terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 18


 O que constantemente me surpreendia com relação aos nossos obreiros é que podiam ter esse desejo de "se consumirem para Deus", sem desenvolverem perso­nalidades tensas e preocupadas.

Pensando na razão disso, chego à conclusão de que o Cen­tro se tornou justamente aquilo que esperávamos — um lar. Cheio de amor, sujeito a uma disciplina espiritual, tendo todos um mesmo alvo, mas livres.

Num ambiente assim há uma válvula de escape indispensá­vel, que permite vivermos normalmente, e que dá lugar à ale­gria, que nos faz rir.

Fico muito contente com isso. Eu penso não ser possível que uma verdadeira casa de Deus seja um lugar sombrio e tristonho, e o Centro certamente não é lugar para quem tenha cara comprida. Se não é uma guerra de travesseiros no dormi­tório das moças, estão dando nós nos lençóis no dormitório dos moços, ou pondo açúcar no saleiro — todas aquelas brinca­deiras costumeiras.

Naturalmente, eu tenho de fazer cara feia a tudo isso, mas aparentemente ninguém presta muita atenção.

Quando subo as escadas correndo, gritando como deve fazer um diretor, dizendo que já passou da hora de apagar as luzes, deparo com roncos angelicais que duram justamente o bastante para eu descer as escadas novamente. Eu me preocuparia com essa falta de respeito pela autoridade, se a disciplina afinal não fosse mantida; os jovens estão tão ocupados que há muito pouca energia para fazer folia. Depois de alguns minutos, todos se cansam e os roncos se tornam reais.

Na realidade, esse espírito de brincadeiras não se limita aos adolescentes e jovens, mas todos participam. Logo depois da chegada de Glória e Nicky, iniciamos o que chamamos de "Operação Leva-Quadrilha". A Igreja das Boas-Novas tem um local para retiros, no estado de Nova Iorque, numa fazenda chamada Vale Escondido. Durante as semanas mais quentes do verão, pedimos permissão para levar alguns dos rapazes das quadrilhas, a fim de tomarem um pouco de ar mais puro. Nicky e sua esposa nos acompanharam. Lucas veio também, com mais doze rapazes do Centro.

Certa noite, Glória e Nicky resolveram dar uma voltinha antes de deitar-se. Lucas e alguns outros me chamaram e convidaram para fazer uma brincadeira.

— Você sabe, Nicky nunca saiu da cidade, disse Lucas que já se considerava veterano, porque já estivera antes numa fazenda.

— Quer pegar uma vela e nos acompanhar?

— O que vocês vão fazer?

— Nada que poderá machucar ninguém! Vamos apenas caçar ursos.

Então pegamos umas velas, e saímos pelo mesmo caminho que Glória e Nicky haviam tomado. Logo nos encontramos com o casal que voltava para a casa da fazenda.

— O que vocês estão fazendo? perguntou Nicky.

— Estamos caçando, respondeu Lucas; procurando ursos. Quer ver as suas pisadas?

Lucas ajoelhou-se na terra e levou a vela até bem perto do chão, e ali na terra fofa havia sinais de pisadas de gado. Nicky olhou bem e viu mesmo sinais misteriosos na terra. Ficou visivelmente perturbado e abraçando mais a esposa, pediu uma vela.

De repente, Lucas levantou-se:

— O que é aquilo? perguntou ele.

Sua voz estava bem baixa e parecia estar com medo. Apon­tou para um objeto que mal podíamos distinguir à luz da lua. Parecia mesmo um urso agachado, e se eu não soubesse que era um velho sino de escola, já abandonado, que se destacava sob a pálida luz, também ficaria com medo.

Quando procuramos Nicky, ele estava escondido atrás de uma árvore com sua mulher. Os outros rapazes começaram a atirar pedras no urso dizendo a Nicky para deixar de ser me­droso e ajudá-los.

E de repente, Nicky nos fez rir. Saiu de trás da árvore dizen­do:

— Que bobagem! Eu tenho fé. Vou confiar em Deus, e pedir que me ajude a correr!

Dito isso, Nicky e sua mulher correram de volta à casa da fazenda, deixando-nos morrendo de rir. Quando voltamos, fomos fazer chocolate quente para Nicky e a esposa. Foi preci­so seis xícaras para expulsar o medo deles.

Durante aquele verão fiquei surpreso ao descobrir também, que grande parte do alegre intercâmbio existente na Avenida Clinton, 416, centralizava-se na cozinha.

Penso que foi mesmo da vontade de Deus que, durante aque­les primeiros meses do nosso trabalho no Centro, não tenha­mos conseguido achar cozinheira.

Tentamos todos os sistemas conhecidos, para conseguirmos fazer nossas refeições, mas o que não deu certo foi ter uma cozinheira dominando a despensa. Também a cozinha é sempre o centro de um lar; uma cozinheira geralmente não admite que outros entrem no seu domínio, assim somos enxotados do coração do lar.

Isso não aconteceu no Centro, porque não acertávamos com nenhuma cozinheira.

O resultado foi uma confusão alegre e maravilhosa. Para compreender a situação é preciso explicar primeiro de onde vem nosso alimento. Como tudo o mais no Centro, consegui­mos o alimento, orando. Esse é um dos projetos em que os rapazes que estão no Centro tomam parte ativa.

Cada dia ora­mos pelo alimento, e a maneira de recebê-lo é uma lição viva para jovens que estão começando a aprender o que é fé. Pessoas mandam presunto, batatas fritas, frutas, verduras, ou dinheiro que não vem designado para algo específico.

Um dia, porém, a turma se levantou, desceu para o café, e não havia nada sobre a mesa. Quando eu cheguei ao escritório, vindo de casa, o Centro estava movimentado com o problema da falta de alimento.

— Suas orações dessa vez não adiantaram, hein David? disse um dos rapazes, recém-vindo da quadrilha.

"Senhor", orei silenciosamente, "dá-nos uma lição de fé que fique conosco para sempre", e em voz alta:

— Vamos fazer uma experiência. Nós estamos aqui sem ali alimento para o dia, certo?

O rapaz acenou com a cabeça.

— E a Bíblia nos diz: "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje" Certo?

— Se você diz, é verdade.

Eu ri e olhei para o Reverendo Culver, que sacudiu os ombros e fez um gesto, como a dizer que ensinaria o pai-nosso ao rapaz.

— Então, por que não vamos todos para a capela, agora, para pedirmos alimento para o dia, ou dinheiro suficiente para comprá-lo?

— Antes do almoço? perguntou o rapaz. Estou ficando com fome.

— Antes do almoço. Quantos somos?

Dei uma olhada para averiguar, porque o número de pessoas no Centro estava sempre mudando. Naquele dia, contamos vinte e cinco pessoas para comer. Calculei que seria preciso a quantia de trinta e cinco dólares, para providenciar almoço e jantar. Todos concordaram, e assim entramos na capela, fechamos a porta e começamos a orar.

— Já que estamos falando nisto, Senhor, disse o rapaz, será que o Senhor poderia providenciar para que não fiquemos mais com fome o resto do verão?

Olhei para ele com ar de censura. Achei que ele estava exagerando, embora reconhecendo que uma providência a longo prazo nos deixaria com mais tempo para orar por outras coisas, sem estarmos ocupados com necessidades básicas, como alimento.

A nossa oração, no Centro, tem a tendência de ser um pouco barulhenta. Freqüentemente oramos em voz alta, com muita liberdade no Espírito, o que às vezes assusta as pessoas que a ouvem pela primeira vez. Acham muito rude, sem reco­nhecer que estamos apenas expressando nossos verdadeiros sentimentos perante Deus. Se nos sentimos preocupados, dizemo-lo não apenas com nossos lábios mas com o tom das nossas orações.

E naquele dia estávamos bastante preocupados. Enquanto confessávamos nossa preocupação, num tom de voz que não deixava dúvidas sobre o que estávamos sentindo, a porta se abriu e uma pessoa estranha entrou.

Nem ouvimos quando alguém bateu na porta da capela. Quando finalmente abriu-a e viu vinte e cinco pessoas ajoelha­das, agradecendo a Deus pelo alimento que havia dado no pas­sado, e agradecendo também o alimento que daria de algum modo, nesta emergência, tenho certeza de que ela se arrepen­deu de ter vindo.

— Com licença, ela disse baixinho. Com licença, disse um pouco mais alto.

Eu estava mais perto e ouvindo-a, levantei-me imediatamen­te. Os outros continuaram com sua oração.

Essa senhora hesitou um pouco para chegar ao assunto do porquê da sua visita. Ficou fazendo perguntas, e eu percebi que, quanto mais descobria sobre o que estávamos fazendo, tanto mais animada ficava. Finalmente, perguntou sobre aque­la reunião de oração. Contei-lhe que, acordando de manhã, descobrimos que não havia alimento na casa e revelei o propó­sito da nossa oração.

— Quando é que vocês começaram a orar? a senhora per­guntou.

Calculei rapidamente:

— Há mais ou menos uma hora.

— Bem, disse ela, isso é realmente extraordinário. Eu sabia muito pouco a respeito do seu trabalho, mas há uma hora tive um impulso repentino, coisa que não me é costumeira. Senti que deveria esvaziar o meu cofre e trazer-lhes essa economia que há tempos vinha fazendo. Agora sei qual a razão.

Em seguida, abriu a bolsa e tirou de dentro dela um envelope branco que colocou em cima da minha mesa, desejando que fosse de alguma utilidade. Agradeceu-me por ter mostrado o Centro a ela e partiu. O envelope continha pouco mais de trinta e dois dólares, a quantia exata para fornecer o alimento para o dia.

Mas, a oração daquele jovem foi respondida também, porque durante todo aquele verão não faltou mais alimento!

Conseguir o dinheiro necessário para o andamento do Centro era uma questão mais difícil ainda. Quando chegou a época dos nossos jovens obreiros voltarem para a escola, fizemos as contas de quanto havíamos gasto durante aquele verão. Ficamos realmente abismados ao verificar a quantia de dinheiro que havia passado por nossas mãos.

Havia a prestação da casa, contas de luz, alimentação, gastos de tipografia e transporte. Muitas vezes os rapazes que acolhíamos usavam roupas que para nada mais serviam senão para o lixo; a esses tínhamos de vestir; contas de consertos de encanamento e impostos. Havia também os salários; mesmo pagando um ordenado irrisório aos nossos auxiliares, as despesas nesse setor chegavam a mais de duzentos dólares. O total de nossas despesas normais chegava a mais de mil dólares por semana!

Em nenhuma ocasião tivemos mais de uns cem dólares em caixa. Logo que o dinheiro entrava, era aplicado em alguma necessidade urgente. Às vezes eu tenho desejado uma situação financeira que nos permita respirar mais livremente, mas sempre volto à convicção de que o Senhor quer que vivamos desta maneira.

Uma das maiores exigências da nossa fé é depender totalmente de Deus, para as necessidades do seu trabalho. Logo que tivermos um bom saldo no banco, não confiaremos mais nele dia a dia, hora a hora, como fazemos agora, não apenas para o suprimento das nossas necessidades espirituais, mas também das materiais.

E de onde vêm esses mil dólares por semana? Grande parte é fornecida por jovens mesmo. Em todo o país, vários jovens aceitaram o desafio dessa obra, ajudando a financiá-la. Eles cortam grama, lavam carros, cuidam de crianças. Centenas prometeram mandar cinqüenta centavos de dó­lar por semana, para ajudar a outros jovens como eles. Esse dinheiro entra aos poucos, mas cada centavo é abençoado e muito apreciado.

Existem também igrejas, em várias partes do país, que têm um grande interesse em nosso trabalho. Outro dia recebemos a visita de uma senhora da Flórida. Ela lera sobre o Centro Desafio Jovem, mas só sentiu o impacto da necessidade dos jo­vens desta cidade quando a levamos por um quarteirão, e explicamos o que ela via com os próprios olhos. Aqui uma jovem alcoólatra; ali uma jovem prostituta de quinze anos; acolá um rapaz que não conseguia livrar-se da heroína, e outro rapaz que apenas se sentia só. Voltando à sua igreja ela disse à con­gregação, depois de contar-lhes o que havia visto:

"Eu aqui vivo com todo conforto, enquanto aqueles jovens estão em grande necessidade de auxílio espiritual. Eu, pelo menos, vou fazer daquele centro motivo de interesse particu­lar, e gostaria que mais pessoas compartilhassem disso comigo. Eles precisam de cada centavo que pudermos mandar."

Todas essas fontes, entretanto, nunca seriam suficientes para suprir as necessidades extraordinárias do Centro, como o pa­gamento do prédio, que teve de ser enfrentado como verda­deira crise, e confiado às mãos de Deus. Agora que começávamos o nosso trabalho de maneira orde­nada, eu sabia que estávamos prestes a enfrentar nova crise.

Em duas semanas venceria o prazo para a segunda prestação do prédio: quinze mil dólares! Francamente, eu havia fechado os olhos para a data do pa­gamento. Certamente não havia guardado nada para a presta­ção, pois estávamos usando tudo o que recebíamos, mal conse­guindo passar com isso.

O dia do vencimento era 28 de agosto de 1961. Eu sabia muito bem que naquele dia teríamos de enfrentar a realidade.