terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 20

Barquit ficou firme, as narinas expelindo ruidosamente enxofre cm linha reta sobre seu peito avantajado e os olhos amarelos inabaláveis, resolutos. Ele era o poderoso Príncipe de Ômega, e tinha causado mais danos e conquistado mais vitórias para seu senhor do que esse novato pomposo, pretensioso que agora se postava diante dele, vomitando ameaças e abusos.

Destruidor não estava disposto a ser ignorado. Desembainhou a espada e a brandiu no ar, pronto para um teste entre os dois.

— Seu indolente cego, desastrado! Reverencie-me agora, ou desafie! Aceitarei qualquer um dos dois rumos!

Eles pairavam bem alto sobre o Prédio da Administração no campus do Centro Ômega, cercado pelos respectivos guardas, acompanhantes e assistentes.

Os acompanhantes dos dois lados de Barquit puseram-se a implorar-lhe:

— Não, não o ataque, Ba-al. Ele é enviado pelo Homem Forte!

— Ele me chama de indolente! — sibilou Barquit através de dentes apertados.

E desastrado! — disse Destruidor. — Você estava longe do seu posto, e permitiu que aquela mulher passeasse por aí à vontade e soubesse o que quisesse!

Barquit desembainhou a espada tão depressa que ela assobiou. Ele a estendeu para reforçar a sua resposta.

— E onde estava o aviso que nunca recebi, de que essa miserável estaria entrando em meu domínio? Se você está tão disposto a capturá-la, por que nunca me disseram? — Ele continuou com maior aspereza: — E como é que ela ainda está viva, e livre para nos amolar? Não devia ter sido destruída em Baskon?

As duas espadas quase se tocaram.

Naquele exato momento, uma voz humana irrompeu.

— Senhores, se quiserem fazer o favor de sentar-se...

Os espíritos no ar se enrijeceram. Os negócios chamavam. Os humanos abaixo deles estavam dando início à sua reunião. Barquit embainhou a espada.

— As tropas celestiais foram expulsas, e ainda somos donos do nosso território. Colocarei isso atrás de nós.

O Destruidor também embainhou sua espada.

— Deixarei os erros passados de lado... por enquanto.

Eles se deixaram cair pelo telhado do prédio a fim de juntar-se à reunião que estava tendo lugar numa pequena sala de conferências. O Sr. Steele estava à cabeceira da mesa; à sua direita sentava-se o homem moreno todo vestido de preto; à sua esquerda sentavam-se dois outros homens. À outra ponta da mesa, parecendo nervosa, estava sentada a Sra. Denning. O Sr. Steele dirigiu o processo.

— Sybil, gostaríamos de agradecer-lhe por ter vindo. Deixe-me apresen­tar-lhe todos os presentes. Obviamente, você conhece o Sr. Tisen. Senho­res, este é Gary Tisen, o presidente do corpo docente aqui em Ômega. — Tisen era um homem de barba, com seus trinta e tantos anos, um tipo agradável de pessoa. — Este cavalheiro aqui à minha direita é o Sr. Kholl, um jornalista e fotógrafo autônomo. À minha direita imediata está o Sr. Goring, do Instituto Summit. — Goring era um homem idoso com olhos penetrantes, cabelos brancos penteados meticulosamente e uma barba bem aparada. Ele usada diversos colares de contas à volta do pescoço. — Senhores, esta, naturalmente, é Sybil Denning, membro de nosso corpo docente já há diversos anos.

Todos cumprimentaram todos os outros com um movimento da cabe­ça. A Sra. Denning sorriu um bocadinho, achando que aquela reunião não podia ser tão séria quanto ela havia pensado.

O Sr. Steele manteve um sorriso, mas havia um quê de cortante cm seus olhos. — Agora, Sybil, temos algumas perguntas a respeito dessa mulher que veio ao Centro na sexta-feira passada. Como foi que ela disse que se chamava?

Sybil foi pega um tanto de surpresa pela pergunta.

— Ora, Sr. Steele, aquela era Bethany Farrel, da área de Los Angeles, lembra-se? O senhor disse que a conhecia.

O Sr. Steele deu uma risada encabulada, e então mentiu.

— Pensei que era outra pessoa. O que estamos tentando descobrir agora é quem ela realmente era. Ela lhe deu alguma outra identificação, qualquer outra prova de quem pudesse ser?

— Bem... não.

O Sr. Steele fez uma pausa ao ouvir aquela resposta.

— Então... Sybil, está percebendo o que aconteceu? Uma pessoa totalmente desconhecida entrou no nosso campus, deu-lhe nada mais do que o nome e a declaração de que era de Los Angeles, e isso foi tudo o que teve de fazer para conseguir carta branca para uma excursão pelo Centro. — A Sra. Denning não sabia o que dizer. O Sr. Steele apenas sorriu. — Bem, Sybil, foi isso o que sempre gostei em você: você gosta de pessoas, confia nelas, vai buscá-las, e é essa a finalidade do Ômega, não é?

Ela animou-se um tantinho.

— Ora, e claro.

— Ela disse alguma outra coisa a seu próprio respeito?— A Sra. Denning tentou lembrar-se. — Por exemplo, ela é casada?

— Não, é divorciada. Ela disse que estava andando pelo país de carona, tentando encontrar-se. Estava procurando um lugar para ficar, pelo que me lembro.

— E por isso você a levou por uma excursão no campus.

— Sim. Levei-a para uma caminhada e falei a respeito do Centro e do que fazemos aqui, e quais são os nossos objetivos.

O Sr. Steele e o Sr. Goring individualmente puxaram o fôlego e o seguraram por um momento. Então o Sr. Steele falou.

— Umm... Sybil, era a esse tipo de coisa que eu me estava referindo. Simplificando, você não deveria ter feito isso. Não sabemos quem era aquela mulher, ou quais eram as suas intenções, e estou certo de que percebe que existem muitos interesses lá fora que nos são hostis. Nossos objetivos podem correr sério risco se não tivermos cuidado em escolher a quem damos informação. Que objetivos você discutiu com ela?

Ela vasculhou a memória, e era doloroso ter de admitir qualquer coisa que descobrisse.

— Nossos objetivos de mudança através da educação...

Isso provocou um suspiro audível, e o Sr. Tisen chegou mesmo a tamborilar a mesa com os dedos.

— O que mais, Sybil?

Nossos programas, nossos currículos, nosso trabalho de entrar no sistema educacional público... — As emoções dela começaram a se manifestar. — Sinto muito. Eu não sabia...

— O que mais?

— Humm... Sei que falamos a respeito do programa dos Potenciais Jovens... e de nossa busca de uma comunidade global... e de nosso enfoque clínico da educação...

O Sr. Goring fez uma breve pergunta.

— Falaram a respeito do currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu?

A Sra. Denning ficou um tanto surpresa por Goring saber acerca disso.

Ora... sim, falamos. Mas acho que foi por já estarmos conversando a respeito de fazer com que o nosso currículo fosse adotado pelas escolas públicas, e aparentemente ela o havia visto em algum lugar, e queria saber se de fato éramos nós que o havíamos publicado.

— Mm. Agora, fiquei sabendo que ela lhe mostrou um anel?

— Sim. Ela o tinha numa corrente à volta do pescoço. Queria saber se eu já havia visto um anel como aquele antes.

— E tinha? — Não.

— Como era o anel?

— Oh... — Ela tentou desenhar pequenas imagens com as mãos enquanto o descrevia. — Era meio grande, como um anel de turma... Era de ouro... Tinha em cima um rosto estranho, que parecia mitológico, como o de um gárgula, mas triangular.

Os homens estavam mantendo uma expressão inescrutável, com óbvio esforço.

O Sr. Steele perguntou:

— Tem certeza de nunca tê-la visto antes? Aquela pergunta sugeriu a possibilidade.

— Hum, bem, não sei. Será que eu deveria tê-la conhecido? Goring interveio.

— Não, claro que não.

Mas a Sra. Denning pensou a respeito daquele rosto novamente, e aquele primeiro encontro, e a mulher soletrando o nome:

— F-a-r-r...

Goring achou que já haviam perguntado o suficiente.

— Não se preocupe com isso, Sra. Denning. Obviamente não houve prejuízo. Sabemos que tomará cuidado no futuro.

Uma lembrança estava emergindo. Soletrar um nome. Quem era aquela mocinha que fez isso? Ela tinha sido realmente insolente ao fazê-lo. O Sr. Steele também tentou dar por encerrada a conversa.

— Você fez um trabalho maravilhoso aqui, Sybil, e estamos contentes por tê-la no conselho. Obrigado pelo seu tempo.

Mas a Sra. Denning continuava a lembrar-se. Ela viu o rosto; sardento, duro como pedra, longos cabelos ruivos.

— R-o-e... — havia dito a garota.

Os olhos da Sra. Denning se escancararam, bem como a sua boca.

— Roe! Era Sally Roe!

O Sr. Goring não pareceu ouvi-la.

— Muito obrigado, Sra. Denning. Senhores, estou pronto para um café. A Sra. Denning estava pasmada, a mente inundada pela lembrança.

— Ela foi aluna minha anos atrás! Ela esteve aqui no Centro no programa de Potenciais Jovens! Agora me lembro dela!

O Sr. Steele interrompeu.

— Sybil...

— Mas o que ela estava fazendo aqui? Por que não me disse quem era?

— Sybil!

Ela deu-lhe sua atenção silenciosa. O Sr. Steele parecia sinistro.

— Guarde sua excitação. Posso assegurar-lhe, não era Sally Roe. Ora, para ela essa foi difícil de engolir.

— Não era?

— Sally Roe está morta. Ela suicidou-se há poucas semanas. Isso a silenciou. Ela estava chocada, confusa, sem fala.

O Sr. Steele a dispensou.

— Obrigado. Acho que, se se apressar, pode chegar à sua primeira aula bem na hora.

Ela ergueu-se e saiu da sala sem dizer uma palavra.

Destruidor estava cuspindo enxofre, tentando alcançar e agarrar Steele enquanto Barquit tentava detê-lo. Idiota! Já não atrapalhou o suficiente? Cortarei fora a sua língua!

Goring olhou furioso para Steele.

— Não foi exatamente um tipo prudente de perguntas. O Sr. Steele tentou não parecer embaraçado.

— Sr. Goring, podemos repassar as nossas escorregadelas ou podemos falar sobre o que vamos fazer.

Goring continuou, mas infeliz.

— A Sra. Denning agora e um risco. Eu e você sabemos que ela suspeita que Sally Roe ainda está viva — e ambos sabemos por quê.

— Não — disse Tisen — eu não me preocuparia com isso. Ela tem uma lealdade maravilhosa e profunda para com a liderança aqui.

O Sr. Steele mudou de assunto.

— Ela não constitui problema. O que gostaria de saber é onde Sally Roe aparecerá a seguir, e se há alguém que devêssemos avisar com antecedên­cia antes que ela possa chegar até a pessoa e extrair informação como fez com a Sra. Denning.

Destruidor deu um passo para trás e olhou furioso o Sr. Steele. Desas­trado! Tolo! Idiota!

O Sr. Goring rolou os olhos.

— Você está de fato propondo que avisemos todo o mundo para ficar à procura de uma mulher supostamente morta? Até que nível a informa­ção deveria descer? Não seja um tolo, Steele! Uma vez que essa informação deixe esta sala, estará fora do nosso controle. Além disso, a quem conta­ríamos? Como decidimos em que direção a Roe irá? Não sabemos o que ela está pensando, e obviamente você não tinha a menor idéia de que ela apareceria aqui!

Barquit postou-se entre o Sr. Steele e Destruidor antes que o zangado predador fizesse alguma coisa impensada.

— Lembro-lhe, grande guerreiro, de que não recebemos nenhum aviso! Você poderia ter previsto que ela estaria aqui, e nós teríamos sido poupa­dos dessa dificuldade e embaraço!

Destruidor acalmou-se um pouco.

— Está bem. Concordo. Por uns tempos, o Exército Celestial escondeu-a de nós, em resposta às orações dos santos de Deus. Os santos de Baskon têm grande interesse nesta batalha. Mas suas preces se enfraquecem agora. Eles se preocupam com outras coisas. — Esse simples pensamento alegrou Destruidor, que se tornou mais agradável. — Descobriremos a Sally, Barquit, mas na calada e por astúcia em vez de força. — Destruidor podia ver alguém aproximar-se da sala. — Ah! Vejam isto! Acabamos de obter outra vantagem que o Exército Celestial nem pensou em conter.

— Uma vantagem?

Destruidor apenas deu um sorriso amarelo e olhou na direção da porta.

Ouviu-se uma batida.

— Quem poderia ser? — quis saber o Sr. Steele.

— As ordens eram para que não fôssemos perturbados.

— Quem é? — exigiu o Sr. Steele.

A porta abriu-se um bocadinho, e um jovem assistente estudante enfiou a cabeça dentro da sala.

— Desculpe, Sr. Steele. Tenho um item especial para o Sr. Goring.

— Pode entregar — disse Goring.

O rapaz entrou na sala com um envelope de papel manilha.

Dois espíritos também entraram, muito contentes, tentando não cacarejar muito alto. Destruidor ordenou-lhes que se postassem atrás dele. Eles obedeceram no mesmo instante.

— Muito pontuais — disse ele aos espíritos.

Eles deram uma risadinha abafada e cacarejaram sua alegria por tal elogio.

Enquanto Destruidor e Barquit observavam o rapaz entregar o envelope ao Sr. Goring, Destruidor explicou:

— Estes dois mensageiros descobriram por acaso algo interessante lá no Correio de Baskon. Resolvi recompensá-los e garantir seus futuros serviços.

O rapaz saiu. O Sr. Goring abriu o envelope e tirou para fora o conteúdo com uma expressão perplexa. Um envelope pequeno de carta e uma carta explicativa de três páginas caíram sobre a mesa.

Quase ao mesmo tempo, os quatro homens viram o nome no canto superior esquerdo do envelope: Sally Beth Roe.

Goring leu a carta explicativa.

— Veio de Summit. Esta carta de Sally Roe chegou a semana passada ao Correio de Baskon. Lucy Brandon descobriu-a e a mostrou ao agente de polícia Mulligan. Ele consultou Círculo Vital e Ames e Jefferson, os advo­gados do caso. Eles a enviaram ao Summit. O pessoal do Summit abriu-a e achou que eu devia vê-la imediatamente.

Goring apanhou a mui-viajada carta de Sally Roe, dirigida a Tom Harris. Os quatro homens olharam-na com choque, pasmo, e com um júbilo cada vez maior.

Goring falou primeiro.

— Então... Sally Roe está escrevendo cartas!

O Sr. Steele estava quase sorrindo abertamente.

— Para... para Tom Harris?

Goring estava passando os olhos rapidamente pela carta vinda do Alto Comando.

— Brandon está razoavelmente certa de que esta é a primeira carta. — Ele tirou a carta de Sally do envelope já aberto; era um documento escrito a mão em papel de fichário espiral triplo. Ele a examinou depressa. — Sim. Esta parece ser a primeira carta. Ela se está apresentando... Oh, não! Está descrevendo o seu encontro com a Von Bauer!

Ao ouvirem isso, todos se reuniram para espiar por cima do ombro de Goring.

O Sr. Steele leu o relato, interessando-se muito pela forma como Von Bauer havia morrido subitamente. Então ele lembrou-se do que havia acontecido no Restaurante Cabana de Toras. Ele olhou para Kholl.

— Ela está metida em algum tipo de poder psíquico tremendo. Alguma coisa a está protegendo!

Goring não estava inteiramente impressionado.

— E contudo ela ainda parece perdida, confusa. Veja-a aqui, falando sem parar sobre moralidade, significado, desespero. A mulher e um caos!

O Sr. Steele leu adiante.

— Mm. "Vou reconstituir umas antigas pegadas e descobrir algumas coisas." Foi por isso que ela esteve aqui Está à caça de informação.

— E encontrou — disse Goring desgostoso. Outro pensamento foi sombrio.

— Se Tom Harris tivesse de fato recebido esta carta... Goring ergueu o olhar.

— Claro. Poderia ter significado o fim de tudo, inclusive da ação judicial da Brandon. — Mas o estado de espírito de Goring começou a clarear. — Mas como as coisas estão agora... Sally Roe virtualmente traiu-se para nós. Estão vendo aqui? Ela planeja escrever mais cartas dessas, e essa poderia ser a chave para encontrá-la, predizer onde ela estará, descobrir o que ela sabe, e exatamente o que planejou!

Os quatro homens se entreolharam. Podia ser exatamente assim.

— Se pudermos continuar interceptando essas cartas, observar os carimbos do correio, derivar pistas dos conteúdos, eu diria que teríamos uma extraordinária vantagem — resumiu Goring.

— Mas podemos confiar na Brandon para interceptar as cartas? — perguntou o Sr. Steele. — Será que ela não cederá à pressão das legalidades?

Goring sorriu.

— Não, não a Brandon. Ela tem muito a perder se não cooperar, agora que a ação judicial está em andamento. Além disso, se pudermos persua­di-la de que seria mais interessante para ela cooperar conosco, então... tanto mais influência teremos sobre ela a cada carta com que mexer.

Os homens trocaram olhares e assentiram com a cabeça. Parecia um plano viável.

Goring concluiu:

— Teremos de consultar Santinelli quando ele chegar. Se ele concordar, avisaremos o Círculo Vital a persuadir a Brandon a continuar interceptando as cartas e mandando-as ao Summit. Eventualmente, quase garantidamente, Sally Roe nos dirá onde se encontra, e... o senhor, Sr. Kholl, nos será muito valioso.

Kholl sorriu, saboreando a idéia.

Os dois mensageiros atrás de Destruidor cacarejaram e babaram de gozo.

— Um Judas — disse Destruidor. — Alguém que entregará Sally Roe em nossas mãos: a própria Sally Roe!

Claire Johanson e o namorado Jon Schmidt, que morava com ela, partilhavam um casarão branco na orla da cidade. A casa já fora a sede de uma grande fazenda, mas a fazenda tinha sido dividida em diversos sítios, e agora a casa permanecia como uma propriedade confortável e viável para os propósitos de Claire e Jon. Ela era, naturalmente, uma assistente legal para a firma de Ames, Jefferson e Morris; Jon era arquiteto e pintor.

Mas acima de tudo, eles eram os fundadores e facilitadores de um movimento, uma comunidade, um agrupamento conhecido para os mem­bros como Círculo Vital.

Hoje havia uma reunião do Círculo Vital, uma ocasião não muito formal, mais uma hora para compartilhar, combinar interesses, discutir novas descobertas e percepções. Havia carros de sobra estacionados dos dois lados da estrada que passava na frente da casa, e a casa estava cheia de gente, não apenas da área imediata de Baskon como também de outras comunidades.

Na sala de estar, os entusiastas das artes apreciavam um mini-concerto de música para expandir a mente, executada por um trio instrumental popular que consistia de uma flauta, guitarra e baixo de cordas. O presidente da granja local estava ali, num estranho torpor enquanto escutava; o Sr. Woodard, o diretor da escola primária, também se encontrava ali com a esposa, relaxando aos sons cadenciados. Alguns jovens sitiantes também se encontravam presentes, alguns apreciando a música, e outros pensando em prosseguir para outra atividade em algum outro local da área.

Em cima, num quarto que estava totalmente vazio a não ser por almofadas por toda a parte no chão, rapazes e moças participavam de uma sessão de ioga, zumbindo e zoando como uma colméia, sentados na posição de lótus. Eram gente comum, um rancheiro, um carpinteiro, o motorista de um furgão de entregas, uma professora de crianças com "necessidades especiais", um casal que dirigia uma creche, e a Srta. Brewer que lecionava a quarta série da Escola de Primeiro Grau de Baskon.

Do lado de fora da porta dos fundos, sentado em cadeiras confortáveis debaixo de uma vasta parreira, um grupo de cerca de uma dúzia de pessoas compartilhava idéias e ouvia as opiniões de um autor visitante com relação à aplicação do Zen à agricultura.

Num canto do quintal, não muito longe de um conjunto de balanços, diversas crianças pequenas pinoteavam pela grama, fingindo ser pôneis. À frente de todas elas encontrava-se Ametista, pulando, empinando, e emitindo palavras de sabedoria.

— O que vocês virem, isso é o que existe — dizia ela. — Se vocês se virem como um cavalo preto, é o que são. Se virem diante de si um prado aberto, isso é o que são. Criem seu próprio mundo, e corram à vontade por ele!

Assim, a meninada criava seu próprio mundo e corria à vontade por ele, pelo menos até a cerca dos fundos.

No escritório de Claire no andar principal, por trás de portas fechadas, uma reunião de grande importância estava em progresso. Claire estava sentada regiamente atrás de sua escrivaninha; Gordon Jefferson, o advo­gado da ACAL, sentava-se a uma ponta da escrivaninha, sua pasta ao lado; oposta a eles encontrava-se sentada Lucy Brandon. Perto da porta, numa posição neutra, sentava-se Jon, o companheiro de Claire. Ele era loiro e bonitão, como um garoto-propaganda de sapatos de corrida, e tinha um ar tranqüilo, confiante.

Havia outra mulher presente, uma advogada esguia, de cabelos curtos, vinda de Sacramento, que tinha trazido um sumário de outro caso que a ACAL havia encerrado lá.

— Encontrarão uma porção de paralelos úteis neste caso — disse ela, entregando-o a Jefferson. — Se tiverem alguma pergunta, o Sr. James terá prazer cm oferecer-lhes seu tempo e préstimos.

— Esplêndido! — replicou Jefferson, pegando o material. — Pelo que fiquei sabendo, o Sr. James foi capaz de desenterrar um precedente legal convincente neste caso aqui.

E também pode ser usado pelo senhor. Claire sorriu agradecida.

— Obrigada, Lenore. Acho que sabe que o pessoal de Chicago está observando este caso?

A mulher chamada Lenore sorriu.

— Oh, claro. Por isso, se descobrirem que precisam de qualquer coisa, estamos prontos e esperando para mandar mais gente, mais documentos, qualquer coisa.

Jon deu uma risada e bateu palmas.

— A corrida já começou!

— E isso me faz lembrar — disse Claire — que temos estado meio baixos em itens para o noticiário; John Ziegler e o pessoal da KBZT estão sempre abertos para mais notícias se conseguirmos encontrá-las.

Jefferson retrucou:

— Bem... o caso fica quase totalmente sem divulgação até o julgamen­to.

Jon perguntou:

— E os problemas de Harris com o pessoal de assistência à criança? Claire sacudiu a cabeça.

— Não podemos nem chegar perto disso agora, pelo menos por enquanto. A juíza deu ordens à imprensa para que se mantivesse afastada, e se eles tentarem desenterrar alguma coisa, vai parecer muito uma violação da ordem.

— Bem — pensou Jefferson em voz alta — se pudéssemos encontrar alguma coisa que ficasse fora dessa ordem, ajudaria. Precisamos manter os cristãos correndo, mantê-los escondidos.

Jon brincou:

— Talvez pudéssemos usar essa linha direta para denúncias de abuso infantil de novo e meter Harris em apuros com os filhos de outra pessoa.

— Não... — disse Claire, embora soubesse que Jon não falava a sério. — Não queremos começar a parecer óbvios, e Irene Bledsoe está sob pressão suficiente do modo como as coisas estão.

— Bem, tenham paciência — disse Lenore. — É um processo gradual, um caso de cada vez. A consolação é a de que uma vez que tenhamos conquistado o terreno, jamais o perderemos novamente.

— Então, o tempo está a nosso favor — disse Jon.

A conversa perdeu o embalo. Todos os olhos começaram a voltar-se na direção de Lucy Brandon, que estava silenciosa, ouvindo o que todos diziam.

Ela devolveu-lhes o olhar e sorriu nervosamente.

— Estão-me pedindo muito. Claire deu uma risada apaziguadora.

— Oh, não é tão sério assim.

Jon deu umas palmadinhas na mão de Lucy.— Não se preocupe. Há muito poder representado aqui para que você esteja correndo qualquer risco real. Não e verdade, Gordon?

Gordon Jefferson entrou na conversa com tudo.

— Claro. Ouça, Lucy: essas cartas não são correspondência legítima. São de algum maníaco, um doente mental que vem acompanhando o caso pela imprensa. Acontece o tempo todo. Cartas como essa não deveriam ser entregues de qualquer forma.

Claire acrescentou:

— Mas enquanto isso, nunca se sabe o que ou quem poderia estar por trás delas, e não podemos nos dar ao luxo de correr nenhum risco.

— É isso mesmo — disse Jefferson. — Não sabemos o que as cartas contêm, mas podemos estar certos de que o seu caso não melhoraria de forma alguma se Tom Harris chegasse um dia a recebê-las.

Lucy permaneceu sentada ali, pensando sobre aquilo, mas ainda não parecia convencida.

— Bem — perguntou Claire — quantas chegaram até agora?

— A segunda veio ontem mesmo.

— O que você fez com ela?

— Ainda está "retida". Eu queria falar com vocês primeiro.

— Fez bem. Jefferson concordou.

— Fez muito bem. Sabe, Lucy, pode ser que estejamos enfrentando gente bem malandra neste caso. Nunca se sabe que tipo de proeza podem tentar. — Depois ele acrescentou em voz um pouquinho mais baixa. — Considere também os interesses em jogo. Se vencer este caso, haveria um bom pacote de dinheiro para você receber.

— Mas deixando o dinheiro de lado — acrescentou Claire — pense em todas as crianças que este caso poderia atingir no futuro. Se vamos algum dia construir um futuro de paz e comunidade mundial, precisamos enfrentar os cristãos; precisamos tirar sua influência das gerações futuras. É para o seu próprio bem, para o bem da humanidade.

— Mas, e Amber? — perguntou Lucy. Jefferson foi pronto em responder.

— Sabe, Lucy, acho que você nem precisa preocupar-se com isso. O Dr. Mandanhi pode apresentar relatórios e testemunho em favor de Amber, e ela nunca precisará chegar perto do tribunal. Seremos capazes de isolá-la totalmente deste caso.

— Isso seria bom.

— Bem, levaremos a coisa dessa maneira. Claire falou com grande sinceridade na voz.

— De fato, se achássemos que o caso seria prejudicial a Amber, não o levaríamos adiante. Afinal, e com as crianças que estamos preocupados.

— Certo, absolutamente — disse Jon.Afinal Lucy sorriu e aquiesceu com a cabeça.

— Está bem. Eu apenas queria ter certeza, só isso.

— Nenhum problema — disse Claire.

— Entendemos — disse Jon. Jefferson averiguou mais uma vez.

— Você tem o endereço de para onde mandar as cartas? Lucy achou que se lembrava.

— O Instituto Summit, certo? — Certo.

— Tenho o endereço no meu arquivo particular. Enviarei as cartas assim que as receber.

Todos demonstraram sua aprovação inclinando a cabeça.

— Excelente, excelente.

A música ainda tocava, as discussões continuavam, a zoada e a cantilena faziam as janelas zumbirem. No total, o Circulo Vital estava tendo um dia produtivo.

Marshall Hogan também. Não havia demorado muito para passar deva­garinho de carro pela casa e por todos aqueles carros estacionados, matraqueando num gravadorzinho em sua mão.

— GHJ 445, HEF 992, BBS 980, CJW 302...

Com apenas duas passadas pelo local, ele pegou o número das placas de todos.