo Irene Bledsoe não se interpôs entre eles. Josias estava realmente encantado em ver o pai novamente; Rute apenas começou a chorar e não largava dele. Todos os abraços continuaram por bom tempo.

— Pobres crianças maltratadas — sussurrou Corrigan para Mark.

A Bledsoe tomou seu lugar à ponta da mesa e ofereceu cadeiras a Mark e a Corrigan. Eles sentaram-se em silêncio no lado da mesa reservado para Tom.

— Muito bem, meninos — disse Tom finalmente. — Vão sentar-se. Eles se dirigiram às suas cadeiras do outro lado da mesa, e só então notaram Mark.

— Oi, Pastor Howard.

— Oi. Como estão vocês?

— Bem.

— Temos quarenta minutos — disse a Bledsoe, mais para fazer todo o mundo lembrar-se de que ela ainda mandava ali.Pelos próximos trinta minutos Tom conversou com as crianças, pondo em dia as coisas triviais. As crianças estavam tentando ler mais, e pareciam estar se dando melhor com as outras crianças no lar temporário, embora Tom não pudesse estar certo de que era o mesmo lar temporário que o da última vez. Não estavam estudando nada, contudo, o que significava que teriam que repor as lições durante o verão, se isso chegasse a acontecer alguma dia. O galo de Rute havia sarado bem e mal aparecia.

Mas à medida que o tempo foi passando, havia uma coisa que Tom sabia que precisava fazer antes de sair, enquanto ainda tinha a oportunidade. Acima de tudo, ele sabia que precisava orar com as crianças.

— Olhem, o Papai vai ter de ir embora logo, por isso vamos orar juntos. Ele estendeu a mão ao outro lado da mesa e tomou as deles. Eram uma família novamente, só por aquele momento, e ele era o cabeça espiritual, o líder e exemplo que deveria ser.

— Querido Senhor, somente oro agora por meus filhos, e peço-te que coloques uma cerca de proteção em torno deles. Protege seus corações e mentes, e que jamais possam duvidar de que tu os ama e de que estão nas tuas mãos. Ajuda-os a serem sempre bons meninos e viver da maneira como desejas que vivam. Peço-te, Pai, que possamos estar todos juntos novamen­te.

Mark e Corrigan uniram-se a eles na oração, e ouviram enquanto a pequenina Rute orava pelo pai e pelo irmão, e até pela Sra. Bledsoe. Então Josias orou, declarando seu amor por Jesus e seu desejo de ser um bom filho de Deus.

Nada disso aconteceu por acaso. Eles estavam travando uma batalha nessa sala, pois embora o estado pudesse erigir muros intransponíveis de burocracia em torno dessas crianças, a oração de cada uma delas, oferecida em fé simples, seria suficiente para derrubar os muros. Era aqui que a vitória começaria. Eles todos o sabiam, e enquanto as crianças oravam, podiam senti-lo.

— Amém — disse Josias.

— Amém — disseram todos. Todos, exceto Irene Bledsoe.

Estava quase na hora de irem embora. Tom abriu um saco de papel.

— Aqui. Era para eu ter dado isto a vocês na última vez.

— Ei, que bom! - disse Josias, recebendo a sua Bíblia.

— Obrigada, Papai! — disse Rute apertando a sua contra o peito. Tom também lhes trouxe alguns dos seus livros favoritos e o papel de carta que não haviam recebido da última vez. Ele podia ver Irene Bledsoe de olho em tudo que ele tirava do saco, mas continuou devagar e aberta­mente, nada tendo a esconder.

Bem, quase nada. Josias estava folheando seu novo livro sobre baleias quando encontrou umas fotos inseridas entre as páginas. Tom, Mark e Corrigan tentaram não olhar muito diretamente ao garoto, para não atraírem a atenção da Bledsoe.

— Gosta do seu livro, Rute? — disse Tom, estendendo a mão ao outro lado da mesa para ajudá-la a encontrar seu bilhetinho para ela na primeira página. Esse gesto físico ajudou; a Bledsoe observou-o atentamente. — Viu o que escrevi? Diz: "À minha querida filha Rute. Jesus acha que você é preciosa e eu também acho!"

— Ei! — disse Josias. Ele estava olhando as fotos. — A mulher da caminhonete!

Isso atraiu a atenção da Bledsoe imediatamente. Ela viu Josias segurando as fotos, estudando-as com olhos escancarados de reconhecimento. O rosto da mulher empalideceu visivelmente.

Corrigan perguntou:

— O que quer dizer, filho? Você já viu essa mulher antes? A Bledsoe pôs-se de pé num salto.

— Sr. Harris!

Tom respondeu calmamente. — Hum?

— Como se atreve! Como se atreve! Corrigan pressionou Josias para responder.

— Você a reconhece?

— Claro — disse Josias. — É a mulher que estava dirigindo aquela caminhonete em que quase batemos. Ela sempre parece meio doente, não parece?

A Bledsoe, pisando duro, dirigiu-se aonde Josias se encontrava e agar­rando as fotos, tomou-as dele. Ela tirou apenas um momento para olhá-las enraivecida, e depois, em desafio, rasgou-as em dois, em quatro, em oito, e depois as amassou e atirou na cesta de lixo.

Então postou-se ali, tremendo, olhando furiosa para Tom.

— O que o senhor está exatamente tentando provar aqui? Mark falou suavemente.

— Sra. Bledsoe, a senhora está inquietando as crianças.

Ele apontou o dedo ao rosto de Tom, e sua voz tremia de fúria.

— O senhor cometeu uma ofensa séria! Posso tornar as coisas muito difíceis para o senhor! Não pense que não posso fazer com que seus filhos lhe sejam tomados permanentemente!

Tom replicou calmamente, mais para beneficio das crianças.

— Então do que a senhora está com tanto medo? Ela reagiu.

— Oh, não estou com medo, Sr. Harris. O senhor não me assusta! Tom fez-lhe uma declaração que já havia ensaiado mentalmente por um bom tempo.

— Sra. Bledsoe, tem ficado bem claro para mim que a senhora não está tão preocupada com os interesses dos meus filhos tanto quanto com os seus próprios interesses. De qualquer forma, acho que está abusando do seu poder, e dos meus filhos e de mim, e tenciono descobrir exatamente quem é que a senhora está tentando proteger.

Ela tentou manter baixa a voz; afinal, gritar era pouco profissional.

— Ora, seu...! — Com grande esforço, ela descontraiu-se, assumiu uma pose profissional, e anunciou: — Esta visita terminou. Acho que a sua traição da minha confiança foi deplorável, e me lembrarei disso quando considerar a data para a nossa próxima reunião.

— Será mais cedo do que pensa disse Corrigan. Ele deu a volta à mesa, tomou a mão da mulher e forçou-a a pegar uma ultimação. — Tente não rasgar isto aqui. Tenha um bom dia.

Caro Tom:

Sinto-me diferente hoje, e não sei se posso explicá-lo. Indubitavelmen­te deriva de minha proposição imaginária da manhã, a possibilidade de minha culpa. Ser culpada, ou mesmo sentir-me culpada, não é agradável, claro, mas a simples sugestão disso parece ter enfraquecido meu outro companheiro emocional aborrecido: o desespero. Faz-me pensar em um palhaço batendo no polegar com um martelo para esquecer-se da dor de cabeça: agora que me sinto culpada, não sinto tanto desespero.

Mas, e isto é puramente para fins de discussão, poderia ser dito que as razões vão mais fundo do que isso. Como eu disse antes, um mergulho pleno no humanismo e sua total falta de absolutos pode deixá-lo tateando à procura de cercas, perguntando-se quem é, desejan­do que pudesse ter certeza a respeito de alguma coisa. Ora, isso é desespero.

Então, subitamente, a culpa, ou melhor, a possibilidade de culpa, entra em cena, e encontro-me brincando com o pensamento de que poderia estar numa posição errada, o que significa que eu poderia ter violado um padrão em alguma parte, o que significa que poderia existir algum padrão a ser violado, o que significa que existe algo lá em alguma parte a respeito do qual posso ter certeza.

Portanto, acho que disse tudo isso para dizer isto: Se realmente posso ser culpada, se realmente sou culpada, então pelo menos sei onde estou. Subitamente, depois de todo este tempo, encontrei uma cerca, uma fronteira, e apenas pensar isso dispersa aquela antiga nuvem de deses­pero, tanto que notei.

Pense apenas, Tom, em tudo quanto fiz em toda a minha vida para subjugar o desespero. O programa de Potenciais Jovens do Centro Ômega apresentava um possível escape; mergulhei em tudo o que eles ofereceram: ioga, meditação transcendental, regime, remédios caseiros, estados alterados, drogas, e uma porção de excursões mentais acerca de minha própria divindade e capacidade de criar a minha realidade. Foi uma longa excursão dentro da loucura, admito. O que adiantou construir a minha própria verdade? Eu estava perdida e vagando quando comecei, e qualquer realidade nascida em minha cabeça não poderia estar em melhor situação. Eu e o universo que criei estávamos perdidos e vagando juntos.

E então havia Jonas, meu "amigo consumado". Ele era um vendedor maravilhoso com bastante lábia, extraordinariamente capaz de lison­ja. Demos muitas longas caminhadas juntos durante meus transes em ioga, e palavra que ele me convenceu de que toda a realidade, inclusive a morte, era uma ilusão a ser manipulada, e que eu, sendo deus, poderia formar a realidade para ser qualquer coisa que desejasse.

E por um período crucial de tempo acreditei nisso. Acreditei que eu tinha formado uma realidade que me servia e supria o que eu quisesse, e acreditei ter formado um homem que me dava prazer sem culpa. Acreditei ter formado uma criança que me pedia que a mandasse para a sua próxima vida, deixando-me livre para continuar o que havia sido interrompido.

Mas formei as grades da prisão também? Eu estava falando a respeito de cercas, não estava?

Vivi atrás daquela cerca por sete anos, e Jonas nunca veio visitar-me. Fiquei de fato ressentida. De fato culpei-o pela morte de Raquel. Havia sido, em meu pensamento, idéia dele. Foi ele quem assumiu o controle do meu corpo e apagou a vida dela. Ele cometeu o ato. A culpa era dele.

Mas não é o que penso agora. Mudei de idéia em algum ponto; talvez fosse hoje de manhã.

"Ametista" tinha razão; eu matei o meu nenê.

 Sally pôs de lado o caderno e saiu, a mente cheia de pensamentos, revirando coisas, separando coisas. Ela sentia uma mudança chegando, embora não tivesse idéia do que poderia ser ou em que direção iria. Mas essa caminhada naquele exato momento iria ser parte da mudança; ela ia descobrir o rasto de uma lembrança e encontrar outra parte que faltava do quebra-cabeças de sua vida.

Tanto quando podia lembrar-se, era um velho prédio de tijolos verme­lhos não muito longe do hotel, e havia uma vicia, uma velha vicia de paralelepípedos com um riachinho a lhe correr pelo centro e uma grade sobre um bueiro. Oh, onde era?

Tal seguia bem atrás dela. Natã e Armoth pairavam logo acima, espadas desembainhadas, olhos examinando cautelosamente os arredores. Des­truidor estava chegando perto. Havia pouco tempo. Continue em frente, Sally, disse Tal. Você está quase encontrando.

Deu meia volta e entrou numa rua lateral. Essa calçada parecia conhe­cida; aqueles olmos plantados em jardineiras pareciam corresponder a uma lembrança, embora estivessem muito maiores agora.

Um barulhento caminhão de lixo roncou e saiu rugindo da viela atrás de uma velha cervejaria, enfiou-se no tráfego, e então, rosnando de uma marcha para outra, dirigiu-se rua abaixo.

Sally dirigiu-se à viela.

Tinha de ser essa! A mesma estreita viela de paralelepípedos, os mesmos altos muros de tijolos vermelhos da velha cervejaria! Ela estava caminhando no passado. O bueiro ainda se encontrava ali, o musgo nas paredes de tijolo ainda era o mesmo, o cheiro de lixo era exatamente como se lembrava. Ela apressou o passo. Era em alguma parte por ali, um tijolo solto no peitoril de uma janela... Ela se estava lembrando mais e mais ao correr por ali, olhando cuidadosamente cada janela, esperando algum detalhe que lhe despertasse uma lembrança.

Tal podia ver as sentinelas angelicais adiante, guardando o lugar. Havia quatro, audaciosos e brilhantes, todos implacáveis em sua dedicação, as espadas prontas. Haviam estado nesse posto, observando-o, preservando-o por dez anos. Ao avistarem Sally Roe se aproximando, eles ergueram as espadas e soltaram um viva cauteloso, abafado.

Ela aproximou-se do canto dos fundos do prédio. Tinha de estar ali nalgum lugar; parecia lembrar-se de que era perto do canto.

Havia uma última janela, e o peitoril de tijolo encontrava-se a nível do olho. Ela se deteve e olhou em volta. Estava sozinha na viela. Tocou o peitoril, correu os dedos ao longo dele. Tinha de ser o mesmo. Aquele tijolo solto estava no lado direito ou no esquerdo? Ela colocou o polegar debaixo do tijolo na ponta esquerda e pressionou suavemente para cima.

Ele moveu-se. Pela primeira vez em dez anos, moveu-se. A luz do dia inundou a cavidade em baixo dele.

O coração de Sally saltou. Ela podia ver um leve cintilar de ouro. Empurrou o tijolo um pouco mais.

Ali estava o anel. Era como um milagre. As emoções de Sally se elevaram a tal ponto que um grito sufocado escapou-lhe. Ela enfiou a mão no nicho e agarrou o anel entre o polegar e o indicador. Tirou-o para a luz, e deixou que o tijolo afundasse de volta no lugar.

Dez anos depois, o anel ainda estava extraordinariamente limpo, exce­to por umas teias de aranha cinzentas. Ela o esfregou contra a fralda da blusa e o brilho retornou. Tirou o primeiro anel para fora da blusa e segurou os dois juntos.

Sim, eram os mesmos. Agora havia dois pequeninos gárgulas, arreganhando os dentes para ela com expressões idênticas.

Tal dispensou as sentinelas. Sally recostou-se contra a parede de tijolos e pensou no dia em que havia colocado o anel nesse esconderijo. Estava desesperada, com medo de ser traída. Talvez fosse um ato furtivo, conspiratório roubar o anel daquele homem e escondê-lo ali, mas como acabou mesmo acontecendo, ela foi traída, e agora, dez anos depois, esse anel podia ser a chave que reabriria o seu passado, para vê-lo em seu todo novamente, para descobrir o que havia dado errado.

Ela pensou em Tom Harris e naqueles cristãos da escolinha de Baskon.

Será que agi erradamente? Se agi, então permitam-me fazer algo certo, pelo menos desta vez,

Ela abriu o fecho da corrente que trazia em torno do pescoço e colocou o segundo anel ao lado do primeiro.

Lá no Hotel Schrader, a porta da frente se abriu; o olho elétrico emitiu um bipe avisando que alguém havia entrado. A senhora atrás do balcão ergueu os olhos.

— Alô. Em que posso servi-lo?

O Sr. Kholl sorriu amavelmente.

— Bom dia. Estou procurando minha esposa. Ela disse que havia alugado um quarto aqui... número 302?

— Oh! — Ela tirou o livro de registro. — É o Sr. Rogers? Kholl abriu-se num largo sorriso.

— Sim, sim! Muito bem, finalmente encontrei-a! Ela estava curiosa.

— Bem, como sabia onde procurar?

— Oh, já alugamos o quarto antes. Gostamos muito. Ficamos aqui todas as vezes em que passamos por este lugar. Eu fiquei detido em casa por alguns dias, mas ela me ligou e disse que conseguiu o mesmo quarto. Eu estava com esperança de que fosse o que eu pensava que fosse.

— Bem... — Ela encontrou um problema. — Umm, ela alugou-o apenas para uma pessoa. Acho que compreendeu mal.

Kholl tirou a carteira.

— É, isso é um erro. Deixe-me completar o que falta. Ela está lá em cima agora? Acho que poderia surpreendê-la.

— Bem, não, acho que saiu. Mas posso lhe dar uma chave.

— Ótimo.

— Por que não preenche outro formulário aqui para eu poder manter certos os meus registros?

— Claro.

Ele preencheu outro formulário e deu seus nomes: Sr. e Sra. Jack Rogers. Ele tinha também um pacote de notas de bom tamanho, e pagou-lhe o saldo devido.Ela olhou para o endereço que ele deu.

— Então, como estão as coisas em Las Vegas? O lugar é tão maluco quanto dizem?

— Não... — Ele riu. — Bem, em certos lugares, sim, suponho. Mas não é um lugar ruim para a gente morar.

— Bem, aqui está a sua chave... Oh, que coisa, acho que ela está com a única duplicata. Bem, venha comigo, subirei lá e abrirei a porta para o senhor entrar.

— Obrigado. Ei, não lhe diga que estou aqui. Ela não me está esperando senão amanhã!

Do outro lado da rua, agachados em cima da loja de ferragens, e do outro lado do estacionamento do hotel, escondidos no telhado da Impres­sora e Encadernadora Nelson, pelotões de guerreiros imundos resfolega­ram uma nuvem de enxofre quando viram Kholl acompanhar a senhora até o Quarto 302.

Destruidor observava de seu ponto vantajoso acima da floricultura.

— Eles aceitaram — sibilou ele. — Ela está aqui!