Caro Tom,
Quero ter certeza a respeito
de algo. No momento, não tenho.
Pode culpar o orgulho. Quando
entrei para o colegial, deliciei-me com o que me ensinaram: que eu era a
autoridade definitiva em minha vida, a arbitradora final de toda a verdade, a
única a decidir quais os meus valores, e que nenhuma tradição, idéias acerca de
Deus, ou sistemas de valor anteriores tinham qualquer autoridade sobre a minha
vontade, meu espírito, meu comportamento. "Autonomia máxima'* era como
chamavam a isso. Tais idéias podem ser muito convidativas.
Mas havia uma dificuldade em
toda essa liberdade: Eu tinha de aceitar a idéia de ser um acidente, a mera
soma de tempo mais chance, e não apenas eu, mas tudo o que existe. Uma vez que
eu aceitei essa idéia, era impossível acreditar que alguma coisa realmente
importasse, pois fosse o que fosse que eu pudesse fazer, ou criar, ou mudar, ou
melhorar, não seria menos um acidente do que eu. Então, onde estava o valor de
qualquer coisa? Que valor tinha a minha própria vida?
Então toda aquela "autonomia
máxima" não era a grande liberação e o gozo que julguei que fosse.
Sentia-me como criança solta a brincar num quintal infinitamente enorme, e
comecei a desejar que houvesse uma cerca em algum lugar. Pelo menos então eu
saberia onde estava. Poderia correr até ela e dizer a mim mesma: "Estou no
quintal", e sentir que era o certo. Ou poderia passar por cima da cerca, e
dizer a mim mesma: "Ô, ô, estou fora do quintal", e sentir que era
errado. Certa ou errada, e com infinita liberdade para correr e brincar, eu sei
que ainda ficaria perto da cerca.
Pelo menos então eu saberia
onde estava. Saberia alguma coisa com certeza.
Sally estava na cidade de
Fairwood, um cidadela ao longo de um rio importante, um porto de compras
razoavelmente movimentado para aquela parte do estado. Mesmo distando o Centro
Ômega apenas uma serpeante volta de carro de meia hora das montanhas que
ficavam acima da cidade, Sally havia permanecido no lugar, escondendo-se ali
pelo fim-de-semana, a fim de percorrer o lugar novamente, andar pelas ruas de
dia e passar as noites frescas no bosque perto do rio.
A cidade não tinha mudado
muito em dez anos. Havia um novo centro de compras na ponta norte da principal
via pública, mas toda cidade tem de ter um centro mais cedo ou mais tarde. Quanto
ao centro da cidade, todas as lojas permaneciam as mesmas, e até a Lanchonete
Fique um Pouco ainda estava lá, com o mesmo toca-discos automático e o feio
balcão coberto de fórmica azul. Os menus eram novos, mas apenas os preços eram
diferentes; cada página ainda trazia o mesmo logotipo e as mesmas refeições.
Ela se lembrava de coisas.
Ela fazia tudo voltar. O parque no centro da cidade era exatamente como ela se
lembrava. A piscininha rasa estava vazia e seca, esperando tempo mais quente,
mas havia crianças brincando nos balanços e nos escorregadores, e Sally
considerou como o parquinho era o mesmo, mas a criançada era diferente; não
demoraria muito para que as crianças que haviam estado ali dez anos atrás
estivessem mandando seus filhos ao mesmo parquinho para brincar nesses
mesmos balanços.
A cidade realmente não é má.
Não posso culpá-la pelos sentimentos que evoca em mim, os estranhos conflitos
que sinto. Neste lugar estão escondidas as minhas lembranças mais felizes e as
mais amargas, lado a lado. Ambas estão enterradas há tanto tempo, obliteradas
por drogas, por ilusões, por estados alterados do consciente, que forcei-me a
permanecer aqui afim de revivê-las. Preciso recordar.Ela estava sendo seguida
por amigos. Do topo do prédio do Primeiro Banco Nacional no outro lado da rua,
Tal, Natã e Armoth mantinham-na sob vigilância enquanto ela, sentada num banco
do parque, escrevia outra carta.
— Ela ainda não encontrou —
disse Natã. — Acho que não quer encontrar. Ela já passou por todas as ruas,
menos a rua certa.
— Ela quer encontrar, mas ao
mesmo tempo não quer, e não a culpo — disse Tal. — Mas teremos de ajudá-la. Com
as nossas táticas atuais, apenas podemos manter aquele quarto de hotel aberto
por hoje.
— Ela está-se movendo de novo
— comentou Armoth.
Sally colocava seu caderno de
volta na mochila e se preparava para ir adiante.
Natã observou os céus acima
da cidade.
— Os batedores de Destruidor
ainda estão por aí. Devem saber que estamos aqui.
Tal concordou.
— Eles simplesmente não estão
com medo de nós. Mas considero isso uma vantagem. Preferiria vê-los muito
confiantes. — Então ele viu Sally virando à direita na Avenida Schrader. — Opa!
Não, Sally, não por aí.
Eles desenrolaram as asas e
pularam do prédio, descendo a flutuar sobre as capotas dos carros que passavam,
inclinando-se silenciosamente ao redor da esquina, e pousando na calçada nos
dois lados dessa viajante singular, cansada. Ela parecia um tanto perplexa, sem
saber em que direção seguir.
Natã falou com ela: Não,
Sally, você já passou por aqui. Vire.
Ela parou. Oh, puxa, já
passei por esta rua antes e foi uma chatice.
Ela voltou-se e seguiu a
avenida na outra direção, cruzando diversas ruas, passando por outros pedestres,
sempre olhando por cima do ombro.
Os três guerreiros andavam
com ela, mantendo-se perto.
Sally olhava à volta enquanto
caminhava. Não, ela não tinha passado por ali ainda. Algumas das fachadas das
lojas pareciam familiares. Oh! Aquela floricultura! Lembro-me dela!
Então, finalmente seus olhos
se depararam com um quadro que ela não via, ou que não tinha querido ver, em
dez anos. Lá à frente, no seu lado da rua, estava uma grande placa retangular,
SCHRADER HOTEL, e abaixo dela, uma placa menor, COZINHAS, TAXAS DIÁRIAS,
SEMANAIS, MENSAIS. Ela estacou subitamente e ficou fitando boquiaberta aquela
placa, fascinada.
Isso não havia mudado. O
hotel ainda estava lá!
Tal chegou-se por trás dela. Calma,
Sally. Não fuja.
Ela queria fugir, mas não
conseguia. Não queria enfrentar essa recordação, mas ainda assim sabia que
precisava fazê-lo.Se quiser saber a verdade, disse Tal, precisa
enfrentá-la mesmo que seja dolorosa. Você já fugiu o bastante.
Ela ficou parada no meio da
calçada como se seus sapatos estivessem colados ao cimento. Começava a
lembrar-se de mais e mais coisas relacionadas a esse lugar. Já havia andado
por essa calçada antes, muitas, muitas vezes. Havia visitado aquela
floricultura. Havia uma loja de ferragens na esquina, mas agora se lembrava de
que era antes uma loja de miudezas.
Ela pôs-se a caminhar de
novo, devagar, absorvendo cada quadro. Essas jardineiras eram novas;
antigamente havia apenas a calçada nua aqui. O estacionamento do outro lado da
rua estava sob nova direção, mas ainda era um estacionamento.
O Hotel Schrader era o mesmo
grande hotel de sessenta unidades e três andares, em forma de L, com um
estacionamento na frente e na parte dos fundos. Não era um lugar careiro, nada
tinha de extravagante, não tinha piscina. O prédio podia ter sido pintado; ela
não tinha certeza. A entrada para a recepção parecia ser a mesma de que ela se
lembrava, e ainda havia uma grande cobertura projetando-se para fora da
entrada.
Ela ergueu os olhos para o
terceiro andar, e perscrutou todas as portas azuis que davam para a sacada
fechada por grade de ferro. Podia ver o Quarto 302 perto do fim.
Tinha sido o seu lar por
quase dez meses. Um período tão curto, e tanto tempo atrás!
Mesmo enquanto passava sob a
cobertura e chegava à porta da recepção, ela se sentia um tanto irracional. A
que propósito uma ação dessas serviria? Por que desenterrar o passado? Nada
disto era necessário.
Iria em frente. Tinha de ver
tudo aquilo novamente; não havia prestado atenção da primeira vez.
Abriu a porta.
Estava destinado a acontecer,
veio uma lembrança de alguma parte de
sua mente. Era sua própria voz. Agora ela se lembrava de ter dito aquilo. Meu
eu superior o ordenou.
— Alô — disse a simpática
senhora atrás do balcão. — Em que posso servi-la?
Sally ainda podia ouvir sua
própria voz ecoando do passado: Afinal de contas, a morte não existe; a
única coisa que existe é mudança. Ela sabia que lhe haviam feito uma
pergunta.
— Uh... sim. Gostaria de
saber se a senhora tem uma unidade com cozinha disponível.
A senhora verificou o registro.
— Hm. Está com sorte. Sim,
aquele sujeito saiu bem neste fim-de-semana. Fica no terceiro andar... Está
bem?
— Está. Umm... por acaso
seria o 302?
As sobrancelhas da senhora se
ergueram.— Ora, sim, isso mesmo. Você já ficou nesse quarto antes?
Sally examinava
cuidadosamente aquela senhora. Não, nunca se haviam visto antes, tinha certeza.
Ela deveria ser uma nova proprietária, ou funcionária, ou algo assim.
— De vez em quando.
A senhora fez a ficha
deslizar através do balcão até a cliente, e Sally a preencheu. Ela deu o nome
de "Maria Bissell", colocou um endereço totalmente fictício em
Hawthorne, Califórnia, e então alegou estar dirigindo um Ford Mustang 79 com
placa da Califórnia, inventando também um número para a placa. Tudo o que podia
esperar era que essa senhora apreciasse receber em dinheiro e não questionasse
suas credenciais.
A senhora realmente apreciou
ser paga dessa forma, recebendo uma semana de aluguel e um depósito para danos
em dinheiro. Ela entregou a chave a Sally.
A escada tinha novo tapete
verde agora. Sally podia lembrar-se do gasto tapete marrom que a recobria antes.
Chegou ao terceiro andar e
caminhou ao longo da sacada de onde se podia ver o estacionamento, e, além
dele, a Tipografia e Encadernadora Nelson, ainda lá, as impressoras de offset
ainda roncando lá dentro.
Ela colocou a mão sobre a
grade e percebeu que seu pulso estava livre. A última vez que vira essa grade
ela estava algemada, e não era livre.
Da memória enterrada veio a
imagem de carros-patrulha encostados no estacionamento abaixo, as luzes
piscando. Então, lembrou-se de outros locatários observando das janelas,
espiando através das cortinas, curiosos e anônimos. Ela podia sentir a dor de
mãos grandes segurando-lhe os braços, impelindo-a ao longo dessa sacada.
Havia um carro de socorro lá
embaixo também, e uns paramédicos correndo por ali. Mal podia lembrar-se deles.
Chegou à porta. Com a
respiração presa e uma volta da chave, ela a abriu. A corrente da trava estava
consertada agora, e aparentemente a maçaneta havia sido trocada.
Algumas coisas estavam
diferentes. O sofá era novo, mas ainda ficava no mesmo lugar. O quadro na
parede logo acima dele costumava ser de um barco a vela, e agora era de um vaso
de flores surrealista. Ela gostava mais do barco a vela.
A cozinha parecia a mesma, e
os armários não haviam mudado nada. A pia ainda tinha aquela rachadura marrom.
As panelas estavam no mesmo guarda-louça bem do lado esquerdo da pia.
Através de uma arcada no
fundo do cômodo estava o quarto. Ela sabia onde a cama estaria, e sabia que o
quarto tinha um grande guarda-roupa. Não se deu ao trabalho de ir lá olhar.Ao
lado do quarto ficava o banheiro. Ela não queria ir lá de jeito nenhum.
Ben estava quase fora de si
quando Marshall veio encostando na entrada de carros. Foi correndo ao seu
encontro.
— Cara, onde foi que você
esteve? Marshall se sentia muito bem.
— Consegui os números de umas
placas dos carros que pertencem aos membros locais do Círculo Vital. Isso dará
ao seu amigo em Westhaven algo mais para fazer, procurar algumas fichas do
Departamento de Veículos.
— Chuck já fez muita coisa
— exclamou Ben, movendo-se irrequieto na calçada. — Venha para dentro!
Marshall apressou-se a entrar
e seguiu Ben até a sala de jantar. Bev estava lá, os olhos aparvalhados,
estudando uns documentos espalhados pela mesa.
— Oh, Senhor... —
disse ela.
Ben não perdeu tempo, mas
apontou para uma foto policial granulada, em preto e branco, de frente e de
perfil esquerdo.
— Essa é a mulher. Essa e
Sally Roe!
Marshall apanhou a foto e
estudou-a cuidadosamente.
— Puxa, ela está desgastada!
E de fato estava. A mulher
cansada, emaciada e aturdida nas fotografias dava a perfeita impressão de uma vagabunda
meio bêbada ou meio drogada. Fotos policiais nunca eram muito lisonjeiras, mas
mesmo assim...
Ben agarrou o ombro de
Marshall na excitação e pôs-se a fincar o dedo nas fotos.
— Marshall, esta não e
a mulher que encontramos morta no sítio dos Potters! Mas é Sally Roe, isso sim!
Já estive nos Potters e na fabrica Bergen para falar com Abby Grayson. Eles
confirmaram que esta é Roe.
— Não devem ter ficado muito
felizes...
— Ficaram chocados. Sim,
muito chocados. — Ben prosseguiu explicando. — Chuck pediu uma verificação de
fichas do Centro Nacional de Informação Criminal e da Seção Estadual de
Informação. Sally Roe foi presa apenas uma vez, há dez anos. Ele conseguiu o
relatório dessa prisão, depois acompanhou-o até a polícia local na cidade onde
a prisão ocorreu.
— Fairwood, Massachusetts...
— Certo. Eles forneceram as
fotos. Marshall hesitou. Alguma coisa o incomodava.
— Fairwood, Massachusetts...
Fairwood... É melhor eu averiguar isso com Kate. — Ele deu mais uma olhada nas
fotos. — E é melhor fazermos umas cópias desses retratos.Bev falou:
— Vou fazer isso agora mesmo;
vou descer para usar a copiadora da igreja.
— Ótimo. Kate vai precisar de
uma, eu sei. — Ele examinou os outros documentos. — Muito bem, agora o que foi
que ela fez?
Ben apontou o registro
criminal. Marshall estacou. Virou o papel na sua direção, a fim de poder lê-lo
melhor.
— Não é um negócio? —
perguntou Ben.
— Esta coisa está ficando
cada vez mais suculenta! Algum detalhe? Ben mostrou um breve comunicado
policial.
— É bizarro; nada como eu
esperava.
Marshall leu o comunicado
enquanto seu rosto se enchia de horror e descrença. Tudo o que ele pôde dizer
foi:
— Por quê? Isto é uma
loucura.
— Precisamos descobrir mais, Marshall.
Marshall fitou a fotografia novamente.
— Tenho um amigo em Nova
York, chamado Al Lemley. O sujeito é um amigo de verdade, e pode produzir.
Talvez ele nos consiga mais alguma coisa sobre isto.
Ben teve uma idéia.
— Você pode querer dar uma
passada pelo Serviço de Secretaria da Judy. Fica naquela pequena fachada na intersecção
que tem quatro sinais de pare. Ela tem uma máquina fax e você poderia receber
as coisas imediatamente.
— É. Garantido. — Marshall
olhou a ficha criminal novamente e abanou a cabeça. — Homicídio culposo!
— Vocês nada mais são do que
assassinos sanguinários, no que me diz respeito — disse Santinelli,
aquecendo-se na frente do fogo nas acomodações particulares de Steele. Ele
havia colocado sua agenda cheia e agitada em compasso de espera e apanhado o
vôo da tarde saído de Chicago para chegar ali. Agora sentia-se cansado e
irritado, e nada contente com parte da companhia em que tinha de estar.
Sua afirmativa foi dirigida
ao moreno e misterioso Kholl, que se sentava confortavelmente no sofá, girando
um preparado de gin e tônica no copo, fazendo os cubos de gelo tinir. Kholl não
ficou nem um pouquinho perturbado pela declaração grosseira de Santinelli.
— Somos todos assim, Sr.
Santinelli — se não em ato, pelo menos no coração. Afinal, o senhor me
contratou.
Goring, relaxando em uma
cadeira estofada diante do fogo, gracejou:
— Uma decisão da qual todos
nos arrependemos, Sr. Kholl.Santinelli tirou uma baforada indignada de seu
charuto. Ele não gostou do tom do comentário de Goring.
— Gostaria de relembrar-lhe,
como estou certo que o Sr. Kholl estará feliz em gabar-se de que já tem um
interesse controlador em nossa organização, graças às aventuras românticas do
homem que ele acabou eliminando, nosso noviço juvenil, o Sr. James Bardine.
— James Bardine... — Kholl
parecia ter tido um lapso de memória. Então ele se lembrou. — Oh, sim! Ele
morreu num trágico acidente automobilístico! Creio que dormiu na direção...
— É o que todos acreditam —
disse Santinelli. - Meus parabéns.
— Obrigado. Tentamos ser
cuidadosos.
Santinelli sentou-se numa
cadeira oposta a Kholl, não fazendo o menor esforço para esconder o seu desdém.
— Todos vocês satanistas são
cuidadosos, com certeza. Vocês adoram enquanto fogem, não é verdade, sempre
olhando por cima do ombro?
Kholl inclinou-se para a
frente, a bebida nas mãos, a cabeça caída entre os ombros, os olhos
penetrantes.
— Não. Na realidade, ainda
não fomos perseguidos.
Steele, ouvindo tudo aquilo
de sua própria cadeira diretamente na frente do fogo, interveio.
— Cavalheiros, e Sr. Kholl,
sabemos como nos sentimos uns a respeito dos outros, por isso essa questão está
resolvida. Não confiamos uns nos outros, e é assim que desejamos que seja.
Santinelli acrescentou:
— O que também está resolvido
é que uma dificuldade foi removida, a saber, Alicia Von Bauer e James Bardine e
seu ninhozinho amoroso. Relacionamentos como esse podem ser um extremo
embaraço, e deste ponto em diante espero que tenhamos deixado um exemplo claro
o suficiente aos nossos subordinados de que quaisquer outros relacionamentos
com essa gente do Vidoeiro Quebrado não será tolerado.
Kholl tirou um golinho da
bebida e reclinou-se de encontro ao sofá macio.
— Especialmente aqueles que
sabem tanto quanto o Sr. Bardine sabia. Santinelli disse furioso:
— Tanto, estou certo, quanto
vocês sabem agora, graças à devassa Srta. Von Bauer!
Kholl riu.
— É essa a política do poder.
Goring respondeu:
— E o motivo pelo qual chega
a ter permissão para estar em nossa companhia!
Steele ansiava terminar seu
detestável negócio.
— Muito bem, quer gostemos,
quer não, o Vidoeiro Quebrado agora faz parte do Plano. Vamos fazer o balanço
do livro-caixa a fim de que o Sr. Kholl possa ir embora satisfeito e cuidar dos
seus negócios. Santinelli preencheu um cheque e entregou-o a Kholl.
— Pronto. Enquanto empregada
por nós, e admitimos que devido a negligencia nossa, a Srta. Von Bauer foi
morta. Demos ao senhor a liberdade de matar o Sr. Bardine, e aqui está a sua
indenização como o senhor exigiu.
Kholl examinou a quantia do
cheque e moveu a cabeça em aprovação. Ele o dobrou e fê-lo deslizar para dentro
do bolso.
— Isso esta resolvido.
— Muito bem — disse Steele. —
Agora consiga aquele anel de volta. Kholl novamente tirou um golinho da bebida.
— Seu credito conosco é bom,
naturalmente, mas... Dessa vez foi o Sr. Goring quem preencheu um cheque.
— Conforme discutimos, aqui
está a sua primeira metade para começar o serviço. A segunda metade será paga
quando o anel tiver sido recuperado e Sally Roe eliminada.
Kholl tomou esse cheque e embolsou-o.
— Como sabem, essa Roe tem
sido muito esquiva.
— E estamos lhe pagando para
fazê-la desaparecer completamente. Kholl fez girar os cubos de gelo.
— E, naturalmente, o sangue
dela estaria em nossas mãos. Que conveniente para vocês!
Steele objetou:
— Suas mãos já estão sujas de
sangue.
— E as suas não? — riu deles
Kholl. — Ah, não se preocupem. Compreendo. Nós matamos regularmente, como
forma de culto; é um sacramento para nós. Se vocês matam... bem, é apenas
através de gente contratada como nós. Isso mantém limpas as suas mãos. Vocês
não enterram a faca, por isso não sentem a pontada da consciência. — Ele riu de
novo. — Talvez ainda sejam cristãos demais!
Santinelli detestava o
sarcasmo desse homem.
— Se posso relembrar-lhe, Sr.
Kholl, o senhor serve igualmente aos seus próprios interesses, talvez mais do
que a nós. Se Sally Roe for algum dia descoberta viva, se ela chegar a contar a
sua história, o senhor e seus seguidores poderão facilmente ser implicados em
assassinato. E ao contrário dos sacrifícios humanos que somem sem deixar
rastro, essa vítima está viva, andando e falando. Pelo menos a cobertura da
nossa história de suicídio deu mais tempo a todos nós. Eu diria que o senhor
nos deve algo por isso.
Kholl se mostrou apenas
levemente impressionado.
— Sim, os dois temos algo a
perder se ela continuar viva. Mas quanto temos a perder depende de quanto já
investimos, não é verdade? O que é o Vidoeiro Quebrado comparado com o seu
Plano?
— Não muito — disse Steele,
supostamente admitindo algo, mas na realidade usando a resposta como um
insulto.
Kholl arriscou um sorriso
escarninho.
— Vocês não são melhores.
Algum dia perceberão isso. O que somos agora, vocês estão depressa se tornando.
Se nos detestam tanto, talvez seja por se enxergarem em nós!
Santinelli vociferou:
— Eu acompanharei o
senhor até a porta!
Alice Buckmeier era uma
anfitriã maravilhosa, naturalmente, e adorava receber visitas. Por isso, o que
Kate havia planejado como uma breve entrevista acabou sendo uma deliciosa
visita em que foram servidos chá e guloseimas na sala de jantar da viúva,
cercada por badulaques, toalhinhas de crochê, cristal e fotografias de filhos,
filhas e netos.
— A senhora deve ser a avó de
todo o mundo — comentou Kate. Alice riu.
— Um título que uso com
orgulho. Não tenho apenas os meus próprios netos, sabe, mas sou a Vovó Alice de
toda a criançada da igreja também!
— Isso é maravilhoso.
— Gosto muito de crianças, de
verdade. Às vezes é difícil entender como as pessoas tratam seus filhos. Sei
que isso quebra o coração do Senhor. — Ela despejou mais chá quente na xícara
de Kate e continuou: — Estive pensando sobre aquela pequena Amber desde que vi
o que vi no Correio. O que ela deve estar passando em casa?
Kate deixou o caderno de
notas de prontidão.
— Bev Cole diz que a senhora
tem uma história e tanto.
— Oh, sim. Foi muito
inquietante. Eu mandava um pacote para o meu filho — bem, na verdade, para o
meu neto, Jeff. Tricotei uma malha para ele, e tentava mandar em tempo para o
seu aniversário. Bem, eu estava simplesmente em pé ali à frente do balcão, e
aquela outra mocinha, Debbie, pesava o meu pacote e o carimbava, e tudo o
mais...
Judy Balcom enfiou a cabeça
no Restaurante do Don e chamou:
-- Sr. Hogan! Al Lemley no
telefone!
Marshall levantou-se do
balcão, pagou seu café e dirigiu-se apressado ao prédio vizinho.
Judy Balcom dirigia um
pequeno e bem montado serviço de secretaria, datilografando cartas, fazendo e
respondendo chamados, tirando cópias, processando textos, e transmitindo
mensagens, para mencionar apenas algumas tarefas, para muitos dos negócios
locais espalhados pela cidade. Por uma taxa razoável, ela permitiu que Marshall
chamasse Al Lemley em Nova York, e agora Lemley, bem de acordo com seu estilo,
não havia perdido tempo em encontrar aquilo de que Marshall precisava.
— Alô de Nova York — veio
aquela mesma voz da Costa Leste.
— Al, você vai-me deixar
contente?
— Não, amigão. Vou deixar
você doente. Está com o fax pronto? Judy estava pronta.
Marshall deu a Al o
vá-em-frente.
Alice continuou sua história.
— Ora, nem percebi quem
estava lá no saguão onde se encontram todas as caixas postais. Nunca presto
atenção a isso a menos que seja algum conhecido. Mas de repente ouvi aquela
comoção lá como se alguma criança estivesse fazendo desordem — sabe, comportando-se
mal, e lembro-me de ter pensado: Ora, onde estão os pais dessa criança? Eles
não deveriam deixá-la agir dessa forma!
— Bem, Debbie havia terminado
de cuidar do meu pacote, por isso saí para o saguão, e então pude ver a coisa
toda. Ali estava aquela mulher, simplesmente parada lá no meio do saguão...
Tinha umas cartas na mão, por isso achei que ela tinha ido buscar sua
correspondência... E então, ali estava aquela menininha, aquela Amber,
simplesmente berrando e gritando e... empinando como se fosse um cavalinho, e
aquela pobre mulher estava apavorada!
A máquina fax pôs-se a zumbir
e deitar para fora alguns documentos. Marshall apanhava cada página à medida
que ela caía na bandeja. Havia relatórios policiais semelhantes aos que ele já
tinha lido, e depois vieram alguns artigos noticiosos de jornais locais. Um artigo
trazia outra foto de Sally Roe, dessa vez algemada, sob a guarda de dois
policiais uniformizados.
— E o que aquela criança
disse! — exclamou Alice.
— O que ela disse? —
perguntou Kate.
— Ela empinou, em seguida
bateu na mulher, e berrou, e simplesmente continuou batendo na mulher, e dizia:
"Eu sei quem você é! Você matou o seu nenê! Você matou o seu nenê!" A
pobre mulher ficou apavorada; parecia que estava sendo atacada por um cão
raivoso ou algo assim.
— Bem, por fim a mulher
conseguiu se livrar e saiu correndo pela porta como um coelho assustado. Amber
correu atrás dela até a porta, ainda gritando-lhe: "Você matou o seu nenê!
Conheço você! Você matou o seu nenê!" Então a Sra. Brandon saiu da sala
dos fundos e agarrou a filha e tentou puxá-la de volta para dentro, mas ela não
foi com a mãe, não foi de jeito nenhum, e então elas tiveram um pega-pega daqueles
bem ali no saguão, bem na minha frente, e a Sra. Brandon gritava: "Pare
com isso, Amber! Pare agora mesmo! Não quero saber mais disso!"
Kate perguntou:
— A Sra. Brandon chegou a
usar o nome Ametista? Uma lâmpada se acendeu na cabeça de Alice.
— Ora, sim! Lembro-me bem
disso! Ela chamava Amber de Amber um minuto, e Ametista no próximo. Dizia:
"Ametista, Ametista, pare com isso agora! Pare de berrar e
acalme-se!" Não entendi o que ela queria dizer; achei que era apenas um
apelido ou coisa assim.
Outro artigo noticioso caiu
da máquina de fax. Marshall correu os olhos rapidamente por ele. Sally Roe
havia sido presa após a policia ter derrubado a porta do seu quarto de hotel em
Fairwood. Dentro, encontraram Roe no banheiro em estado de estupor aparentemente
causado por drogas, e a filhinha de menos de dois meses de idade afogada na banheira.
Roe foi subseqüentemente acusada de homicídio culposo pela morte por
afoga-mento da filha.
Kate mal podia esperar para
fazer a próxima pergunta. O incidente no Correio podia ter sido uma
coincidência, mas numa cidadezinha como aquela, era pouco provável. Ela enfiou
a mão na pasta e tirou as fotos policiais de Sally Roe, colocando-as diante de
Alice.
— Esta é a mulher que a
senhora viu aquele dia?
Os olhos de Alice se
arregalaram, e então ela fez um gesto de cabeça afirmativo, lento e pasmado.
— Ela está com uma cara
horrível nesta foto... mas é ela, Sally Roe, hein?
— Isso mesmo.
— Ela é uma criminosa? — Sim.
— O que ela fez?
— Bem... ela de fato matou
alguém.
Marshall dirigiu-se
lentamente ao seu carro, sentou-se atrás do volante, e então apenas deixou-se
ficar ali por muito tempo, lendo os artigos noticiosos e os relatórios
policiais que Al Lemley havia mandado. Era um negócio fascinante, cheio de
pistas prováveis, mas também muito, muito trágico.— Vagabunda — a promotoria a
havia chamado. — Feiticeira diabólica, egoísta, voltada para si mesma,
desprezível, assassina de crianças.
O relatório policial dizia
que Sally Roe estava ensopada quando foi encontrada no chão do banheiro. A água
caía pela borda da banheira. A criança estava na banheira, morta. Sally disse à
polícia na hora que ela havia matado o nenê, mas quando questionada mais tarde,
alegou não ter a menor lembrança do que havia acontecido.
Durante o julgamento, e isso
Marshall achou interessante, Sally parecia remota e sem remorso. "Estava
destinado a acontecer", disse ela. "Meu ser superior ordenou que isso
acontecesse. O ser superior de Raquel desejava morrer nessa ocasião, e Jonas
estava lá para fazer com que acontecesse. Todos nós determinamos nosso próprio
destino, nossa porção na vida, quando devemos morrer, e em que situação
nasceremos da próxima vez. Não existe morte; apenas mudança."
Jonas. Um espírito guia,
segundo Sally. Ela admitiu ter afogado a filha a princípio, mas mais tarde
pareceu ter mudado seu depoimento, culpando o seu espírito guia.
— Ele assumiu o controle —
disse ela — e conduziu o afogamento.
O júri não engoliu essa. Ela
foi declarada culpada, e mais tarde sentenciada a trinta anos de prisão.
Quanto ao pai da criança, ele
nunca se apresentou e nunca foi encontrado. Sally nunca o identificou. Ela foi
simplesmente retratada como uma vagabunda e sua filha como ilegítima.
Tudo acontecera dez anos atrás.