terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 06

Quando voltei a Nova Iorque, meu estado de espírito estava bem diferente. Já não era um homem com a simples missão de ajudar sete rapazes envolvidos num caso de homicídio. Contudo pensava comigo mesmo: "Se pre­ciso fazer algo mais, gostaria de ter uma idéia certa do que devo fazer".

Era uma visão que não parecia estar bem ao meu alcance, como um sonho parcialmente esquecido; só sabia que tinha a ver com o auxílio específico que eu deveria prestar a rapazes como Luis e seus amigos.

Não queria também deixar passar uma única oportunidade de ter contato com a quadrilha de Luis. A sentença já fora dada: quatro dos rapazes, incluindo ele, foram condenados à reclusão; os outros três deveriam ser libertos. Desses três um seria enviado a um hospital psiquiátrico; o outro, seus pais já estavam providenciando para afastar da cidade. O último vol­taria para casa. Resolvi, então, procurar entrar em contato com este.

Chegando ao endereço na Rua 125, vi outro nome na por­ta, mas bati assim mesmo, e não fiquei muito surpreso quando a mãe do rapaz abriu a porta. Lembrou-se de mim, de minha visita anterior, e mostrou satisfação em me rever. Convidou-me para entrar e disse:

— Como deve ter visto, mudamos o nosso nome. Constan­temente pessoas iradas batiam à porta, e certo dia escreveram na parede: "Afaste seu filho da cidade, ou mande matá-lo".

Na sala do seu pequeno apartamento, havia montes de jor­nais em cima das cadeiras, do sofá e da mesinha, e todos conti­nham notícias do julgamento.

— O senhor não faz idéia, Reverendo Wilkerson, do que é abrir o jornal todos os dias e ver fotos do seu filho sendo julgado por homicídio. Os vizinhos trouxeram a maior parte desses jornais, e sempre demoravam um pouco mais para nos censurar. Meu ma­rido também recebeu alguns jornais no seu local de trabalho.

Fomos até à cozinha, onde havia um cheiro gostoso de co­mida mexicana, e ali conversamos sobre o futuro deles.

— Vocês ficarão aqui? perguntei.

— Gostaríamos de sair, mas é muito difícil por causa do emprego do meu marido.

— Mas o seu filho corre perigo aqui.

— Sim!

— Gostaria de mandá-lo para morar com a minha família na Pensilvânia, por um pouco de tempo? Teríamos muito prazer em recebê-lo.

— Não, disse aquela pobre mulher, mexendo a comida. Quando meu filho chegar é provável que vá embora, mas será para a casa de parentes. Ninguém o verá. Será como alguém que nunca existiu...

Saindo de lá meia hora depois, voltei-me para dizer adeus e vi o que estava escrito na parede. Tinham esfregado bastante, tentando apagar as letras, mas ainda estava bem visível, princi­palmente o pedaço que dizia "... ou mande matá-lo".

Foi assim que novamente fui impedido de entrar em contato com os rapazes da quadrilha de Luis. Talvez eu devesse aceitar o fato de que havia algum propósito nessas portas fechadas. É possível que fosse parte do sonho que me perseguia. Por mais improvável que parecesse, por menos preparado e até relutante que eu estivesse, começava a enfrentar a possibilidade de que, nessas ruas, muito em breve eu encontraria aquilo a que os quacres chamavam de o meu "fardo" de responsabilidade.

Deixando a Rua 125, e dirigindo-me ao carro novamente, elevei uma prece aos céus:

"Senhor, se há trabalho para mim neste lugar, diga-me qual é."

Foi esse o começo de uma longa caminhada pelas ruas de Nova Iorque, que durou quatro meses. Durante os meses de março, abril, maio e junho de 1958, fui à cidade uma vez por semana, aproveitando o meu dia de folga. Levantava cedo e, depois de oito horas de viagem, chegava a Nova Iorque à tar­de Depois caminhava pelas ruas da cidade até a madrugada, voltando em seguida para casa.

Não estava ocupado em vãs explorações. Embora tudo aquilo fosse um tanto misterioso para mim, sentia ainda que era impelido por um propósito que não o meu. Não sabia como agir, senão voltar à cidade toda semana, mantendo-me em estado de receptividade, esperando sempre que a ordem se tornasse mais clara.

Lembro-me bem da primeira noite dessa caminhada. Antes de deixar Maria no seu porão úmido e malcheiroso, ela me dissera que um dos lugares mais brutais e violentos de Nova Iorque era Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, Maria dissera:

"Pregador, se você quiser ver o pior de Nova Iorque, atra­vesse a ponte do Brooklyn e abra os olhos."

Será que eu realmente queria ver o pior de Nova Iorque? Não tinha muita certeza disso. Mas fora em berços como esse que haviam nascido os sete implicados no caso Farmer. Se eu quisesse levantar os meus olhos, como sugerira vovô, talvez tivesse de baixá-los primeiro.

Então peguei o carro e desci a Broadway, passei por Times Square e pelo Martinique, onde Miles e eu havíamos pousado, e fui até à ponte do Brooklyn. Depois de atravessá-la, pedi a um policial que me dissesse onde ficava Bedford-Stuyvesant. Foi assim que entrei pela primeira vez no lugar que tem mais assassinos por metro quadrado do que qualquer outro lugar na Terra. Naquele instante, nem me passou pela cabeça que, um dia, eu conheceria aquelas ruas tão bem como conhecia as de Philipsburg.

Bedford-Stuyvesant fora outrora o bairro residencial de dis­tintas famílias de classe média, que moravam em casinhas de dois pavimentos com um jardim nos fundos. É agora um gueto de negros e porto-riquenhos. Foi numa fria noite de março que fiquei conhecendo aquele bairro.

Tive de rodar alguns quartei­rões antes de achar um lugar para estacionar, porque, devido à demora da Prefeitura em retirar a neve, os carros estavam to­dos grudados nas guias das calçadas, em meio a montões de neve suja e congelada. Andar pela neve semiderretida, que co­bria inteiramente os pés, e por cima dos montes de lixo escor­regadios devido ao congelamento, era uma aventura até peri­gosa. Sozinho, vagueei pelas ruas, observando e ouvindo, sen­tindo a vida num nível tão baixo que, na segurança de minhas montanhas, eu não supusera existir.

Um homem bêbado estava deitado no passeio gelado. Abaixei-me para ajudá-lo, mas ele me xingou. Dirigi-me então a um policial que estava na esquina e falei-lhe acerca do bêbado. Ele sacudiu os ombros, e disse que tomaria providências. Mas, de­pois de dar alguns passos, ao olhar para trás, verifiquei que ele ainda estava de pé, na esquina, balançando seu cassetete.

Duas garotas paradas em frente de uma porta aberta me disseram:

— Ei, garotão, você está procurando companhia?

Do outro lado da rua um grupo de jovens estava na porta de uma confeitaria. Usavam casacos de couro com um emblema curioso nas costas. Queria falar-lhes, mas hesitei. Será que me ouviriam? Ou me ridicularizariam?

Afinal resolvi não atravessar a rua — não naquela noite. An­dei mais um pouco, passei por bares, por latas de lixo a trans­bordar, passei por algumas igrejas e delegacias de polícia até chegar a um conjunto habitacional, com vidraças e lâmpadas quebradas, e uma tabuleta partida, que dizia: "Não pise na grama", enterrada na neve fuliginosa.

Voltando para onde estava o carro, ouvi o que me pareceu ser o barulho de alguns tiros, mas pensei que me enganara por­que ninguém naquela rua movimentada deu atenção. Dentro de alguns minutos um carro de radiopatrulha passou com a sirena tocando, e parou rangendo os freios, com a luz vermelha piscando. Apenas seis pessoas pararam a fim de observar quando tiraram um homem de uma pensão, com o braço inerte pingando sangue. Era preciso mais do que um tiro no ombro para reunir um grupo de curiosos em Bedford-Stuyvesant.

Voltei ao carro, e depois de colocar uma camisa velha na janela à guisa de isolamento, deitei-me, cobri-me com a capa do estofamento e finalmente dormi.

Hoje eu não faria isso, de maneira nenhuma. Não tanto pelo medo dos assassinos adultos, nem mesmo das quadrilhas dos adolescentes, mas sim dos "Pequenos". São crianças de oito, nove e dez anos que agem na periferia das quadrilhas dos jovens. Esses pequenos são realmente perigosos, porque cultivam a violência em razão da própria violência. Carregam as facas e revólveres dos seus heróis mais velhos e pensam que, usando-as, tornam-se homens. Se, hoje, eu tivesse de dormir num carro na rua, é dos Pequenos que eu teria medo.

Mas de manhã acordei são e salvo. Seria minha própria inocência que me preservara? Ou seriam as palavras do salmo que eu repetira várias vezes antes de dormir?

"Pois disseste: O Senhor é o meu refúgio. Fizeste do Altíssimo a tua morada. Nenhum mal te sucederá, praga nenhuma chega­rá à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos. Eles te susten­tarão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra. Pisa­rás o leão e a áspide, calcarás aos pés o leãozinho e a serpente." (91.9-13.)

Pouco a pouco, durante aqueles quatro meses, fiquei co­nhecendo as ruas. Maria e Angelo me ajudaram muito nisso. (Sempre mantive contato com Angelo depois do nosso encontro na escada do apartamento de Luis.)

Certo dia, quando andávamos juntos numa rua do Harlem perguntei-lhe:

— Angelo, na sua opinião, qual é o maior problema que os rapazes enfrentam nesta cidade?

— Solidão, respondeu ele imediatamente.

Era uma resposta estranha; solidão numa cidade de oito milhões de habitantes. Mas Angelo disse que eram solitários, porque sentiam falta de amor, e que todos os seus amigos nas quadrilhas sentiam isso, acima de tudo. Quanto mais eu co­nhecia Nova Iorque, mais me certificava de que Angelo estava certo.

Antes de me envolver pessoalmente com os problemas des­ses rapazes, não tinha a mínima idéia do que seria uma quadri­lha de jovens de rua. Quando eu era moço, em Pittsburgh, tí­nhamos o nosso clube. Vários outros grupos faziam o mesmo, e o que acontecia dentro dessas cabanas variava de acordo com a idade e a personalidade da turma; mas em geral a atividade se limitava à conversa sobre meninas, automóveis, esportes, pais. Suponho ser importante que os adolescentes tenham suas turmas, para assim divagarem sobre o mundo adulto, sem peri­go de serem ouvidos.

Existe esse tipo de clubinho também em Nova Iorque, sim­ples reuniões sociais. Mas existe outro tipo de associação de adolescentes em Nova Iorque, bem diferente do primeiro: são as quadrilhas de briga. Esses rapazes nunca se afastam da vio­lência. Sei de um caso em que uma briga levou dois meses para ser planejada; sei de outro caso em que às duas horas da tarde dez rapazes estavam numa esquina, bebendo refrigerantes, e às quatro um deles estava morto, e dois outros no hospital: uma briga entre quadrilhas inimigas começou e terminou nesse in­tervalo.

Além dessas, há ainda as quadrilhas especializadas. Além dos clubinhos e das quadrilhas de briga, existem as quadri­lhas de homossexuais, de lésbicas e de sádicos. Depois que cheguei a conhecer melhor esses garotos, fiquei sabendo das festas loucas que faziam em apartamentos desocupa­dos, depois de saírem da escola. Em algumas, se reuniam para arrancar as pernas de um gato. Outras eram simples orgias sexuais. Alguns rapazes me contaram que, às vezes, se reuniam num canto escuro de um parque, rodeavam um casal, e enquanto este praticava no chão o ato sexual, os outros se masturbavam mutuamente.

Fomentando esse aspecto da vida das quadrilhas, existe a indústria da pornografia. Alguns me mostravam fotografias que traziam escondidas em compartimentos secretos das carteiras. Não são fotos de garotas como as que se vendem nas esquinas das ruas, mas sim fotografias ou desenhos de atos contrários à natureza, entre rapazes e meninas, e de atos com animais. Contaram-me que, às vezes, passavam as tardes nos seus clubes de porão, usando essas fotografias como guias.

Por mais revoltante que seja saber da existência de brigas, pro­miscuidade e atos contra a natureza, entre os jovens, existe uma depravação que sobrepuja as outras: o vício de entorpecentes.

Não demorou para que eu encontrasse os traficantes de maconha operando perto das escolas. Eram audaciosos e atrevidos. Falavam sem inibição das suas atividades, e um deles disse-me que eu deveria dar uma tragada, já que estava tão interessado no assunto. Quando lhe mostrei um jornal com a foto de um menino numa cama de hospital, se contorcendo por causa das dores do período em que tentava deixar o vício, ele riu na minha cara.

"Não se preocupe", disse ele, "aquele garoto tomava heroína. Um pouco de maconha não faz mal a ninguém. E quase a mesma coisa que fumar um simples cigarro. Experimente!"

Não faz mal? A maconha em si mesma não vicia, mas leva rapidamente ao uso da heroína, que é uma das drogas mais cruéis que o homem conhece. E vicia terrivelmente.

Certa vez, durante a minha caminhada, houve um "pânico", que é o termo usado para designar uma época de escassez de drogas, devido à prisão de um grande número de traficantes. Andando por uma rua, ouvi um grito agonizante.

Ninguém deu atenção. Os gritos continuavam.

— Parece que alguém está sentindo dor, disse eu, dirigindo-me a uma mulher que estava debruçada na janela do mesmo prédio.

Ela ouviu por um instante, e deu de ombros.

— Terceiro andar, disse ela. É horrível. Ele tem vinte anos. É heroína. É viciado e não acha a droga.

— A senhora o conhece?

— Desde que usava fraldas.

— Não podemos fazer alguma coisa para ajudá-lo?

— O quê? Só a morte o ajudaria, agora.

— Não poderíamos levá-lo a um hospital?

A mulher olhou para mim sem dizer nada; depois me per­guntou:

— Moço, você é novo por aqui, não é?

— Sim.

— Tente colocar um viciado nesses hospitais para ver o que consegue.

Como eu me lembraria dessas palavras nos meses seguintes! Em toda a Nova Iorque, existe apenas um hospital público, onde um viciado pode ser tratado: o Hospital Riverside. Está sempre superlotado, de modo que a admissão é muito demora­da, quando não impossível. O outro hospital público, em to­dos os Estados Unidos, onde um viciado de Nova Iorque pode ser admitido, é uma instituição de aspecto desagradável em Lexington, estado de Kentucky, especializada no problema.

Brigas, sexo, entorpecentes: manifestações dramáticas da necessidade dos adolescentes membros de quadrilhas de Nova Iorque. Mas, como Angelo me dissera, era apenas a exteriori­zação de uma profunda necessidade interior: solidão. A ânsia de ter algum significado na vida. A coisa mais triste que desco­bri nessa minha caminhada foi o ideal pateticamente baixo desses meninos. Ouvia atentamente, enquanto alguns descre­viam as suas esperanças.

Esperanças? Será que poderia ser chamado de esperança o alvo, único na vida, de comprar um chapéu novo de aba estrei­ta? O chapéu é um símbolo, para esses rapazes. Quantas vezes pude observar meninos na rua, tremendo de frio, sem um aga­salho, mas tendo na cabeça um chapéu que certamente teria custado mais de vinte dólares, com uma pena vistosa na fita!

Outro dos seus ideais seria, talvez, um passeio. Atravessar a Ponte Brooklyn e visitar Manhattan, por exemplo. Que aven­tura seria! Quem sabe, um dia! Eles viviam uma vida completa­mente isolada, nunca saindo dos próprios domínios, com medo das quadrilhas inimigas que ocupavam os outros bairros.

Devagar, resultando das minhas visitas, formou-se em mi­nha mente uma imagem; um quadro de necessidade, que co­meçava com a solidão e que passava pelas brigas de quadrilhas, orgias sexuais, entorpecentes, e terminava em morte precoce e vergonhosa. Para confirmar as minhas impressões, visitei delegacias de polícia, conversei durante horas seguidas com assistentes sociais e oficiais de justiça, e passei muitas horas na biblioteca pública. Depois de tudo, a impressão final que tive dos adolescentes de Nova Iorque foi tão estonteante que quase abandonei tudo.

Foi nesse instante que o Espírito Santo entrou em cena para me ajudar; e não o fez de maneira dramática; apenas deu-me uma idéia. Deu forma nítida à visão que por tanto tempo parecera apenas um sonho semi-esquecido.

Estava voltando a Philipsburg, quando de repente perguntei a mim mesmo: "E se você pudesse escolher alguma coisa para esses adolescentes, o que desejaria?"

A resposta me veio à mente num segundo: que pudessem começar a viver de novo, com a personalidade inocente e pura de um recém-nascido, e que fossem cercados de amor, em vez de ódio e medo.

Mas é certo que isso seria impossível. Como poderiam pes­soas, já na adolescência, apagar tudo pelo que haviam passado antes? E como construir um novo ambiente para elas? "Será isso um sonho que colocaste no meu coração, Senhor? Ou estou apenas a imaginar fantasias?"

Eles têm de começar de novo, e têm de ser cercados de amor.

Essa idéia veio à minha mente como um pensamento com­pleto e nítido, tão claro como fora a primeira ordem para ir a Nova Iorque. Junto com ela me veio à mente uma casa onde esses novos adolescentes poderiam viver. Uma casa bonita, que seria deles e onde seriam bem-vindos — bem-vindos e amados. Poderiam viver na sua casa o tempo que quisessem, a porta estaria sempre aberta, e nunca faltariam muitas e muitas ca­mas, roupas e uma espaçosa cozinha.

"Ó Senhor", disse eu em voz alta, "que sonho maravilhoso! Mas para a sua realização seria preciso um milagre; muitos milagres, milagres até então nunca vistos."