Em Philipsburg aconteceu a mesma coisa. Sentado à sombra das
árvores do nosso quintal, bebendo um copo de laranjada que Gwen fizera, olhava
meu filhinho que dormia no seu cesto. De repente, surpreendia meus pensamentos
voltando aos jovens de Nova Iorque, que lutavam pelo direito de se sentarem
num canto úmido de um parque público.
Certa noite, depois de falar por cerca de meia hora sobre
Angelo Morales, que queria ser pregador, mas não tinha o dinheiro para ir à
escola, Gwen me disse carinhosamente:
"A sua paróquia é Philipsburg; você não pode
negligenciar a sua própria igreja."
É claro que Gwen tinha razão, e durante os seis meses seguintes,
dei tudo o que tinha à minha paróquia nas montanhas.
Era um trabalho muito agradável que me dava prazer, mas o
outro lugar nunca se afastava dos meus pensamentos.
Certo dia, um dos membros da igreja disse-me:
"Já percebi que você não se anima com as coisas daqui,
tanto quanto com aquelas crianças da cidade."
Engoli em seco. Pensei que havia conseguido esconder meus
sentimentos a esse respeito. De qualquer maneira, começava a despontar uma idéia
que me preocupava bastante: levar a minha família de mudança para Nova Iorque,
e dedicar-me a esses rapazes como obreiro de tempo integral. Talvez não
conseguisse uma casa, mas pelo menos poderia trabalhar com eles nas ruas.
A idéia persistia. Meditei nela durante o outono e no inverno
também, enquanto atravessava os campos nas minhas visitas pastorais. Preguei
vários sermões, tendo como tema "Conhecer a Vontade de Deus",
esperando aprender algo sobre orientação divina.
Mais do que tudo isso, pensei no caso, sentado no alto de
certa montanha. Desde menino, sempre levei minhas maiores preocupações aos
montes. O "Careca" foi o monte que ouviu minhas lamentações de
menino. Era uma pequena montanha irregular, localizada perto de nossa casa em
Barnesboro, Pensilvânia.
Lá de cima do "Careca" eu via a minha casa, e
observava papai, mamãe e meus irmãos, correndo de um lado para outro a minha
procura. Algumas vezes ficava lá em cima quase o dia todo, pensando nos
problemas que um menino tem de resolver. Quando voltava, sempre apanhava, mas
o castigo nunca me impedia de fazer o trajeto novamente, porque lá em cima eu
gozava da solidão e do isolamento de que precisava.
Sentia grande necessidade disso, agora. Não longe da igreja
havia uma velha mina abandonada. Escolhi esse local como versão adulta do
"Careca". De lá eu podia ver a igreja, e se colocasse o carro num
determinado lugar, Gwen podia vê-lo, e assim não se preocuparia quando eu me
ausentasse por muito tempo.
Lá no meu monte, considerei o assunto. Seria de Deus, essa
vontade de ir para Nova Iorque? Seria mesmo de sua vontade que eu abandonasse
essa paróquia e mudasse, com Gwen e nossos três filhinhos, para aquela cidade
suja com todos os seus problemas cotidianos?
A resposta clara e definitiva não veio de imediato. Como
quase toda orientação divina, veio passo a passo.
O primeiro passo foi outra visita a Nova Iorque.
— Você já parou para pensar que já faz um ano desde que fui
expulso do julgamento do caso Farmer? perguntei a Gwen certa manhã de
fevereiro.
— É? Oh!
— E o que você quer dizer com isso?
— Você está se preparando para voltar a Nova Iorque, não é?
Tive de rir.
— Bem, de fato estava pensando numa viagem bem rápida, de uma
noite apenas.
— Hum hum.
Foi bom atravessar a Ponte George Washington novamente, e logo depois a ponte do Brooklyn. Foi bom andar pelas ruas novamente, pulando por cima dos montes de neve, como eu fizera naquela minha primeira visita à cidade. Fiquei surpreso por me sentir tão à vontade, como se estivesse mesmo em casa. Queria procurar velhos amigos e visitar lugares onde grandes milagres se deram no coração dos rapazes.
Um dos lugares que eu queria rever era Fort Greene, e ao
passar por aquelas ruas cheguei ao local onde Jimmy Stahl e eu havíamos feito
aquela primeira reunião ao ar livre. Estava revivendo aquela cena, quando ouvi
alguém me chamando:
— David! Pregador!
Voltei-me e vi dois garbosos soldados de cor que se aproximavam
de mim, correndo. Usavam uniformes limpos e bem-passados, e os sapatos
brilhavam de modo a chamar atenção.
Olhei bem para eles:
— Dito! Simão!
Estavam irreconhecíveis; deviam ter engordado uns dez quilos
cada um.
— Sim, senhor! disseram juntos, fazendo continência. Que tal,
hein, David?
Estavam obviamente orgulhosos. Entrar para o Exército era uma
espécie de apogeu para muitos rapazes dos conjuntos habitacionais. De fato, o
uniforme que usavam era como um certificado de mérito, porque as exigências do
Exército, quanto à alfabetização e saúde eram bastante rigorosas. Dito, Simão e
eu tivemos uma conversa agradabilíssima. Eles me contaram que iam bem, que
haviam deixado a quadrilha depois daquele primeiro encontro na rua, e nunca
mais voltaram.
— Aliás, disse Simão, a quadrilha dos Capelães se dissolveu
para o resto do verão, ninguém queria brigar.
Deixei Simão e Dito com verdadeiro pesar. Fiquei surpreso com
a intensidade de minhas próprias reações, quanto a esse encontro inesperado.
Gostava realmente desses rapazes e sentira sua falta mais do que eu mesmo
reconhecera.
Mas surpresa maior me esperava. Desci a Rua Edward, passei
pelo posto onde Jimmy e eu pregamos, à procura de Israel e Nicky. Encontrei-me
com um rapaz espanhol que eu pensei reconhecer e perguntei se sabia do
paradeiro de Nicky e Israel, dos Mau Maus.
O rapaz me olhou estranhamente.
— Você se refere àqueles arruaceiros que viraram santos? Ele
dizia isso ridicularizando, mas como me alegraram as suas palavras!
"Glória a Deus!" pensei. "Estão firmes!"
Mas o que ele disse em seguida me deixou tonto. Não estavam
apenas firmes, mas Nicky pelo menos estava caminhando a passos largos.
— Aquele Nicky, hum! dizia o rapaz com desdém. Ficou biruta.
Vai ser um desses pregadores malucos.
Fiquei atônito, boca escancarada.
— Será que eu ouvi bem? Nicky vai ser pregador?
— É isso que ele diz.
Queria saber onde encontrá-lo. Quando ele havia falado sobre
isso? A quem falara? Já havia tomado alguma providência? O rapaz não podia
responder às minhas perguntas, portanto sai à procura do próprio Nicky.
Encontrei-o um pouco mais tarde, sentado nos degraus de um
prédio de apartamentos, conversando com outro rapaz.
— Nicky!
Ele se virou, e eu olhei para um rosto completamente desconhecido.
Onde houvera antes uma fisionomia dura e rebelde, agora via-se franqueza e
animação, um olhar simpático e vivo. Quando me viu, seus olhos mostraram grande
prazer.
— Pregador! Ele levantou-se depressa e veio ao meu encontro.
David! Depois, voltando-se para o rapaz que estava com ele disse: Ei, rapaz,
este é o pregador de quem lhe falei. Foi ele que me conquistou.
Foi maravilhoso revê-lo. Depois das apresentações e cumprimentos,
perguntei a Nicky se era verdade que ele queria entrar para o ministério.
Nicky olhou para o chão e disse:
— Nunca desejei tanto uma coisa, como desejo isso, David!
— Que ótima notícia! disse eu. Você já tomou alguma
providência?
— Nem sei por onde começar.
Eu estava com a cabeça cheia de idéias. Ofereci-me para escrever
a algumas escolas de teologia. Queria eu mesmo financiar o seu curso. Queria
mandá-lo a uma clínica que corrigisse o seu impedimento de linguagem.
Tive até algumas idéias quanto à arrecadação de dinheiro para
tudo isso. Fora convidado a falar a um grupo em Elmira, Nova Iorque, sobre os
problemas de jovens nas cidades, e a reunião estava marcada para daí a algumas
semanas. Pareceu-me ironia, que naquela mesma cidade Luis Alvarez havia estado
preso. Os rapazes não ficam muito tempo em Elmira. Luis já deveria ter sido
transferido, e eu não tinha a mínima idéia de onde poderia estar.
— Nicky, perguntei, você quer ir comigo a Elmira, contar a
sua história àquelas pessoas? Quem sabe poderão ajudá-lo.
Nem bem acabara de fazer a sugestão e comecei a ter dúvidas
quanto à sua realização. A história de Nicky, que eu ouvira aos pedaços aqui e
ali, era verdadeiramente horrível, cheia de brutalidade e de certa
irracionalidade que talvez fosse até incompreensível em Elmira. Eu já estava
acostumado a ver e ouvir coisas arrepiantes nas ruas de Nova Iorque, mas mesmo
assim achava a história de Nicky chocante.
Por outro lado, argumentava comigo mesmo, a igreja de Elmira
mostra desejo de saber alguma coisa sobre as quadrilhas; essa seria a forma de
aprenderem mais rapidamente. Para mim seria uma boa oportunidade de ouvir a
história de Nicky, do começo ao fim, principalmente sobre a sua experiência na
Arena São Nicolau, do seu próprio ponto de vista.
Foi assim que Nicky se achou num púlpito em Elmira, algumas semanas mais tarde, para contar a história de sua vida. Durante a apresentação, fiz questão de frisar a pobreza e a solidão em que viviam rapazes como ele, para que não o julgassem muito severamente, até ouvirem toda a sua história.
Nem seriam necessárias essas precauções. Desde o momento em
que ele abriu a boca para falar, todos "estavam" com ele. Suas
próprias palavras, sua comovente falta de experiência — por mais que se
considerasse "vivido" — a apresentação nua e crua dos fatos, por um
rapaz que não aprendera ainda a exagerar ou embelezar, falaram mais do que
volumes de sociologia, sobre o mundo de onde ele viera.
Começou dizendo:
"Eu vivia principalmente nas ruas, porque meus pais
tinham clientes que vinham onde morávamos. Chegavam às vezes de dia, outras vezes
de noite, e todos nós tínhamos de sair. Meus pais eram espíritas. Faziam
anúncio nos jornais em espanhol dizendo que falavam com os mortos e curavam
doentes. Davam também conselhos sobre dinheiro e problemas familiares.
"Tínhamos um cômodo só; por isso, nós crianças ficávamos
na rua. A princípio eu apanhava muito, depois aprendi a brigar, e os outros
começaram a ficar com medo de mim e me deixavam em paz. Em casa eu era o mais
novo; não era ninguém, mas na rua todos sabiam quem eu era.
"Minha família se mudava muito, principalmente por minha
causa. Se havia qualquer confusão e a polícia aparecia por lá fazendo
indagações, o responsável pelo prédio onde morávamos imediatamente dizia que
teríamos de mudar. Não queriam complicações com a polícia. É assim com todos os
porto-riquenhos; não importa se a gente fez alguma coisa errada ou não. Se a
polícia aparece fazendo perguntas, a família tem de mudar.
"Não sei por que eu agia daquela maneira. Havia dentro
de mim alguma coisa que me amedrontava e me preocupava o tempo todo, mas que eu
não podia controlar. Acontecia isso quando eu via um aleijado. Queria matá-lo.
Sentia a mesma coisa com cegos, ou criancinhas — qualquer pessoa fraca ou
ferida — eu os odiava.
"Um dia contei isso a meu pai. Nós nunca conversávamos,
mas aquilo me amedrontava. Quando contei, ele disse que eu tinha um demônio, e
tentou expulsar o demônio, mas não conseguiu.
"Essa coisa louca ficava cada vez pior. Se encontrava alguém
de muletas, chutava-as; se deparava com um velho barbudo, puxava-lhe a barba;
e maltratava as criancinhas. Enquanto isso, eu estava sempre com medo e
querendo chorar, mas a coisa dentro de mim dava risadas. Outra coisa era
sangue. Quando via sangue começava a rir sem parar.
"Quando mudamos para Fort Greene, entrei para a quadrilha
dos Mau Maus. Eles queriam que eu fosse presidente, mas, numa luta, o
presidente tem de dar ordens. Eu queria brigar, por isso me fizeram
vice-presidente.
"Também era responsável pelas armas. Tínhamos cinturões,
punhais, facas e espingardas pica-pau. Eu gostava de olhar para essas coisas;
sentia-me bem. A gente precisa roubar a antena de um carro para fazer uma
espingarda pica-pau. Usa-se um trinco de porta como gatilho, e cartuchos 22.
"Mas na hora da briga, eu gostava era de um bastão de
beisebol. Cortava um buraco numa lata de lixo, para poder ver; punha a lata na
cabeça e saía batendo com o bastão. Os próprios Mau Maus não lutavam ao meu
lado, porque, quando ficava maluco, eu batia em qualquer um que estivesse na
minha frente.
"Aprendi também a esfaquear, isso é, cortar sem matar.
Furei dezesseis pessoas e fui para a cadeia doze vezes. Em algumas dessas
vezes, a minha fotografia saiu nos jornais. Quando eu passava, todos sabiam
quem eu era, e as mães chamavam os filhos para dentro.
"As quadrilhas também me conheciam. Um dia estava
esperando o trem no metrô, quando cinco rapazes me atacaram pelas costas.
Passaram um cinto de couro pelo meu pescoço e foram apertando. Não morri, mas
muitas vezes gostaria de ter morrido, porque depois disto nunca mais falei
direito. Fiquei com este barulho estranho na garganta. Sempre odiei pessoas que
tinham algum defeito, e agora eu tinha um. Depois disto tive de brigar muito
para manter o respeito.
"Nossa quadrilha comandava até Coney Island e Avenida Ralph.
Tínhamos blusões vermelhos com MM bordados neles e usávamos botinhas de salto,
que ajudam muito numa briga. Um dia estávamos num bar na Avenida Flatbush.
Estávamos seis do nosso grupo tomando um refresco, quando sete Bispos entraram.
A quadrilha dos Bispos estava em guerra com os Mau Maus.
"Um dos Bispos foi ao balcão como se fosse dele. Os meus
rapazes estavam me olhando. Cheguei perto dele e dei-lhe um empurrão. Ele
também me empurrou e em pouco tempo todos estavam brigando. A esposa do
proprietário começou a gritar. Todos os outros fregueses saíram correndo. Havia
uma faca grande no balcão, um dos meus rapazes pegou a faca e cortou um Bispo
cinco vezes na cabeça. Eu vi o sangue e comecei a rir. Sabia que ele estava
morto, e fiquei com medo, mas não conseguia parar de rir. A esposa do
proprietário telefonou para a polícia. Outro dos meus rapazes pegou aquela faca
e enfiou na barriga dela enquanto ela telefonava. Depois corremos.
"Eu não peguei na faca, por isso não fui para a cadeia,
mas meus pais tiveram de se apresentar, e acho que me olharam pela primeira
vez. Ficaram com medo, quando souberam o que eu era, tanto que resolveram sair
de Nova Iorque e voltar para Porto Rico. Eu e meu irmão fomos até o Aeroporto
para a despedida. Na volta, no seu carro, ele me entregou uma pistola 32 e
disse:
"De agora em diante
você está sozinho, Nicky."
"A primeira coisa que eu fiz foi achar um lugar para
dormir. Assaltei um rapaz com minha pistola nova e roubei dez dólares. Aluguei
um quarto na Avenida Myrtle, e vivi assim de assaltos e roubos desde aquela
época. Tinha então dezesseis anos
"Durante o dia não tinha problemas, pois estava com a
quadrilha. Tudo o que eu e o presidente mandávamos, eles faziam. Mas à noite,
quando eu tinha de entrar naquele quarto, era horrível. Ficava pensando nas
duas pessoas mortas naquele bar. Batia a cabeça no chão para não pensar.
Comecei a acordar no meio da noite, chamando minha mãe. Antes de partirem, eu
nunca conversava com ela, mas de repente senti que ela deveria vir cuidar de
mim.
"Fiz dezoito anos em julho de 1958. Durante aquele mês,
os Dragões de Red Hook mataram um dos nossos rapazes. Nós íamos embarcar no
metrô para pegar um deles, porque é uma das leis da quadrilha; se morre um Mau
Mau, um Dragão morre também. Estávamos descendo a Rua Edward em direção a
estação do metrô, quando vimos um carro da polícia parado e um grupo de
Capelães por ali. Os Capelães são a quadrilha de pretos em Fort Greene. Nós
tínhamos um acordo com eles, de que não brigaríamos, e lutaríamos juntos se
outra quadrilha nos invadisse os domínios.
"Alguma coisa parecia estar acontecendo; por isso, fomos
averiguar. Os Capelães estavam rodeando dois homens desconhecidos. Um deles
estava tocando uma corneta e o outro era um magricela. Logo, alguém trouxe uma
bandeira americana, e o carro da polícia foi embora. Verificamos que não era
nada importante, os dois apenas queriam fazer uma reunião ao ar livre.
"Logo que hastearam a bandeira, o magricela subiu numa
banqueta, abriu um livro e leu isto:
"Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna".
"— Agora, disse o
pregador, vou falar com vocês sobre o que significa "todo aquele".
Significa pretos e porto-riquenhos, especialmente membros de quadrilhas. Vocês
sabem que, quando Cristo foi crucificado, ao lado dele crucificaram dois membros
de quadrilhas também?
"Para mim era o
suficiente e então eu disse: — Vamos rapazes, temos muito que fazer. Nenhum
deles se mexeu; era a primeira vez que não me obedeciam imediatamente. Foi
então que fiquei com medo, e comecei a xingar aquele pregador de todo nome feio
que eu conhecia. Ele não prestou atenção; continuou falando por muito tempo.
"Depois nem
acreditei no que via — o presidente dos Capelães se ajoelhou ali mesmo no meio
da rua e começou a chorar. O vice-presidente e mais dois se ajoelharam perto
dele e também choraram. Uma coisa que eu não agüentava ver era alguém chorar.
Achei muito bom quando os Capelães foram embora. Pensei: "Agora nós também
damos o fora".
"Mas, o tal pregador se aproximou de Israel — ele era
presidente dos Mau Maus — e cumprimentou-o. Eu logo pensei: "Ele deve
estar querendo acabar com a gente!" Então, fui até ele e dei um empurrão.
Israel olhou para mim, como se nunca me tivesse visto.
"Então aquele pregador veio para o meu lado."—
Nicky, disse ele, eu gosto de você. "Era a primeira vez em minha vida que
alguém me dizia isso, e eu não sabia o que fazer. Respondi: "— Se você
chegar perto de mim, eu o mato! "E eu estava falando sério mesmo. Israel e
o pregador conversaram mais um pouco, mas afinal ele partiu, e eu pensei que o
negócio tinha chegado ao fim. Só que nós não fomos mais atrás dos Dragões.
"Depois de algum tempo, contudo, o pregador voltou e falou
de grandes reuniões que iriam fazer, especialmente para os membros das
quadrilhas em Manhattan, e que também deveríamos ir.
"— Gostaríamos de ir, pregador, disse Israel, mas como
vamos atravessar o Bairro Chinês?
"— Mando um ônibus buscá-los, disse o pregador.
"Então Israel falou que iríamos. Eu disse que não iria,
preferia morrer do que ir àquela reunião. Mas aconteceu que, quando a quadrilha
foi, eu fui também; tinha medo de ficar sozinho, longe do pessoal. Pensei,
então, em atrapalhar bastante a reuniãozinha. Quando chegamos lá, havia três
fileiras de bancos bem na frente, reservados para nós, o que foi uma surpresa.
O pregador disse que iria reservar lugares, mas eu não acreditei.
"Uma mulher estava tocando órgão, e então fiz os rapazes
baterem o pé e gritar, exigindo que começassem logo. Depois, uma mocinha subiu
ao palco e cantou. Assobiei e todos riram, as coisas estavam acontecendo como
eu queria, e eu estava bem satisfeito.
"Finalmente o pregador apareceu e disse:
"— Antes da mensagem de hoje nós vamos fazer uma coleta,
"Pensei comigo mesmo: Agora já sei o que ele está
querendo", pois há muito tempo imaginava qual seria o interesse dele nisso
tudo. Agora percebi que, como todos os outros, o seu interesse era dinheiro.
"E ele disse mais:
"— Vamos pedir aos próprios membros das quadrilhas que a
levantem. Recolherão o dinheiro e o trarão para o palco, dando a volta por trás
daquela cortina.
"Pensei comigo mesmo: Além de tudo, é bobo. Quem não
pode ver que há uma porta de saída ali atrás?"
"— Quero seis voluntários, continuou o pregador.
"Ah! Num instante eu estava de pé; apontei cinco dos
meus rapazes e em pouco, nos achávamos ali. Aqui estava a minha chance para
fazê-lo de bobo. Ele nos deu caixas de papelão. Eu queria começar
imediatamente, mas ele fez todo mundo ficar quietinho, enquanto fez uma longa
oração. Tive de fazer um esforço enorme para não rir.
"Bem, passamos por todo o salão. Se eu achava que alguém
tinha dado pouco, ficava ali, em pé, até que pusesse mais. Todos conheciam o
Nicky! Voltamos depois, e nos encontramos atrás da cortina.
"Lá estava a porta, bem aberta. Eu podia ver as luzes lá
fora, e ouvi o carro-pipa, molhando a rua. Dentro do salão, alguns estavam
rindo, sabendo o que nós estávamos tramando. Meus rapazes estavam olhando para
mim, esperando a ordem de dar o fora, mas eu fiquei lá, como bobo. Não sabia
explicar por que, mas sentia alguma coisa engraçada, e pensei: Aquele pregador
confia em mim". Também era a primeira vez na minha vida que alguém
confiava em mim, e eu fiquei lá em pé, com os rapazes olhando para mim.
"Eu ouvia as risadas dos outros lá dentro. Batiam os pés
no chão e já começavam a gritar, e eu pensei nele em pé na frente de todos,
tendo de agüentar tudo, e confiando em mim.
"— Certo, rapazes, falei, vamos subir para aquele palco.
"Eles olharam para mim como se eu estivesse louco, mas
ninguém discutiu. Eu era assim, ninguém discutia comigo. Subimos a escada, e
vocês nunca viram uma turma fazer silêncio mais depressa! Entregamos as caixas.
"— Aqui está o seu dinheiro, pregador, disse eu.
"Ele pegou o dinheiro, sem mostrar surpresa, como se
soubesse que nós o traríamos. Voltei para o meu lugar e comecei a pensar mais
do que já pensara em toda a minha vida. Depois, ele começou a falar sobre o
Espírito Santo. Disse que o Espírito Santo poderia entrar nas pessoas e fazer
com que fossem purificadas. Não importava o que já haviam feito; o Espírito
Santo poderia fazer com que começassem de novo, como criancinhas.
"De repente, eu queria aquilo mais do que qualquer outra
coisa. Era como se eu estivesse me vendo pela primeira vez. Toda a sujeira, o
ódio e a maldade apareceram como figuras reais à minha frente.
"Você pode ser diferente!" dizia ele. "Sua
vida pode ser transformada!"
"Queria isso, precisava disso, mas sabia que não poderia
acontecer comigo. O pregador disse para ir à frente, se quiséssemos ser
transformados, mas eu sabia que para mim não havia mais jeito.
"Então, Israel levantou-se e mandou que todos levantássemos
também:
"— Eu sou o presidente, e toda esta quadrilha vai lá
para a frente!
"Eu fui o primeiro a chegar. Ajoelhei-me e fiz a
primeira oração da minha vida, assim: "Querido Deus, sou o pecador mais
sujo de Nova Iorque. Acho que o Senhor não pode me querer, mas se quiser, eu
estou aqui. Assim como fui ruim, quero ser bom para Jesus".
"Depois, o pregador deu-me uma Bíblia e voltei para
casa, pensando se o Espírito Santo estaria realmente dentro de mim, e como eu
poderia ter certeza. A primeira coisa que aconteceu, quando entrei no meu
quarto e fechei a porta, foi que eu não senti mais medo. Senti como se tivesse
um companheiro ao meu lado — não Deus, nem qualquer coisa parecida, mas senti
me como se minha mãe tivesse voltado. Tinha quatro pacaus de maconha no bolso,
piquei-os em pedaços e joguei-os pela janela.
"No dia seguinte todos olhavam para mim espantados, por
que a notícia de que o Nicky ficara religioso se espalhara. Mas outra coisa que
aconteceu, e me ajudou a saber que a mudança fora real, foi a atitude de dois
meninos. Em geral as crianças sempre fugiam de mim, mas esses dois se
aproximaram, olharam bem para mim e vieram pedir um favor. Queriam que eu os
medisse, para saber qual era mais alto. Como vêem, nada importante, mas pus a
mão nos seus ombros porque sabia que eu estava diferente, mesmo que só as
crianças o percebessem.
"Algumas semanas mais tarde, um Dragão chegou perto de
mim e disse:
"— É verdade que você não carrega mais arma nenhuma?
"Respondi-lhe que sim, e ele então tirou um punhal e ia
cravá-lo no meu peito. Levantei a mão depressa, recebendo o golpe nela. Não sei
por que o rapaz saiu correndo, e eu fiquei olhando para o sangue que caía da
minha mão. Lembrei-me de como sangue sempre me deixava louco, mas nada
aconteceu. Vieram-me então à memória algumas palavras que havia lido na minha
Bíblia: "O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado"
(1 Jo 1.7). Rasguei a camisa, amarrei a mão, e daquele dia em diante acabou-se
aquela loucura que sentia quando via sangue."
Enquanto Nicky falava, um silêncio envolveu a sala — aquele silêncio que afeta até a respiração, e que invariavelmente acompanha um milagre. Nós estávamos presenciando um milagre naquela noite em Elmira, e à medida que cada um compreendia esse fato, soltava a respiração numa espécie de suspiro, que encontrava eco em outro, logo mais adiante.
Quando Nicky começou a contar sua história, falava naquela
voz forçada, rouca e cheia de impedimentos, mas à medida que prosseguia em seu
relato, sua voz foi se alterando. Paulatinamente, as palavras eram pronunciadas
com menos esforço, os sons se tornaram mais nítidos, até que afinal, ele estava
falando com tanta naturalidade e nitidez como qualquer outra pessoa ali
presente.
A essa altura do seu relato, o próprio Nicky teve consciência
do fato, e começou então a tremer, incapaz de continuar sua história, com
lágrimas a lhe rolarem pela face.
Eu nunca soube exatamente o que havia causado o seu problema,
se era mesmo algo físico, resultado do estrangulamento, ou se era o que os
médicos chamam de mal "psicológico". Naturalmente, Nicky nunca
pensara em consultar um médico a respeito daquilo. Eu sei que depois daquela
noite, sua voz ficou curada.
Naquela noite, também foi tirada uma oferta, que permitiu a
Nicky iniciar uma jornada longa e notável.