terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 10


 Já estava quase na hora do início da reunião. O audi­tório estava ficando cheio naquela noite final da cam­panha. Já se encontravam reunidos ali mais jovens do que em qualquer noite anterior. Vi alguns Capelães, os Dragões e alguns GGU. Entre eles, notei com interesse, também se achava Maria. Mas, em nenhum lugar, eu via um Mau Mau, embora procurasse o casaco vermelho-vivo com os dois grandes M.

Não conseguia me esquecer do olhar simpático e o modo franco de Israel, presidente dos Mau Maus. Fui pessoalmente chamar essa quadrilha como meus convidados especiais, e falar-lhes acerca do ônibus que havíamos alugado para eles. Quando disse que guardaria alguns lugares na frente para eles, Israel prometeu vir e trazer os outros.

Entretanto chegávamos ao fim da campanha, e eles não apareciam. Eu sabia que a razão era Nicky. Enquanto eu falava com Israel, ele ficara de lado, calado e revoltado, exalando ódio de mim e de tudo o que eu representava.

Fui até a uma janela que dava para a rua, e vi que chegava um ônibus. Sabia que eram os Mau Maus, antes de vê-los. Sabia pelo jeito que o ônibus chegou, encostou depressa, como se o motorista não visse a hora de se ver livre dos seus passageiros. As duas portas se abriram, derramando cerca de cinquenta jovens, que gritavam e mostravam disposição para divertir-se.

Um rapaz, ao descer, jogou fora uma garrafa de vinho vazia. Na pequena distância que havia entre o ponto do ônibus e a entrada, apanharam várias meninas que estavam do lado de fora com roupas bastante escassas.

— Senhor, disse em voz alta, onde é que eu vim parar? Eu havia pedido aos introdutores que reservassem as primeiras três fileiras de bancos, sem dizer para quem. Agora, um deles chegava até onde eu estava, aborrecido e afobado:

— Reverendo, eu não sei o que fazer. Levou-me até a galeria e apontou para baixo, onde Israel e Nicky desciam o corredor, batendo as bengalas no chão, assobiando e gracejando. São os Mau Maus, e acho que não vou poder mantê-los fora daqueles bancos reservados, continuou o porteiro, aflito.

— Não há problema, disse eu. Os lugares foram reservados para eles, são meus amigos.

A confiança que eu mostrava em palavras, entretanto, não era real.

Deixei o pobre homem olhando para mim, confuso, e desci as escadas até os camarins, onde encontrei todos muito preocupados. O gerente do salão dizia:

— Não estou gostando nada disso aí, existem quadrilhas rivais e podemos ter uma briga de grandes proporções em nossas mãos.

— Será que devemos chamar mais policiais? perguntou um dos pastores que conhecia as quadrilhas.

Olhei novamente. Uma das nossas jovens, que cantava muito bem e era tão linda quanto uma estrela de cinema, estava se dirigindo ao centro do palco que havíamos construído em um lado da arena.

— Vamos ver o que Maria consegue, disse eu. Quem sabe não teremos de chamar mais policiais. Talvez possamos acalmar as bestas selvagens com música.

Mas quando Maria Arguinzoni começou a cantar, os gritos e assobios aumentaram.

— Ei, boneca! Cuidado com as curvas!

— Será que depois do show você tem tempo para um pobre pecador?

— Como é o seu nome, benzinho?

Os rapazes estavam em pé nos bancos, executando a sua dança sensual; as moças, com roupa escassa, rebolavam ao rit­mo do hino evangélico que Maria cantava. Ela olhou para onde eu estava e perguntou, com os olhos, o que deveria fazer. Ape­sar das palmas e dos gritos, pedindo bis, eu fiz sinal para Maria que voltasse.

— Você quer desistir de tudo, David?

— Não, ainda não. Vamos esperar mais um pouco. Vou tentar conversar com eles. Se você achar que as coisas não vão indo bem, então faça o que achar melhor.

Saí. Como era longe o centro do palco! Naturalmente, Israel quis anunciar a sua presença.

— Ei! David! Estou aqui! Não disse que viria e traria meus rapazes?

Voltei-me para sorrir-lhe, e encontrei o olhar de Nicky, duro como pedra. Aí, tive uma inspiração.

— Vamos fazer uma coisa diferente, hoje, disse eu através do alto-falante. Vamos pedir a vocês que façam a coleta. Olhei bem para Nicky enquanto falava: Quero seis voluntários.

Num instante, Nicky estava em pé, com incredulidade e triunfo secreto aparecendo na sua fisionomia. Apontou para cinco Mau Maus, e os seis vieram à frente do palco. Um bom resultado da minha decisão já aparecia; conseguimos a atenção dos presentes. Centenas de jovens interromperam sua folia e aguardavam com ansiedade o desenrolar dos acontecimentos.

Voltei-me para os introdutores atônitos, e tirei de suas mãos as caixas de papelão. Enquanto as distribuía, disse aos rapazes:

— Depois de passarem por todos os corredores, tragam a oferta por ali, passando por detrás daquela cortina, até aqui em cima.

Apontei para o local, enquanto estudava a fisionomia de Nicky. É que atrás daquela cortina, além das escadas que levavam ao palco, havia uma saída para a rua. Uma enorme seta indicava: "Saída". Nicky aceitou a caixa solenemente, mas nos seus olhos eu lia zombaria e desprezo.

Foi assim que, ao som do órgão, Nicky e seus rapazes fize­ram a coleta. Aliás, Nicky era ótimo arrecadador de fundos. Já havia esfaqueado dezesseis pessoas, e era conhecido como cam­peão em briga de faca desleal, não apenas pelos jovens do Brooklyn, mas também pelas quadrilhas de Manhattan e do Bronx.

Era também famoso pela sua tática com o bastão de beisebol. Os jornais o apelidaram de "Lutador da Lata de Lixo", porque numa briga ele punha uma lata na cabeça, e entrava na luta, batendo cegamente com seu bastão, abrindo ao redor de si um círculo mortal. Quando Nicky se postava ao lado de um banco, sacudindo sua caixinha o pessoal dava generosamente.

Quando se deu por satisfeito, chamou os outros rapazes e juntos vieram até à frente e desapareceram atrás da cortina. De pé no palco eu esperava.

Uma onda de risadinhas percorreu a congregação. Passou-se um minuto. As meninas punham as mãos à boca, para aba­far o riso. Dois minutos. Agora os risos reprimidos explodi­ram em vaias, e a minha inspiração pareceu-me nada mais do que um ato de loucura. A turma toda estava em pé, batendo os pés e gritando.

Subitamente, houve silêncio. Virei-me. Nicky e os outros es­tavam atravessando o palco e vinham na minha direção com as caixas cheias. Nicky me olhava espantado, quase que amedron­tado, como se nem ele pudesse entender o que estava fazendo.

— Aqui está o seu dinheiro, pregador, ele disse com raiva e relutantemente, como se alguém arrancasse as palavras dele.

— Obrigado, Nicky, disse eu, no que esperava ser um tom de voz despreocupado.

Depois, dirigi-me ao púlpito como se não houvesse passado pelos piores dois minutos de minha vida.

O silêncio era absoluto, enquanto os seis rapazes voltavam aos seus lugares. Comecei a falar, com o coração a bater de esperança. Mas se eu pensei ter ganho a simpatia daquela tur­ma para a minha mensagem, estava muitíssimo enganado. Con­segui seus ouvidos, mas parecia impossível alcançar o coração deles.

Não podia entender o que havia de errado em meu sermão. Fizera tudo para que fosse bom. Gastara horas preparando-o, orando sobre cada palavra. Até jejuara, esperando que isso for­talecesse a apresentação e a persuasão. Mas era como se levantasse e lesse um balancete comercial. Tudo o que eu dizia parecia irreal àqueles jovens; nada os alcançava. Preguei por uns quinze minutos, e só podia sentir que todos se tornavam irre­quietos. Cheguei ao ponto, no meu sermão, onde citava as palavras de Jesus que ordenava amarmos uns aos outros.

De repente, na segunda fileira um rapaz levantou-se. Ficou de pé no banco e gritou:

— Um minuto, pregador! Espera aí! Você diz que eu devo amar os Dragões? Um deles me cortou com uma navalha. Eu amo sim, de revólver em punho.

Outro rapaz também levantou-se, abrindo a camisa e dizendo:

— Eu tenho o sinal de um tiro aqui, pregador. Foi um da­queles negrinhos. E você acha que devemos amar? Que nada, homem! Isso não é verdade!

Não parecia mesmo verdade, pelo menos num local tão carregado de ódio. Parecia humanamente impossível.

— Não é algo que possamos alcançar pelos nossos esforços, confessei. É do amor de Deus que eu estou falando. Simples­mente temos de pedir a ele que nos dê o seu amor. Não podemos alcançá-lo por nós mesmos.

E num instante, claramente vi que essas palavras eram para mim mesmo. Não era essa a lição que eu aprendera com Jo-Jo? Há muito pouco que nós, seres humanos, podemos fazer para mudar a nós mesmos ou aos outros, para curá-los, para enchê-los de amor em vez de ódio. Podemos levar nosso coração e nossa mente a Deus, e depois deixá-los ali.

Curvei a cabeça, como fizera na rua. Naquele instante entreguei a reunião.

"Muito bem, Jesus", orei, "nada mais posso fazer. Convidei esses jovens e agora estou disposto a desaparecer de cena. Vem, Espírito Santo. Se quiser alcançar o coração de algum jovem aqui, terá de ser através da tua presença. Faça a tua vontade, Senhor. Faça a tua vontade."

Três minutos podem ser muito longos. Fiquei diante daque­la turma, com a cabeça curvada por três minutos, sem dizer nada. Não mexia, orava em silêncio e em rendição. Não me importava mais com o fato de alguns estarem rindo. Nem fi­quei surpreso, quando devagar aquele salão começou a se acal­mar. Primeiramente foram as três primeiras fileiras, e eu reco­nheci a voz de Israel:

— Tá bom, turma; chega!

O silêncio foi passando como uma onda até o último banco e depois até a galeria. Antes de chegarmos ao fim dos três mi­nutos, havia silêncio absoluto naquele grande ginásio de esportes.

Depois ouvi o som de alguém que chorava.

Abri os olhos. Na primeira fileira, Israel puxava um lenço do bolso da calça. Tirou-o e assoou o nariz ruidosamente, pis­cou e fungou.

Continuei orando.

"Senhor, passa por todo este grupo."

Enquanto eu orava, Nicky tirou o lenço. Achei impossível e olhei novamente. Lá estava ele apoiado na bengala, piscando e fungando, com raiva de si mesmo por estar chorando. Um dos rapazes colocou a mão no ombro de Nicky, mas ele se esqui­vou.

Percebi que era chegada a hora de dizer algo. Ergui a voz e disse:

— Muito bem. Vocês já o sentiram; ele está aqui; está neste salão, especialmente por causa de vocês. Se alguém quiser ter uma vida nova, está na hora de aproveitar a oportunidade. Levante-se e venha para frente!

Israel não hesitou. Levantou-se e, encarando sua quadrilha, disse:

— Há três anos que sou o líder, e vocês obedecem às minhas ordens imediatamente, certo?

— Certo! responderam os Mau Maus todos juntos.

— Bem, eu vou para frente agora, e vocês também. Levantem-se todos!

Levantaram-se imediatamente e seguiram Israel. Seguiram, talvez não seja a palavra exata, pois estavam correndo, empurrando uns aos outros para chegar na frente. Olhei bem para ver se Nicky estava junto, e logo constatei que sim.

Parece que aquela corrida era contagiosa. Mais de trinta rapazes de outras quadrilhas seguiram os Mau Maus até os camarins, onde os conselheiros estavam prontos para recebê-los. Todas as salas estavam cheias e eu ia de uma à outra, tentando ajudar no que fosse possível, quando de repente notei uma coisa curiosa. Dezenas de rapazes vieram à procura de nova vida, mas apenas três meninas.

Ouvi um assobio no corredor e, quando olhei, vi uma menina abrir a blusa, expor o seio nu e gritar:

— Se vocês forem para lá, não terão mais isto.

Antes que pudéssemos dominá-las, várias outras meninas fizeram o mesmo, e conseguiram fazer com que alguns rapazes voltassem atrás. Essa atitude por parte das meninas era algo difícil de entender. Suponho que, ouvindo falar em amor, sentiam um certo ciúme. Não queriam repartir o seu amor com ninguém, e estavam lutando, usando o único meio que conheciam para conservar aquelas pobres, minúsculas e falsas migalhas de "amor" que pensavam possuir.

A conversão mais espetacular e incrível para mim foi a de Nicky.

Olhou-me com um enorme sorriso a iluminar-lhe os olhos e disse, com sua voz embargada, gaguejando:

— Estou entregando o meu coração a Deus, David. Eu não podia acreditar. A mudança foi demasiadamente repentina. Ele fumava como sempre, soprando pequenos jatos de fumaça pelo canto da boca, e ao mesmo tempo me dizia que algo de novo acontecera no seu coração. Pensei comigo: "E os narcóticos, e os roubos, as bebedeiras, os esfaqueamentos, o sadismo?"

Parece que Nicky leu meus pensamentos, porque tentou se defender usando a única técnica que ele conhecia:

— Pros diabos, David; dei meu coração a Deus.

— Certo, Nicky; muito bem.

Quis fazer alguma coisa que lhe desse confiança, por isso convidei, a ele e a Israel, a que viessem comigo, e dei-lhes, bem como a todos os Mau Maus que vieram à frente, uma Bíblia. Tínhamos em dois tamanhos: de bolso e outras bem maiores. Os rapazes não queriam as pequenas.

— Queremos os livros grandes, David, assim todos poderão ver o que estamos carregando.

Assim dizendo, a maioria dos rapazes acendeu seu cigarro, enfiou a Bíblia debaixo do braço e saiu.

Cedinho, na manhã seguinte, o telefone tocou. Segundos depois, o Sr. Ortez me chamava:

— É a polícia que quer falar com você!

— Polícia?!

Senti desfalecer-me o ânimo e as palavras que ouvi, ao aten­der o chamado, não me animaram nem um pouco. O tenente perguntou-me se eu conhecia os Mau Maus. Quando respondi que sim, pediu-me que fosse até lá imediatamente.

Quando cheguei à delegacia, logo vi uma meia dúzia de rapazes da quadrilha. Passei por eles rapidamente, fui à recepção e me apresentei. Nunca poderei me esquecer do que aconteceu então.

O sargento chamou o tenente. Este reuniu todos os mem­bros do destacamento, e, estendendo a mão, disse-me:

— Reverendo, quero cumprimentá-lo! Como é que o senhor conseguiu esse milagre? Alguns meses atrás, estes rapazes de­clararam guerra contra nós, e há muitos anos só nos dão dor de cabeça. Hoje se apresentam aqui, e sabe o que querem?

Respondi negativamente.

— Querem o nosso autógrafo nas suas Bíblias!

Olhei para Nicky, Israel e os outros rapazes que estavam com eles. Riram para mim.

— Qualquer dia que quiser fazer uma reunião ao ar livre, Reverendo, é só nos avisar; iremos imediatamente para ajudá-lo, disse-me o tenente.

E ao sair outra vez para as ruas do Brooklyn, vi o sargento sacudir a cabeça como a dizer: "Não entendo! Não entendo!"

Fiquei sabendo, depois, que os rapazes passaram quase toda a noite lendo suas Bíblias. Estavam encantados, principalmente com as histórias do Velho Testamento.

Israel veio dizer-me:

— Olhe, David, eu estou na Bíblia! Meu nome está aí por todo o lado.

Naquela noite, telefonei para Gwen, e estava tão animado com o resultado das reuniões que quase não conseguia falar de outra coisa.

— Valeu a pena todo o trabalho para ver o resultado de ontem. Foi pena você não poder estar aqui!

— Bem, David, eu também andei um tanto ocupada, respondeu-me ela. Quando você conseguir tirar a cabeça das nuvens, eu conto.