terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 22


 Não chegamos à conclusão de que o batismo do Espírito Santo sempre liberta um rapaz. Pelo contrário, às vezes, acontecia o oposto — prendia-o. Esse tem sido simultaneamente um dos resultados mais animadores e mais desanimadores do nosso trabalho. A princípio, estávamos esperançosos, pensando que o batismo livraria os rapazes do domínio das drogas, sempre e definitivamente.

Tínhamos boas razões para essa esperança. Tão logo passamos a suspeitar de que havia uma relação entre o batismo e a capacidade de um rapaz de conseguir largar o vício, começamos a fazer um esforço todo especial, no sentido de levar os jovens à experiência.

De início, experimentamos, um tanto cautelosamente, num fumante de maconha. Luis era um dos rapazes que usava essa erva que vicia a mente, e não o corpo. Recebeu o batismo do Espírito Santo, e viu-se livre, completamente.

Animados, passamos para uma experiência mais difícil. O que aconteceria com um rapaz como Roberto, o qual havia sido viciado em heroína, que vicia não apenas a mente mas também o corpo? O que aconteceria com Roberto? Começamos a vigiá-lo, procurando sinais de ter voltado às drogas, mas todos os dias ele voltava ao Centro, com os olhos brilhando e o ânimo fortalecido.

"Acho que venci, David. Tenho uma ferramenta que posso usar — venho aqui com os outros rapazes para orar."

Vezes seguidas, vimos os mesmos resultados. Haroldo veio sob recomendação da polícia; estivera profundamente viciado durante três anos, mas depois do batismo disse que a tentação desaparecera. Joãozinho usara heroína por quatro anos, e con­seguiu deixá-la depois do batismo. Lico usara a agulha dois anos, e depois do batismo não só se livrou da droga, mas resolveu ingressar no ministério.

Vicente usara heroína por dois anos até o seu batismo, quando a deixou completamente. Rubens fora viciado por quatro anos; depois do batismo, recebeu forças para deixar o vício. Eduardo começara a usar heroína quando tinha doze anos; quinze anos mais tarde ainda usava a droga. Estava quase morto devido aos efeitos causados pelo seu uso constante. O batismo do Espírito Santo libertou-o do vício.

Fiquei tão animado que fui falar com autoridades médicas, para saber sob que base poderíamos fazer algumas afirmações ousadas.

— Nenhuma, disseram. Em Lexington não se considera um viciado curado, até que se passem cinco anos. Há quanto tem­po os seus rapazes estão livres?

— Não muito.

— Alguns dias?

— Não, questão de meses. Em alguns casos, mais de um ano.

— Bem, isso já é animador. Conte-me mais sobre esse batis­mo de que você fala.

No final da nossa conversa, avisaram-me novamente que é quase impossível ajudar um viciado, e que eu deveria esperar algumas decepções. E me disseram:

— O pior é que, quando um rapaz volta, atola-se no vício muito mais do que antes. Se ele tomava injeções duas vezes por dia, começa a usar três. Se tomava três, passa para cinco. A degeneração é muito mais rápida depois de uma queda.

Foi aí que um dos rapazes caiu, mesmo depois do batismo do Espírito Santo. Não conseguira aprender que viver no Espí­rito é tão importante quanto receber o Espírito.

Rafael fumara maconha por dois anos, e usara heroína du­rante três. Estava bem viciado. Já tentara centenas de vezes libertar-se do vício. Tentara deixar a quadrilha onde seus colegas o ajudavam a injetar o líquido nas veias.

Falhou todas as vezes. Só havia uma saída: Rafael pensou em tirar a própria vida, antes que tirasse a vida de alguém numa noite escura, quando estivesse louco por uma picada. Certa noite, dois anos atrás, Rafael subiu num telhado. Ficou na beiradinha, pronto para pular na rua. Estava apenas esperando até que o local ficasse livre.

Naquele momento, ouviu vozes cantando. O som vinha de uma das nossas igrejas "quadrilheiras", que se reunia numa casa bem em frente ao prédio onde Rafael estava. Parou para ouvir. "Rude cruz se erigiu..."

Rafael desceu do telhado. Ouviu o resto do hino e depois, vindo pelas escadas, atravessou a rua. Uma placa do lado de fora trazia um convite para entrar e ouvir a história de como Deus estava agindo nas ruas do Brooklyn, ajudando rapazes viciados e presos a quadrilhas.

Entrou e nunca mais foi o mesmo. Entregou sua vida a Cristo, e mais tarde recebeu o batismo do Espírito. Sentíamos muito orgulho de Rafael, e ainda sentimos. Deixou a agulha por mais de um ano. Mudou-se de Nova Iorque e foi para a Califórnia, onde conseguiu se manter livre.

Depois voltou para fazer-nos uma visita. Por alguns dias tudo correu bem, mas comecei a notar um certo desânimo apoderar-se dele todas as vezes que voltava ao lugar onde havia residido. Soube que seus velhos amigos o estavam tentando para tomar uma picada outra vez. Rafael estava sendo tentado.

Procuramos ficar em contato constante com ele, mas ele se esquivava. Então, Rafael caiu. Conseguiu a droga, foi para o quarto e enfiou a agulha nas veias.

Cinco vezes antes de receber o batismo do Espírito Santo, ele havia tentado deixar as drogas. A cada vez ficava tão desgostoso consigo mesmo que, depois da queda, começava a tomar mais do que anteriormente. Agora, depois de um ano, estava novamente usando a droga.

Mas, dessa vez, aconteceu uma coisa estranha. A aplicação não teve o efeito costumeiro. No dia seguinte, Rafael entrou no Centro sorrateiramente e quis falar comigo. Quando en­trou no meu escritório, fechou a porta, e eu percebi o que ele estivera fazendo. Depois de achar coragem para contar o que havia feito, disse:

"Está acontecendo uma coisa estranha. Depois de aplicar a injeção, foi como se não tivesse tomado nada. Não é nada do que eu sentia antes; senti alguma coisa tão diferente, que nem sei explicar. Subitamente tive vontade de correr à igreja mais próxima e orar. E foi isso que eu fiz, David. Mas, dessa vez, não senti nojo de mim mesmo — fui perdoado. Em vez de ir de mal a pior, a tentação desapareceu."

Os olhos de Rafael brilhavam enquanto dizia:

"Você sabe o que penso? Acho que estou preso, de verdade. Não pela heroína. Acho que estou preso pelo Espírito Santo. Ele está dentro de mim, e não vai me deixar fugir."

Rafael voltou para nós humilhado, perfeitamente cônscio de que o Espírito Santo o tornara propriedade especial de Cristo. Não conseguia fugir dele, mesmo tentando fazê-lo.

O mesmo aconteceu com Beto, que era viciado havia quin­ze anos. Ele caiu também por um certo tempo, mas descobriu ser impossível voltar à agulha.

Também Sílvio que, depois de cair uma vez, voltou com tanto ânimo e convicção a ponto de agora querer ingressar no seminário.

A que conclusão chegamos?

Certamente não podemos afirmar ter uma cura mágica para o vício de entorpecentes. O diabo que se esconde naquela agu­lha é tão poderoso que uma afirmação dessas seria tolice. O que podemos dizer, talvez, é que achamos um poder que pode dominar um rapaz mais fortemente do que o narcótico. Esse poder é o próprio Espírito Santo que, ao contrário dos narcó­ticos, faz algo de estranho para os rapazes — prende, para libertar.

Ainda estamos no início do que consideramos uma experiên­cia ousada. Temos muito a aprender sobre o que essa experiên­cia religiosa pode e não pode fazer nas vidas infelizes. Todos os dias descobrimos coisas novas. Diariamente aprendemos como ter mais êxito em nosso trabalho, e como aumentar a porcentagem de curas permanentes.

Uma das promessas de Cristo é que o seu Espírito nos guia­ria a toda a verdade. É nessa promessa que nos baseamos, sabendo que um dia ele nos levará a descobrir princípios que poderão ser usados não apenas por nós aqui na Avenida Clinton, mas em todo o país, onde quer que a solidão e o desespero tenham levado rapazes e moças a procurar escapar de seus problemas com uma seringa, uma agulha suja e um fogareiro de tampinha de cerveja.

Certo dia, eu e Linda estávamos no meu escritório conversando sobre esse assunto, imaginando onde poderíamos chegar com tudo isso. Mas senti que nenhum de nós quis mencionar o nome de uma certa pessoa — Maria.

"Será que Maria poderia receber o batismo?" perguntei subitamente.

Vi nos olhos de Linda a afirmação de que ela estivera pensando a mesma coisa. Concordamos que o problema de Maria era sobremaneira difícil, sendo já viciada há muitos anos.

Depois de sua última visita, eu e Linda achamos que ela estava se deteriorando fisicamente e que não teria muito tempo de vida, Não conseguia me esquecer dela, e quantas vezes, até dormindo, eu via aquelas olheiras escuras e profundas, as mãos fechadas, e os lábios trementes.

Resolvemos orar para que se desse um milagre na vida de Maria. Nós dois alimentávamos o sonho de levá-la ao batismo aqui no Centro, mas não aconteceu assim.

Certo dia, no fim do verão, recebemos um telefonema. Era de Maria. Estava na igreja do Reverendo Ortez.

— Reverendo Wilkerson! ela quase gritou no fone. Tenho uma boa notícia para lhe dar! Ontem à noite, aqui, eu recebi o Espírito Santo!

Suas palavras eram incoerentes pela emoção em que se achava, por isso pedi que ela chamasse o Reverendo Ortez ao aparelho.

Enquanto ele descrevia o acontecimento, eu podia quase ver a cena — Maria entrando no que antigamente fora uma casa particular, espremida entre apartamentos onde se realiza­vam muitas festas barulhentas; Maria passando por entre outros homens e mulheres de origem latina, até achar uma cadei­ra desocupada e dirigindo-se ao altar. Podia até ouvir sua voz, rouca como na última vez em que nos visitou — agora implo­rando ao Senhor que enviasse o seu Espírito para habitar nela. Podia vê-la cair de joelhos e sentir no coração grande esperan­ça, enquanto mãos carinhosas pousavam na sua cabeça. De­pois a língua suave, macia e melodiosa que ela não entendia, saindo dos próprios lábios, como selo e sinal de que a oração fora respondida.

O Reverendo Ortez estava jubilante.

— Esperamos muito tempo por isso, não? disse ele.

— Nem diga. É mais uma vitória.

Intimamente, porém, eu me sentia apreensivo. Sabia que Maria tinha uma grande fraqueza. Quando ficava zangada, voltava à droga. E o padrão seguido por muitos viciados, e eu havia visto acontecer com ela muitas vezes, vezes demais. Sen­ti que se uma vez apenas Maria pudesse vencer esse problema da ira, estaria bem. Não demorou para que Maria fosse prova­da.

Certa noite, Maria desceu do ônibus numa rua aparente­mente deserta em Manhattan, perto do seu antigo domínio. Ao dar uns passos, três moças puseram-se à sua frente, saindo das sombras.

— Olá, Maria.

Maria olhou bem e reconheceu as meninas — membros de sua antiga quadrilha. Cumprimentou-as calorosamente. Nas sombras, atrás delas, podia distinguir o vulto de um rapaz. Uma das meninas disse:

— Ei, Maria, ouvimos dizer que você não está mais usando H. Ouvimos também que você virou crente.

— Certo, respondeu Maria.

— Que beleza! Que coisa boa! Então se você não está gas­tando todo o seu dinheiro com dinamite, deve estar podre de rica. Será que você emprestaria um dinheirinho para as velhas amigas?

Maria sabia muito bem o que fariam com o dinheiro. Quantas vezes estivera num quarto escuro com estas mesmas moças, amarrando um cinto no braço e enfiando nas veias a agulha de uma seringa cheia de heroína.

— Sinto muito, disse ela. Para a finalidade que vocês que­rem, não.

Maria nem viu quando foi atacada. Um soco na barriga fez com que se dobrasse de dor. Seu primeiro instinto foi devolver a pancada, e Maria era bem conhecida na redondeza por sua valentia e força numa briga. Mas ela ficou em pé, com as mãos na cintura, e não se mexeu. Como naquele primeiro dia em que passara pelo teste para a presidência da gangue, ela acei­tou o castigo sem murmurar.

Mas que diferença heróica entre as duas ocasiões! Dessa vez, Maria estava orando!

Continuou orando enquanto lhe enfiavam uma faca nas costelas. Continuou a orar enquanto as três se abaixaram so­bre o seu corpo caído, arrancaram-lhe a bolsa das mãos e saí­ram rindo.

Depois de algum tempo, Maria levantou-se, devagar, na rua deserta. Conseguiu chegar em casa, onde João ajudou-a a tirar a roupa manchada de sangue. Juntos examinaram a ferida. A faca furara-lhe a carne perto das costelas.

O ferimento não era muito profundo, e João achou que não era sério. Ficou preocupado, porém, sobre quais seriam as emoções de Maria diante do acidente. O que aconteceria agora? Quantas vezes já presenciara sua mulher conseguir caminhar uma certa distância no caminho da recuperação, e de repente cair e voltar atrás, quando alguma coisa a irritava.

Mas, naquela noite, depois de medicar os ferimentos, Maria dormiu em paz como uma criança.

Fiquei muitíssimo impressionado com essa história. Depois da surra, Maria foi visitar-nos no Centro, onde entrou com os sinais das contusões ainda bem roxos.

— Reverendo, deram-me uma boa, mas eu fiquei orando, e no fim deu tudo certo. O Espírito Santo estava comigo.

Olhei para Linda, que estava tão surpresa quanto eu, pela transformação.

— É só disso que precisamos saber, disse eu em voz alta.

A última ocasião em que a vi, ela e sua família estavam de partida para Porto Rico. João parecia orgulhoso, ao seu lado. Os três filhinhos de Maria se agarravam acanhados à sua saia limpa e engomada; apegavam-se a uma pessoa em quem já podiam confiar. O cabelo dela estava artisticamente penteado, o laquê brilhando à luz do sol. Usava sapatos novos, e suas pernas (talvez um ministro não devesse fazer observações como essa) estavam bem depiladas. Além disso (uma observação mais apropriada), suas mãos se mostravam repousadas e graciosas.

Maria contou-nos que ela e sua família iriam para Porto Rico, com a finalidade especial de freqüentar uma escola que preparará o casal para trabalhar de tempo integral na igreja. Depois de findo o estudo, voltará a Nova Iorque, e esperamos que trabalhe conosco aqui no Centro.

Enquanto estava ali, olhando para a família que partia, re­peti seguidas vezes as palavras de Jesus: "E conhecereis a ver­dade, e a verdade vos libertará" (Jo 8.32).