Pingo. Pingo. Pingo.
A torneira parecia delimitar
segmentos de tempo, anunciando a passagem de um momento, e outro momento, e
outro momento, e outro momento, como um relógio, nunca parando, nunca
diminuindo a marcha, num pingar constante, momentos passando.
O tráfego fluía do lado de
fora da janela do banheiro, mas Sally não o ouvia. Uma sirene silvou uma vez, mas
ela não se mexeu ou percebeu. Não tinha força, nem disposição para levantar-se
do lugar onde se encontrava ali no chão do banheiro, as costas contra a parede
azul-claro, as mãos frouxas sobre o colo, a cabeça descansando contra o reboco
duro, mas nem tentando se afastar do desconforto.
Ela simplesmente permanecia
ali, os olhos vazios fixos naquela banheira, ouvindo a torneira pingando,
vendo cada gota crescer na ponta do cano e depois, espichando-se com o peso,
soltar-se e desaparecer.
Pingo. Pingo. Pingo.— Srta. Roe, achou que não havia lei superior à sua
própria pessoa?
— Não existe realidade
superior, senhor, à que eu mesma criei. Pingo. Pingo. Pingo.
— Você honestamente não se
lembra de ter apanhado a sua filha e segurado-a debaixo da água, afogando-a?
— Já lhe disse antes, eu não
estava lá; foi Jonas.
— Mas você admitiu ter
afogado a sua filha!
— Jonas executou o ato. Meu
ser superior o quis, ele executou... Pingo. Pingo. Pingo.
— Encontramos a acusada no
banheiro... Ela parecia atordoada...
— E que foi que ela lhe
disse?
— Disse: "Oh, não! Matei
o meu nenê." Pingo. Pingo. Pingo.
—... senhoras e senhores
jurados, ouviram um relato do inconcebível... Esta vil criatura, destituída de
consciência, sem remorso...
Destituída de consciência,
sem remorso. Destituída de consciência, sem remorso. Destituída de consciência,
sem remorso.
Uma criança num quintal
infinito sem cerca. A criadora e arbitradora de toda a realidade. O centro de
seu próprio universo. Nada certo, nada errado. Apenas o próprio eu. O eu é
tudo o que importa.
Pelo menos, era assim que
costumava ser.
Sally moveu-se só um
tantinho. O chão duro de linóleo fazia-lhe lembrar onde se encontrava: seu
glorioso universo. Um banheiro pequeno, frio, ecoante, com a torneira de uma
banheira a pingar, habitado por uma assassina, uma vadia, uma vagabunda, um
fracasso, um vidro vazio drenado constantemente por dez anos de existência sem
sentido, sem rumo, um pedaço de carne descartado que ninguém queria.
Agora ela estava sentada no
linóleo, a cabeça contra a parede, o cotovelo descansando sobre o vaso
sanitário, ao lado da banheira na qual ela havia tirado a vida da filha.
Seu universo. Seu destino.
Sua verdade.
Ela não tinha lágrimas.
Estava vazia demais para chorar, não havia alma dentro de si. Continuava a
respirar, mas não porque o desejasse. Apenas acontecia. A vida apenas
acontecia. Ela apenas acontecia, e não sabia por quê.
Os espíritos a encontraram:
Desespero, Morte, Loucura, e agora Suicídio. Eles atacaram-na,
sussurraram-lhe, arranharam-lhe a alma, uma camada de cada vez. Assassina, disseram.
Assassina imprestável, culpada!Jamais conseguirá fazer o bem! Não há nada de
bom em você! Não pode ajudar ninguém! Por que não desiste de tudo?
É solitário neste universo,
pensou ela. Supostamente é minha criação, mas agora estou perdida nele.
Gostaria de ter certeza a respeito de alguma coisa. Gostaria de poder encontrar
uma cerca no fim deste quintal.
Ah, mas é tarde demais para
isso agora.
A mão caiu-lhe do colo e
bateu de leve contra o lado da banheira.
Uma cerca.
Não, não era um grande
pensamento; não era uma idéia emocionante, e não causou a menor mudança na sua
respiração ou no seu pulso. Era apenas uma noção, uma sugestão vaga de
possibilidade, uma simples proposição para debater um pouco: essa banheira podia
ser uma cerca.
Ela olhou a banheira; tocou a
porcelana fria, de um azul-esverdeado. Eu podia fazer de conta, pensou ela. Só
para fins de discussão, eu podia fingir que isto é uma cerca, um limite, uma
fronteira.
Uma fronteira que atravessei,
e que não devia ter atravessado.
Ela permitiu que seus
pensamentos continuassem por conta própria e apenas deu-se o prazer de ouvi-los
agrupando-se e conferenciando em sua cabeça.
E se o que aconteceu aqui foi
errado?
Ah, vamos, de acordo com
quem? Não existem absolutos; não se pode saber nada com certeza.
E se existirem, e se eu puder?
Mas como?
Mais tarde, mais tarde.
Apenas responda à primeira pergunta.
E se foi errado?
Sim.
Então sou culpada. Fiz uma
escolha errada, pulei a fronteira, fiz algo errado.
Mas pensei que fronteiras
existissem apenas na própria mente!
Fiz algo errado. Quero pensar
isso, pelo menos uma vez.
Por quê?
Porque preciso de uma cerca.
Mesmo que esteja no lado errado dela, preciso de uma cerca. Preciso estar
errada. Preciso ser culpada.
Por quê?
Porque...
Sally movimentou-se. Ela
pressionou a mão firmemente contra o lado da banheira onde sua filha havia
morrido. Moveu os lábios enunciando sem som as palavras, em seguida
sussurrou-as, depois as disse em voz alta:
— Porque pelo menos então eu
saberia onde estou! Aparentemente ela acordara uma emoção adormecida; a dor
engolfou-a subitamente, uma dor no fundo da alma, e com dentes cerrados e um
gemido sufocado, ela bateu com força no lado da banheira: Oh, Deus!
Descansou contra a parede de
reboco duro novamente, ofegante de dor, raiva e desespero.
— Oh, Deus, ajude-me!Desespero
escorregou e caiu. Suas garras haviam perdido o controle.
Pronto. Ela havia dito
aquilo. Seguira a proposição até a conclusão, tinha todo o seu acessozinho, e
agora havia terminado. Não sabia dizer se se sentia melhor. Sentia-se um tanto
tola por falar em voz alta consigo mesma, ou com Deus, qualquer que fosse o
caso. Não importava.
Por algum motivo, sentiu um
peso em torno do pescoço, contra o peito. Sua mão dirigiu-se ao anel pendurado
ali. Ela o tirou para fora e olhou-o novamente. O pequenino e feio gárgula
arreganhou os dentes para ela.
E então uma lembrança a
atingiu. Atingiu-a com tanta força e tão repentinamente que ela ficou abismada
por ter ficado escondida tanto tempo.
— O anel! O anel de Owen!
Irene Bledsoe estava
visivelmente constrangida.
— Sr. Harris, seus amigos
terão de permanecer aqui.
Naquelas circunstancias, Tom
jamais se sentira melhor. Estava sentado no mesmo banco duro de madeira no
mesmo saguão frio e ecoante de mármore no tribunal de Claytonville; viera ali
para outra visita pré-arranjada com os filhos, e mais uma vez Irene Bledsoe
comandava tudo.
Mas dessa vez ele estava
ladeado por...
— Sra. Bledsoe, este é o meu
pastor, Mark Howard, e o meu advogado, Wayne Corrigan.
Os dois homens ofereceram as
mãos, e ela as apertou por necessidade, mas sem se mostrar inteiramente
cordial.
— Alô. Como disse, o Sr.
Harris somente terá permissão para ver os filhos sozinho.
Corrigan estava em plena
forma.
— Estamos aqui a convite do
Sr. Harris, e o acompanharemos durante a visita. Se a senhora se recusar a
permitir, terá de comparecer ao tribunal para demonstrar justa causa. — Após
dizer isto, sorriu.
A Bledsoe estava indignada e
precisou até procurar suas palavras.
— O senhor... Este é... este
é um encontro particular! O Sr. Harris precisa ver os filhos sozinho!
— Então tenho a certeza de
que a senhora ficará feliz em permanecer aqui conosco enquanto ele o faz?
— Não foi isso o que eu quis
dizer e o senhor sabe! A visita tem de ser entre o Sr. Harris e seus filhos com
uma assistente social presente.
— Isso quer dizer a senhora?
— Naturalmente!
Corrigan tirou seu bloco de
anotações.
— Por ordem de quem?
Ela procurou ganhar tempo.—
Eu... eu teria de averiguar.
— Se não se importa — disse
Tom — gostaria de ver os meus filhos. Eles estão esperando por mim, não estão?
— Um momento — disse ela,
erguendo a mão. — O senhor trouxe os questionários que lhe mandei?
Corrigan tinha algo a dizer a
respeito disso também.
— Em vista da ação judicial
pendente, aconselhei o meu cliente a adiar o preenchimento de quaisquer
levantamentos psicológicos ou outros testes por enquanto.
A resposta dela foi fria a
ameaçadora.
— O senhor compreende,
naturalmente, que isto atrasará a hora de devolvermos as crianças à guarda do
Sr. Harris?
— De acordo com as fichas do DPC,
vocês nunca devolveram criança alguma aos pais sem primeiro ter tido um
julgamento mesmo, de forma que no momento estamos resignados a isso. Agora, se
pudermos prosseguir com a visita...
Ela cedeu.
— Muito bem. Não querem me
acompanhar?
Ela pôs-se a caminhar rumo à
grande escadaria de mármore novamente, o póque, póque, póque dos saltos ecoando
pelo saguão como que a anunciar a sua autoridade, e talvez a expressar também a
sua afronta. Eles chegaram ao segundo andar, passaram pela grande e repulsiva
porta e entraram na antecâmara onde John, o guarda, estava postado de novo. Ele
pareceu um tanto surpreso ao ver três homens em vez de apenas um, mas como eles
vieram com a Bledsoe, achou que devia estar bem.
— Oi, meninos!
Com gritos de alegria, Rute e
Josias correram para o pai. Tom caiu sobre um joelho a fim de abraçá-los e por
algum motivo Irene Bledsoe não se interpôs entre eles. Josias estava realmente
encantado em ver o pai novamente; Rute apenas começou a chorar e não largava
dele. Todos os abraços continuaram por bom tempo.
— Pobres crianças maltratadas
— sussurrou Corrigan para Mark.
A Bledsoe tomou seu lugar à
ponta da mesa e ofereceu cadeiras a Mark e a Corrigan. Eles sentaram-se em
silêncio no lado da mesa reservado para Tom.
— Muito bem, meninos — disse
Tom finalmente. — Vão sentar-se. Eles se dirigiram às suas cadeiras do outro
lado da mesa, e só então notaram Mark.
— Oi, Pastor Howard.
— Oi. Como estão vocês?
— Bem.
— Temos quarenta minutos —
disse a Bledsoe, mais para fazer todo o mundo lembrar-se de que ela ainda
mandava ali.Pelos próximos trinta minutos Tom conversou com as crianças, pondo
em dia as coisas triviais. As crianças estavam tentando ler mais, e pareciam
estar se dando melhor com as outras crianças no lar temporário, embora Tom não pudesse
estar certo de que era o mesmo lar temporário que o da última vez. Não estavam
estudando nada, contudo, o que significava que teriam que repor as lições
durante o verão, se isso chegasse a acontecer alguma dia. O galo de Rute havia
sarado bem e mal aparecia.
Mas à medida que o tempo foi
passando, havia uma coisa que Tom sabia que precisava fazer antes de sair,
enquanto ainda tinha a oportunidade. Acima de tudo, ele sabia que precisava
orar com as crianças.
— Olhem, o Papai vai ter de
ir embora logo, por isso vamos orar juntos. Ele estendeu a mão ao outro lado da
mesa e tomou as deles. Eram uma família novamente, só por aquele momento, e ele
era o cabeça espiritual, o líder e exemplo que deveria ser.
— Querido Senhor, somente oro
agora por meus filhos, e peço-te que coloques uma cerca de proteção em torno
deles. Protege seus corações e mentes, e que jamais possam duvidar de que tu os
ama e de que estão nas tuas mãos. Ajuda-os a serem sempre bons meninos e viver
da maneira como desejas que vivam. Peço-te, Pai, que possamos estar todos
juntos novamente.
Mark e Corrigan uniram-se a
eles na oração, e ouviram enquanto a pequenina Rute orava pelo pai e pelo
irmão, e até pela Sra. Bledsoe. Então Josias orou, declarando seu amor por
Jesus e seu desejo de ser um bom filho de Deus.
Nada disso aconteceu por
acaso. Eles estavam travando uma batalha nessa sala, pois embora o estado
pudesse erigir muros intransponíveis de burocracia em torno dessas crianças, a
oração de cada uma delas, oferecida em fé simples, seria suficiente para
derrubar os muros. Era aqui que a vitória começaria. Eles todos o sabiam, e
enquanto as crianças oravam, podiam senti-lo.
— Amém — disse Josias.
— Amém — disseram todos. Todos,
exceto Irene Bledsoe.
Estava quase na hora de irem
embora. Tom abriu um saco de papel.
— Aqui. Era para eu ter dado
isto a vocês na última vez.
— Ei, que bom! - disse Josias,
recebendo a sua Bíblia.
— Obrigada, Papai! — disse
Rute apertando a sua contra o peito. Tom também lhes trouxe alguns dos seus
livros favoritos e o papel de carta que não haviam recebido da última vez. Ele
podia ver Irene Bledsoe de olho em tudo que ele tirava do saco, mas continuou
devagar e abertamente, nada tendo a esconder.
Bem, quase nada. Josias
estava folheando seu novo livro sobre baleias quando encontrou umas fotos
inseridas entre as páginas. Tom, Mark e Corrigan tentaram não olhar muito diretamente
ao garoto, para não atraírem a atenção da Bledsoe.
— Gosta do seu livro, Rute? —
disse Tom, estendendo a mão ao outro lado da mesa para ajudá-la a encontrar seu
bilhetinho para ela na primeira página. Esse gesto físico ajudou; a Bledsoe
observou-o atentamente. — Viu o que escrevi? Diz: "À minha querida filha
Rute. Jesus acha que você é preciosa e eu também acho!"
— Ei! — disse Josias. Ele
estava olhando as fotos. — A mulher da caminhonete!
Isso atraiu a atenção da
Bledsoe imediatamente. Ela viu Josias segurando as fotos, estudando-as com
olhos escancarados de reconhecimento. O rosto da mulher empalideceu
visivelmente.
Corrigan perguntou:
— O que quer dizer, filho?
Você já viu essa mulher antes? A Bledsoe pôs-se de pé num salto.
— Sr. Harris!
Tom respondeu calmamente. —
Hum?
— Como se atreve! Como se atreve!
Corrigan pressionou Josias para responder.
— Você a reconhece?
— Claro — disse Josias. — É a
mulher que estava dirigindo aquela caminhonete em que quase batemos. Ela sempre
parece meio doente, não parece?
A Bledsoe, pisando duro,
dirigiu-se aonde Josias se encontrava e agarrando as fotos, tomou-as dele. Ela
tirou apenas um momento para olhá-las enraivecida, e depois, em desafio,
rasgou-as em dois, em quatro, em oito, e depois as amassou e atirou na cesta de
lixo.
Então postou-se ali,
tremendo, olhando furiosa para Tom.
— O que o senhor está
exatamente tentando provar aqui? Mark falou suavemente.
— Sra. Bledsoe, a senhora
está inquietando as crianças.
Ele apontou o dedo ao rosto
de Tom, e sua voz tremia de fúria.
— O senhor cometeu uma ofensa
séria! Posso tornar as coisas muito difíceis para o senhor! Não pense que não
posso fazer com que seus filhos lhe sejam tomados permanentemente!
Tom replicou calmamente, mais
para beneficio das crianças.
— Então do que a senhora está
com tanto medo? Ela reagiu.
— Oh, não estou com medo, Sr.
Harris. O senhor não me assusta! Tom fez-lhe uma declaração que já havia
ensaiado mentalmente por um bom tempo.
— Sra. Bledsoe, tem ficado
bem claro para mim que a senhora não está tão preocupada com os interesses dos
meus filhos tanto quanto com os seus próprios interesses. De qualquer forma,
acho que está abusando do seu poder, e dos meus filhos e de mim, e tenciono
descobrir exatamente quem é que a senhora está tentando proteger.
Ela tentou manter baixa a
voz; afinal, gritar era pouco profissional.
— Ora, seu...! — Com grande
esforço, ela descontraiu-se, assumiu uma pose profissional, e anunciou: — Esta
visita terminou. Acho que a sua traição da minha confiança foi deplorável, e me
lembrarei disso quando considerar a data para a nossa próxima reunião.
— Será mais cedo do que pensa
— disse Corrigan. Ele deu a volta à mesa, tomou a mão da mulher e
forçou-a a pegar uma ultimação. — Tente não rasgar isto aqui. Tenha um bom dia.
Caro Tom:
Sinto-me diferente hoje, e
não sei se posso explicá-lo. Indubitavelmente deriva de minha proposição
imaginária da manhã, a possibilidade de minha culpa. Ser culpada, ou mesmo
sentir-me culpada, não é agradável, claro, mas a simples sugestão disso parece
ter enfraquecido meu outro companheiro emocional aborrecido: o desespero.
Faz-me pensar em um palhaço batendo no polegar com um martelo para esquecer-se
da dor de cabeça: agora que me sinto culpada, não sinto tanto desespero.
Mas, e isto é puramente para
fins de discussão, poderia ser dito que as razões vão mais fundo do que isso.
Como eu disse antes, um mergulho pleno no humanismo e sua total falta de
absolutos pode deixá-lo tateando à procura de cercas, perguntando-se quem é,
desejando que pudesse ter certeza a respeito de alguma coisa. Ora, isso é
desespero.
Então, subitamente, a culpa,
ou melhor, a possibilidade de culpa, entra em cena, e encontro-me brincando com
o pensamento de que poderia estar numa posição errada, o que significa que eu poderia
ter violado um padrão em alguma parte, o que significa que poderia existir
algum padrão a ser violado, o que significa que existe algo lá em alguma parte
a respeito do qual posso ter certeza.
Portanto, acho que disse tudo
isso para dizer isto: Se realmente posso ser culpada, se realmente sou culpada,
então pelo menos sei onde estou. Subitamente, depois de todo este tempo,
encontrei uma cerca, uma fronteira, e apenas pensar isso dispersa aquela antiga
nuvem de desespero, tanto que notei.
Pense apenas, Tom, em tudo
quanto fiz em toda a minha vida para subjugar o desespero. O programa de
Potenciais Jovens do Centro Ômega apresentava um possível escape; mergulhei em
tudo o que eles ofereceram: ioga, meditação transcendental, regime, remédios
caseiros, estados alterados, drogas, e uma porção de excursões mentais acerca
de minha própria divindade e capacidade de criar a minha realidade. Foi uma
longa excursão dentro da loucura, admito. O que adiantou construir a minha
própria verdade? Eu estava perdida e vagando quando comecei, e qualquer
realidade nascida em minha cabeça não poderia estar em melhor situação. Eu e o
universo que criei estávamos perdidos e vagando juntos.
E então havia Jonas, meu
"amigo consumado". Ele era um vendedor maravilhoso com bastante
lábia, extraordinariamente capaz de lisonja. Demos muitas longas caminhadas
juntos durante meus transes em ioga, e palavra que ele me convenceu de que toda
a realidade, inclusive a morte, era uma ilusão a ser manipulada, e que eu,
sendo deus, poderia formar a realidade para ser qualquer coisa que desejasse.
E por um período crucial de
tempo acreditei nisso. Acreditei que eu tinha formado uma realidade que me
servia e supria o que eu quisesse, e acreditei ter formado um homem que me dava
prazer sem culpa. Acreditei ter formado uma criança que me pedia que a mandasse
para a sua próxima vida, deixando-me livre para continuar o que havia sido
interrompido.
Mas formei as grades da
prisão também? Eu estava falando a respeito de cercas, não estava?
Vivi atrás daquela cerca por
sete anos, e Jonas nunca veio visitar-me. Fiquei de fato ressentida. De fato
culpei-o pela morte de Raquel. Havia sido, em meu pensamento, idéia dele. Foi
ele quem assumiu o controle do meu corpo e apagou a vida dela. Ele cometeu o
ato. A culpa era dele.
Mas não é o que penso agora.
Mudei de idéia em algum ponto; talvez fosse hoje de manhã.
"Ametista" tinha
razão; eu matei o meu nenê.
Tanto quando podia
lembrar-se, era um velho prédio de tijolos vermelhos não muito longe do hotel,
e havia uma vicia, uma velha vicia de paralelepípedos com um riachinho a lhe
correr pelo centro e uma grade sobre um bueiro. Oh, onde era?
Tal seguia bem atrás dela.
Natã e Armoth pairavam logo acima, espadas desembainhadas, olhos examinando
cautelosamente os arredores. Destruidor estava chegando perto. Havia pouco
tempo. Continue em frente, Sally, disse Tal. Você está quase
encontrando.
Deu meia volta e entrou numa
rua lateral. Essa calçada parecia conhecida; aqueles olmos plantados em
jardineiras pareciam corresponder a uma lembrança, embora estivessem muito
maiores agora.
Um barulhento caminhão de
lixo roncou e saiu rugindo da viela atrás de uma velha cervejaria, enfiou-se no
tráfego, e então, rosnando de uma marcha para outra, dirigiu-se rua abaixo.
Sally dirigiu-se à viela.
Tinha de ser essa! A mesma
estreita viela de paralelepípedos, os mesmos altos muros de tijolos vermelhos
da velha cervejaria! Ela estava caminhando no passado. O bueiro ainda se
encontrava ali, o musgo nas paredes de tijolo ainda era o mesmo, o cheiro de
lixo era exatamente como se lembrava. Ela apressou o passo. Era em alguma parte
por ali, um tijolo solto no peitoril de uma janela... Ela se estava lembrando
mais e mais ao correr por ali, olhando cuidadosamente cada janela, esperando
algum detalhe que lhe despertasse uma lembrança.
Tal podia ver as sentinelas
angelicais adiante, guardando o lugar. Havia quatro, audaciosos e brilhantes,
todos implacáveis em sua dedicação, as espadas prontas. Haviam estado nesse
posto, observando-o, preservando-o por dez anos. Ao avistarem Sally Roe se
aproximando, eles ergueram as espadas e soltaram um viva cauteloso, abafado.
Ela aproximou-se do canto dos
fundos do prédio. Tinha de estar ali nalgum lugar; parecia lembrar-se de que
era perto do canto.
Havia uma última janela, e o
peitoril de tijolo encontrava-se a nível do olho. Ela se deteve e olhou em
volta. Estava sozinha na viela. Tocou o peitoril, correu os dedos ao longo
dele. Tinha de ser o mesmo. Aquele tijolo solto estava no lado direito ou no
esquerdo? Ela colocou o polegar debaixo do tijolo na ponta esquerda e
pressionou suavemente para cima.
Ele moveu-se. Pela primeira
vez em dez anos, moveu-se. A luz do dia inundou a cavidade em baixo dele.
O coração de Sally saltou.
Ela podia ver um leve cintilar de ouro. Empurrou o tijolo um pouco mais.
Ali estava o anel. Era como
um milagre. As emoções de Sally se elevaram a tal ponto que um grito sufocado
escapou-lhe. Ela enfiou a mão no nicho e agarrou o anel entre o polegar e o
indicador. Tirou-o para a luz, e deixou que o tijolo afundasse de volta no
lugar.
Dez anos depois, o anel ainda
estava extraordinariamente limpo, exceto por umas teias de aranha cinzentas.
Ela o esfregou contra a fralda da blusa e o brilho retornou. Tirou o primeiro
anel para fora da blusa e segurou os dois juntos.
Sim, eram os mesmos. Agora
havia dois pequeninos gárgulas, arreganhando os dentes para ela com expressões
idênticas.
Tal dispensou as sentinelas.
Sally recostou-se contra a parede de tijolos e pensou no dia em que havia
colocado o anel nesse esconderijo. Estava desesperada, com medo de ser traída.
Talvez fosse um ato furtivo, conspiratório roubar o anel daquele homem e
escondê-lo ali, mas como acabou mesmo acontecendo, ela foi traída, e agora,
dez anos depois, esse anel podia ser a chave que reabriria o seu passado, para
vê-lo em seu todo novamente, para descobrir o que havia dado errado.
Ela pensou em Tom Harris e
naqueles cristãos da escolinha de Baskon.
Será que agi erradamente? Se
agi, então permitam-me fazer algo certo, pelo menos desta vez,
Ela abriu o fecho da corrente
que trazia em torno do pescoço e colocou o segundo anel ao lado do primeiro.
Lá no Hotel Schrader, a porta
da frente se abriu; o olho elétrico emitiu um bipe avisando que alguém havia
entrado. A senhora atrás do balcão ergueu os olhos.
— Alô. Em que posso servi-lo?
O Sr. Kholl sorriu
amavelmente.
— Bom dia. Estou procurando
minha esposa. Ela disse que havia alugado um quarto aqui... número 302?
— Oh! — Ela tirou o livro de
registro. — É o Sr. Rogers? Kholl abriu-se num largo sorriso.
— Sim, sim! Muito bem,
finalmente encontrei-a! Ela estava curiosa.
— Bem, como sabia onde
procurar?
— Oh, já alugamos o quarto
antes. Gostamos muito. Ficamos aqui todas as vezes em que passamos por este
lugar. Eu fiquei detido em casa por alguns dias, mas ela me ligou e disse que
conseguiu o mesmo quarto. Eu estava com esperança de que fosse o que eu pensava
que fosse.
— Bem... — Ela encontrou um
problema. — Umm, ela alugou-o apenas para uma pessoa. Acho que compreendeu mal.
Kholl tirou a carteira.
— É, isso é um erro. Deixe-me
completar o que falta. Ela está lá em cima agora? Acho que poderia
surpreendê-la.
— Bem, não, acho que saiu.
Mas posso lhe dar uma chave.
— Ótimo.
— Por que não preenche outro
formulário aqui para eu poder manter certos os meus registros?
— Claro.
Ele preencheu outro
formulário e deu seus nomes: Sr. e Sra. Jack Rogers. Ele tinha também um pacote
de notas de bom tamanho, e pagou-lhe o saldo devido.Ela olhou para o endereço
que ele deu.
— Então, como estão as coisas
em Las Vegas? O lugar é tão maluco quanto dizem?
— Não... — Ele riu. — Bem, em
certos lugares, sim, suponho. Mas não é um lugar ruim para a gente morar.
— Bem, aqui está a sua
chave... Oh, que coisa, acho que ela está com a única duplicata. Bem, venha
comigo, subirei lá e abrirei a porta para o senhor entrar.
— Obrigado. Ei, não lhe diga
que estou aqui. Ela não me está esperando senão amanhã!
Do outro lado da rua,
agachados em cima da loja de ferragens, e do outro lado do estacionamento do
hotel, escondidos no telhado da Impressora e Encadernadora Nelson, pelotões de
guerreiros imundos resfolegaram uma nuvem de enxofre quando viram Kholl
acompanhar a senhora até o Quarto 302.
Destruidor observava de seu
ponto vantajoso acima da floricultura.
— Eles aceitaram — sibilou ele. — Ela está aqui!