terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 09


 O mês de julho chegou com surpreendente rapidez. Nunca imaginara quanto trabalho requeria a orga­nização de uma campanha como essa. Para transportar os jovens através do território inimigo que eles tanto te­miam, organizamos um sistema de ônibus especiais que buscaram cada quadrilha no seu próprio território, levando-os diretamente ao estádio. Voluntários das sessenta e cinco igrejas patrocinadoras do projeto andaram incansavelmente, avi­sando aos membros das quadrilhas o que havia sido organi­zado.

Fui passar alguns dias com Gwen, pouco antes do início da campanha.

— David, disse Gwen, não vou ser mentirosa e dizer que não me importo por você não estar aqui quando o bebê nascer.

— Eu sei.

Era um assunto sobre o qual pouco falávamos. Minha sogra estava muito magoada porque eu iria ausentar-me justamente quando o bebê deveria chegar. Dizia que os homens são todos iguais, que o verdadeiro cristianismo começa em casa, e que se eu não tinha mais respeito por minha mulher, não a merecia.

Essas afirmações feriam, principalmente porque continham uma parcela de verdade.

— Mas, David, continuou Gwen, não será a primeira vez que nasce um bebê sem a presença do pai. O que eu iria querer é que você segurasse minha mão, e isso o médico não deixa; portanto eu sentiria a sua falta, mesmo que você estivesse na sala ao lado. Você sente que precisa ir, não?

— Sim.

— Então, vá, David. Vá sossegado. Só desejo que Deus este­ja com você.

Quando parti, Gwen foi até o portão, e ao olhar para trás ela me acenou, imensa na sua gravidez. Quando eu a visse novamente, o milagre do nascimento já seria fato consumado. Será que eu também teria alguns novos nascimentos para relatar a ela?

Depois dos quatro primeiros dias de campanha, eu duvida­va. Havíamos estado tão ocupados com os preparativos que a decepção causada pela falta de interesse na campanha era maior ainda. Campanha? Ao ouvirmos essa palavra, nos vem à mente o quadro de uma multidão de pessoas animadas. Nada poderia estar mais longe da verdade, no nosso caso.

Na quarta noite apareceram cem pessoas. O local compor­tava sete mil. Lembro-me de ficar à janelinha da galeria, de onde podia ver sem ser visto. Toda noite pensava: "Quem sabe, hoje eles virão", mas à chegada de cada ônibus apenas uns poucos desciam. Fui até os bastidores, e lá encontrei os conselheiros e jovens voluntários, procurando encontrar palavras animadoras.

"Você sabe, David, o importante não é a quantidade, e sim a qualidade."

Mas todos sabíamos que não estávamos conseguindo nem qualidade nem quantidade. Aqueles poucos que vieram, vinham para se divertir. Era difícil falar a um auditório vazio, com ra­pazes soltando argolas de fumaça e fazendo comentários im­pudicos.

O pior de tudo eram as risadas. Quando não entendiam alguma coisa ou quando não acreditavam, começavam a rir. Cheguei ao ponto de ter horror de subir para a plataforma, por causa daquele riso. A quarta noite foi a pior de todas. Eu fazia o possível para conservar a reunião num clima de dignidade solene, quando, de repente, um dos líderes riu baixinho. Logo adiante um outro deu também uma risadinha, e em segundos todos eles estavam rindo como loucos.

Terminei a reunião mais cedo, e voltei para casa desanimado e pronto a abandonar tudo.

"Senhor", orava eu indignado, "não estamos nem começando a alcançar esses jovens. O que devo fazer?"

E como sempre — porque é preciso aprender essa lição todas as vezes — quando eu pedia mesmo, a resposta vinha.

No dia seguinte, fiquei conhecendo Jo-Jo no Brooklyn. Jo-Jo era presidente dos Dragões de Coney Island, uma das maiores quadrilhas da cidade. O rapaz que o mostrou para mim, não quis nos apresentar, dizendo que talvez Jo-Jo não gostasse de ser apresentado a um pregador. Foi assim que eu fui até onde ele estava, e estendi-lhe a mão.

A primeira reação de Jo-Jo foi dar-me um tapa na mão; depois abaixando-se, cuspiu nos meus sapatos. Nas quadrilhas esse é o maior sinal de desprezo. Feito isso, afastou-se, sentando-se num banco, de costas para mim.

Fui até o banco e sentei-me ao seu lado, dizendo:

— Onde você mora, Jo-Jo?

— Pregador, eu não quero falar com você, não quero nada com você.

— Mas eu quero alguma coisa de você, respondi, e eu vou ficar aqui, até descobrir onde você mora.

— Pregador, disse Jo-Jo, você está sentado na minha sala de visitas.

— Bem, e para onde você vai quando chove? Ele disse:

— Mudo para o meu apartamento no metrô.

Jo-Jo calçava um par de sapatos de lona muito velhos, fura­dos no bico. Usava uma camisa preta suja, e a calça cáqui era alguns números maior do que deveria ser. Ele olhou para os meus sapatos novos. Naquele instante, lembrei-me dos sapa­tos sujos do vovô, e como gostaria de ter infligido algum casti­go em mim mesmo por ter sido tão tolo!

Jo-Jo continuou:

— Olha aqui, homem rico, para você está muito certo vir aqui a Nova Iorque e falar de Deus mudando vidas. Você tem sapatos novos, você tem um terno bonito. Agora, olhe bem para mim. Eu sou um vagabundo. Somos dez irmãos. Estamos desempregados. Não existe nem o que comer em casa; foi por isso que me puseram para fora. A comida não dava.

Jo-Jo dizia a verdade. Ali mesmo, num banco em plena pra­ça tirei os sapatos e pedi-lhe que os experimentasse.

— Que onda é essa? Você quer provar o quê? Que tem cora­ção, que é bonzinho? Fique sabendo que eu não vou calçar seus sapatos fedorentos.

— Você estava choramingando por causa dos sapatos. Ago­ra calce!

Jo-Jo disse:

— Nunca tive um sapato novo.

— Calce.

De cara fechada, Jo-Jo calçou os sapatos. Levantei-me e saí. Fui alvo de olhares e risadas, enquanto andava os dois quartei­rões até o carro, com apenas meias nos pés. Quando acabei de entrar no carro, Jo-Jo veio correndo e disse:

— Você esqueceu os sapatos.

— Eles são seus.

E fechei a porta do carro.

— Pregador, Jo-Jo disse, pondo a mão pela janela aberta, esqueci-me de lhe apertar a mão.

Assim, apertei sua mão. Em seguida, eu disse:

— Olha, você não tem onde morar. Eu também estou dor­mindo numa cama emprestada, mas nessa casa há um sofá na sala. Quem sabe essas pessoas que me acolheram, acolherão você também; vamos perguntar?

— Certo, disse Jo-Jo, como se fosse muito natural. Entrou no carro, e fomos até o apartamento.

— Sra. Ortez, comecei um pouco sem jeito, este é o presidente dos Dragões de Coney Island, e, voltando-me para Jo-Jo: Quero que você conheça a senhora que está me hospedan­do agora, porque, como você, não posso pagar um lugar para dormir.

Então perguntei à Sra. Ortez se Jo-Jo poderia ficar comigo por alguns dias, em sua casa. Ela olhou para seus dois filhi­nhos, depois para o canivetão que aparecia no bolso de Jo-Jo, e cm seguida, com bondade e sem afetação, aproximou-se de Jo-Jo, pôs a mão no seu ombro e disse:

— Jo-Jo, você pode dormir no sofá.

Foi mesmo um ato de heroísmo, que poderá ser confirmado por qualquer pessoa que já teve qualquer coisa a ver com esses rapazes potencialmente violentos. Depois que ela se afastou, eu disse a Jo-Jo:

— Suas roupas estão fedidas. Estamos num lar agora, e é preciso fazer alguma coisa. Eu tenho oito dólares. Vamos a um depósito do Exército para ver se conseguimos uma camisa e uma calça.

Calcei meus sapatos velhos e fui com Jo-Jo até o depósito mais próximo. Ele entrou no vestiário para trocar-se e deixou a roupa lá mesmo. De volta para casa, Jo-Jo se olhava nas vitri­nas de todas as lojas por que passávamos.

— Nada mau... Nada mau, disse ele repetidas vezes.

Até então, o que eu havia feito com Jo-Jo era o que qual­quer agência de serviços sociais faria. Sem dúvida era uma boa coisa que esse rapaz agora tivesse um par de sapatos e uma camisa, e também que não precisasse dormir no metrô aquela noite. Mas, de coração, Jo-Jo era ainda o mesmo rapaz.

Foi preciso que se desse uma mudança em mim, para que Jo-Jo mudasse também. E essa mudança tem influenciado tanto a minha vida como a dele, desde então.

Naquela noite, a reunião foi como as outras. As mesmas pisadas costumeiras, culminando naquele riso louco. Os mes­mos gestos provocadores da parte das moças e as mesmas res­postas impudicas da parte dos rapazes. As costumeiras brigas e ameaças. Jo-Jo também estava lá, assistindo a tudo. Foi comigo apenas por curiosidade, mas deixou bem claro que considerava aquilo tudo uma grande bobagem.

Voltando ao apartamento dos Ortez, eu estava calado. Esta­va sentido por causa da falta de resultados, e, mais do que isso, estava mesmo emburrado.

"Pregador, você está se esforçando demais", disse Jo-Jo.

Assim, sem mais nem menos, um rapaz que não tinha lar, que gostava de se fazer de duro e insensível, mostrou notável discernimento.

O impacto daquelas palavras foi tremendo. Penetraram até o meu coração como se houvessem sido pronunciadas pelo próprio Deus. Voltei-me para Jo-Jo tão bruscamente, que ele levantou o braço para defender-se, pensando que eu estivesse com raiva.

Claro! Eu estivera mesmo tentando mudar vidas; não esta­va levando o Espírito Santo às quadrilhas, mas estava levando David Wilkerson. Mesmo ao presentear Jo-Jo com um par de sapatos, eu estivera em evidência. Naquele instante reconheci que nunca poderia ajudar Jo-Jo. Nunca poderia ajudar as qua­drilhas. A única coisa que eu poderia fazer era a apresentação e depois afastar-me.

"Você está se esforçando demais." A idéia de repente me fez rir, e ri tanto que Jo-Jo ficou sem graça.

— Acabe com isso, pregador.

— Estou rindo, Jo-Jo, porque você me ajudou. De agora em diante não vou me esforçar tanto. Vou ficar de lado e deixar que o Espírito trabalhe.

Jo-Jo permaneceu em silêncio por um instante, depois, er­guendo a cabeça, disse:

— Não sinto nada, e nem espero sentir coisa alguma. Não conversamos mais até que entramos no apartamento dos Ortez. De repente, com aquele jeito direto que Jo-Jo tem, propôs-me um negócio:

— Olhe, David, vocês estão esperando um bebê em casa, né?

Eu havia contado a Jo-Jo que Gwen deveria estar indo para o hospital. O nenê podia nascer a qualquer hora.

— E você diz que existe um Deus que me ama, certo?

— Certo, respondi.

— Muito bem, se há um Deus, e se eu orar a ele, ele vai atender a minha oração, certo?

— Certíssimo!

— Bem, então o que é que você quer; menino ou menina? Nesse instante, eu vi que Jo-Jo estava armando uma arma­dilha, e não sabia o que fazer.

— Mas olhe, Jo-Jo, a oração não é uma dessas máquinas modernas em que você coloca uma moeda e sai um chocolate do outro lado.

— Em outras palavras, você também não tem muita certeza desse negócio de Deus.

— Não foi isso que eu disse.

— O que você quer? Menino ou menina?

Confessei que já que tínhamos duas meninas, desejávamos um menino. Jo-Jo ouviu. Depois fez algo que, para ele, foi tão difícil como foi para Moisés bater na rocha do deserto, pedin­do que saísse água dela — Jo-Jo orou.

— Olha, Deus, se você está aí em cima, e se você me ama, mande um menino para esse pregador.

Essa foi a oração de Jo-Jo. Foi uma oração tão sincera que, ao terminar, Jo-Jo estava piscando, para esconder as lágrimas. Eu estava espantado. Corri para o meu quartinho e comecei a orar como não havia orado desde o dia em que cheguei a Nova Iorque.

Jo-Jo e os Ortez estavam dormindo quando o telefone tocou às 2:30h daquela madrugada. Eu ainda estava orando. Saí e atendi.

Era minha sogra que dizia:

— David, não aguentei esperar até amanhã para chamar, precisava contar-lhe que nasceu o bebê!

Não conseguia formular aquela pergunta.

— David! David! Você está aí?

— Estou sim.

— Você não quer saber se é menino ou menina?

— Muito mais do que você pensa.

— David, você ganhou um filho, forte e bonito.

É claro que os céticos dirão que, estatisticamente, havia uma chance de 50% para que a oração de Jo-Jo fosse respondida afirmativamente. Mas algo mais estava acontecendo aquela noite, algo muito além de estatísticas. Quando fui acordar Jo-Jo para dar-lhe a notícia, ele coçou a cabeça.

— Ah! Pois é. Não diga? Não diga...

Antes de terminar aquela noite, Jo-Jo passou pela transfor­mação que começou com lágrimas; Jo-Jo chorou, e com suas lágrimas lavou de si mesmo toda a amargura e todo o ódio, as dúvidas e os temores também. Quando ele terminou, gozava aquele amor que o crente conhece, que não depende de pais ou pregadores, ou mesmo de orações respondidas como que­remos. Daquele dia em diante, Jo-Jo tinha um amor que era seu para sempre, e me ensinou uma lição que também ficou comigo para sempre.

Nós, seres humanos, podemos trabalhar muito uns pelos outros, e devemos trabalhar. Mas é Deus, apenas Deus, quem cura.