terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 17


 Enquanto o termômetro do nosso pátio subia cada vez mais, com a entrada do verão, a vida no Centro se acomodou a uma espécie de rotina. Nossos vinte obreiros estavam ocupados de manhã até tarde da noite. Este era o horário do dia:

Levantar – 7:00h

Café — 7:30h

Lavar a louça e fazer limpeza

Devoção particular até às 9:30h

Culto na capela — de 9:30h às 11:30h

Almoço — 12:00h

Louça

Oração

Trabalho na rua — de 14:00h às 18:00h, quando comemos juntos um lanche qualquer na rua.

Continuação do trabalho de rua até às 19:30h

De volta ao Centro, para o culto noturno, até à meia-noi­te.

Deitar.

O trabalho de dirigir o Centro logo se tornou tarefa pesada demais para um homem só; por isso, com o passar dos meses, arranjamos auxiliares especializados nos diversos ramos, que dirigiam o Centro muito melhor do que eu poderia ter feito sozinho.

Howard Culver, por exemplo, tornou-se nosso administrador. Ele mantinha a disciplina, o que não era sempre fácil com um grupo de vinte jovens ativos e alegres, e um número sempre variado de membros de quadrilhas. A mulher de Howard, Bárbara, também foi uma bênção — é enfermeira for­mada. Sua atuação foi inestimável para com os jovens subnu­tridos, e especialmente com os viciados, cujos corpos passam por verdadeiro inferno, durante os primeiros dias depois do abandono da droga.

Se tenho uma predileção toda especial por um dos compo­nentes do nosso corpo de auxiliares, penso que é bastante com­preensível.

É Nicky. Que dia alegre para mim foi aquele em que Nicky entrou pela porta do Centro, trazendo uma linda moça pelo braço!

"David", disse Nicky em voz calma, "quero apresentar-lhe minha esposa, Glória."

Glória e Nicky haviam-se conhecido quando estavam na escola bíblica. Corri ao encontro deles, apertando a mão de Nicky, batendo nas suas costas, e recebendo Glória tão efusi­vamente que, penso, ela deve ter se sentido um pouco surpre­sa.

Glória, Nicky e eu ficamos no escritório, recordando o pas­sado. Achei difícil acreditar que este era o mesmo rapaz que ameaçara matar-me, apenas três anos antes. No nosso primei­ro encontro, tivera a impressão de que Nicky era um caso per­dido. No entanto, aqui estava ele, completamente transforma­do — um pastor, cheio de planos para o futuro.

"O que eu desejo, David", disse ele cheio de entusiasmo, "é trabalhar também com os pais dos jovens. O que adianta aju­dar um rapaz, se ele tem de voltar para uma situação insupor­tável em casa?"

Sem dúvida, ele tinha razão. Os planos de Glória também eram excelentes. Ela também queria trabalhar no Centro. Gos­tava muito de crianças, e o seu campo de ação especial seria com os Pequenos. Nicky havia contado a ela acerca das crianças de oito, nove e dez anos que agem na periferia das quadrilhas, e Glória então disse que alcançar estes Pequenos, antes de caírem em situação mais séria, era até melhor do que, mais tarde, tentar arrancá-los do vício.

A formação do nosso pessoal permanente me deixava cada vez mais animado. Estávamos atacando o problema dos adolescentes nas ruas, de várias maneiras. Eu trabalhava com os rapazes; Nicky com os pais; Glória, com os Pequenos. Só havia uma grande falha: não tínhamos ninguém cujo interesse especial fossem as "gatas".

Quem é uma "gata"? Qual é a sua relação com as quadrilhas?

Nos últimos anos, o papel da jovem adolescente tem crescido em importância em relação à complexa formação das quadrilhas. Ela é conhecida como gata. Reúne um grupo de jovens como ela, e formam quadrilhas auxiliares às quadrilhas masculinas. Frequentemente escolhem um nome parecido com o da quadrilha com a qual se associam, como no caso dos Cobras e das Cobretes.

Logo aprendi que, geralmente, as meninas eram a causa de muitas brigas nas ruas. Sei de uma briga grande que começou porque a gata de uma gangue reclamou aos colegas que um rapaz de uma quadrilha rival lhe havia feito uma proposta. Mais tarde a garota confessou que mentira; inventou a história só para haver uma briga. Foi só por brincadeira.

É coisa muito rara uma gata virgem.

"O casamento está fora de moda, pregador", diziam-me elas rindo.

Era inútil falar com elas; descaradamente me faziam propostas indecorosas. O que precisávamos era de uma jovem suficientemente bonita e atraente para conquistar o respeito das gatas, mas que também tivesse uma base sólida para a sua própria fé, de modo a não ser abalada com seus deboches e risos.

Finalmente, nós a achamos. Certa noite, pude dizer a Gwen

— Achamos a garota ideal para trabalhar com as gatas, meu bem.

— Ótimo, respondeu Gwen. Só espero que seja bonita. Terá de ser bonita, para realizar essa tarefa. Nunca pensei que che­garia o dia em que eu animasse o meu marido a escolher uma jovem bonita como companheira de trabalho.

— Ela é bem bonita, respondi. Seu nome é Linda Meisner, e vem de uma fazenda em Iowa. Só espero que as meninas da cidade não a assustem.

O trabalho de Linda com as gatas não seria fácil. Foi apre­sentada a elas no mesmo dia em que chegou ao Centro. A tar­de, cinco meninas entraram e quiseram conhecer o lugar. Lin­da estava disposta a mostrar, mas eu senti um bafo de álcool no hálito das meninas e tentei adiar a visita.

— Temos um culto às 7:30h, aberto ao público, disse eu a elas. Venham a essa hora, e serão bem-vindas. As meninas voltaram mesmo, trazendo um grupo de rapa­zes também.

— O que vamos fazer, David? perguntou Linda. As meninas estão completamente bêbadas.

— Para começar, vamos separá-los, respondi. Rapazes de um lado, moças do outro.

De nada adiantou essa nossa precaução. As meninas riam, debochavam, estouravam bolas de goma de mascar, levantavam-se, saíam e entravam. Várias delas tiraram facas e começa­ram a cortar o cadarço dos sapatos. Durante o sermão começa­ram a discutir comigo, sentadas no assoalho da capela. Entreguei a reunião a um trio feminino (que incluía Linda) mas seu cântico não era ouvido, por causa do barulho.

Finalmente, desistimos de tentar realizar um culto ordeiro, e demos a nossa atenção a rapazes e moças individualmente. A maioria das meninas levantou-se e saiu, batendo a porta ruido­samente, não apenas uma vez, mas duas. Uma das meninas que ficou, foi até os rapazes e rodeou com o braço o ombro de um por um, dizendo:

— É tudo mentira; você não deve acreditar em nenhuma palavra do que ele diz.

Naquela noite, as meninas ganharam. Terminamos mais cedo, e sem nenhum resultado aparente. Essa foi a apresentação de Linda às suas futuras amigas. Para terminar, ouvimos logo depois que naquela mesma noite houve um assassinato.

— Não adianta, David, disse Linda no dia seguinte. Não sei como posso trabalhar com meninas duras assim.

— Espere um pouco para ver o que o Espírito Santo pode fazer, Linda, antes de tomar a sua decisão final.

Na terça-feira seguinte Linda teve a oportunidade de ver a transformação. Depois ela mostrou-me a carta que escrevera aos pais:

"Cada minuto é emocionante e cheio de novas aventuras. Na terça-feira, toda a quadrilha de rapazes e moças voltou. Queríamos que viessem em noites diferentes, mas as meninas imploraram a nossa permissão para entrarem. Prometeram não rir e comportar-se; então deixamos que entrassem. Cantamos Jesus Quebra Todos os Grilhões, e depois David perguntou se alguém ali tinha qualquer coisa da qual gostaria de libertar-se. Uma menina de quatorze anos disse que gostaria de se ver livre do vício da bebida. Outra, arregaçando a manga do vesti­do perguntou se Deus poderia livrá-la daquilo — apontando para uma linha de picadas de injeção de heroína. As meninas comportaram-se tão bem como quaisquer outras meninas, em qualquer lugar."

Daquele dia em diante, as meninas das quadrilhas procuraram o auxílio de Linda. Por exemplo, Helena, uma das meninas da quadrilha local, veio conversar com Linda sobre um problema muito comum para uma gata; disse que estava envenenando a própria vida com ódio.

Eu conhecia Helena. Era mesmo dura; ao aproximar-se dela, quase que era possível sentir o ódio que emanava de sua pessoa. Ela era um problema de disciplina na escola e em casa. Se a ordem era para sentar-se, ela se levantava; se era levantar-se, ficava sentada. Se recebesse ordem para não sair de casa, ela imediatamente fugia; se mandassem sair, nada neste mundo faria com que ela deixasse a sala. Os pais de Helena desistiram, e de uma maneira ou outra conseguiram que diversos parentes ficassem com ela por uns meses cada ano.

Certa tarde, Helena veio falar com Linda, que me contou mais tarde como ficaram na cozinha, bebendo um refrigerante e conversando. As primeiras palavras de Helena foram que es­tivera bebendo muito. Depois contou a Linda que ultimamen­te dera para ir a festas "avançadas"; orgias sexuais, onde todos pareciam verdadeiros loucos. Disse que há algum tempo perdera sua virgindade, e que sexo agora era nada mais que uma rotina monótona.

De repente, sem mais nem menos, Helena começou a cho­rar.

— Linda, disse Helena afinal, sabe que eu nunca enganei a mim mesma? Nenhuma vez eu me deitei com um rapaz sem saber aqui (apontou para o coração) que estava errada. Lin­da, não quero odiar mais a mim mesma. Você pode me aju­dar?

Helena começou a freqüentar os cultos especiais para qua­drilhas que fazíamos todas as quartas-feiras. Mais tarde, consentiu em levantar-se, para contar o que havia acontecido ao seu ódio. Seu rosto agora era franco e seu olhar livre, tão livre quanto o de Linda. Estava sempre cantando ou rindo. Começou a trazer seus primos e amigos. Parou de beber e de fre­qüentar festas "avançadas".

— Sabe por que ela deixou tudo isso, David? contou-me Lin­da. Ela disse que perdeu o interesse, tinha coisas mais interes­santes a fazer.

O caso de Helena não é, de forma nenhuma, um caso isola­do. Diariamente alcançamos adolescentes como Helena, com esse amor todo especial. Nunca me esquecerei do dia em que ela descobriu a qualidade do amor que redime.

"Já descobri, Reverendo Wilkerson," disse ela. "O amor de Cristo é um amor sem exigências."

Helena está certa. O amor de Cristo não apresenta obstácu­los: é um amor que nada exige em troca. É um amor que só quer o melhor para esses jovens. É essa a qualidade que redime.

Em uma de suas cartas para casa, Linda escreveu que a sua vida estava em perigo constante. Isso não era exagero. Fazemos tudo para proteger nossos obreiros.

Por exemplo, temos uma regra de que o trabalho de rua deve ser feito por equipes de dois ou três. Outra regra é que moças não devem falar com rapazes nas ruas, e vice-versa. Temos também um outro regulamento, de que os obreiros devem entrar em contato uns com os outros em intervalos predeterminados, principalmente se estão trabalhando à noite.

A realidade é que os nossos jovens estão entrando em lugares onde policiais armados andam sempre de dois em dois, para se protegerem. A grande maioria dos jovens, nas áreas turbulentas da cidade, carrega armas escondidas. Se um rapaz está "alto", com heroína, pode facilmente usar sua faca, só por brincadeira. Mas o problema muito mais sério é o ciúme que sentem quando nossos jovens ameaçam, com seu trabalho, quebrar certas relações.

Certa noite, Linda e uma colega, Kay Ware, saíram à rua, mais tarde do que costumeiramente. Já era quase meia-noite, de uma noite opressivamente quente. O culto noturno já havia terminado, e as jovens deveriam ter ido deitar-se, mas sentiram um interesse tão grande nas meninas, e queriam tanto repartir com elas aquilo que já gozavam, que penetraram nas trevas, orando para que o Espírito Santo as levasse ao encontro de alguma mocinha necessitada.

Chegaram a um bar, e olhando lá dentro, viram quatro mocinhas ouvindo rock e bebendo Coca-Cola. Linda e Kay entraram e começaram a conversar com elas. Numa dessas transformações tão surpreendentes, às quais acabamos nos acostumando, resistiram por alguns minutos apenas, e depois uma delas começou a chorar.

— Vamos, disse outra. Vamos sair daqui, não quero que esse pateta, apontando para o proprietário do bar, ouça isso.

Assim, saíram todas para a noite escura e calorenta. Nem bem começaram a conversar quando as quatro começaram a chorar como crianças.

A essa altura, dois rapazes se aproximaram.

— O que está acontecendo aqui? perguntaram.

As meninas mandaram que dessem o fora. Não queriam conversar com rapazes. Isso despertou a curiosidade daqueles moços, ainda mais do que as lágrimas, e aproximaram-se mais

— O que vocês estão querendo fazer? perguntaram a Linda. Tirar nossas garotas de nós?

Um dos rapazes mudou de tática, e começou a beliscar Lin­da.

— Vamos ao parque, beleza, quero mostrar uma coisa a você.

O outro rapaz logo se animou também e começaram então a apresentar uma lista de propostas a Linda e Kay, o que deixou as duas envergonhadas e confusas. Mas tinham uma boa defesa. Virando-se depressa, e olhando bem nos olhos do líder, Linda disse devagar:

— Deus o abençoe.

O rapaz olhou para ela boquiaberto. Linda voltou-se então e continuou a sua conversa com as meninas, enquanto os rapazes ficaram por ali um pouco, até que um deles disse:

— Pro inferno. Vamos sair do caminho dessa nojenta. Linda e Kay continuaram a conversa com as meninas. Logo depois, porém, perceberam que um grupo enorme de rapazes estava chegando, vindo de muitas direções.

— Cuidado, disse uma das meninas.

Linda e Kay ficaram mais juntas, mas continuaram a falar calmamente. Mas de repente, ouviu-se um grito e uma risada. Todas elas foram cercadas por um grupo grande de jovens que gritavam e riam. Aproximaram-se e separaram Linda e Kay das outras meninas.

— Sabe, pequena, você me deixa louco, disse o líder dos rapazes. Você está falando em religião com as nossas garotas? Vocês querem tirá-las de nós.

E novamente começou a conversa de sexo. Linda e Kay ouviram uma linguagem que nunca antes haviam ouvido. Os rapazes empurravam-nas e insultavam-nas.

Alguma coisa brilhou no escuro. Linda olhou, e viu na mão de um dos rapazes uma faca com o formato de meia-lua, que brilhava na escuridão da noite como a própria Lua.

Inesperadamente, ele avançou contra Linda, que depressa afastou-se para um lado. A faca pegou na roupa, tirou um pe­daço do vestido, porém não alcançou o seu corpo.

Linda voltou-se para o rapaz enquanto este ainda estava desequilibrado. Novamente pronunciou as palavras que a haviam ajudado antes. Sua voz era baixa, mas ela deu todo o significado possível às palavras.

— Deus o abençoe.

Tomando, então, Kay pelo braço ela disse:

— Venham ao Centro amanhã: Avenida Clinton, 416. Estaremos esperando por vocês.

Com isso, ela e Kay atravessaram a rua.

Por um pouco os rapazes seguiram-nas, fazendo as suas propostas, até que por razões que Linda e Kay ainda não conseguem compreender, o líder chamou os rapazes.

— Vamos, disse ele. Vamos desistir disso. Não quero brincar com essas aí.

Linda e Kay voltaram ao Centro tremendo. Mas no dia seguinte encontraram novamente as quatro meninas e continuaram a conversa. À noite, estavam nas ruas novamente.

"Fico contente de saber que o seu pé melhorou, Larry", Linda escreveu em uma carta que mandou certa vez para casa, "Gostaria de poder contar-lhes o que está no meu coração. Sabem, a gente pode sentir a presença do mal. Eu sei que a minha vida está em perigo, mas só tenho um desejo: viver para Deus."