terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 20


 O enorme poder que as drogas têm sobre o corpo hu­mano não se explica apenas em termos físicos. Meu avô dizia que o diabo se apodera desses jovens, e eu acho que ele estava certo. Os próprios rapazes dizem o mes­mo, só que de maneira diferente.

"David", disseram-me vários deles, "há dois hábitos que precisam ser quebrados, se você é viciado. O hábito do cor­po e o da mente. O do corpo não é problema assim tão gran­de; você apenas passa pelo inferno durante três dias, agüen­ta sofrimento um pouco menor durante um mês, depois está livre.

"Mas o hábito mental, David... isto é que é terrível! Há qualquer coisa dentro da gente que obriga a voltar. Parece uma voz de fantasma, falando com a gente. Temos nomes para esse camarada: ou é um macaco nas costas, ou um abutre nas veias. Não conseguimos nos livrar dele, David. Mas você é pregador. Quem sabe esse Espírito Santo, de quem você tanto fala, quem sabe ele pode ajudar?"

Não sei por que demorei tanto a reconhecer que essa era a direção que deveríamos seguir. Essa idéia foi como uma evolução; começando com um fracasso, e terminando com uma descoberta maravilhosa.

O fracasso foi um rapaz chamado José. Nunca me esqueci dos quatro dias traumáticos que passei ao seu lado, tentando ajudá-lo durante as dores que sentia, quando tentava se livrar do vício da heroína.

José era um rapaz simpático. Alto, loiro, já havia sido bom atleta, e não se viciara da maneira habitual.

— Suponho que os remédios que me deram contra dor foram necessários, disse José no escritório do Centro. Sei que quando precisava deles ficava contente com o alívio que traziam. Mas veja o que aconteceu depois. Nunca consegui me livrar.

José contou-me a sua história. Trabalhava para uma companhia de carvão. Certo dia caiu numa das máquinas, o que o levou ao hospital por vários meses, durante os quais sentia muita dor. Para aliviar um pouco a sua agonia, o médico receitou um narcótico. Antes de deixar o hospital, José estava viciado.

— Não podia comprar a droga, continuou ele, mas descobri que havia um xarope que continha também um narcótico. Então eu andava por toda a cidade para comprá-lo. Era preciso ir a diversas farmácias e usar também nome diferente, mas nunca tive dificuldade, e conseguia quanto queria. Comprava-o, entrava no primeiro banheiro que encontrava, e bebia o vidro todo de uma vez.

Depois de algum tempo, contudo, isso não satisfazia mais a necessidade crescente que José sentia de drogas. Ficou sabendo que alguns dos seus colegas de escola estavam usando hero­ína, e entrou em contato com eles. Dali para frente seguiu o mesmo caminho dos outros. Primeiro fumo, depois injeções no músculo e, finalmente, injeções na própria veia. Quando José veio à nossa procura, já tomava heroína havia oito meses, e estava profundamente viciado.

— Você pode ficar aqui no Centro uns três ou quatro dias? perguntei.

— Ninguém mais me quer.

— Você pode ficar lá em cima com os obreiros. José concordou.

— Não será fácil; você sabe. Será um "peru-frio"!

José sacudiu os ombros.

"Peru-frio" — o método instantâneo para deixar os alucinó­genos — é o sistema empregado nas cadeias para fazer um rapaz deixar as drogas. Nós o usávamos porque não tínhamos esco­lha; não poderíamos aplicar as drogas usadas nos hospitais. Preferimos esse método, também, pelos seus próprios méritos. Nos hospitais, com seu sistema mais suave, levam três sema­nas; com esse, apenas três dias. A dor é mais intensa, mas tam­bém passa mais rapidamente.

Assim trouxemos José ao Centro, e arranjamos um quarto para ele junto com os obreiros. Fiquei contente por termos uma enfermeira formada morando na casa. O quarto de Bár­bara Culver ficava bem embaixo do de José. Desse modo ela ficou de sobreaviso durante todo o tempo em que ele esteve conosco. Também um médico ficou de prontidão, caso José viesse a precisar dele.

Logo que ele se acomodou, eu lhe disse:

— José, deste momento em diante você abandonou a droga. Posso prometer-lhe que não ficará sozinho um minuto sequer. Quando não estivermos com você pessoalmente, estaremos orando por você.

Não iríamos privar o rapaz das drogas e deixá-lo sofrer so­zinho. Durante quatro dias haveria uma intensa campanha de oração por ele. Dia e noite intercederíamos a seu favor, en­quanto outros estariam ao seu lado lendo porções das Escritu­ras.

Uma das primeiras coisas que tivemos de fazer com José foi acalmar sua expectativa de dor. O processo em si mesmo já era horrível, sem o sofrimento adicional de se esperar passar pelo inferno. Perguntei-lhe de onde tirara a idéia de que seria muito difícil.

— Bem... sabe... todos dizem...

— Isso mesmo. Todos dizem que é duro; então você fica aí suando só de pensar no que o espera. Quem sabe não será tão difícil assim?

Contei-lhe então o caso de um rapaz que conheci que usara maconha e heroína e parou de uma vez, sem nenhum dos sintomas costumeiros. Confessei que era um caso raro, e que de fato ele deveria estar preparado para enfrentar o pior, mas não havia razão de torná-lo pior ainda. Trabalhamos muito para ajudá-lo a separar os sintomas reais, dos sintomas psicológicos que vêm da preocupação.

Depois, ensinamos o Salmo 31 a José. É realmente um Salmo maravilhoso, ao qual demos o nome de Cântico do Viciado. Há certos versículos, em particular, feitos para condições como a dele.

"Tirar-me-ás do laço que, às ocultas, me armaram, pois tu és a minha fortaleza. Compadece-te de mim, Senhor, porque me sinto atribulado; de tristeza os meus olhos se consomem, e a minha alma e o meu corpo. Gasta-se a minha vida na triste­za, e os meus anos, em gemidos; debilita-se a minha força, por causa da minha iniqüidade, e os meus ossos se consomem. Tor­nei-me opróbrio para todos os meus adversários, espanto para os meus vizinhos e horror para os meus conhecidos; os que me vêem na rua fogem de mim. Estou esquecido no coração deles, como morto; sou como vaso quebrado." (Vv. 4,9-12.)

 Logo que as dores da privação se manifestaram, José ficou no seu quartinho, banhado em suor. Bárbara mantinha-se a par de sua condição. Como era horrível entrar naquele quartinho! José deitado na cama segurava o estômago, enquanto as dores o atacavam uma após a outra.

Seu corpo estava vermelho, e o suor corria, deixando a cama ensopada. Gritava de dor e batia na cabeça. Pedia água, depois vomitava. Suplicava para que eu o ajudasse, e a única coisa que eu podia fazer era segurar sua mão e garantir-lhe o nosso interesse.

À noite, colocamos, perto da cama do José, um gravador que repetia textos bíblicos. Eu fiquei no Centro durante aque­les dias. Várias vezes no silêncio da noite, ia até a capela para ter a certeza de que sempre havia alguém lá, depois subia ao quartinho de José.

O gravador repetia, suavemente, porções bíblicas para o rapaz, que se debatia na cama, num sono agitado. Durante aqueles três dias e noites, nem por um minuto o tormento cessou. Era terrível observá-lo.

No quarto dia, José parecia estar melhor. Andou pelo Centro, sorrindo francamente, e dizendo que o pior já deveria ter passado. Todos nos regozijamos com ele. Quando José disse que queria voltar para casa para ver seus pais, eu tive dúvidas, mas nada poderíamos fazer para detê-lo, se ele queria partir.

Assim, sorrindo e agradecendo-nos, José saiu pela porta da frente, e desceu pela Avenida Clinton.

Chegou a hora em que ele deveria voltar, mas nada do José. Soubemos, no dia seguinte, que ele havia sido preso por roubo e posse de narcóticos.

Essa foi a nossa falha.

— O que fizemos de errado? perguntei aos obreiros, numa reunião. O rapaz venceu o pior. Foi até o fim dos três piores dias que teria de passar. Só tinha a ganhar com tudo isso, no entanto jogou tudo fora.

— Por que não conversa com os rapazes que tiveram êxito em deixar a droga? Quem sabe eles terão uma resposta, disse Howard Culver.

Havia vários. Chamei-os um a um para ouvir sua história de libertação. Todos falaram de uma experiência comum.

Falei com Nicky, que usara bolinhas e fumara maconha. Perguntei-lhe quando sentiu que tinha alcançado o domínio sobre a vida antiga. Algo maravilhoso acontecera quando se convertera, disse ele. Naquele dia deparara com o amor de Deus. No entanto foi mais tarde que teve completa vitória.

— E quando foi isso, Nicky?

— Quando fui batizado com o Espírito Santo.

Chamei David, e lhe fiz a mesma pergunta. Quando sentira que dominara a si mesmo?

— Ah! isso é fácil de responder, disse-me ele. Foi quando recebi o batismo com o Espírito Santo.

Vezes seguidas ouvi a mesma resposta. Não posso descrever como fiquei animado. Parecia estar surgindo um padrão. Senti que estava no limiar de algo maravilhoso.