Barquit ficou firme, as narinas expelindo ruidosamente
enxofre cm linha reta sobre seu peito avantajado e os olhos amarelos inabaláveis, resolutos. Ele era o
poderoso Príncipe de Ômega, e tinha causado mais danos e conquistado mais
vitórias para seu senhor do que esse novato pomposo, pretensioso que agora se
postava diante dele, vomitando ameaças e abusos.
Destruidor não estava disposto a ser ignorado. Desembainhou a
espada e a brandiu no ar, pronto para um teste entre os dois.
—
Seu indolente cego, desastrado! Reverencie-me agora, ou desafie! Aceitarei
qualquer um dos dois rumos!
Eles pairavam bem alto sobre o Prédio da Administração no
campus do Centro Ômega, cercado pelos respectivos guardas, acompanhantes e
assistentes.
Os acompanhantes dos dois lados de Barquit puseram-se a
implorar-lhe:
—
Não, não o ataque, Ba-al. Ele é enviado pelo Homem Forte!
—
Ele me chama de indolente! — sibilou Barquit através de dentes apertados.
— E
desastrado! — disse Destruidor. — Você estava longe do seu posto, e
permitiu que aquela mulher passeasse por aí à vontade e soubesse o que
quisesse!
Barquit desembainhou a espada tão depressa que ela
assobiou. Ele a estendeu para reforçar a sua resposta.
—
E onde estava o aviso que nunca recebi, de que essa miserável estaria entrando
em meu domínio? Se você está tão disposto a capturá-la, por que nunca me
disseram? — Ele continuou com maior aspereza: — E como é que ela ainda está
viva, e livre para nos amolar? Não devia ter sido destruída em Baskon?
As duas espadas quase se tocaram.
Naquele exato momento, uma voz humana irrompeu.
—
Senhores, se quiserem fazer o favor de sentar-se...
Os espíritos no ar se enrijeceram. Os negócios chamavam. Os humanos
abaixo deles estavam dando início à sua reunião. Barquit embainhou a espada.
—
As tropas celestiais foram expulsas, e ainda somos donos do nosso território.
Colocarei isso atrás de nós.
O Destruidor também embainhou sua espada.
—
Deixarei os erros passados de lado... por enquanto.
Eles se deixaram cair pelo telhado do prédio a fim de juntar-se à
reunião que estava tendo lugar numa pequena sala de conferências. O Sr. Steele
estava à cabeceira da mesa; à sua direita sentava-se o homem moreno todo vestido de preto; à sua esquerda sentavam-se
dois outros homens. À outra ponta da mesa, parecendo nervosa, estava sentada a
Sra. Denning. O Sr. Steele dirigiu o processo.
—
Sybil, gostaríamos de agradecer-lhe por ter vindo. Deixe-me apresentar-lhe
todos os presentes. Obviamente, você conhece o Sr. Tisen. Senhores, este é
Gary Tisen, o presidente do corpo docente aqui em Ômega. — Tisen era um homem
de barba, com seus trinta e tantos anos, um tipo agradável de pessoa. — Este
cavalheiro aqui à minha direita é o Sr. Kholl, um jornalista e fotógrafo
autônomo. À minha direita imediata está o Sr. Goring, do Instituto Summit. —
Goring era um homem idoso com olhos penetrantes, cabelos brancos penteados
meticulosamente e uma barba bem aparada. Ele usada diversos colares de contas à
volta do pescoço. — Senhores, esta, naturalmente, é Sybil Denning, membro de
nosso corpo docente já há diversos anos.
Todos cumprimentaram todos os outros com um movimento
da cabeça. A
Sra. Denning sorriu um bocadinho, achando que aquela reunião não podia ser tão
séria quanto ela havia pensado.
O Sr. Steele manteve um sorriso, mas havia um quê de cortante cm seus
olhos. — Agora, Sybil, temos algumas perguntas a respeito dessa mulher que veio
ao Centro na sexta-feira passada. Como foi que ela disse que se chamava?
Sybil foi pega um tanto de surpresa pela pergunta.
—
Ora, Sr. Steele, aquela era Bethany Farrel, da área de Los Angeles, lembra-se?
O senhor disse que a conhecia.
O Sr. Steele deu uma risada encabulada, e então mentiu.
—
Pensei que era outra pessoa. O que estamos tentando descobrir agora é quem ela
realmente era. Ela lhe deu alguma outra identificação, qualquer outra prova de
quem pudesse ser?
—
Bem... não.
O Sr. Steele fez uma pausa ao ouvir aquela resposta.
— Então...
Sybil, está percebendo o que aconteceu? Uma pessoa totalmente desconhecida
entrou no nosso campus, deu-lhe nada mais do que o nome e a declaração de que
era de Los Angeles, e isso foi tudo o que teve de fazer para conseguir carta
branca para uma excursão pelo Centro. — A Sra. Denning não sabia o que dizer. O
Sr. Steele apenas sorriu. — Bem, Sybil, foi isso o que sempre gostei em você:
você gosta de pessoas, confia nelas, vai buscá-las, e é essa a finalidade do
Ômega, não é?
Ela animou-se um tantinho.
—
Ora, e claro.
—
Ela disse alguma outra coisa a seu próprio respeito?— A Sra. Denning tentou
lembrar-se. — Por exemplo, ela é casada?
—
Não, é divorciada. Ela disse que estava andando pelo país de carona, tentando encontrar-se. Estava
procurando um lugar para ficar, pelo que me lembro.
—
E por isso você a levou por uma excursão no campus.
—
Sim. Levei-a para uma caminhada e falei a respeito do Centro e do que fazemos
aqui, e quais são os nossos objetivos.
O Sr. Steele e o Sr. Goring individualmente puxaram o fôlego e o seguraram por um
momento. Então o Sr. Steele falou.
—
Umm... Sybil, era a esse tipo de coisa que eu me estava referindo.
Simplificando, você não deveria ter feito isso. Não sabemos quem era aquela
mulher, ou quais eram as suas intenções, e estou certo de que percebe que
existem muitos interesses lá fora que nos são hostis. Nossos objetivos podem
correr sério risco se não tivermos cuidado em escolher a quem damos informação.
Que objetivos você discutiu com ela?
Ela vasculhou a memória, e era doloroso ter de admitir qualquer coisa que
descobrisse.
—
Nossos objetivos de mudança através da educação...
Isso provocou um suspiro audível, e o Sr. Tisen chegou
mesmo a tamborilar a mesa com os dedos.
—
O que mais, Sybil?
— Nossos
programas, nossos currículos, nosso trabalho de entrar no sistema educacional
público... — As emoções dela começaram a se manifestar. — Sinto muito. Eu não
sabia...
—
O que mais?
—
Humm... Sei que falamos a respeito do programa dos Potenciais Jovens... e de nossa
busca de uma comunidade global... e de nosso enfoque clínico da educação...
O Sr. Goring fez uma breve pergunta.
—
Falaram a respeito do currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu?
A Sra. Denning ficou um tanto surpresa por Goring saber
acerca disso.
— Ora...
sim, falamos. Mas acho que foi por já estarmos conversando a respeito de fazer
com que o nosso currículo fosse adotado pelas escolas públicas, e aparentemente
ela o havia visto em algum lugar, e queria saber se de fato éramos nós que o
havíamos publicado.
—
Mm. Agora, fiquei sabendo que ela lhe mostrou um anel?
—
Sim. Ela o tinha numa corrente à volta do pescoço. Queria saber se eu já havia
visto um anel como aquele antes.
—
E tinha? — Não.
—
Como era o anel?
—
Oh... — Ela tentou desenhar pequenas imagens com as mãos enquanto o descrevia.
— Era meio grande, como um anel de turma... Era de ouro... Tinha em cima um
rosto estranho, que parecia mitológico, como o de um gárgula, mas triangular.
Os homens estavam mantendo uma expressão inescrutável, com óbvio esforço.
O Sr. Steele perguntou:
—
Tem certeza de nunca tê-la visto antes? Aquela pergunta sugeriu a
possibilidade.
—
Hum, bem, não sei. Será que eu deveria tê-la conhecido? Goring interveio.
—
Não, claro que não.
Mas a Sra. Denning pensou a respeito daquele rosto
novamente, e aquele primeiro encontro, e a mulher soletrando o nome:
—
F-a-r-r...
Goring achou que já haviam perguntado o suficiente.
—
Não se preocupe com isso, Sra. Denning. Obviamente não houve prejuízo. Sabemos
que tomará cuidado no futuro.
Uma lembrança estava emergindo. Soletrar um nome. Quem era aquela
mocinha que fez isso? Ela tinha sido realmente insolente ao fazê-lo. O Sr.
Steele também tentou dar por encerrada a conversa.
—
Você fez um trabalho maravilhoso aqui, Sybil, e estamos contentes por tê-la no
conselho. Obrigado pelo seu tempo.
Mas a Sra. Denning continuava a lembrar-se. Ela viu o
rosto; sardento, duro como pedra, longos cabelos ruivos.
—
R-o-e... — havia dito a garota.
Os olhos da Sra. Denning se escancararam, bem como a
sua boca.
—
Roe! Era Sally Roe!
O Sr. Goring não pareceu ouvi-la.
—
Muito obrigado, Sra. Denning. Senhores, estou pronto para um café. A Sra.
Denning estava pasmada, a mente inundada pela lembrança.
—
Ela foi aluna minha anos atrás! Ela esteve aqui no Centro no programa de
Potenciais Jovens! Agora me lembro dela!
O Sr. Steele interrompeu.
—
Sybil...
—
Mas o que ela estava fazendo aqui? Por que não me disse quem era?
—
Sybil!
Ela deu-lhe sua atenção silenciosa. O Sr. Steele parecia sinistro.
—
Guarde sua excitação. Posso assegurar-lhe, não era Sally Roe. Ora, para ela
essa foi difícil de engolir.
—
Não era?
—
Sally Roe está morta. Ela suicidou-se há poucas semanas. Isso a silenciou. Ela
estava chocada, confusa, sem fala.
O Sr. Steele a dispensou.
—
Obrigado. Acho que, se se apressar, pode chegar à sua primeira aula bem na
hora.
Ela ergueu-se e saiu da sala sem dizer uma palavra.
Destruidor estava cuspindo enxofre, tentando alcançar e agarrar Steele
enquanto Barquit tentava detê-lo. Idiota! Já não atrapalhou o suficiente?
Cortarei fora a sua língua!
Goring olhou furioso para Steele.
—
Não foi exatamente um tipo prudente de perguntas. O Sr. Steele tentou não
parecer embaraçado.
—
Sr. Goring, podemos repassar as nossas escorregadelas ou podemos falar sobre o
que vamos fazer.
Goring continuou, mas infeliz.
—
A Sra. Denning agora e um risco. Eu e você sabemos que ela suspeita que Sally
Roe ainda está viva — e ambos sabemos por quê.
—
Não — disse Tisen — eu não me preocuparia com isso. Ela tem uma lealdade
maravilhosa e profunda para com a liderança aqui.
O Sr. Steele mudou de assunto.
—
Ela não constitui problema. O que gostaria de saber é onde Sally Roe aparecerá
a seguir, e se há alguém que devêssemos avisar com antecedência antes que ela
possa chegar até a pessoa e extrair informação como fez com a Sra. Denning.
Destruidor deu um passo para trás e olhou furioso o Sr.
Steele. Desastrado! Tolo! Idiota!
O Sr. Goring rolou os olhos.
—
Você está de fato propondo que avisemos todo o mundo para ficar à procura de
uma mulher supostamente morta? Até que nível a informação deveria descer? Não
seja um tolo, Steele! Uma vez que essa informação deixe esta sala, estará fora
do nosso controle. Além disso, a quem contaríamos? Como decidimos em que
direção a Roe irá? Não sabemos o que ela está pensando, e obviamente você não
tinha a menor idéia de que ela apareceria aqui!
Barquit postou-se entre o Sr. Steele e Destruidor antes
que o zangado predador fizesse alguma coisa impensada.
—
Lembro-lhe, grande guerreiro, de que não recebemos nenhum aviso! Você poderia
ter previsto que ela estaria aqui, e nós teríamos sido poupados dessa
dificuldade e embaraço!
Destruidor acalmou-se um pouco.
—
Está bem. Concordo. Por uns tempos, o Exército Celestial escondeu-a de nós, em
resposta às orações dos santos de Deus. Os santos de Baskon têm grande interesse
nesta batalha. Mas suas preces se enfraquecem agora. Eles se preocupam com
outras coisas. — Esse simples pensamento alegrou Destruidor, que se tornou mais
agradável. — Descobriremos a Sally, Barquit, mas na calada e por astúcia em vez
de força. — Destruidor podia ver alguém aproximar-se da sala. — Ah! Vejam isto!
Acabamos de obter outra vantagem que o Exército Celestial nem pensou em conter.
—
Uma vantagem?
Destruidor apenas deu um sorriso amarelo e olhou na
direção da
porta.
Ouviu-se uma batida.
—
Quem poderia ser? — quis saber o Sr. Steele.
—
As ordens eram para que não fôssemos perturbados.
—
Quem é? — exigiu o Sr. Steele.
A porta abriu-se um bocadinho, e um jovem assistente estudante
enfiou a cabeça
dentro da sala.
—
Desculpe, Sr. Steele. Tenho um item especial para o Sr. Goring.
—
Pode entregar — disse Goring.
O rapaz entrou na sala com um envelope de papel
manilha.
Dois espíritos também entraram, muito contentes, tentando não
cacarejar muito alto. Destruidor ordenou-lhes que se postassem atrás dele. Eles
obedeceram no mesmo instante.
—
Muito pontuais — disse ele aos espíritos.
Eles deram uma risadinha abafada e cacarejaram sua
alegria por tal elogio.
Enquanto Destruidor e Barquit observavam o rapaz
entregar o envelope ao Sr. Goring, Destruidor explicou:
—
Estes dois mensageiros descobriram por acaso algo interessante lá no Correio de
Baskon. Resolvi recompensá-los e garantir seus futuros serviços.
O rapaz saiu. O Sr. Goring abriu o envelope e tirou
para fora o conteúdo com uma expressão perplexa. Um envelope pequeno de carta e uma carta
explicativa de três páginas caíram sobre a mesa.
Quase ao mesmo tempo, os quatro homens viram o nome no
canto superior esquerdo do envelope: Sally Beth Roe.
Goring leu a carta explicativa.
—
Veio de Summit. Esta carta de Sally Roe chegou a semana passada ao Correio de
Baskon. Lucy Brandon descobriu-a e a mostrou ao agente de polícia Mulligan. Ele
consultou Círculo Vital e Ames e Jefferson, os advogados do caso. Eles a
enviaram ao Summit. O pessoal do Summit abriu-a e achou que eu devia vê-la
imediatamente.
Goring apanhou a mui-viajada carta de Sally Roe, dirigida
a Tom Harris. Os quatro homens olharam-na com choque, pasmo, e com um júbilo cada vez maior.
Goring falou primeiro.
—
Então... Sally Roe está escrevendo cartas!
O Sr. Steele estava quase sorrindo abertamente.
—
Para... para Tom Harris?
Goring estava passando os olhos rapidamente pela carta
vinda do Alto Comando.
—
Brandon está razoavelmente certa de que esta é a primeira carta. — Ele tirou a
carta de Sally do envelope já aberto; era um documento escrito a mão em papel
de fichário espiral triplo. Ele a examinou depressa. — Sim. Esta parece ser a
primeira carta. Ela se está apresentando... Oh, não! Está descrevendo o seu
encontro com a Von Bauer!
Ao ouvirem isso, todos se reuniram para espiar por cima
do ombro de Goring.
O Sr. Steele leu o relato, interessando-se muito pela
forma como Von Bauer havia morrido subitamente. Então ele lembrou-se do que
havia acontecido no Restaurante Cabana de Toras. Ele olhou para Kholl.
—
Ela está metida em algum tipo de poder psíquico tremendo. Alguma
coisa a está protegendo!
Goring não estava inteiramente impressionado.
—
E contudo ela ainda parece perdida, confusa. Veja-a aqui, falando sem parar
sobre moralidade, significado, desespero. A mulher e um caos!
O Sr. Steele leu adiante.
—
Mm. "Vou reconstituir umas antigas pegadas e descobrir algumas
coisas." Foi por isso que ela esteve aqui Está à caça de informação.
—
E encontrou — disse Goring desgostoso. Outro pensamento foi sombrio.
—
Se Tom Harris tivesse de fato recebido esta carta... Goring ergueu o olhar.
—
Claro. Poderia ter significado o fim de tudo, inclusive da ação judicial da
Brandon. — Mas o estado de espírito de Goring começou a clarear. — Mas como as
coisas estão agora... Sally Roe virtualmente traiu-se para nós. Estão vendo
aqui? Ela planeja escrever mais cartas dessas, e essa poderia ser a chave para
encontrá-la, predizer onde ela estará, descobrir o que ela sabe, e exatamente o
que planejou!
Os quatro homens se entreolharam. Podia ser exatamente
assim.
— Se pudermos continuar
interceptando essas cartas, observar os carimbos do correio, derivar pistas dos
conteúdos, eu diria que teríamos uma extraordinária vantagem — resumiu Goring.
— Mas podemos confiar na Brandon
para interceptar as cartas? — perguntou o Sr. Steele. — Será que ela não cederá
à pressão das legalidades?
Goring sorriu.
— Não, não a Brandon. Ela tem
muito a perder se não cooperar, agora que a ação judicial está em andamento.
Além disso, se pudermos persuadi-la de que seria mais interessante para ela
cooperar conosco, então... tanto mais influência teremos sobre ela a cada carta
com que mexer.
Os homens trocaram olhares e
assentiram com a cabeça. Parecia um plano viável.
Goring concluiu:
— Teremos de consultar
Santinelli quando ele chegar. Se ele concordar, avisaremos o Círculo Vital a
persuadir a Brandon a continuar interceptando as cartas e mandando-as ao
Summit. Eventualmente, quase garantidamente, Sally Roe nos dirá onde se
encontra, e... o senhor, Sr. Kholl, nos será muito valioso.
Kholl sorriu, saboreando a
idéia.
Os dois mensageiros atrás de
Destruidor cacarejaram e babaram de gozo.
— Um Judas — disse
Destruidor. — Alguém que entregará Sally Roe em nossas mãos: a própria Sally
Roe!
Claire Johanson e o namorado
Jon Schmidt, que morava com ela, partilhavam um casarão branco na orla da
cidade. A casa já fora a sede de uma grande fazenda, mas a fazenda tinha sido
dividida em diversos sítios, e agora a casa permanecia como uma propriedade
confortável e viável para os propósitos de Claire e Jon. Ela era, naturalmente,
uma assistente legal para a firma de Ames, Jefferson e Morris; Jon era
arquiteto e pintor.
Mas acima de tudo, eles eram
os fundadores e facilitadores de um movimento, uma comunidade, um agrupamento
conhecido para os membros como Círculo Vital.
Hoje havia uma reunião do
Círculo Vital, uma ocasião não muito formal, mais uma hora para compartilhar,
combinar interesses, discutir novas descobertas e percepções. Havia carros de
sobra estacionados dos dois lados da estrada que passava na frente da casa, e a
casa estava cheia de gente, não apenas da área imediata de Baskon como também
de outras comunidades.
Na sala de estar, os
entusiastas das artes apreciavam um mini-concerto de música para expandir a
mente, executada por um trio instrumental popular que consistia de uma flauta,
guitarra e baixo de cordas. O presidente da granja local estava ali, num
estranho torpor enquanto escutava; o Sr. Woodard, o diretor da escola primária,
também se encontrava ali com a esposa, relaxando aos sons cadenciados. Alguns
jovens sitiantes também se encontravam presentes, alguns apreciando a música, e
outros pensando em prosseguir para outra atividade em algum outro local da
área.
Em cima, num quarto que estava
totalmente vazio a não ser por almofadas por toda a parte no chão, rapazes e
moças participavam de uma sessão de ioga, zumbindo e zoando como uma colméia,
sentados na posição de lótus. Eram gente comum, um rancheiro, um carpinteiro, o
motorista de um furgão de entregas, uma professora de crianças com
"necessidades especiais", um casal que dirigia uma creche, e a Srta.
Brewer que lecionava a quarta série da Escola de Primeiro Grau de Baskon.
Do lado de fora da porta dos
fundos, sentado em cadeiras confortáveis debaixo de uma vasta parreira, um
grupo de cerca de uma dúzia de pessoas compartilhava idéias e ouvia as opiniões
de um autor visitante com relação à aplicação do Zen à agricultura.
Num canto do quintal, não
muito longe de um conjunto de balanços, diversas crianças pequenas pinoteavam
pela grama, fingindo ser pôneis. À frente de todas elas encontrava-se Ametista,
pulando, empinando, e emitindo palavras de sabedoria.
— O que vocês virem, isso é o
que existe — dizia ela. — Se vocês se virem como um cavalo preto, é o que são.
Se virem diante de si um prado aberto, isso é o que são. Criem seu próprio
mundo, e corram à vontade por ele!
Assim, a meninada criava seu
próprio mundo e corria à vontade por ele, pelo menos até a cerca dos fundos.
No escritório de Claire no
andar principal, por trás de portas fechadas, uma reunião de grande importância
estava em progresso. Claire estava sentada regiamente atrás de sua
escrivaninha; Gordon Jefferson, o advogado da ACAL, sentava-se a uma ponta da
escrivaninha, sua pasta ao lado; oposta a eles encontrava-se sentada Lucy
Brandon. Perto da porta, numa posição neutra, sentava-se Jon, o companheiro de
Claire. Ele era loiro e bonitão, como um garoto-propaganda de sapatos de
corrida, e tinha um ar tranqüilo, confiante.
Havia outra mulher presente,
uma advogada esguia, de cabelos curtos, vinda de Sacramento, que tinha trazido
um sumário de outro caso que a ACAL havia encerrado lá.
— Encontrarão uma porção de paralelos
úteis neste caso — disse ela, entregando-o a Jefferson. — Se tiverem alguma
pergunta, o Sr. James terá prazer cm oferecer-lhes seu tempo e préstimos.
— Esplêndido! — replicou
Jefferson, pegando o material. — Pelo que fiquei sabendo, o Sr. James foi capaz
de desenterrar um precedente legal convincente neste caso aqui.
— E também pode ser usado pelo senhor. Claire sorriu
agradecida.
— Obrigada, Lenore. Acho que
sabe que o pessoal de Chicago está observando este caso?
A mulher chamada Lenore
sorriu.
— Oh, claro. Por isso, se
descobrirem que precisam de qualquer coisa, estamos prontos e esperando para
mandar mais gente, mais documentos, qualquer coisa.
Jon deu uma risada e bateu
palmas.
— A corrida já começou!
— E isso me faz lembrar —
disse Claire — que temos estado meio baixos em itens para o noticiário; John
Ziegler e o pessoal da KBZT estão sempre abertos para mais notícias se
conseguirmos encontrá-las.
Jefferson retrucou:
— Bem... o caso fica quase
totalmente sem divulgação até o julgamento.
Jon perguntou:
— E os problemas de Harris
com o pessoal de assistência à criança? Claire sacudiu a cabeça.
— Não podemos nem chegar
perto disso agora, pelo menos por enquanto. A juíza deu ordens à imprensa para
que se mantivesse afastada, e se eles tentarem desenterrar alguma coisa, vai
parecer muito uma violação da ordem.
— Bem — pensou Jefferson em
voz alta — se pudéssemos encontrar alguma coisa que ficasse fora dessa ordem,
ajudaria. Precisamos manter os cristãos correndo, mantê-los escondidos.
Jon brincou:
— Talvez pudéssemos usar essa
linha direta para denúncias de abuso infantil de novo e meter Harris em apuros
com os filhos de outra pessoa.
— Não... — disse Claire,
embora soubesse que Jon não falava a sério. — Não queremos começar a parecer
óbvios, e Irene Bledsoe está sob pressão suficiente do modo como as coisas
estão.
— Bem, tenham paciência —
disse Lenore. — É um processo gradual, um caso de cada vez. A consolação é a de
que uma vez que tenhamos conquistado o terreno, jamais o perderemos novamente.
— Então, o tempo está a nosso
favor — disse Jon.
A conversa perdeu o embalo.
Todos os olhos começaram a voltar-se na direção de Lucy Brandon, que estava
silenciosa, ouvindo o que todos diziam.
Ela devolveu-lhes o olhar e
sorriu nervosamente.
— Estão-me pedindo muito.
Claire deu uma risada apaziguadora.
— Oh, não é tão sério assim.
Jon deu umas palmadinhas na
mão de Lucy.— Não se preocupe. Há muito poder representado aqui para que você
esteja correndo qualquer risco real. Não e verdade, Gordon?
Gordon Jefferson entrou na
conversa com tudo.
— Claro. Ouça, Lucy: essas
cartas não são correspondência legítima. São de algum maníaco, um doente mental
que vem acompanhando o caso pela imprensa. Acontece o tempo todo. Cartas como
essa não deveriam ser entregues de qualquer forma.
Claire acrescentou:
— Mas enquanto isso, nunca se
sabe o que ou quem poderia estar por trás delas, e não podemos nos dar ao luxo
de correr nenhum risco.
— É isso mesmo — disse
Jefferson. — Não sabemos o que as cartas contêm, mas podemos estar certos de
que o seu caso não melhoraria de forma alguma se Tom Harris chegasse um dia a
recebê-las.
Lucy permaneceu sentada ali,
pensando sobre aquilo, mas ainda não parecia convencida.
— Bem — perguntou Claire —
quantas chegaram até agora?
— A segunda veio ontem mesmo.
— O que você fez com ela?
— Ainda está
"retida". Eu queria falar com vocês primeiro.
— Fez bem. Jefferson
concordou.
— Fez muito bem. Sabe, Lucy,
pode ser que estejamos enfrentando gente bem malandra neste caso. Nunca se sabe
que tipo de proeza podem tentar. — Depois ele acrescentou em voz um pouquinho
mais baixa. — Considere também os interesses em jogo. Se vencer este caso,
haveria um bom pacote de dinheiro para você receber.
— Mas deixando o dinheiro de
lado — acrescentou Claire — pense em todas as crianças que este caso poderia
atingir no futuro. Se vamos algum dia construir um futuro de paz e comunidade
mundial, precisamos enfrentar os cristãos; precisamos tirar sua influência das
gerações futuras. É para o seu próprio bem, para o bem da humanidade.
— Mas, e Amber? — perguntou
Lucy. Jefferson foi pronto em responder.
— Sabe, Lucy, acho que você
nem precisa preocupar-se com isso. O Dr. Mandanhi pode apresentar relatórios e
testemunho em favor de Amber, e ela nunca precisará chegar perto do tribunal.
Seremos capazes de isolá-la totalmente deste caso.
— Isso seria bom.
— Bem, levaremos a coisa
dessa maneira. Claire falou com grande sinceridade na voz.
— De fato, se achássemos que
o caso seria prejudicial a Amber, não o levaríamos adiante. Afinal, e com as
crianças que estamos preocupados.
— Certo, absolutamente — disse
Jon.Afinal Lucy sorriu e aquiesceu com a cabeça.
— Está bem. Eu apenas queria
ter certeza, só isso.
— Nenhum problema — disse
Claire.
— Entendemos — disse Jon.
Jefferson averiguou mais uma vez.
— Você tem o endereço de para
onde mandar as cartas? Lucy achou que se lembrava.
— O Instituto Summit, certo?
— Certo.
— Tenho o endereço no meu
arquivo particular. Enviarei as cartas assim que as receber.
Todos demonstraram sua
aprovação inclinando a cabeça.
— Excelente, excelente.
A música ainda tocava, as
discussões continuavam, a zoada e a cantilena faziam as janelas zumbirem. No
total, o Circulo Vital estava tendo um dia produtivo.
Marshall Hogan também. Não
havia demorado muito para passar devagarinho de carro pela casa e por todos
aqueles carros estacionados, matraqueando num gravadorzinho em sua mão.
— GHJ 445, HEF 992, BBS 980,
CJW 302...
Com apenas duas passadas pelo local, ele pegou o número das placas de todos.