terça-feira, 8 de junho de 2021

Este mundo tenebroso - parte 2 - capítulo 19

Steele estava parado, mas as mãos ainda lhe cobriam os olhos. Galvin e Sra. Denning apressaram-se a socorrê-lo.

— Ei, calma agora! Entrou vidro no seu olho? — perguntou Galvin.

— Deve ser, deve ser.

Os quatro homens entraram às pressas, ainda vendo manchas à frente dos olhos. Um ficou à porta. Outro examinou a porta dos fundos. O terceiro segurou o braço da Sra. Denning. Ela protestou:

— Ai, ai! Faça o favor!

— Essa é a Sra. Denning! — disse bruscamente o Sr. Steele. O homem a soltou.

— O que aconteceu?

O quarto homem ajudou Steele a erguer-se.

— Puxa, veja que bagunça!

— Sr. Steele, o senhor está bem? — perguntou Galvin. Seus olhos clarearam. Galvin olhou-os atentamente.

— Não vejo nada, Sr. Steele. Está sentindo alguma coisa? Steele preocupava-se com outra coisa.

— Vocês a viram?

O quarto homem respondeu:

— Não claramente, apenas pela janela.

— Vocês a viram sair? — exigiu ele. —Não.

— Não vimos coisa alguma — respondeu o terceiro homem. — O sol estava bem nos nossos olhos.

Steele sentou-se enraivecido e desgostoso.

— O sol...!

Galvin estava curioso.

— Quem era aquela mulher, Sr. Steele?

Steele sorriu repentinamente como se ela fosse um assunto agradável.

— Uma velha amiga, Joel. Eu não a via há anos.

As sobrancelhas da Sra. Denning ergueram-se bruscamente em sinal de surpresa.

— O senhor conhece a Bethany Farrell?

Ele olhou muito atrapalhado para a Sra. Denning e não respondeu.

— Como estão os seus olhos? — perguntou ela.

— Estão bem, obrigado.

Galvin apanhou uma vassoura a fim de varrer os cacos de vidro. Steele ergueu-se e com um gesto indicou aos quatro homens que saíssem. Assim que saíram para a varanda, Steele avisou seus homens:

— Ninguém fica sabendo o que aconteceu.

— Certo — responderam ele — pode contar com isso. Ele falou depressa e baixinho.

— Ela está com uma tintura agora, o cabelo está preto, e usa óculos de lentes coloridas. Está com o anel, sim.

— Ela não pode ir muito longe — disse o primeiro homem. Steele sussurrou para o quarto homem.

— Posso dar-lhe um serviço agora mesmo, se quiser.

O quarto homem compreendeu. Ele sussurrou algumas ordens rápidas aos outros três.

— Examinem a estrada para cima e para baixo imediatamente, e depois examinem os arredores de Fairwood.

Steele sugeriu:

— Eles poderiam verificar o Hotel Schrader em Fairwood. Ela costumava hospedar-se lá.

O quarto homem assentiu com a cabeça e deu uma ordem final.

— Se a encontrarem, cuidem dela de forma limpa e quieta. Os outros três homens puseram-se imediatamente cm ação. Steele voltou os olhos na direção do restaurante.

— A Sra. Denning terá de ser entrevistada. Goring estará vindo do Summit na segunda-feira, e Santinelli disse que estaria aqui até segunda à noite. Conversaremos com a Sra. Denning assim que Goring chegar. Acho que você também deveria estar presente durante a entrevista.

O quarto homem fez que sim com a cabeça. Ele era moreno e esbelto, todo vestido de preto, com um nariz bem definido, profundos olhos castanhos, e sobrancelhas esquisitas, pontudas.

— Parece que as suas energias chocaram-se contra uma massa crítica lá dentro — disse ele. — Foi um tumulto e tanto.

— Talvez. — Steele não estava disposto a admiti-lo. — Roe poderia ter entrado em algum tipo novo de poder... Poderia ter. — Então, sua voz adquiriu um tom estranho, sinistro. — Mas agora ela está lutando contra nós por isso não durará para sempre. O poder verdadeiro é nosso, e vai continuar sendo assim!

— Não — disse Ted Walroth, começando a erguer a voz. — June e eu conversamos sobre o assunto, oramos a esse respeito, e simplesmente não podemos continuar com isso. Ouça, Mark, desviamo-nos da vontade do Senhor ao ter esta escola. Foi o que sempre pensei, e agora estamos descobrindo isso do jeito mais difícil. O Senhor simplesmente não está abençoando esta coisa!

Mark e Ted encontravam-se na pequenina secretaria da escola; Mark havia reunido todos os papéis dos dois filhos de Walroth, Mary e Jonathan, e os tinha prontos para entregar a Ted, mas ainda tinha uma esperança infundada de poder convencer Ted a manter os filhos na escola.

— Mas, Ted... se você for honesto consigo mesmo, com June, com Mary e Jonathan, terá de admitir que a escola lhes fez muito bem. Suas notas subiram, eles estão perto do Senhor, sua auto-estima é ótima, eles estão felizes...

— Oh, estão, é? — desafiou Ted. — Por quanto tempo? Quanto tempo demorará, Mark, para que alguma coisa lhes aconteça também?

Mark já tinha ouvido aquele tipo de conversa muitas vezes antes, e se cansava dele.

— Ted, não sei com quem você tem estado conversando, mas existe uma porção de mentiras descaradas circulando por aí, e espero...

— Não me importo com as mentiras e as fofocas, conheço todas essas bobagens. Mas acredito que por trás de toda a conversa e o medo existe um elemento definido de risco.

— Não existe nenhum elemento de risco!

Agora Ted se mostrava abertamente zangado. Ele apontou o dedo a Mark e seu olhar acompanhou o dedo com frios olhos azuis.

— Ora, isso aí mesmo é um problema em si! Você perdeu a sua objetividade neste negócio, Mark, total e completamente! Sc houvesse um problema, mesmo que fosse um problema sério, não acho que você admitiria! Você ficou do lado do Tom nesta coisa, e acho isso inaceitável para um pastor! Você não sabe que tipo de pessoa o Tom é quando você não está por perto! Ninguém de nós sabe! E se você vai defendê-lo nesta questão, então não acho que posso confiar em você também, e não acho que possamos ficar debaixo do seu pastorado!

Mark esperou um momento para aquietar-se e quebrar o ímpeto dessa confrontação que se armava. Ele falou baixinho.

— Ted... Satanás está trabalhando ativamente no nosso meio, tentando separar-nos, tentando causar divisão...

Ted concordou.

— Eu que o diga! Você já não pode ver a vontade do Senhor, Mark, mesmo quando está tão clara quanto o dia, bem à sua frente! Esta escola é um erro colossal, um passo errado que jamais deveríamos ter dado, e agora estamos pagando por ele, e você simplesmente se recusa a ver isso. Mark tentou esclarecer o que havia querido dizer.

— Eu quis dizer...

— Sei o que você quis dizer! E estou dizendo que você está errado, completamente errado. Tem sido teimoso, tem sido cego, tem-se metido a defender um homem em quem simplesmente não podemos confiar, e agora estamos todos debaixo de uma ação judicial e a briga ficou prá valer. June e eu não queremos ter nada a ver com ela, e certamente não queremos que nossos filhos sejam arrastados no meio disso. — Ele agarrou a maçaneta e abriu a porta. — Tenho de ir.

Mark entregou-lhe a papelada.

— Obrigado.

Ted caminhou às pressas, zangado, para a porta principal.

— Até domingo? — perguntou Mark.

— Não — replicou Ted, sem se voltar. — Não espere isso. Não acho que o Senhor esteja feliz com essa igreja no momento.

E com isso, ele se foi.

Tal, Natã e Armoth se postaram logo do lado de fora, vendo-o partir.

— Está-se espalhando — disse Natã. — Primeiro na escola, e agora na igreja. Eles se atracam.

Tal deixou-se cair para trás e reclinou-se contra o prédio da escola.

— Destruidor! Se não houver mudança de direção, os santos aqui não terão uma escola para defender.

— E nós não teremos o amparo da oração para sermos bem sucedidos... cm nada!

— Mas e os espíritos responsáveis por isso? — exigiu Armoth. — Com certeza, podemos exterminá-los!

— Não — disse Tal, e parecia muito zangado e frustrado. — Eles têm o direito de estar lá. Foram convidados. Os santos se entregaram a essa briga, e enquanto não se quebrantarem, enquanto não se arrependerem, esse câncer jamais diminuirá a velocidade com que se espalha.

— E então, o que acontece agora? — perguntou Natã.

— Mota e Signa trabalham para encontrar uma brecha nas fileiras do inimigo, algum ponto fraco no plano de Destruidor que possamos expor a fim de que os santos o encontrem. Enquanto isso, tudo o que podemos fazer é manter o núcleo orando, lutando. O Senhor se moverá segundo os seus propósitos. Ele...

Eles desembainharam as espadas.

Não, não era nenhum exército demoníaco, nem mesmo um espírito terrível, apenas um pequeno, feio mensageiro, atrevido o bastante para voar bem acima de suas cabeças, abanando as mãos vazias a fim de mostrar que não era um agressor.

— Ah aaaah!!! — chamou ele. — É o capitão Tal?

— Sou.

— Destruidor tem uma mensagem para você! — O diabrete pairou bem acima deles, gritando sua mensagem numa voz aguda, irritante. — Ele diz: "Eu o abati, grande capitão! Ômega é meu, e sempre será, e seu exército foi exterminado e espalhado! Mande outros! Meus guerreiros estão famin­tos!"

O diabrete disparou dali como um mosquitinho. Tal não sorriu quando disse:

— Sally Roe está a salvo. Se eles a tivessem destruído, teria sido essa a mensagem de Destruidor. — Ele embainhou a espada. — Vamos encontrar Cree e Si e nos assegurar de que eles estão bem. Enviei Guilo à frente para ajudar Chimon e Scion e Bentmore. Nós três tomaremos conta da próxima parada de Sally. Precisamos mantê-la viva.

— Estamos enfraquecidos, capitão — disse Natã. Tal assentiu com a cabeça.

— Reúna todas as tropas de que puder dispor, Natã. Faremos o melhor que pudermos.

Sally lembrou-se de uma estrada secundária quando deu com ela, mas não conseguia lembrar-se exatamente para onde levava. Ela tomou-a de qualquer jeito, só para sair da estrada principal. Havia uma casa vermelha de sítio não muito longe à direita, com uma ravina na frente e um típico celeiro vermelho. Aquilo registrava. Ela a havia visto antes, talvez quando tivesse estado a andar de bicicleta. Essa estrada deveria acabar levando-a de volta a Fairwood.

Ouviu um veículo aproximando-se e escondeu-se no mato. Era somente um camponês na sua caminhonete.

Ela resolveu esperar só um pouquinho mais. Tirou seu caderno espiral e acrescentou algumas anotações rápidas para outra carta, primeiro con­tando como acabara de escapar por um triz, depois tentando resumir suas lembranças perturbadoras, revoluteantes.

Estou-me lembrando, Tom, pouco a pouco. O Centro Ômega cresceu bastante e dobrou em tamanho do que era na última vez em que estive lá. Mas as forças espirituais são as mesmas, assim como as filosofias e as metas daquela gente.

Tudo parecia tão utópico dezoito anos atrás! Posso lembrar-me das aulas de filosofia oriental e as longas sessões nos prados, sentada por horas em meditação, sentindo imensa unidade com o todo da vida, com tudo o que existe. Que contentamento havia! Posso lembrar-me de uns espíritos-guias especiais que vieram até mim durante o meu último verão. Eles me abriram o consciente para eu poder perceber minha própria divindade, e revelaram mundos de experiência e percepção que eu jamais conhecera antes. Foi como um passeio excitante e sem fim através de um mundo de segredos sedutores, e meus guias prometeram ficar comigo para sempre.

Mas o gozo daqueles dias terminou por azedar como leite morno, velho. O contentamento da meditação tornou-se mais e mais uma forma de loucura e escape; os espíritos-guias não permaneceram comi­go como haviam prometido, mas se deterioraram, transformando-se em ilusões, imagens fantasmagóricas, atormentadores. Eu havia ido ao Ômega afim de encontrar, como diz a Sra. Denning, "o significado por trás de tudo", mas, em vez disso, encontrei um mundo de credulidade irracional e anelos infundados, uma instável e vaga busca de experiên­cia em lugar de racionalidade. Significado? Não, apenas auto-engrandecimento. E quer a pessoa seja um pequeno acidente cósmico, quer seja um deus que preencha tudo o que existe, essa pessoa ainda está sozinha.

Assim, era fútil Posso ver isso agora, mas, naturalmente, "agora" é tarde demais. Estou muito mais velha, e muitos anos infrutíferos se passaram. Olhando para trás, acho muito triste contar os anos que dediquei àquele lugar e o que ele representa. Acho mais triste ainda pensar que ele ainda está lá, ainda atraindo mais e mais Sally Roes às suas redes. Pergunto-me, será que algum dia esses adolescentes otimistas de olhos brilhantes olharão para trás através dos anos e encontrarão a futilidade que encontro agora? De uma posição mais vantajosa, será que eles avaliarão suas vidas e encontrarão tão pouco valor quanto eu?

Aqueles foram, como eu já disse, dias de loucura. Mas eu preciso RECORDAR, não importa o que seja necessário fazer. Ainda existe mais coisa na história, e preciso lembrar-me de quem são essas pessoas, onde se encontram, e o que pretendem fazer. Preciso lembrar-me de quem sou, e o que sou, ou era, para eles.

Continuarei escrevendo sempre que puder.

— É, e o sol vai esfriar antes que eu acredite nisso! Você ouviu o que eu disse!

Wayne Corrigan bateu o telefone com força e disse furioso:

— Eles não respondem aos meus interrogatórios! Estão protelando, fazendo joguinhos!

— Mas isso não é surpresa — disse Marshall.

Corrigan, Marshall, Ben e Tom estavam sentados no escritório de Corrigan comparando notas e repassando o caso.

— Quantos interrogatórios você enviou? — perguntou Marshal, sentado do outro lado da escrivaninha de Corrigan, examinando uma pilha de papeis.

— Apenas os preliminares, os básicos — disse Corrigan. — Mas nem mesmo esses eles respondem, não me telefonam de volta quando ligo para eles, e mesmo que consiga falar com alguém, eles fazem obstrução. Você pode ter percebido a reação que consegui agorinha mesmo do advogado da Brandon, aquele tal de Jefferson.

— Percebi a reação que ele conseguiu de você.

— Bem, eu estava aborrecido.

Ben reclinava contra o peitoril da janela, apenas ouvindo a conversa.

— Você se saiu muito bem. Eles mereceram. Marshall concordou.

— Eles estão apenas se protegendo. Não faria mal apertá-los um pou­quinho, mantê-los cm desequilíbrio.

Corrigan tentou explicar a sua frustração.

— Mas eles ficam dizendo que seus registros são demasiadamente pessoais e confidenciais, e então o Jefferson me disse que eles ainda nem reuniram seu material de descoberta, e acho que isso é conversa fiada. Além de tudo, acho que estão adiando a tomada de depoimentos do nosso pessoal. Querem que a gente faça isso primeiro para poderem ter mais munição. Eu não posso adiar desse jeito; simplesmente não temos tempo.

— Parece que eles não vão lhe dar nada sem uma ordem do tribunal.

— É, conte-me outra novidade.

— Ei, escute. Kate tem perguntado por aí a respeito dessa Srta. Brewer da escola primária, e já marcou uma hora para ir visitar a classe na segunda-feira. Talvez quando voltar ela tenha alguma prova que envolva essa Srta. Brewer, que você pode usar em alguns depoimentos.

— Bem, é disso que preciso: mais pistas, mais jogadores nesta coisa. Até agora estou no escuro quanto ao que o outro lado está aprontando.

Marshall atirou os interrogatórios de volta sobre a escrivaninha de Corrigan.

— Bem, a coisa é maior do que parece, sei disso.

— Toupeiras — disse Ben.

— Como? — disse Tom.

— Faça o Marshall explicar-lhe isso algum dia. É um ótimo paralelo. Corrigan estava pronto para outro tópico. — E os seus garotos, Tom?

Vai poder vê-los de novo?

Tom não se mostrava satisfeito com a resposta.

— Logo, mas não sei quando ao certo. Está tudo por conta dessa tal senhora Irene Bledsoe, e ela é... bem, é muito implacável. Tento não pensar muito a esse respeito.

Corrigan meneou a cabeça e recostou-se na cadeira, fazendo as molas rangerem. Para ele, recostar-se e examinar o teto era uma expressão típica de frustração.

— Ela está dando uma de importante, se entende o que quero dizer. Tom, se você fosse rico e poderoso, provavelmente já teria os garotos de volta a esta altura. Mas a Bledsoe sabe que tem todo o poder de que precisa, e sem bastante pressão de gente em lugares importantes, ela pode fazer o que bem entender. As leis são vagas o bastante para permitir bastante flexibilidade de caso para caso.

— Mas ela é tão exagerada! — gemeu Tom. — Está guardando os meninos como... como se estivesse com medo de perdê-los de vista, como se quisesse controlá-los.

— Ela quer e está — disse Marshall.

— Mas você ouviu contar do galo na cabeça de Rute, não ouviu? Marshall estava sentado numa cadeira giratória. Com um simples chute ele girou de frente para Tom.

— Não. Conte-me.

— Na última vez que visitei as crianças, Rute estava com um enorme galo na cabeça, e ambos disseram que ela ficou assim quando a Bledsoe quase causou um desastre quando os levava de casa! A Bledsoe está tentando pôr a culpa pelo galo em mim, sugerindo que fui eu que o causei!

Pelo que tudo indicava, Marshall ouvia uma notícia chocante.

— Quase causou um desastre?

— É. Você precisava ver como a Sra. Bledsoe tentou impedir que os meninos dissessem qualquer coisa a respeito, mas Josias me contou mesmo assim. Ele disse que ela não respeitou um sinal de pare e quase bateu numa caminhonete azul. Ela parou muito de repente, as crianças deviam estar sem o cinto, e Rute...

Ben interrompeu:

— Espere um minuto! Você falou uma caminhonete azul?

— Sim, foi o que Josias disse.

— Quando foi isso? — Ben começou a relembrar.

— Não estou certo... — Agora Tom pôs-se a lembrar. — Evidentemente foi na noite em que ela veio e levou as crianças...

O rosto de Ben iluminou-se com a lembrança.

— Aquela mesma noite em que fomos averiguar o suposto "suicídio" no sítio dos Potters! Escutem: Cecília Potter me contou que Sally Roe guiava uma caminhonete azul — uma Chevrolet 65, para ser exato — e quando estive lá examinando o local mais tarde, a caminhonete havia desapareci­do. Não sabíamos o que havia acontecido.

— A caminhonete não estava lá? — perguntou Marshall.

Ben estava começando a ficar inquieto.

— Não. Agora ouça. Segundo a Sra. Potter, a Roe sempre dirigia aquela caminhonete para o trabalho e nela voltava para a casa todos os dias. Portanto, se Sally Roe de fato suicidou-se como Mulligan e o médico legista disseram, quem levou a caminhonete dela embora?

— A pessoa com quem a Sra. Bledsoe quase trombou, isso sim! — disse Tom.

Marshall estava sentado ereto na cadeira.

— Os seus garotos viram quem dirigia a caminhonete?

— Não sei. Acho que... de certa forma... eu podia perguntar-lhes. Marshall olhou para Ben.

— Você pediu aquela averiguação criminal, certo?

— Consegui que o Chuck Molsby dê uma olhada nisso. É aquele amigo meu da policia de Westhaven.

— Espero que consigamos uma foto da policia ou algo assim.

— Espero que ela seja uma criminosa — disse Tom.

— É — disse Marshall — existe esse pequeno detalhe. Mas se conseguir­mos uma foto dela, e se pudermos passá-la aos garotos e conseguir com que a identifiquem...

— A vaca iria para o brejo! — disse Ben. — Isso provaria que Sally Roe ainda está viva, que não era o seu suicídio que descobrimos!

Marshall colocou-se de pé.

— Toupeiras.

— Aí está essa palavra novamente — disse Tom.

Corrigan endireitou-se na cadeira e debruçou sobre a escrivaninha.

— Ei, pessoal, quando quiserem me explicar tudo isso, terei prazer em ouvir. Pelo que estou sabendo, eu é que sou o seu advogado.

Marshall apanhou um pedaço de papel de anotações da escrivaninha de Corrigan.

— É exatamente como uma toupeira no seu quintal e no quintal de outra pessoa... bem, na realidade, em três quintais. Três montinhos de terra, mas todos da mesma toupeira. — Ele tirou a caneta e desenhou um pequeno circulo. — Aqui está o primeiro montinho: a ação judicial contra a escola cristã, Lucy Brandon, a ACAL, o negócio todo. — Ele desenhou outro círculo. — Aqui está o segundo montinho: A ACAL usa a linha direta para denúncias contra abuso de crianças a fim de denunciar Tom e colocar o DPC nisso. Irene Bledsoe consegue a ordem para apanhar as crianças e as leva embora. Isso liga os dois montinhos... mais ou menos. — Ele desenhou uma linha de ligação entre os dois círculos.

— Talvez — disse Corrigan. — Isto é, você sabe disso e eu sei disso, mas provar a coisa é outra história.

— Essa parte vem mais tarde — disse Marshall. — Mas agora... — Ele desenhou um terceiro círculo. — Aqui está o terceiro montinho: a misteriosa morte de Sally Roe... ou alguma outra pessoa. De alguma forma, possivelmente, a verdadeira Sally Roe viva cruzou o caminho de Irene Bledsoe logo depois da hora em que ela supostamente estava morta. — Ele desenhou outra linha de ligação entre o segundo e o terceiro círculos. — Agora vocês têm dois garotos que poderiam — poderiam — ser testemu­nhas disso, e assim... possivelmente... Irene Bledsoe os está retendo, escondendo, deliberadamente retardando as coisas tanto quanto pode, a fim de mantê-los quietos. Ora, ela poderia estar somente protegendo sua própria posição, esperando o galo de Rute sarar, ou as duas crianças esquecerem o que aconteceu. Ou...

Ben tomou a própria caneta e ligou o terceiro círculo ao primeiro, formando um triângulo fechado.

— Ou ela está ajudando a encobrir seja lá o que for que tenha acontecido no sítio dos Potters, o que significa que essa coisa da Sally Roe poderia de algum modo estar ligada com o ataque à escola cristã, que sabemos estar ligado ao fato de tirarem as crianças de Tom.

— Nada disso vocês podem provar — relembrou-lhes novamente Corrigan.

— Isso vem mais tarde — disse Marshall novamente. Ele sorriu. Sentia-se bem. — Mas é isso o que está acontecendo. Temos toupeiras — poderes espirituais e seus equivalentes humanos — por baixo de tudo isso, e eles abriram uma saída na superfície nessas três áreas.

Tom fixou os olhos nos três círculos.

— Se vocês querem falar de atividade espiritual subterrânea... que tal a quilometragem que Satanás conseguiu com todo esse negócio do DPC? Eles me fizeram ficar marcado como um tipo que abusa de crianças, e a igreja toda está-se desmantelando por causa disso. Não podemos ganhar nenhuma luta de qualquer tipo que seja do jeito em que estamos.

Marshall fez que sim com a cabeça.

— Exatamente. Agora você está começando a perceber. Tom queria acreditar naquilo.

— Mas... não vejo nenhuma ligação direta entre o que aconteceu a Sally Roe e o que está acontecendo na escola. Não há nada aí.

— Há, sim — disse Marshall.

— Não há! — disse Corrigan. — Você não pode provar nem um tiquinho disto!

— Provaremos. Podem me chamar de fanático, mas acho que Deus nos está mostrando isto. Ele nos está dando um esboço; tudo o que temos de fazer é preenchê-lo.

Ben ficou agitado.

— Você topou com algo, Marshall!

— Mas nada que eu possa usar! — disse Corrigan.

Marshall colocou a caneta de volta no bolso e apenas olhou o pequeno diagrama.

— Conseguiremos algo para você, Wayne. Não sei o quê, mas consegui­remos.

A música era suave, contínua, irresistível, de ritmo e tom relaxantes. A Srta. Brewer, uma Jovem e bonita professora com um sorriso afável, lia de um roteiro numa voz branda, quase hipnótica.

— Sintam a brisa vagueando pelos cabelos, sintam o sol cálido na pele, a terra firme e acolhedora debaixo do corpo. Vocês são apenas uma boneca de pano, totalmente frouxa, cheia de pó de serra...

Kate Hogan, sentada em silêncio nos fundos da sala de aula, tentava rabiscar subrepticiamente umas notas enquanto observava os vinte e três alunos da quarta série fazer o exercício. As carteiras estavam arranjadas de modo a permitir espaço livre no chão para uma área de atividade em uma das pontas da sala, e agora ali as crianças estavam deitadas de costas sobre cobertores, travesseiros ou casacos, os olhos fechados, a respiração lenta e profunda, os braços frouxos aos seus lados.

— Primeiro o pó de serra se escoa da sua cabeça... depois do pescoço... depois do peito... Vocês começam a simplesmente a afundar, afundar, afundar na direção do chão...

Kate olhou para o relógio na parede. Até então, elas haviam estado deitadas no chão por dez minutos.

A música continuava tocando. A Srta. Brewer chegou ao fim do seu monólogo brando, cadenciado. Ela parou, olhou pelo chão a cada criança, e depois prosseguiu com algumas instruções ditas baixinho.

— Estão ouvindo uma tagarelice? — Então ela sussurrou: — Ouçam! Estão escutando? — Ela esperou um momento para que as crianças escutassem. — Está chegando mais perto agora, não está? É o seu novo amigo, a sua pessoa sábia; ela veio conversar com você. Deixe seu amigo aparecer na sua tela mental. Qual é o nome do seu amigo?

Kate rabiscou apenas algumas palavras para orientar a sua lembrança. A maioria dos detalhes do que agora testemunhava já lhe eram familiares.

— Selecione um lugar para o seu amigo; arrume um lugar na sua mente para ser a casa do seu novo amigo. Faça com que seja algo bem certo para ele. Agora converse com o seu amigo, a pessoa sábia que é só sua. Lembre-se, o seu amigo sabe tudo a seu respeito... como você se sente... do que gosta... do que não gosta... todos os seus proble­mas e tristezas...

O exercício durou outros quinze minutos mais ou menos, e o silêncio na sala era impressionante para um grupo daquela idade. Enfim, depois de um tempo predeterminado, a Srta. Brewer contou lentamente até cinco e depois estalou os dedos. As crianças pareceram acordar de um transe, e sentaram-se.

— Muito bem! Agora vamos todos sentar-nos e os monitores passarão papel. Desenharemos os nossos novos amigos.

As crianças dobraram os cobertores, guardaram os travesseiros, dependuraram os casacos, e em seguida voltaram às suas carteiras. Uma criança de cada fileira passou papel de desenho às outras. Debaixo da orientação firme mas bondosa da Srta. Brewer, as crianças tiraram seus crayons e puseram-se a desenhar retratos.

A Srta. Brewer andava para cima e para baixo das fileiras, examinando o progresso de cada criança.

— Oh, que amigo bonito! O que é isso na cabeça dele? Estrelas? Ele deve ser uma criatura maravilhosa!

Kate também deu uma voltinha. As crianças desenhavam pôneis, dragões, príncipes e princesas, e também alguns monstros bem apavoran­tes. Todos receberam elogios e os parabéns de Brewer.

Um garotinho mostrou sua figura a Kate.

— Este aqui é o Pé Grande — apontou ele. — Vou guardá-lo no meu porão mental.

O desenho era arte típica de criança da quarta série, mas reconhecível como um vulto gigante, pesadão, com grandes pés.

— Olhe que pés enormes ele tem — brincou Kate. — O que ele faz com esses pés tão grandes?

— Ele pisoteia minha mãe, meu pai e todos os meninos grandes.

— Nossa.

Uma garotinha voltou-se para tomar parte na conversa, segurando o seu desenho para Kate ver.

— Está vendo o meu amigo? É um dragão mas não solta fogo pelo nariz. Ele cospe balas duras!

— Oh, e você o viu hoje?

Ela meneou a cabeça um tanto triste.

— Não. Ele já mora na minha cabeça; faz tempo que ele mora ali e somos amigos. Eu não consegui ver meu novo amigo hoje. Ouvi-o mas não consegui vê-lo.

— Olhe a minha figura! — disse outra meninazinha.

Kate dirigiu-se até ela para olhar. Então deu uma olhada mais prolon­gada.

A criança havia desenhado um pônei de grandes olhos e bochechas redondas. O desenho era excepcional.

— Este é Ponderey — disse ela. — É o meu guia íntimo.

— Um pônei... — disse Kate assombrada. Ela sorriu. — É uma figura maravilhosa, querida. Você desenha muito bem.

— O Ponderey me ajuda. Ele adora desenhar.

Kate sentou-se no fundo da sala novamente e rabiscou mais algumas notas, embora sua mão estivesse um pouco trêmula. Ela parecia tão transtornada que temia perder seu modo quieto, profissional.

Não demorou muito e chegou a hora do recreio. As crianças saíram numa fila ordeira até chegarem à porta do pátio, e então abandonaram o prédio como marinheiros abandonariam um navio afundando.

A Srta. Brewer afundou-se na cadeira à escrivaninha e suspirou com grande sorriso.

— Bem, essa parte do dia terminou!

Kate aproximou-se dela e encontrou uma cadeira por perto.

— Formam um grupo maravilhoso.

— Não é mesmo? Este é um ótimo ano para mim; as crianças desta cidade são realmente especiais!

— O exercício cm criatividade foi algo especial também; provocou uma porção de reações.

Brewer riu de prazer e orgulho.

— É uma aventura todas as vezes. As crianças podem ser muito criativas, e existe muita sabedoria e percepção trancada dentro de cada uma delas. Nunca se sabe o que elas vão revelar.

— E como você chama isso? Não é parecido com Aprendizado de Todo o Cérebro?

— Claro. É parte disso. Mas a maioria dos conceitos e exercícios vêm do currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu. É um programa experimen­tado e testado, e inclui as melhores teorias provadas que estão sendo usadas agora. É muito abrangente.

— Bem, qual é o princípio subjacente a tudo isso? A Srta. Brewer sorriu.

— Você não é uma das mães, é?

— Não, apenas cidadã curiosa. Como disse no telefone, ouvi muito a respeito do que você faz aqui, e achei que seria interessante assistir.

— Claro. Bem, naturalmente a nossa perspectiva é a de que cada criança deveria ser livre para atingir seu mais alto potencial, e isso requer uma certa quantidade de liberdade criativa e intuitiva. Com muita freqüência o educador pode sufocar esse potencial ao impor uma regra de comporta­mento ou verdade particulares sobre o aluno quando o aluno deveria experimentar suas próprias realidades, criando seu próprio conceito do mundo.

— Descobrimos que os exercícios de relaxamento e visualização são a verdadeira chave para soltar cada criança, libertando-a para começar seu próprio processo de realização. O consciente humano, mesmo numa criança, leva uma incrível riqueza de conhecimento que nenhuma classe tradicional poderia jamais cobrir mesmo durante uma vida inteira. Esse conhecimento está à disposição de cada criança cm sua própria sabedoria intima. Não ensinamos à criança como sentir ou como perceber a verdade. Tudo o que temos de fazer é mostrar-lhe como destrancar sua própria sabedoria e intuição intimas, e o resto simplesmente acontece.

— E era isso o que fazia hoje?

— Ora, claro, exatamente. Usamos apenas cerca de dois por cento do nosso cérebro de qualquer forma. Quando ensinamos às crianças a atingir os vastos recursos escondidos no resto do seu cérebro, o céu é o limite.

— Então, onde é que esses "guias íntimos" e "pessoas sábias" entram nisso tudo?

A Srta. Brewer deixou que seus olhos perscrutassem o céu enquanto formulava uma resposta.

— Simplificando, existe um vasto depósito de conhecimento trancado em nosso próprio subconsciente, e uma das maneiras de chegar a ele é personificá-lo, vesti-lo como se fosse uma pessoa, um personagem que nos seja familiar. Por isso, vamos dizer que eu seja uma garotinha com medo de gente grande, adultos, talvez meus próprios pais. Na realidade, já tenho dentro de mim todo o conhecimento de que preciso para enfrentar qualquer situação que encontre. Preciso apenas aprender isso comigo mesma. Assim, para facilitar, eu relaxo, deixo minha mente solta, e imagino — visualizo — uma imagem favorita, um personagem, um amigo. Você notou as figuras que as crianças desenharam? Cada um desses desenhos era como as crianças expressavam um amigo intimo, um guia intimo, uma personificação de sua própria sabedoria com a qual sentem-se livres, desimpedidas e à vontade. Uma vez que tenham criado essa imagem, ela assume vida própria, e pode conversar com elas e dar-lhes o conselho e instruções de que precisam para seja lá o que for que estejam tendo de enfrentar. Em suma, estão aprendendo de si mesmas, de seus próprios conscientes enterrados.

— E tudo isso está contido nesse currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu?

— Está tudo lá dentro, todo organizado, categorizado e classificado. Torna a tarefa toda bem mais simples.

— Mas — se eu puder fazer o papel de advogado do Diabo por um momento — o que estão realmente aprendendo com tudo isto? Existe algum progresso acadêmico relacionado ao tempo que você gasta para fazer esses exercícios?

A Srta. Brewer se deteve a fim de formular uma resposta. — Acho que aquilo a que está se referindo é o tipo de argumento que ouvimos bastante, que não estamos realmente ensinando nada às crianças, mas as estamos programando, ou usando-as como cobaias. Mas, na verdade, o que é a educação? É treinar e equipar as crianças para viverem suas vidas, sobre­viverem neste mundo, terem as atitudes e habilidades de vida certas a fim de adaptarem-se a um ambiente social que está mudando rapidamente.

— E... pelo que estou entendendo, naturalmente, leitura, escrita, matemática, estudos sociais, matérias como essas têm seu lugar nessa definição abrangente de educação?

A Srta. Brewer fez uma cara esquisita.

— Bem... treinamento básico acadêmico é uma coisa, mas não fará acontecer a mudança necessária...

— Mudança?

— Bem, leitura, linguagem, aritmética, e essas outras matérias estão em uma categoria diferente. Não podem ser aplicadas num sentido afetivo, clínico...

Kate hesitou. Essa mocinha era entusiasta com relação ao seu trabalho e estilo de lecionar, mas também vaga em suas respostas.

— Muito bem...— disse ela, correndo os olhos por suas anotações. — Você usou a palavra "clínica". Então, vê o seu papel como sendo mais do que uma professora? Vê a si mesma também como algum tipo de terapeuta?

A Srta. Brewer sorriu e assentiu com a cabeça.

— É uma maneira justa de colocar a coisa, acho eu. Não é uma educação completa apenas encher-lhes as cabeças com as mesmas velhas idéias que foram ensinadas aos pais. Precisamos equipá-las para se elevarem acima de qualquer conhecimento anterior, e procurarem sua própria verdade e valores pessoais.

Kate estava cansada de generalidades.

— Mesmo que isso signifique treinar criancinhas em xamanismo e meditação oriental?

A Srta. Brewer riu como se tivesse ouvido uma piada.

— Você faz parecer que existe algum tipo de religião ocorrendo aqui. Essa é uma objeção comum que ouvimos o tempo inteiro. Existem alguns pais que me procuraram com esse conceito, mas a coisa foi resolvida. Isto não é religião; é puramente científico.

— Pelo que entendi, esses mesmos pais tiraram os filhos desta escola porque se convenciam de que você ensinava religião aqui, algo contrário às suas próprias crenças.

A Srta. Brewer assentiu. Ela se lembrava.

— Acho que foi assim que resolvemos a coisa. Parece que já conversou com eles.

Kate também assentiu.

— Sim.

A Srta. Brewer ainda mostrava-se agradável e tanto mais confiante.

— Bem, eu não tenho dúvidas sobre o que fazemos aqui. Acho que o conselho escolar e todos os professores que eles contratam estão mais do que qualificados para julgar o que é útil e construtivo para as crianças. E os tribunais têm apoiado a comunidade educacional nesse aspecto. Se os pais não acham que podem confiar cm profissionais altamente treinados, então acho que tirar os filhos é a sua única verdadeira opção. Não estamos aqui para servir a uns elementos marginais que insistem em viver no passado.

— Você se referiu ao conselho escolar. Depreendo que eles seleciona­ram e autorizaram o currículo Descobrindo o Verdadeiro Eu?

Sim, unanimemente. Você precisava conhecê-los antes de tirar as conclusões finais. Eles são um grupo maravilhoso de pessoas. Orgulho-me de trabalhar com eles.

— Bem, estou certa de que são. Mas diga-me... — Kate estava pronta para fazer a pergunta mas não sabia se a Srta. Brewer estava pronta para a resposta. — Amber Brandon não estava na sua classe este ano?

A Srta. Brewer recebeu aquela pergunta como uma revelação. Fechou os olhos e sorriu um longo, ostentoso sorriso, como que a dizer Aha!

Então... é esse o motivo desta visita?

Kate decidiu usar ela mesma um pouco de retórica educacional.

— Bem, vamos apenas nos lembrar de que todos acreditamos na liberdade de pensamento, liberdade de informação, e acima de tudo isenção de censura para aqueles que têm o direito de saber. — Depois, ela experimentou uma resposta direta. — Precisa saber que sou amiga de Tom Harris, e faço um pouco de pesquisa para ele.

A Srta. Brewer era pessoa verdadeiramente admirável. Ela permaneceu forte e sentou-se ereta.

— Não me importo. Não tenho de pedir desculpas ou esconder nada do que faço nesta classe. Respondendo à sua pergunta, sim, Amber Brandon esteve na minha classe, e para falar a verdade, está de volta de novo para terminar o ano.

— Ela estava aqui hoje? Acho que não a vi.

— Não, e é compreensível. Devido ao trauma pelo qual passa, ela simplesmente já não está disposta a assistir a esta parte da aula. Ela fica esse tempo na biblioteca, e então volta às aulas depois do almoço.

— Então você pode me contar a respeito de Ametista, o pônei?

A Srta. Brewer ergueu-se da escrivaninha e apontou uma figura feita com crayon colocada bem acima do quadro-negro.

— Aqui está, bem aqui.

Kate aproximou-se para ver melhor.

Foi uma experiência sinistra, como dar pela primeira vez com os olhos num ladrão que ataca de noite, ou ver pela primeira vez o rosto de um estuprador.

Então essa era Ametista!

Era um pequeno pônei roxo com brilhante crina e cauda cor-de-rosa; os olhos eram grandes e cintilantes, e ele tinha uma estrela de cinco pontas na bochecha, pequenas asas brancas que lhe saíam do ombro. O animalzinho se postava ereto e alerta debaixo da curvatura de um arco-íris. Era lindo, um desenho admirável paia uma criança de dez anos. No canto direito inferior, Amber havia cuidadosamente escrito o nome em letra de forma e com lápis escuro.

— Ela desenhou isto cerca de um mês antes de se transferir para a escola cristã — explicou a Srta. Brewer. — Ela estava tendo experiências extraor­dinárias durante as nossas sessões de exercícios. Nunca vi tanto progresso numa criança.

Kate engoliu. Sua boca estava subitamente seca.

— E você... — começou ela, mas teve de limpar a garganta. — Você afirma que esta... esta imagem... é uma...

— Uma visualização da própria sabedoria íntima de Amber.

— Entendo. — Kate esperou um momento para formular a próxima pergunta. — Então... como provavelmente sabe, o caso atual contra Tom Harris adveio de uma confrontação entre ele e... e Amber como Ametista.

A Srta. Brewer sorriu.

— Bem... tudo o que posso dar é a minha opinião.

— Por favor.

— Sempre que uma criança é metida numa situação intolerável, tal como num caso de abuso, não é incomum que ela enterre a lembrança do acontecido ou qualquer pensamento a respeito a fim de evitar a dor e o trauma do evento. Muitos conselheiros que tratam com abusos infantis descobriram que uma forma de fazer com que as coisas sejam expostas é permitir que a criança projete a lembrança sobre um objeto neutro, tal como uma figura ou uma boneca ou um fantoche.

— No caso de Amber, temos um pequenino pônei que é sagaz, confiante e puro, e que tem a força para enfrentar tais problemas quando Amber não tem. Quando se trata do que realmente aconteceu na escola cristã, Amber não consegue falar a respeito, mas cm vez disso deixa que Ametista se projete e fale em seu lugar.

Kate digeriu aquilo por um momento.

— Mas isso explicaria porque Ametista apareceu e causou uma agitação mesmo antes que Tom Harris a confrontasse?

— Bem, não sabemos tudo o que aconteceu, sabemos? Poderia ter havido algum abuso antes dos acontecimentos que Tom Harris lhe contou.

— E se Amber tivesse ido à escola já se manifestando como Ametista? Será que isso sugeriria ter havido algum tipo de abuso antes de Amber ter conhecido Tom Harris ou jamais passado um dia na Academia do Bom Pastor?

A Srta. Brewer meneou a cabeça.

— Duvido. Amber vem de um lar muito amoroso. Kate assentiu.

— Está bem. Diga, você teria uma cópia desse currículo à mão? Gostaria de dar uma olhada nele.

— Certamente.

A Srta. Brewer dirigiu-se as prateleiras atrás de sua escrivaninha e examinou todos os títulos.

— Bem... não, hummm... — Ela se endireitou e voltou-se. — Bem, não está aqui.. — Então ela se lembrou. — Oh, é isso mesmo, desculpe. O diretor, o Sr. Woodard, pediu-o emprestado. Ele devia tê-lo trazido de volta, mas obviamente ainda não o fez. Mas se quiser, sempre posso pedir um exemplar na editora.

Aquela idéia despertou o interesse de Kate.

— E que editora seria essa?

— O Centro Ômega para Estudos Educacionais. Acho que tenho o endereço deles aqui nalgum canto.

A Srta. Brewer procurou em algumas pastas sobre a sua escrivaninha. Kate tinha outra pergunta, um tiro no escuro.

— Não existe um grupo de apoio de algum tipo em Baskon? Um grupo chamado Círculo Vital?

A Srta. Brewer ergueu os olhos da sua busca.

— Oh, sim. É um grupo maravilhoso de pessoas.

— O que e esse grupo exatamente?

— Oh, apenas uma comunidade não muito estruturada de pessoas com os mesmos interesses — as artes, religião, filosofia, ecologia, paz, esse tipo de coisa.

— Você é desse grupo?

— Sim, sou.

— Então deve conhecer Lucy Brandon pessoalmente.

— Uh-huh. — Ela se conteve e sorriu. — Isso mesmo; você talvez esteja descobrindo tudo sobre ela.

Kate sorriu e deu de ombros.

— Claro.

— Oh, aqui está o endereço. — Ela o rabiscou num pedaço de papel.

— Então, aquela outra mulher, a assistente legal para a firma Ames e Jefferson...?

— Claire Johanson. — Sim.

— Ela também deve estar envolvida nisso.

— Oh, sim. É uma das líderes. Mais uma porção de gente faz parte do grupo.

— Quem, por exemplo?

A Srta. Brewer parou, bateu com o dedo no queixo enquanto pensava por um momento, e então respondeu:

— Talvez devesse perguntar às próprias pessoas.