terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 07


 Na semana seguinte, fiz outra viagem a Nova Iorque, em um estranho estado de espírito. Por um lado, estava ani­mado para realizar meu novo sonho; e por outro, me sentia desanimado e bastante confuso. Quanto mais aprendia sobre a natureza do inimigo que agia na grande cidade, mais sentia ressaltar a minha falta de capacidade para combatê-lo.

O inimigo se emboscava nas condições sociais que compõem as favelas da cidade, pronto a apanhar meninos solitários e sedentos de amor. Apresentava promessas de segurança e liber­dade, de felicidade e companheirismo. Dava às suas promessas nomes inocentes: clubes (não quadrilhas assassinas); viagens (e não narcóticos); bulinada (e não uma atividade sexual cheia de ódio e insatisfação); baile (e não uma luta desesperada até a morte, entre quadrilhas adversárias). Dava às suas vítimas per­sonalidades quase impossíveis de se penetrar, cercando-as com um espesso muro de insensibilidade, e fazendo com que se or­gulhassem de ser assim.

Contra essa força, eu contemplava a minha própria fraqueza. Não tinha armas, era inexperiente, não possuía dinheiro, e não havia uma organização que me apoiasse. Tive medo da luta.

De repente, porém, lembrei-me de outra ocasião em que vi uma luta se aproximar, e senti o mesmo medo. Fora há muitos anos, quando eu era apenas um garoto, e acabáramos de nos mudar para Pittsburgh. Quando garoto e jovem, eu era um tanto fraco, fisicamente, e até mais magro do que sou hoje, se tal coisa é possível. Pensar numa luta corporal era o suficiente para me fazer tremer como vara verde.

É interessante notar que, durante todos os anos em que estudei naquela escola, nunca tive de brigar, porque possuía fama de ser valente. Essa situação ridícula concretizou-se de maneira engraçada, e quanto mais eu pensava nisso, mais imaginava que talvez ela tivesse algum significado para mim, agora.

Tínhamos um colega chamado Chico, que era valentão. Depois que cheguei a Pittsburgh, foi o primeiro menino de quem ouvi falar. Antes de desarrumar as malas, contaram-me que Chico sempre batia nos garotos que mudavam para lá, e era melhor estar preparado, porque se o menino era filho de pregador, sua violência se excedia ainda mais.

Muito antes de conhecê-lo, Chico já me fazia tremer. O que eu iria fazer quando, finalmente, o encontrasse? Fiz essa pergunta a Deus, e a resposta veio rápida e nitidamente: Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito. Sabia que era um versículo bíblico e procurei-o, para me certificar da sua exatidão. Em Zacarias 4.6, achei essas palavras exatamente como me lembrara, e imediatamente tomei-as como lema. Quando chegasse a hora de enfrentar Chico, resolvi que simplesmente me apoiaria nesta promessa: Deus me da­ria uma santa ousadia equivalente à valentia de qualquer briguento.

Não demorou para que chegasse a hora de testar a minha teoria. Certa tarde de primavera, eu voltava para casa sozinho. Estava de roupa nova, e por isso era mais importante ainda que eu não me metesse em briga. Em nossa família, não era todo dia que tínhamos roupa nova; portanto, quando a tínha­mos, era preciso bastante cuidado.

De repente, vi um menino que caminhava na minha direção. Não sei por que, mas senti imediatamente que era o Chico.

Vinha todo empertigado na outra calçada, mas, quando me viu, atravessou a rua e se aproximou de mim como um touro bravo. Chico era enorme, devia pesar uns vinte quilos a mais que eu, e era tão alto que eu precisava olhar para cima, a fim de olhar nos seus olhos.

Chico parou bem na minha frente, com as pernas abertas e mãos na cintura:

"Você é o filho do pregador."

Não era uma pergunta, parecia mais um desafio, e devo confessar que naquele instante todas as minhas esperanças de santa ousadia desapareceram por completo. Estava com medo, muito medo.

"Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito. Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos."

Fiquei repetindo esse versículo mentalmente, enquanto o Chico passou a dizer qual era a sua opinião a meu respeito. Primeiro disse que eu parecia um bobo de roupa nova. Depois passou a falar sobre o que era muito óbvio: que eu era fraco. Concluiu com algumas palavras sobre filhos de pregadores em geral.

"... mas pelo meu Espírito, diz o Senhor."

Eu ainda não dissera nada, mas dentro de mim algo de sur­preendente estava acontecendo. Sentia que o medo desapare­cia, e no seu lugar sentia confiança e alegria. Olhei para o Chico e sorri.

Ele ficava cada vez mais bravo. Ficou vermelho enquanto me desafiava para uma briga.

E eu continuava sorrindo.

Chico começou a me rodear com os punhos cerrados, esmurrando o ar e dando pulinhos em minha direção. Na sua fisionomia, porém, apareciam sinais de perplexidade, pois ele podia ver que, por alguma razão incompreensível, aquele magricelinha não estava com medo.

Eu comecei a dar voltas, também, sem nunca tirar os olhos dele, e continuava sorrindo.

Finalmente ele me bateu. Foi um golpe hesitante, que não teve nenhum efeito sobre mim. Dei uma risadinha baixa.

Chico parou de me rodear. Abaixou os braços, afastou-se e saiu correndo rua abaixo.

No dia seguinte, quando cheguei à escola, comecei a ouvir falarem que eu dera uma surra no maior valentão da cidade aparentemente o próprio Chico era quem contara a história, dizendo que eu era o rapaz mais valente com o qual ele já havia lutado. Daquele dia em diante, fui tratado com o máximo respeito por toda a escola. Talvez deveria ter contado a verdade aos colegas, mas nunca o fiz. Aquela fama era como um seguro, e, como eu detestava brigar, tratei de conservar a minha apólice bem guardada.

Comecei a pensar que talvez houvesse algo de importante em me recordar daquela ocasião. Não estava diante de um problema semelhante, um inimigo muito maior e mais poderoso do que eu? Talvez houvesse um estranho paradoxo na minha falta de força. Provavelmente nessa fraqueza é que jazia uma espécie de poder, porque sabia com certeza que não poderia depender de mim mesmo.

Não era possível me iludir com a idéia de que dinheiro, ou amigos influentes, ou estudos sociológicos ajudariam, porque nada disso eu tinha. Se o meu sonho de um novo começo e um novo ambiente para aquelas crianças era mesmo a vontade de Deus, talvez ele tivesse escolhido uma pessoa tão mal preparada como eu, para que a obra, desde o seu início, dependesse única e exclusivamente dele. "Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos."

Resolvi dar o primeiro passo para a realização do meu so­nho. O que precisava saber, em primeiro lugar, era se tinha ou não direito de imaginar tais coisas. Seria mesmo possível, para membros adolescentes das quadrilhas de Nova Iorque, vicia­dos em narcóticos e conhecendo toda a espécie de degradação, experimentar uma transformação como a que eu imaginava? Lembrei-me de como vovô afirmava categoricamente que no centro da mensagem do evangelho está uma experiência trans­formadora. Sabia de cor o versículo bíblico a que ele se referia. Jesus dizia a Nicodemos:

"Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus. Perguntou-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, por­ventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez? Res­pondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não nas­cer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espirito é espírito." (Jo 3.3-6.)

Portanto, se esses adolescentes deveriam experimentar uma transformação dramática, esta teria de dar-se no coração. Sa­bia que eu não poderia fazer com que isso acontecesse. Teria de ser obra do Espírito Santo. Mas quem sabe eu poderia ser um canal, através do qual o Espírito pudesse alcançar esses jovens?

Só havia um meio de me certificar disso — era agir. Até en­tão, eu apenas andara pela cidade observando tudo, mas ago­ra, deveria falar àqueles jovens, confiando no Espírito Santo, para fazer o que eu não poderia. Comecei a fazer perguntas em Nova Iorque, para saber quais eram as quadrilhas mais duras, mais valentes. Vez após vez ouvi o nome de duas — os Capelães e os Mau Maus, ambas de Fort Greene, Brooklyn.

Essas quadrilhas têm seu campo de ação num dos maiores centros habitacionais do mundo: o Projeto Fort Greene. Mais de trinta mil pessoas vivem nesses apartamentos, sendo a maio­ria de negros e porto-riquenhos, e uma grande porcentagem não tem emprego.

Os jovens dessa zona dividiam-se nessas duas quadrilhas, de acordo com sua raça: os Capelães eram negros e os Mau Maus, espanhóis. As duas quadrilhas não lutavam uma contra a ou­tra, mas eram amigas e se uniam para proteger seu domínio contra quadrilhas de fora. A essa altura, haviam declarado guerra à polícia.

Seu método de combate era um tanto original. Esperavam num telhado com um saco de areia bem na beiradinha. Quan­do algum policial passava pela rua, eles tentavam fazer cair aquele saco de quarenta quilos em cima dele. Sua contagem de tempo ainda não era muito perfeita e, até o momento, erravam o alvo, mas estavam chegando cada vez mais perto de acertar. Os policiais, em represália, estavam usando os cassetetes à mínima provocação, e proibindo reuniões de mais de dois ou três rapazes.

Resolvi, então, que não haveria lugar melhor para testar o Espírito Santo do que Fort Greene. Certa sexta-feira, cedo, convidei um amigo meu chamado Jimmy Stahl, que toca pistão muito bem, e dirigimo-nos para o outro lado da Ponte de Brooklyn, entrando naquela selva fervilhante de tijolos e vi­dro, chamada Projeto Habitacional Fort Greene. Deixamos o carro perto da escola pública na Rua Edward e iniciamos a nossa experiência. Eu disse a Jimmy:

— Você fica aqui perto do poste e começa a tocar. Se conseguirmos reunir uma boa turma, eu posso subir na base do poste para falar-lhes.

— O que é que você quer que eu toque?

— Por que não Avante, Avante, ó Crentes?

Então ele começou a tocar. Tocou o mesmo hino repetidas vezes, com entusiasmo e bem alto.

As janelas dos prédios começaram a se abrir, mostrando cabeças curiosas. Depois as crianças começaram a sair dos prédios. Dezenas de crianças. Entusiasmadas com a música, ficavam perguntando:

— O circo vem para cá, moço? Vai ter desfile?

Eu disse a Jimmy que continuasse tocando.

Em seguida, apareceram os adolescentes. Pareciam estar todos uniformizados. Alguns dos rapazes usavam blusões de um vermelho-vivo com tiras pretas nos braços, tendo as duas letras "MM" bordadas ousadamente nas costas. Outros usavam calças de cano fino, camisas de cores vivas, sapatos euro­peus com sola fina e bico pontudo; e uma bengala. Quase to­dos usavam chapéu alpino de aba estreita; e quase todos tam­bém estavam de óculos escuros.

"Senhor", orei mentalmente, "eles estão procurando algu­ma coisa. Todos desejam pertencer a algo maior do que conhecem. Eles não querem ficar sozinhos."

Depois que Jimmy tocara sua peça umas quinze ou vinte vezes, estavam ali reunidos uns cem rapazes e mocinhas. Agrupavam-se, empurrando uns aos outros, gritando uns para os outros, e para nós, obscenidades misturadas com vaias. Subi na base do poste e comecei a falar. A balbúrdia aumentou. Não sabia o que fazer então. Jimmy estava dizendo:

— Eles não estão ouvindo.

Naquele exato momento, o problema foi arrancado das mi­nhas mãos. Os gritos cessaram, enquanto eu vi aproximar-se um carro da polícia. Alguns soldados desceram e abriram caminho por entre a multidão com os cassetetes, que usavam sem dó.

— Vamos andando! Vamos acabar com isso! Dispersem-se!

Os rapazes abriram passagem para a polícia, mas ajuntaram-se novamente.

— Desça daí! disse um deles, dirigindo-se a mim.

Depois de descer e colocar-me à sua frente, ele disse:

— O que é que você está tentando fazer, dar início a um motim?

— Estou pregando.

— Bem, então vá pregar longe daqui. Este lugar já nos dá bastante trabalho sem acrescentar um tumulto.

Foi então que a rapaziada se intrometeu no caso. Gritavam para os policiais que eles não poderiam me impedir de pregar, era contra a constituição. Os policiais discordaram, e antes que Jimmy e eu percebêssemos o que estava acontecendo, já está­vamos sendo empurrados para dentro do carro policial.

Na delegacia, continuei com o argumento que os jovens haviam usado.

— Quero perguntar-lhes uma coisa, disse eu. Não é direito meu, como cidadão, falar em praça pública?

Tiveram de reconhecer que era, e responderam:

— Pode, se falar sob uma bandeira americana.

Foi assim que, meia hora mais tarde, Jimmy começou nova­mente a tocar Avante, Avante, ó Crentes. Dessa vez, tínhamos uma vistosa bandeira americana pairando sobre nós, empresta­da pelo simpático diretor da escola. Também, em vez de falar em pé, na base do poste, eu usava uma banqueta de piano como plataforma.

Jimmy tocou; para o Norte, para o Sul, para o Leste e para o Oeste. Novamente as janelas se abriram e crianças se aglomeraram ao redor de nós. Mais uma vez, poucos minutos depois, estávamos defronte do mesmo grupo irreverente e atrevido

A única diferença era que, dessa vez, aos seus olhos, éramos heróis, porque novamente nos havíamos desentendido com a polícia.

Essa nova popularidade, entretanto, em nada melhorou a atitude da nossa assistência. Subi na banqueta e novamente tentei gritar mais do que eles.

— Sou um pregador do interior, gritei, venho de muito longe e tenho uma mensagem para vocês.

Ninguém me ouvia. Bem à minha frente, um rapaz e uma moça rebolavam de modo provocador e sensual, o que fazia com que os outros assobiassem e batessem palmas. Logo outros passaram a acompanhá-los, cigarros caídos no canto da boca, tremendo de excitação. Não era bem o ambiente para se entregar um sermão.

Desesperado, curvei a cabeça.

"Senhor", orei, "não consigo nem a atenção desses garotos. Se tu estás realizando uma obra aqui, até isso terei de pedir de ti".

A mudança começou enquanto eu ainda orava. As crianças se acomodaram primeiro, mas quando abri os olhos percebi que alguns dos rapazes mais velhos, que estavam encostados na cerca, fumando, agora estavam de pé; haviam tirado os chapéus e tinham as cabeças um pouco curvadas.

Tão inesperado foi aquele silêncio que me deixou sem pala­vras por um pouco, e quando afinal consegui falar, escolhi como texto João 3.16: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna".

Contei-lhes que Deus os amava exatamente como eram, naquele instante. Ele conhecia todos eles, sabia muito bem o que eram, conhecia seu ódio e fúria. Ele sabia muito bem que alguns deles eram homicidas, mas também via o que eles seriam no futuro, e não apenas o que haviam sido no passado.

Foi só isso que eu disse, e parei. Um silêncio opressivo e eloquente dominou a rua. Podia-se ouvir a bandeira drapejando sob a ação da brisa. Disse então àqueles jovens que iria pedir que acontecesse a eles algo de muito especial. Iria pedir um milagre, para que imediatamente suas vidas fossem mudadas por completo.

Curvei novamente a cabeça e orei, para que o Espírito San­to realizasse a sua obra. Levantei a cabeça, mas ninguém se mexeu. Perguntei se alguém gostaria de vir à frente onde pode­ríamos conversar. Ninguém se mexeu.

A situação era embaraçosa. Havia tentado deixar que o Es­pírito dirigisse, mas parece que ele não estava dirigindo.

Subitamente, ouvi a minha própria voz como se fosse a de outro dizendo:

— Muito bem. Já ouvi dizer que existem duas quadrilhas bem valentes aqui em Fort Greene. Quero falar com os presi­dentes e vice-presidentes. Se vocês são tão fortes e valentes, certamente não terão medo de cumprimentar um pregador magricela.

Ainda não sei por que o disse, mas recordando agora, talvez fosse a melhor coisa que poderia ter dito. Por alguns instantes ninguém se mexeu, mas logo ouviu-se, lá atrás, uma voz:

— O que é que há Dito, está com medo?

Devagar, um corpulento rapaz de cor deixou o seu lugar e começou a andar na minha direção. Outro rapaz o seguia, e este trazia uma bengala. Ambos estavam de óculos escuros. Pas­sando pela multidão, trouxeram mais dois rapazes, e os quatro se agruparam em frente à banqueta.

O grandalhão adiantou-se uns passos.

— Sou Dito, presidente dos Capelães, disse ele, estendendo a mão.

Eu não conhecia ainda os seus costumes e ia apertando-lhe a mão, quando ele disse:

— Não me aperte a mão, pregador.

E encostou apenas a palma da sua mão aberta na minha, fazendo-a deslizar até a ponta dos dedos.

Por alguns instantes ele ficou me olhando, examinando-me curiosamente.

— Você é legal, pregador; você me convenceu.

Dito apresentou seu vice-presidente, Simão, e dois dos seus cabos de guerra.

O que eu iria fazer, então? Com o coração a bater desordenadamente, acenei para Jimmy, e nos afastamos com os rapazes alguns passos da multidão. Simão repetia que estavam entendendo nossa mensagem.

— Sabe, David, dizia ele, tem uma velhinha que sempre passa por aqui. Ela usa uma capa preta e carrega uma cesta cheia de chocolate. Toda vez fala com a gente para mudar de vida. Coitada, gostamos dela, porém ela não nos entende.

Eu disse aos rapazes que não era eu que os entendia, mas sim o Espírito Santo. Falei-lhes que ele estava tentando alcançar o orgulho deles.

— E sua arrogância também, disse eu, fitando-os bem nos olhos, e sua autocomplacência. Tudo isso é apenas uma capa para esconder o que vocês são de fato — assustados e solitários. O Espírito Santo quer penetrar essa capa e ajudá-los a começar tudo de novo.

— E o que a gente tem de fazer?

Olhei para Jimmy, mas sua expressão em nada me ajudou. Numa igreja, talvez eu convidasse esses rapazes para se aproximarem do altar e a se ajoelharem; mas como fazer isso em plena rua, na frente da turma deles?

Mas, quem sabe, era preciso justamente um passo assim, ousado. A mudança que pedíamos para a vida deles era decisiva; portanto, talvez fosse necessário que o símbolo dessa mudança também fosse decisivo e drástico.

— O que têm de fazer? repeti. Eu quero que se ajoelhem aqui na rua e peçam ao Espírito Santo que entre na vida de vocês, para que sejam novas criaturas. A Bíblia diz "nova criatura" em Cristo; e isso pode acontecer a vocês também.

Houve um longo silêncio. Pela primeira vez percebi, ao fun­do, a multidão que esperava, em silêncio, para ver o que iria acontecer. Afinal Simão disse numa voz estranhamente rouca:

— Dito, você quer? Se você ajoelhar, eu também ajoelho.

E ante os meus olhos estarrecidos, esses dois líderes de uma das quadrilhas mais temidas de Nova Iorque, vagarosamente se ajoelharam. Os cabos de guerra imitaram os chefes. Tiraram os chapéus, mantendo-os respeitosamente à sua frente. Dois deles estiveram fumando. Tiraram os cigarros da boca e jogaram-nos fora. A fumaça deles subia da sarjeta, enquanto eu fazia uma curta oração.

— Senhor Jesus, disse eu, aqui estão quatro filhos teus, fazendo algo que é muito, muito difícil. Estão ajoelhados peran­te todos, pedindo-te que entres no coração deles e o transformes. Querem certificar-se, pela primeira vez na vida, que são realmente amados. Pedem isso de ti, Senhor, e tu não os de­cepcionarás. Amém.

Dito e Simão levantaram-se. Os cabos de guerra também. Não levantaram as cabeças. Sugeri-lhes que ficassem um pou­co a sós ou, quem sabe, procurassem uma igreja.

Ainda sem falar, os rapazes se voltaram e andaram na dire­ção da multidão. Alguém gritou:

— Ei! Dito! Como é que é virar crente?

Dito mandou que ele calasse a boca, e ninguém o aborreceu mais. Tenho a impressão de que se alguém tivesse insistido em ridicularizá-lo, ele não teria resistido à tentação de reagir vio­lentamente.

Jimmy e eu deixamos Fort Greene com a cabeça no ar. Na realidade não esperávamos que Deus nos respondesse de ma­neira tão dramática. Dito, Simão e os dois cabos de guerra ajoe­lhados numa esquina — era inacreditável!

Francamente, estivéramos mais preparados para a reação dos líderes Mau Maus. Eles estavam lá também assistindo à transformação de Dito e Simão, num misto de fascinação e desprezo. Depois que os Capelães partiram, a multidão come­çou a gritar.

— Israel! Nicky! Agora vocês! Vamos, os crioulos não tive­ram medo. E vocês vão bancar os covardes?

Ante tais gritos, eles tiveram de vir à frente.

Israel, presidente da quadrilha, era um dos rapazes mais sim­páticos que já conheci; estendeu-me a mão e apertou a minha como um cavalheiro.

Nicky, entretanto, era bem diferente. Lembro-me de ter pensado, ao olhar para ele: "É a fisionomia mais dura que já vi até hoje".

— Como vai, Nicky? disse eu.

Ele deixou-me com a mão estendida. Nem quis olhar para mim. Estava fumando, soprando nervosamente por um canto da boca.

— Vá pro inferno, pregador, disse ele.

Sua voz era estranha, como se ele estivesse sufocado, e gaguejava ao pronunciar certos sons.

— Você não tem boa opinião a meu respeito, Nicky, mas comigo se dá o contrário. Eu gosto de você, Nicky. Dei um passo em sua direção.

— Se você chegar perto de mim, pregador, ele respondeu com aquela voz estrangulada, eu o mato.

Concordei:

— Você poderia fazer isso. Poderia muito bem me picar em mil pedacinhos e esparramá-los aí na rua, mas cada pedacinho continuaria gostando de você.

Enquanto eu dizia essas palavras, pensava: "E de que adiantaria isso, para você, Nicky — não há amor sobre a face da Terra que possa alcançá-lo".

Antes de deixar Brooklyn, apresentamos Dito e Simão a um pastor da localidade que pudesse acompanhar o difícil cresci­mento espiritual deles. Mas eu disse a Jimmy:

— Mesmo assim seria bom a gente visitá-los de vez em quando também.

Para dizer francamente, nem um de nós conseguia se livrar da idéia de que esses rapazes estavam se divertindo às nossas custas.

Mas, ao voltar para casa e dizer isso a Gwen, ela ficou brava comigo e me repreendeu.

— David Wilkerson, você não percebe que recebeu justa­mente o que desejava? Você pediu que o Espírito Santo reali­zasse um milagre, e agora, que se vê diante dele, está querendo contestá-lo? As pessoas que não acreditam em milagres, não devem pedi-los a Deus.