terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 08


 Eu tinha a impressão de haver passado o primeiro mar­co na estrada que levava em direção ao meu sonho. Recebera esperança muito maior do que poderia ima­ginar ou mesmo compreender. Cheguei até a pensar que talvez me fosse permitido ver Luis, pois Angelo me dissera que ele seria transferido para a prisão em Elmira, Nova Ior­que.

— Você acha que eu poderia vê-lo? perguntei.

— Não tem a mínima chance, David. É preciso muita forma­lidade, e logo que descobrissem que você era o pregador do julgamento, nunca o deixariam entrar.

Mesmo assim, quis tentar. Quando fui chamado a pregar na vizinhança de Elmira, perguntei como se conseguia entrar para visitar um garoto. Disseram-me que escrevesse uma carta, ex­plicando quais eram as minhas relações com o prisioneiro, e por que queria vê-lo. O pedido seria estudado.

Ao ouvir isso, não tive mais dúvidas: teria de dizer a verda­de e nunca obteria permissão. Mas ouvi dizer que alguns rapa­zes deveriam chegar a Elmira justamente naquele dia. Fui até à estação e esperei. Quando o trem chegou, um grupo de cerca de vinte rapazes desembarcou escoltado. Olhei bem, mas Luis não estava entre eles.

"Você conhece Luis Alvarez?" perguntei a um dos rapazes que conseguiu apenas responder "Não", antes que o guarda nos separasse impacientemente.

De volta a Philipsburg, eu dizia a mim mesmo: "Bem, parece que nunca verei aqueles rapazes. Senhor, faça com que eu aceite o fato, se é esta a tua vontade".

Mas se o Espírito Santo fechava aquela porta, abria outras. Numa noite quente, na primavera de 1958, eu estava andando por uma rua apinhada e barulhenta do Harlem Espanhol, quando ouvi vozes que cantavam.

Fiquei surpreso ao reconhecer a música de um hino evangé­lico, embora cantassem em espanhol. Não havia igreja por ali, e a música parecia vir da janela de um dos apartamentos do edifício por onde eu passava.

— Quem é que está cantando? perguntei a um rapaz que estava sentado no pára-lama de um carro, fumando. O rapaz virou a cabeça para ouvir melhor, como se a música já fizesse parte dos ruídos da cidade, a ponto de nem ser ouvida.

— Ah! É uma espécie de igreja, disse ele, apontando para a porta. Segundo andar.

Subi então a escada e bati à porta. Alguém abriu lentamente, mas quando a luz alcançou meu rosto, a mulher que estava ali dentro soltou uma exclamação e voltou correndo, deixando a porta semicerrada. Ouvi-a dizer qualquer coisa em espanhol, e dentro de instantes a porta se abriu novamente, revelando uma porção de fisionomias sorridentes e amigas. Tomaram-me pelo braço e levaram-me para dentro.

— Você é David! disse um deles. Não é mesmo David, o pregador que foi expulso do tribunal?

  Era uma pequena igreja da Assembléia de Deus que se reu­nia numa casa de família até o dia em que pudessem construir um templo. Todos haviam acompanhado o caso Farmer e visto minha foto.

— Oramos tanto por você, e agora você está aqui, disse um homem.

Seu nome era Vicente Ortez, o pastor daquela pequena igreja.

— Queremos saber como você foi parar naquele tribunal, disse ele.

Foi assim que, naquela noite, eu tive a oportunidade de con­tar a um grupo da minha própria igreja, como Deus parecia estar me levando às ruas de Nova Iorque. Contei-lhes o que havia aprendido dos problemas que os rapazes e moças enfren­tam com as quadrilhas, bebidas e narcóticos. Contei-lhes tam­bém qual era o meu sonho, e o que já me acontecera.

— Penso que foi Deus que pôs essa idéia na minha cabeça. Eles precisam começar de novo, e têm de ser cercados de amor, disse eu, resumindo. Já vimos como o Espírito Santo pode alcançá-los mesmo na rua. Eu penso que foi um ótimo come­ço. Quem sabe, algum dia, eles terão a própria casa!

Parece que foi um discurso inflamado. Descobri que estava mais emocionado e preocupado com os problemas daqueles jovens do que eu mesmo reconhecia. Quando terminei, vi que aquelas almas bondosas percebiam o sentimento de pesar e urgência que me dominava, em face da necessidade.

Quando afinal me assentei, alguns deles conversaram rapi­damente. Percebi que estavam emocionados, quando empurra­ram o Reverendo Ortez para a frente, como porta-voz. Dirigindo-se a mim, ele disse:

— Será que você poderia voltar amanhã para falar outra vez e também para que outros pastores possam ouvi-lo?

Respondi afirmativamente. E assim, sem alarde, teve início um novo ministério. Como todas as coisas nascidas do Espíri­to, veio em simplicidade e humildade, sem estardalhaço. É cer­to que nenhum de nós, reunidos ali naquela noite, percebeu o que havia começado.

— Qual é o seu endereço aqui? perguntou o Reverendo Ortez. Onde podemos encontrá-lo para comunicar-lhe local e horário?

Tive de confessar que não tinha endereço. Não possuía o dinheiro necessário, nem mesmo para um quarto em um hotel barato.

— Durmo no meu carro, disse-lhes.

Senti uma grande inquietação apoderar-se do Reverendo Ortez, revelada em sua fisionomia.

— Mas você não pode fazer isso, e depois que traduziu o que eu havia dito, todos os presentes concordaram com ele. É muito perigoso, muito mais do que você pensa. Você precisa vir para a nossa casa. Você deve passar esta noite, e qualquer outra noite que estiver na cidade, aqui conosco.

Aceitei a sua manifestação de bondade com gratidão. O Reverendo Ortez apresentou-me à sua esposa, Délia. Ela mostrou-me um quarto limpo e simples, que tinha uma cama-beliche Senti que era bem-vindo, e como dormi bem aquela noite, abrigado do perigo que passava nas ruas! Soube, mais tarde, que esse casal notável guardava para si mesmo apenas o míni­mo necessário para a sobrevivência; o resto dava para a glória de Deus.

Passei a manhã seguinte em oração. Senti que não fora mera coincidência o fato de encontrar aquela pequena igreja domiciliar. Não podia imaginar o que iria acontecer agora, mas queria ficar em espírito de expectativa, pronto para sair na direção que o Espírito Santo indicasse.

Enquanto eu orava, o Reverendo Ortez e sua esposa devem ter passado a manhã ao telefone. Quando chegamos à igreja onde se realizaria a reunião, representantes de sessenta e cinco Assembléias de Deus estavam reunidos, para ouvir o que eu tinha a dizer.

Ao subir ao púlpito, não tinha a menor idéia do que haveria de narrar. O que contaria àquele grupo? Por que estava tendo a oportunidade de falar com aquelas pessoas? Relatei-lhes então os acontecimentos que me trouxeram à ci­dade, a vergonha do julgamento e o sentimento estranho, mas persistente, de que, atrás de todos esses aparentes enganos ha­via um propósito que eu apenas vislumbrava.

— Quero dizer-lhes francamente que não sei o que devo fa­zer agora. A experiência em Fort Greene pode ter sido sorte, não sei se poderia se repetir em escala maior.

Antes do fim da reunião, aquelas sessenta e cinco igrejas apresentaram um plano de ação que mostraria se a experiência anterior poderia ou não ser repetida. Planejavam uma concentração para adolescentes na Arena São Nicolau, um estádio esportivo, onde eu poderia falar com várias quadrilhas de uma só vez.

Hesitei. Em primeiro lugar, eu não estava certo de que gran­des reuniões fossem a solução ideal, fora a questão prática de dinheiro.

— Nem sei quantos mil dólares seriam necessários para alu­gar um estádio, disse eu, concluindo.

De repente houve uma agitação no fundo da igreja. Um homem pusera-se em pé e gritava:

— David, vai dar tudo certo! Tudo certo! Você vai ver!

Pensei que fosse algum fanático e não dei muita atenção, mas ao término da reunião o homem veio até onde eu estava e se apresentou. Era Benigno Delgado, um advogado. Novamente repetiu a afirmação de que tudo iria dar certo.

— David, você vai alugar a Arena São Nicolau, e falará a esses rapazes. Vai dar tudo certo.

Sinceramente pensei que ele fosse uma dessas criaturas ino­fensivas, mas excêntricas e utopistas, que às vezes encontra­mos. Mas o Sr. Delgado, vendo a minha expressão de espanto, tirou do bolso o maior maço de notas que eu já vira.

— Você fala aos rapazes; eu alugo o local. E foi isso mesmo que ele fez.

Foi assim, de um dia para o outro, que me vi envolvido numa enorme campanha juvenil, a ser realizada na segunda semana de julho de 1958.

Quando voltei a Philipsburg com a notícia de tantas novida­des, todos se interessaram e ficaram animados.

Apenas Gwen estava um pouco calada, até que, afinal, dis­se:

— Você está se lembrando de que é justamente nessa sema­na que o bebê deve chegar?

Eu não havia me lembrado, mas como é que um marido pode dizer isso à esposa? Portanto resmunguei qualquer coisa sobre o nenê chegar atrasado, mas Gwen se limitou a rir.

— Vai chegar bem na hora, respondeu ela, mas você estará com a cabeça nas nuvens em algum lugar, e nem vai ficar sabendo, até que um dia eu lhe mostre uma coisinha embrulhada em um cobertor, e você então vai olhar assustado. Eu acho que você nem sabe que uma criança existe, até o dia em que ela vai andando até você e diz: "Papai". O que, sem dúvida, é verdade.

A igreja de Philipsburg foi muito generosa, não somente com seu apoio financeiro durante os dois meses seguintes, em que lhe dei tão pouca atenção, mas também com seu entusiasmo. Eu sempre lhes contava das minhas visitas à cidade e da tremenda necessidade daqueles rapazes e moças de doze, treze, quatorze anos. Assim, eles sentiam que eram parte daquilo que o Senhor estava planejando para Nova Iorque.

Tirei minhas férias coincidindo com a campanha, a fim de me afastar da igreja o mínimo possível. Mesmo assim, ao se aproximar o mes de julho, eu passava cada vez mais tempo no apartamento dos Ortez.

As igrejas espanholas ajudaram muitíssimo. Forneceram voluntários para anunciar as reuniões que durariam toda a semana, e colocaram cartazes relativos à campanha, em toda a cidade. Instruíram um grande número de conselheiros que estariam prontos a ajudar aqueles rapazes e moças que por­ventura resolvessem começar de novo.

Arrumaram músicos, porteiros e cuidaram de todos os assuntos relativos ao aluguel do local. O que eu tinha a fazer era levar os adolescentes. A princípio pareceu-me coisa muito simples, mas quanto mais se aproximava o grande dia, mais eu duvidava do êxito dessa cam­panha.

Andando pelas ruas, já havia conversado com centenas de rapazes e moças, e só então comecei a ver o que era viver como viviam: desesperados. A ação tão simples de viajar uns poucos quilômetros e entrar num grande edifício, coisa que nós faría­mos sem pensar, era para eles uma aventura enorme e cheia de perigos. Em primeiro lugar, tinham medo de deixar os próprios domínios; tinham medo de ser atacados, ao passar pelo domí­nio de outra quadrilha.

Tinham medo também de grandes ajuntamentos, de seu próprio ódio e de seus preconceitos; medo de que sua raiva e falta de segurança estourassem em luta san­grenta.

Acima de tudo, tinham medo de que alguma coisa nos cul­tos os fizesse chorar. Pouco a pouco, reconheci o pavor que esses jovens têm das lágrimas.

"E o que há de tão assustador em derramar algumas lágri­mas?" perguntei-lhes muitas vezes, e sempre chegava à conclu­são de que consideravam lágrimas um sinal de moleza, de fra­queza e infantilidade, num mundo desapiedado onde só os for­tes sobrevivem.

Eu, no entanto, havia aprendido pelo meu trabalho na igre­ja como o derramar de lágrimas tem um papel importante na conversão do indivíduo. Posso quase com certeza afirmar que o toque de Deus se manifesta através de lágrimas. Quando fi­nalmente deixamos o Espírito Santo entrar no mais íntimo do nosso ser, a reação é chorar. Já o vi acontecer muitas vezes. Lágrimas sinceras, que vêm da própria alma, surgem quando desaparece a última barreira, e o indivíduo se rende à santida­de e à pureza.

O resultado disso é uma transformação tal, fazendo apa­recer uma tão nova personalidade, que desde os dias de Cristo essa experiência é descrita como um nascimento. "Importa-vos nascer de novo", disse Jesus (Jo 3.7). E o estra­nho paradoxo é que no coração do recém-nascido espiritu­al existe gozo e alegria; no entanto esse gozo se revela com lágrimas.

Que instinto dizia a esses garotos que talvez chorassem, ao entrar em contato com Deus? Cada um tinha a própria manei­ra de expressar esse temor, naturalmente. Várias vezes visitei as quadrilhas que já conhecia, mas a reação era sempre a mes­ma:

"Não adianta; você pensa que vai me emocionar, me fazer chorar? Eu não, eu não!"

Em toda parte havia o mesmo temor de tudo o que era des­conhecido; o mesmo apego àquilo que conheciam, não impor­tava quão miserável fosse; a mesma resistência a qualquer mu­dança.

Certa noite, depois de eu ter estado no porão dos GGU, convidando-os para as reuniões, alguém bateu à porta do apartamento dos Ortez. A Sra. Ortez olhou para o marido, com as sobrancelhas erguidas, como se perguntasse se ele esperava alguém.

"Não", acenou ele com a cabeça.

A Sra. Ortez deixou em cima da mesa uma faca que usava para cortar carne e encaminhou-se para a porta.

Era Maria. Logo que entrou na sala, percebi que estava sob o efeito da heroína. Seus olhos brilhavam de maneira estranha, o cabelo estava caído no rosto, e as mãos tremiam.

Levantei-me e fui ao seu encontro:

— Maria! Entre!

Maria entrou e, postando-se no meio da sala, exigiu com palavras bruscas e agressivas que lhe disséssemos por que estávamos tentando dispersar a sua velha quadrilha.

— O que quer dizer, Maria? perguntou Délia Ortez.

— Vocês andam passando por lá, tentando fazer com que a turma vá a um culto religioso. Já sei o que vocês querem, é acabar com o nosso grupo.

Maria, então, passou a xingar-nos eloquentemente Vicente Ortez quis se levantar da cadeira em sinal de protesto, mas assentou-se novamente, como a dizer: "Está bem, Maria, prossiga. E melhor que você desabafe aqui do que na rua".

Um dos filhos do casal entrou na sala, e Délia instintiva­mente ficou ao lado da criança. Naquele instante Maria correu à mesa onde Délia havia deixado a faca. Com um movimento rápido e certeiro brandiu a faca, cuja lâmina brilhava, refletindo a luz. Délia rapidamente se pôs entre Maria e a criança. Vicente se colocou de pé num salto e já atravessava a sala.

— Afaste-se! gritou Maria.

Vicente parou porque a moça levara a faca ao próprio pescoço.

— Ah! disse ela. Vou cortar o pescoço. Vou me matar como se fosse um porco, e vocês todos vão olhar.

Todos nós, que estávamos naquela sala, conhecíamos bastante o desespero do viciado em narcóticos, para saber que não era uma pose dramática e passageira. Imediatamente, Délia começou a falar sobre a vida longa e maravilhosa que Maria tinha à frente.

— Deus precisa de você, Maria, disse Délia repetidas vezes.

Lentamente, depois de intermináveis cinco minutos, enquan­to Délia falava sem parar, a mão de Maria foi se abaixando até que finalmente pendia ao seu lado, ainda segurando a faca. Sem parar de falar, Délia se aproximou lentamente e, afinal, com um pulo ágil e belo, bateu na mão de Maria, fazendo com que ela soltasse a faca, que caiu ao chão ruidosamente. A faca rodopiava; a criança começou a chorar.

Maria não tentou pegar a faca novamente. Ficou ali no meio da sala, a mais miserável figura de desespero que eu já vira. Subitamente começou a se lamentar, tapando o rosto com as mãos.

— Não há saída para mim. Estou fisgada, e não há saída.

— E por que você não dá uma chance a Deus? perguntei-lhe.

— Não, isso não é para mim.

— Bem, então deixe que os outros venham. Pense bem; tal­vez eles possam achar a saída, antes que seja tarde demais.

Maria endireitou-se; parecia já ter recobrado o autodomí­nio. Sacudiu os ombros, dizendo:

— Tudo depende do que você tiver para apresentar.

Em seguida saiu do apartamento de cabeça erguida e reque­brando.