terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 12


 Certa noite, sentado na cadeira de couro do meu escri­tório em Philipsburg, eu pensava com satisfação nos acontecimentos dos últimos meses. Era a hora em que eu antigamente assistia a algum programa na televisão; mas nesse momento, sentia que só tinha razão para dar graças pela decisão que tomara.

Escrevera ao Instituto Latino-Americano em La Puente, Califórnia, sobre o sonho de Nicky, de ingressar no ministério. Nada escondi sobre a sua vida passada, e confessei francamente que ele não estivera ainda, na nova vida, o tempo suficiente para ser provado. Mesmo assim, perguntei se o aceitariam condicionalmente.

Responderam que sim e, mais do que isso, se sentiram tão interessados na história da transformação de um rapaz das ruas, que pouco tempo depois escreveram convidando Angelo Morales para estudar na mesma escola.

Sim, pensava eu. Estava tudo correndo muito bem. Dito e Simão continuavam bem, Nicky e Angelo iam estudar para se­rem futuros pastores; tudo indicava um final feliz, na tarefa para a qual eu fora chamado.

Essa calma não demorou muito para se dissipar. Na primavera de 1959, recebi uma notícia que me pôs novamente no caminho que, eu imaginara, seria curto. Israel estava preso, e sob acusação bastante grave — homicídio. Fui até Nova Iorque visitar a mãe de Israel.

"Meu filho foi tão bom, por algum tempo", disse a mãe de Israel chorando convulsivamente. "Quando as aulas co­meçaram, ele voltou a estudar, mas depois a quadrilha come­çou a agir novamente. O senhor sabe o que é "recrutamento", Sr. Wilkerson?"

Eu sabia bem o que era. Quando uma quadrilha se formava, ou quando as suas fileiras estavam minguadas, qualquer rapaz da redondeza estava sujeito a uma das invenções mais odiosas das quadrilhas. Ele era simplesmente "recrutado". Cercavam-no, e lhe diziam que daquele momento em diante, ele era mem­bro da quadrilha e estava obrigado a participar das brigas e obedecer a todas as ordens.

E se ele se recusasse?

Primeiro davam-lhe uma surra. Se ainda continuasse recu­sando, quebravam-lhe os polegares ou um braço. Se ainda recusasse, ameaçavam a sua vida. Quem conhece as quadrilhas não menospreza essas ameaças; a maioria sucumbe. Israel tentou resistir várias vezes, antes de voltar finalmente à quadrilha.

"Meu filho tinha tanto medo", continuou a mãe de Israel. Acabou voltando. Uma noite houve uma briga muito grande. Um dos rapazes morreu. Ninguém disse que foi Israel quem atirou, mas ele estava no grupo e foi levado para a cadeia."

A mãe de Israel mostrou-me uma carta que recebera dele, já muito amassada e manchada de lágrimas. Ele dizia que lamen­tava a tragédia por causa dela, mas não parecia revoltado. Fa­lava do dia em que poderia sair de lá, e de mim também, dizen­do: "O pregador vai ficar triste quando souber. Diga a David que eu gostaria de receber notícias dele".

O que poderíamos ter feito? Como poderíamos ter evitado que Israel fosse parar na cadeia? Será que, se eu estivesse mais perto, oferecendo a minha amizade e conselhos, teria ajudado? Se o tivéssemos tirado desse ambiente, longe da quadrilha que o havia recrutado, e longe da vida que o envenenara, teria sido outro o seu destino?

Fiz todas essas perguntas à mãe de Israel, enquanto ela gemia e meneava a cabeça, em seu sofrimento.

"Talvez", disse ela. "Não sei. Meu filho andou direitinho por algum tempo. Depois voltou. Ele queria ser bom. Ajude-o, Sr. Wilkerson."

Prometi que faria o que pudesse. De início, disse que enviaria para a cadeia, algumas lições de um curso por correspondência para Israel.

Dia e noite eu pensava nele. Falava com Gwen a seu respeito. Surpreendi-me a mim mesmo perguntando aos membros da igreja o que teriam feito por ele, onde eu falhei. Escrevi-lhe, mas descobri logo que ele não poderia responder. Só lhe era permitido escrever à sua família. Até mesmo as lições por correspondência teriam de ser enviadas ao capelão da cadeia.

No começo do verão, quando os campos da Pensilvânia estavam verdes novamente, Israel estava mais do que nunca nos meus pensamentos. Aproveitava todas as oportunidades para subir o morro e orar por ele. Além disso, nada mais podia fazer.

Enquanto escrevo estas linhas, Israel ainda está preso. A frustração que sinto hoje me tortura tanto quanto no dia em que primeiro reconheci minha impotência ante o crime e o castigo desse meu predileto entre todos os rapazes que conheci; desse com quem me simpatizei à primeira vista. Agora estou aguardando; mais nada.

Enquanto isso, em toda a ocasião apropriada, contava sua história a outros, perguntando o que poderia ter sido feito de maneira diferente. Vez após vez recebi a mesma resposta — acompanhar de perto os passos do recém-convertido. A falha estava em abandonar esses rapazes, depois de convertidos.

Mas para fazer isso, eu teria de estar ali por perto. Sentia que alguma coisa estava para acontecer na minha vida. E de repente aconteceu.

Era uma noite quente de agosto, um ano e meio depois da minha primeira tímida visita a Nova Iorque. Estava no púlpito naquela quarta-feira durante a reunião de oração, quando subitamente minhas mãos começaram a tremer. O termômetro marcava 39 graus, mas eu tremia como se estivesse com febre. Em vez de me sentir doente ou preocupado, sentia uma tre­menda alegria, como se o Espírito do Senhor estivesse se apro­ximando de mim.

Não sei como consegui terminar o culto, mas afinal a congregação se dispersou, cada um dirigindo-se à sua pró­pria casa. Às 10:30h fechei a igreja e saí pela porta dos fun­dos. O que aconteceu a seguir foi algo bastante simples, mas ao mesmo tempo um dos momentos mais nitidamente reais da minha vida, dos quais me lembrarei enquanto viver.

A lua brilhava com luminosidade incomum; sua luz fria e misteriosa banhava a cidade adormecida; mas havia um ponto que parecia ainda mais claro do que os outros. Atrás da igreja havia uma plantação de trigo que estava com quase meio metro de altura. Fui impulsionado bem para o meio desse campo, enquanto o trigo balançava, impelido pela leve aragem da noite. Repentinamente, vi-me repetindo as palavras de João 4.35-38:

"Não dizeis vós que ainda há quatro meses até que venha a ceifa? Eis que eu vos digo: levantai os vossos olhos e vede as terras, que já estão brancas para a ceifa. E o que ceifa recebe galardão e ajunta fruto para a vida eterna, para que, assim o que semeia como o que ceifa, ambos se regozijem. Porque nisso é verdadeiro o ditado: Um é o que semeia, e outro, o que ceifa. Eu vos enviei a ceifar onde vós não trabalhastes; outros traba­lharam, e vós entrastes no seu trabalho." (ARC.)

Em minha mente, cada haste de trigo representava um jo­vem das ruas da cidade, ansioso para começar de novo a vida. Depois voltei-me e olhei para a igreja e para a casa pastoral, onde Gwen e as três crianças estavam alegres e seguras, nessa pequena paróquia. Mas, enquanto olhava para lá, uma voz interna parecia falar-me, como se algum amigo ali por perto me dirigisse a palavra: "A igreja não é mais sua", dizia. "Você deve partir".

E na mesma voz interior, mansa e calma eu respondi: "Sim, Senhor. Eu irei".

Voltei para casa, onde Gwen me esperava. Já estava pronta para deitar-se, mas ao olhar para ela vi que algo também lhe acontecera.

— O que é, Gwen?

— Como, o que é?

— Há alguma coisa diferente em você.

— David, respondeu ela, não é preciso contar. Eu já sei. Você vai deixar a igreja, não vai? Você precisa partir.

Olhei para Gwen muito tempo antes de responder. A luz do luar, que fluía para dentro do quarto da casa pastoral, eu pude enxergar o brilho de uma lágrima em seus olhos.

— Eu ouvi a voz também, David, dizia Gwen. Nós vamos partir, não é?

Abracei-a na penumbra e disse:

— Sim, minha querida. Nós vamos.

O domingo seguinte era o quinto aniversário de nossa permanência em Philipsburg. Naquela manhã, do púlpito, eu contemplava o rosto daquelas pessoas que conhecia tão bem.

"Amigos", disse. "Vocês, provavelmente, estarão esperando uma mensagem de aniversário. Como todos sabem, esses cinco anos foram felizes e maravilhosos para mim, para minha esposa e para nossos filhos, dois dos quais nasceram aqui. Sempre nos lembraremos desses anos com muito prazer, pelas muitas provas de amizade que aqui recebemos. Mas algo de incomum aconteceu na última quarta-feira, algo que poderá ter uma explicação apenas."

Contei-lhes então a minha experiência no campo de trigo e a surpreendente experiência que Gwen tivera, ao mesmo tempo, dentro de casa. Disse-lhes que não tinha a menor dúvida — era a voz do Senhor e nós teríamos de obedecer. Não poderia responder a pergunta sobre onde iríamos, embora tivesse a impressão de que seria Nova Iorque. Todavia, não tinha certeza ainda. O que sabia certamente era que deixaríamos Philipsburg, sem demora.

Como é maravilhoso viver essa vida do Espírito! Naquela mesma tarde, quando voltei para casa, o telefone tocou. Era Um chamado da Flórida, de um pastor que disse não conseguir se livrar de uma idéia persistente de telefonar-me, convidando-me para dirigir uma série de reuniões em um retiro a realizar-se imediatamente. Logo depois outro telefonema, depois outro e, antes do fim do dia, estava com reuniões marcadas para doze semanas, em diversos lugares dos Estados Unidos.

Dentro de três semanas, havíamos guardado nossa mobília, transferindo-nos para uma parte da casa dos meus sogros.

Depois eu parti. Durante o resto daquele verão, e parte do inverno seguinte, visitei várias cidades e estados do país. Às vezes tinha vontade de rir de mim mesmo; eu sempre calculava a distância até cada lugar que deveria visitar, não começando de onde eu estava, mas de Nova Iorque. A cidade continuava a me atrair, como um ímã. Sempre que possível eu escolhia compromissos que me levariam para perto daquela cidade grande, congestionada e cheia de sofrimento, que eu amava de maneira especial.

No inverno de 1960, um destes compromissos me levou a Irvington, Nova Jersey. Lá fiquei hospedado com um pas­tor chamado Reginald Yake, e contei-lhe, como fazia com todos, algumas das experiências que tivera em Nova Iorque. O Sr. Yake ficou sentado no braço de uma poltrona durante uma hora, ouvindo atentamente e fazendo perguntas.

"David", disse ele afinal, "parece-me que as igrejas precisam de um pregador de tempo integral, para trabalhar com as quadrilhas de Nova Iorque. Deixe-me dar alguns telefonemas a certos amigos meus."

Um dos homens que chamou foi Stanley Berg, co-pastor do Tabernáculo Boas-Novas, na Rua 33-Oeste, perto da Estação Penn. Foi convocada uma reunião de pastores interessados, para um salão da igreja do Sr. Berg.

Foi uma reunião normal. Alguém leu uma carta de uma au­toridade policial que incentivava as igrejas a tomarem uma atitude mais atuante nas questões relativas aos jovens. O Sr. Berg discursou sobre o trabalho que eu já havia feito, depois eu falei a respeito da direção que o trabalho entre os jovens poderia tomar agora.

Antes de terminarmos, um novo ministério havia nascido. Já que o propósito principal desse novo ministério era alcançar os jovens com a mensagem do amor de Deus, demos-lhe o nome de "Evangelismo Jovem". Fui escolhido para ser diretor desta nova organização, por já ter experiência neste trabalho. Um capitão da polícia chamado Paul DiLena, membro da igreja do Sr. Berg, foi escolhido como secretário-tesoureiro. Coitado do Paul — não estava presente à reunião, para defender-se.

Logo surgiu o assunto de dinheiro, que foi tratado com muita simplicidade. Resolvemos que para manter um escritório, pagar as despesas de salários, impressos e assim por diante, precisaríamos de 20.000 dólares no mínimo.

Naturalmente, não havia dinheiro, como descobriu o nosso secretário-tesoureiro alguns minutos mais tarde, quando Stanley Berg telefonou-lhe para dar a notícia de sua vitória nas urnas.

— Paul, disse o Pastor Berg, tenho boas notícias. Você acaba de ser eleito tesoureiro do Evangelismo Jovem. David Wilkerson é o diretor nessa luta em favor dos jovens. Sem dúvida, você gostará de saber que tem um orçamento de 20.000 dólares para o primeiro ano.

O capitão DiLena respondeu:

— Quem é David Wilkerson, onde estão os livros e o dinheiro?

— Paul, disse o Pastor Berg, não temos livros, não temos dinheiro, e David Wilkerson é um pregador vindo das montanhas da Pensilvânia, e sente que deve vir para Nova Iorque.

Paul riu:

— Parece tudo muito ingênuo, disse ele.

— Somos todos ingênuos, respondeu o pastor Berg.

— Tão ingênuos quanto Davi quando enfrentou Golias com apenas um estilingue e uma pedra... e mais a convicção de que estava do lado de Deus.