terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 19


 Ao nos aproximarmos da crise financeira, resolvi que de alguma forma haveria de arranjar o dinheiro, porque nos deparamos com outro desafio, num plano diferente dos que já havíamos enfrentado antes.

Certa tarde Maria telefonou-me, dizendo que queria falar comigo.

— É claro, Maria. Pode vir. Você tem o nosso endereço.

Chamei Linda e falei-lhe sobre Maria.

— É uma pessoa que você deve conhecer, disse-lhe eu. Tem um enorme potencial. Se pudéssemos canalizar a sua energia na direção certa! Ela é corajosa; mas com a coragem de quadrilha. Quando se tornou presidente da sua quadrilha, teve de ficar de pé com as costas contra a parede, e deixar que os outros jovens batessem nela, como quisessem. É uma organizadora brilhante; mas usou esse talento para aumentar a sua quadrilha, que constava de mais de trezentas meninas.

— Mas eu tenho a impressão de que não é por causa das quadrilhas que ela vem; penso que deve estar tomando heroína outra vez.

Contei então a Linda a batalha que Maria vinha travando com a droga. Disse-lhe que já estava viciada quando a encon­trara pela primeira vez, havia mais de quatro anos. Contei-lhe como abandonara o vício, depois de vir à frente na Arena São Nicolau; como casara, e tudo parecia correr bem por algum tempo. Maria deixou a quadrilha, João arranjou emprego e começaram a nascer as crianças.

Mas um dia Maria e João brigaram. A primeira coisa que ela fez foi entrar em contato com um traficante e começar a tomar a droga novamente. Depois de algum tempo ela a havia deixado por um longo período, mas eu tinha certeza de que voltara novamente.

Enquanto conversava com Linda, a secretária avisou que Maria estava à nossa espera. Que mudança trágica se efetuara nela desde a última vez que a vira! Linda e eu levantamo-nos quando ela entrou. Foi uma reação estranha, mais ou menos o que se sente quando se está na presença da morte.

Os olhos de Maria estavam vidrados. O nariz sujo, a pele áspera e gordurosa. O cabelo empastado e despenteado. O sa­pato completamente gasto de um lado; ela não estava de meias, e suas pernas estavam cobertas de pêlo escuro.

Mas o que mais me impressionou em Maria foram as suas mãos. Não caíam graciosamente ao seu lado, antes estavam fechadas, e um pouco levantadas. Ela as abria e fechava cons­tantemente, como se estivesse pronta a atacar ante a mínima provocação.

— Reverendo Wilkerson, disse ela, acho que não é preciso dizer-lhe que preciso de ajuda.

— Entre, Maria, disse eu. Puxamos uma cadeira para ela.

— Sente-se, disse Linda. Vou buscar uma xícara de chá para você.

Pobre Linda, ela não sabia que uma "rodada de chá" era gíria dos viciados em heroína, para indicar uma sessão de "picadas". Ela deve ter ficado surpreendida com a brusca reação de Maria.

— Não, disse ela, não quero nada!   E sentou-se.

— Como vão as crianças?

— Como vou saber?

— Você abandonou o João?

— Nós brigamos.

Olhei para Linda.

— Eu já falei com Linda a seu respeito, Maria. Contei-lhe tudo; o que há de bom e ruim. Quero que você a conheça melhor. Ela está trabalhando com muitas garotas na cidade. Escolhi-a porque ela é compreensiva. Você também vai gostar dela.

Maria e Linda conversaram. Depois Linda veio até o meu escritório, preocupada por não ter conseguido alcançá-la de forma nenhuma.

— São essas drogas, David, disse ela. Que veneno diabolicamente inspirado! É morte a prestações.

Poucos dias depois, as coisas pioraram. Maria telefonou para Linda, suplicando ajuda. Disse que estava prestes a meter-se em uma encrenca muito grande e não sabia como controlar-se. Acabara de tomar a terceira injeção de heroína e beber uma garrafa de uísque. Ela e sua antiga quadrilha estavam de saída para lutar com uma quadrilha rival.

— Vamos matar uma mocinha chamada Diva, disse Maria Você precisa impedir-nos de fazer isso.

Linda e duas companheiras correram até a Rua 134, em Manhattan. Entraram correndo no local onde estava reunida a quadrilha. Ficaram lá mais de uma hora, mas antes de saírem, a briga havia sido suspensa.

— David, disse Linda quando voltou, isso é horrível. Simplesmente temos de fazer alguma coisa por essas meninas.

O que é vício de entorpecentes?

Demorei quatro anos para fazer uma idéia correta da grande ameaça que se esconde atrás da simples palavra "narcóticos". O quadro é realmente assustador.

De acordo com estatísticas oficiais, há mais de 30.000 viciados só na cidade de Nova Iorque, e essas estatísticas se baseiam apenas nos registros daqueles que são hospitalizados, presos ou internados em alguma instituição. Milhares de pessoas estão se viciando devagar, fumando um "pacau", experimentan­do uma "picada" de heroína. Milhares de homens, mulheres e crianças, condenados àquilo que Linda descreveu tão apropri­adamente como sendo "morte a prestações".

Entre os viciados há um número suficiente de adolescentes para povoar uma cidade pequena; no mínimo quatro mil! Ain­da mais significante e assustador, é o fato de que a porcenta­gem de adolescentes viciados está aumentando.

E isso, natu­ralmente, levando em conta que cada ano, centenas de vicia­dos deixam a categoria de adolescentes pelo processo simples do passar do tempo. Para compreender a ameaça e o desafio desse vício entre os nossos jovens, foi preciso que eu primeiro buscasse uma compreensão dos lucros fantásticos que a venda de narcóticos dá aos traficantes.

A droga mais usada em Nova Iorque é a heroína, um deri­vado do ópio. Um quilo de heroína pode ser comprado em Beirute, no Líbano, por três mil dólares.

Contrabandeado des­se país, vendido, revendido e dividido, o quilo será vendido, nas ruas da cidade, por 300.000 dólares!

Em tempos de escas­sez do produto, o mesmo investimento de 3.000 dólares pode­rá render um milhão! Qualquer comércio que tenha lucros como esse (livre de impostos), certamente prosperará.

Alie aos lucros o fato de ser quase impossível evitar o tráfi­co, e aí temos o quadro do comércio de narcóticos em Nova Iorque.

Um grupo de doze homens leva a maior parte de um dia para revistar um navio, à procura de narcóticos. Chegam anualmente ao porto de Nova Iorque, vindos de outras terras, 12.500 navios, juntamente com 18.000 aviões. Para controlar esses trinta mil transportadores, a Alfândega de Nova Iorque tem apenas 265 homens.

O resultado é que um homem que não é conhecido como vendedor pode entrar na cidade quase que livre de risco, carregando enormes quantidade de heroína, em saquinhos de seda costurados à roupa.

E como esses vendedores acham mercado? Aqui está a his­tória:

  Os jornais noticiaram em letras garrafais, há pouco tempo, que os traficantes estavam agindo às portas de um dos colégios da cidade. Para o departamento de educação de Nova Iorque, isso não era novidade. Eles sabiam muito bem que a maioria dos viciados experimenta narcótico, pela primeira vez, nas imediações de uma escola.

Os alunos do Ginásio 44, do Brooklyn, foram recentemente privados do privilégio de sair do colégio durante o recreio. Os responsáveis sentiam que era necessária essa medida para a proteção das crianças, por causa da audácia dos traficantes na vizinhança. Eles esperavam bem à porta do colégio, e em algumas ocasiões chegaram a entrar no pátio!

Esses traficantes oferecem amostras grátis da sua mercadoria. Um certo rapaz (José), a quem fiquei conhecendo muito bem, contou-me como isso funciona.

"Um traficante convida você para dar uma voltinha no seu carro, provavelmente com um ou dois colegas da sua classe que já fumam maconha. "A maconha não faz mal", dizem. Depois continuam dizendo que a maconha não vicia, o que na realidade é verdade — mas a maconha leva a outras drogas que viciam. O traficante então oferece um "pacau", e se a gente hesitar, os outros rapazes começam a rir e a chamar-nos de covarde, até que afinal a gente cede e aceita um dos seus cigarros. Foi assim que eu comecei."

A história de José é um exemplo típico. A criança dá uma fumadinha no banco de trás do carro de algum traficante. Aprende que não se traga a maconha como se faz com um cigarro comum; cheira-se a fumaça até ficar meio tonto.

Naquele primeiro dia, quando o rapaz volta para a escola, seus problemas diários não mais o preocupam. A maioria dos viciados são frustrados, revoltados, solitários, e muitas vezes são filhos de pais separados. Ante a primeira amostra da erva maravilhosa, o rapaz acha que descobriu como seria a felicidade permanente. Esquece-se do pai alcoólatra, e da mãe que nunca está em casa, não se preocupa com a falta de amor em sua vida, nem com a pobreza extrema que o obriga a dormir na mesma cama com duas irmãs, e no mesmo quarto dos pais. Esquece-se de tudo isso. Sente-se livre, o que para ele não significa pouco.

No dia seguinte, o simpático traficante está por ali para oferecer outra amostra do céu. Quando o rapaz está pronto, é apresentado a algo mais forte — a heroína — seguindo-se o mes­mo processo anterior.

O traficante oferece a droga como pre­sente um dia, dois dias, satisfeito em aplicar assim o seu di­nheiro, porque sabe que apenas quinze dias de uso contínuo da heroína, são suficientes para produzir mais um viciado!

E agora vem a parte mais vil da história. A heroína custa de três a quinze dólares por aplicação. Vem numa embalagem de papel celofane, em quantidade suficiente para uma injeção endovenosa. Certa vez, durante um período de escassez de heroína, uma jovem de vinte e um anos me disse:

"David, eu preciso de sessenta dólares por dia para manter o meu vício. Sei de viciados que gastam cem dólares por dia." O normal, entretanto, é uma média de vinte e cinco a trinta dólares por dia. Onde é que um jovem que recebe vinte e cinco centavos de seus pais para comprar lanche, pode arranjar vinte e cinco dólares?

É possível que ele se volte para o crime. Um dos maiores problemas de Nova Iorque são os crimes cometidos por ado­lescentes — roubos de carteiras, furtos em lojas, em casas, assal­tos à mão armada, furtos de carros — e a polícia diz que a razão é o vício de entorpecentes. Contudo, o rapaz só recebe um terço do valor do seu furto, ao vendê-lo aos receptadores de objetos roubados. Assim, para financiar um vício de vinte e cinco dólares por dia, ele tem de roubar setenta e cinco.

O diretor do departamento de narcóticos em Nova Iorque, Ins­petor Eduardo Carey, calcula que os entorpecentes são a causa de 200.000.000 de dólares em roubos por ano, apenas nessa cidade. O roubo, entretanto, não é a solução ideal para um jovem que se vicia. E preciso muito esforço e inteligência, além do grande risco que corre. Muito mais simples é tornar-se tra­ficante.

Um rapaz chamado Carlos contou-me certa noite, enquanto estávamos numa esquina escura, como isso aconteceu com ele. Ele tem dezoito anos e já é viciado há três anos. Quando reconheceu que esse vício iria custar-lhe quinze dólares por dia, depois vinte, depois vinte e cinco dólares, foi ao seu ven­dedor e ofereceu-se para ajudá-lo a vender.

"Ah! não, seu moço. Se você quiser vender, terá de descobrir os seus próprios fregueses."

E nessa frase está a razão da grande disseminação desse vício.

Carlos, então, para poder comprar para si mesmo, começou a vender para rapazes mais novos, usando a mesma técnica que fora aplicada nele. Dizia que o seu vício "valia o trabalho que dava". Escolhia os jovens mais sensíveis, revoltados e introvertidos, para pressionar. Chamava-os de "covardes" quando se recusavam a experimentar maconha, até que finalmente conseguiu uma clientela. A essa corrente sempre crescente do vício foram acrescentados, não um, mas dez rapazes.

Perguntei a alguns desses moços:

"Por que vocês não param simplesmente?"

Suponhamos que um rapaz resolvesse fazer isso mesmo. Cerca de duas horas depois de terminado o efeito da última picada, o rapaz começa a se sentir mal. Primeiro, sente uma ânsia que domina todo o seu corpo. Em seguida, começa a transpirar, treme de frio, enquanto a temperatura do corpo se eleva mais e mais. Começa a vomitar com ânsias horas a fio. Seus nervos tremem com dores excruciantes, da ponta dos pés até ao couro cabeludo. Sofre alucinações e pesadelos muito piores do que um alcoólatra pode imaginar.

Durante três dias, esse sofrimento continua. A não ser que alguém venha em seu auxílio, ele não consegue vencer. Mesmo com auxílio, nove entre dez não conseguem deixar o vício.

Anualmente são internados 3.500 viciados no Hospital do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, em Lexington. Mais de seiscentos médicos e auxiliares tentam ajudar o viciado a livrar-se do hábito, mas um estudo de vinte anos, efetuado entre 1935 e 1955, mostra que sessenta e quatro por cento dos viciados retornaram ao hospital!

Muitos outros voltavam às drogas sem que fossem novamente hospitalizados! O Dr. Murray Diamond, médico-chefe do hospital, diz que entre oitenta e cinco por cento e noventa por cento dos viciados acabam voltando ao vício,

"Uma vez "fisgado", moço, "fisgado" para sempre", disse-me um rapaz que havia estado em Lexington. "Eu arranjei uma picada cinco minutos depois de sair daquele lugar."

E o que acontece aos nove, entre dez, que não conseguem deixar o hábito? Uma deterioração física repugnante e doloro­sa começa a manifestar-se.

Carlos, mesmo tentando vender drogas a rapazes mais novos, carregava consigo um boletim oficial do departamento de polícia de Nova Iorque, descreven­do o resultado que se efetua no corpo sujeito aos efeitos contí­nuos das drogas:

"Ser um viciado em drogas é ser um cadáver ambulante. Há muitos sintomas que revelam um viciado — qualquer um destes pode manifestar-se.

"Os dentes apodrecem; o apetite desaparece; o estômago e intestinos não funcionam bem. A vesícula se inflama; os olhos e a pele ficam amarelados. Em alguns casos, as membranas do nariz ficam vermelhas; a cartilagem que separa as narinas de­saparece — a respiração é difícil. O oxigênio do sangue dimi­nui; aparecem bronquites e tuberculoses. As boas característi­cas do caráter desaparecem e tendências más tomam o seu lugar. Os órgãos genitais são afetados. Algumas veias entram em colapso, deixando cicatrizes roxas. Tumores e abscessos infestam a pele; dores cruciantes torturam o corpo. Os nervos não resistem; cacoetes nervosos começam a aparecer. Temo­res imaginários e fantásticos dominam a mente, e às vezes re­sultam em insanidade.

"É comum serem essas vítimas escolhidas pela morte.

"Em comparação com pessoas normais, de acordo com uma autoridade citada em um folheto do Departamento do Tesou­ro dos Estados Unidos, os viciados em drogas morrem de tu­berculose numa relação de quatro para um; de pneumonia, dois para um; velhice prematura, cinco para um; bronquite, quatro para um; hemorragia cerebral, três para um, e mais de dois para um, de uma grande variedade de outras doenças. Esse é o tormento de ser um viciado; esse é o destino destes cadáveres ambulantes."

Carlos sabia muito bem o que o aguardava, o que não impe­diu que ele continuasse. O Baixinho também. Este veio à mi­nha procura, buscando auxílio, e ensinou-me uma lição trágica.

Baixinho tinha dezenove anos, e era viciado em heroína, Desde os quinze anos usava drogas. Zazá era namorada de Baixinho, e era uma linda moça de dezessete anos. Seus pais eram conhecidos nos altos círculos comerciais e sociais de Nova Iorque, e freqüentavam uma igreja elegante.

Baixinho veio pedir que eu ajudasse Zazá a "deixar o troço", e eu concordei em visitar a moça.

Quando Baixinho e eu batemos na porta de um porão escuro e cheio de ratos, numa ruazinha do Brooklyn, ouvimos o som de alguém que se movia rapidamente. Esperamos enquanto o Baixinho, impaciente, resmungava. Foi Zazá mesmo quem abriu a porta, e ficou boquiaberta ao ver-nos.

Naquele antro escuro havia mais dois jovens; ambos tinham a manga esquerda da camisa arregaçada. Na mesa, diante de­les, estavam os "apetrechos": uma agulha, uma tampinha de cerveja que serviria de fogareiro, um copo de água e um saquinho de celofane contendo uma substância branca — "dinami­te", H ou heroína.

— Quem é esse? perguntou Zazá apontando com a cabeça para mim.

— Não tem problema, respondeu o Baixinho. Ele é um pregador. Eu pedi a ele que viesse aqui.

— Bom, se quiser falar comigo, precisa esperar.

Assim dizendo, Zazá deu-nos as costas, e voltou à ocupação que nós havíamos interrompido. O Baixinho deve ter lido meus pensamentos, porque voltou-se para mim e murmurou:

— Não tente impedi-los. Pregador, se você atrapalhar a pre­paração da "picada", estes rapazes o matam. Estou falando sé­rio. Se você sair para chamar a polícia, quando voltar não achará ninguém. Fique por aí, é bom aprender alguma coisa.

Então, eu fiquei por ali e, de fato, aprendi o que é ser ado­lescente viciado.

Enquanto a injeção era preparada, o Baixinho contou-me a história de Zazá. Ela também tomava heroína desde os quinze anos. Seus pais não sabiam da dupla vida que ela levava, incluin­do as noites que passava com homens. Só sabiam que Zazá saíra de casa e agora estava morando em Village. Ela os visita­va nos fins de semana, e embora um pouco chocados com a vida boêmia de Zazá, pensavam que todas as garotas tinham de passar por uma fase de rebeldia, e assim não a perturbavam.

A fase de rebeldia de Zazá consistia num apego crescente à heroína, e numa situação cada vez mais envolvida em sexo-por-dinheiro.

— Ela tem de fazer isso para financiar seu vício, disse o Bai­xinho. Tem uma lista de clientes certos, a maioria deles ho­mens de negócio da Avenida Madison, que tem famílias legíti­mas em Westchester.

Depois disso, o Baixinho falou em tom de voz mais baixo ainda:

— Mas o que me preocupa agora é que ela está andando com umas garotas esquisitas. Está se tornando lésbica. É assim que ela se diverte.

Não tive coragem de perguntar ao Baixinho onde ele se encaixava nesse quadro. Ele era realmente baixinho e mulato. Zazá era alta e loira. Não fiz nenhuma pergunta. Baixinho já estava ficando impaciente.

Nunca mais fui o mesmo, depois da cena que presenciei nos minutos seguintes. A preparação levara algum tempo e agora todos, inclusive o Baixinho, estavam se empurrando, cada um querendo ser o primeiro. O mais doente tinha direito ao pri­meiro lugar, e de repente o Baixinho teve um acesso e come­çou a tremer, teve ânsias e gemia.

Suponho que fez isso para ser o primeiro. Com olhares famintos, os quatro jovens obser­vavam, enquanto um dos rapazes tirou um pouco de heroína do saquinho de celofane e colocou-o na tampinha. Não se des­perdiçava nem um grãozinho.

— Ande depressa, diziam todos, junto ao seu ouvido. Com as mãos trêmulas, o rapaz acendeu dois fósforos debaixo da tampinha de cerveja e ferveu o conteúdo. O outro rapaz tirou o cinto e amarrou-o no braço do Baixinho. Os outros já esta­vam ficando agitados.

Rangiam os dentes, e cerravam os pu­nhos para não arrancarem a seringa das mãos do Baixinho. Lágrimas escorriam-lhes pelas faces, enquanto praguejavam em voz baixa e mordiam os lábios. Depois, um a um, experimenta­ram a picadinha final que lhes parecia tão emocionante — agu­lha contra veia distendida.

Nunca me senti tão perto do inferno. Então eles entraram numa espécie de euforia. Por muito tempo fiquei ouvindo sua conversa tola e sem sentido. O Baixinho contou-me de um sonho no qual via a montanha branca de H, muitas seringas prontas, e um fogo eterno onde poderia ferver a mistura. Para ele isso parecia o céu, um lugar onde ele poderia injetar montanhas de heroína nas veias.

— Como é pregador? Você vai fazer a Zazá largar o negócio? perguntou o Baixinho, lembrando-se, de repente, do motivo de minha presença ali.

Eu respondi que certamente tentaria, e procurei conversar com ela ali mesmo.

Zazá olhou-me com olhos vidrados, e mandou que eu fosse para o inferno. Eu nada poderia oferecer-lhe, que ela não tivesse naquele momento, dizia. Estava no céu, e eu nem sabia direito como era o céu. Ela sabia muito bem controlar a sua vida sem o auxílio de nenhum pregador biruta.

Depois de tomar a sua dose, Baixinho também se arrependeu de ter me chamado. Quando eu lhe disse que não tinha nenhuma cura mágica, apenas oferecia toda a ajuda possível quando ele passasse pela experiência de se curar da droga, olhou-me e, coçando a cabeça, disse:

— Bem, então por que você veio aqui?

Falhei.

Falhei, como falhei com Maria. Deixei o apartamento. Quando voltei para tentar ajudá-los, Zazá e Baixinho haviam desaparecido. Também os seus pertences não estavam lá. Haviam sumido. Ninguém sabia onde estavam. Aliás, ninguém se importava muito com eles.