Quando voltei a Nova Iorque, meu estado de espírito estava
bem diferente. Já não era um homem com a simples missão de ajudar sete rapazes
envolvidos num caso de homicídio. Contudo pensava comigo mesmo: "Se preciso
fazer algo mais, gostaria de ter uma idéia certa do que devo fazer".
Era uma visão que não parecia estar bem ao meu alcance, como
um sonho parcialmente esquecido; só sabia que tinha a ver com o auxílio
específico que eu deveria prestar a rapazes como Luis e seus amigos.
Não queria também deixar passar uma única oportunidade de ter
contato com a quadrilha de Luis. A sentença já fora dada: quatro dos rapazes,
incluindo ele, foram condenados à reclusão; os outros três deveriam ser
libertos. Desses três um seria enviado a um hospital psiquiátrico; o outro,
seus pais já estavam providenciando para afastar da cidade. O último voltaria
para casa. Resolvi, então, procurar entrar em contato com este.
Chegando ao endereço na Rua 125, vi outro nome na porta, mas
bati assim mesmo, e não fiquei muito surpreso quando a mãe do rapaz abriu a
porta. Lembrou-se de mim, de minha visita anterior, e mostrou satisfação em me
rever. Convidou-me para entrar e disse:
— Como deve ter visto, mudamos o nosso nome. Constantemente
pessoas iradas batiam à porta, e certo dia escreveram na parede: "Afaste seu
filho da cidade, ou mande matá-lo".
Na sala do seu pequeno apartamento, havia montes de jornais
em cima das cadeiras, do sofá e da mesinha, e todos continham notícias do
julgamento.
— O senhor não faz idéia, Reverendo Wilkerson, do que é abrir
o jornal todos os dias e ver fotos do seu filho sendo julgado por homicídio. Os
vizinhos trouxeram a maior parte desses jornais, e sempre demoravam um pouco
mais para nos censurar. Meu marido também recebeu alguns jornais no seu local
de trabalho.
Fomos até à cozinha, onde havia um cheiro gostoso de comida
mexicana, e ali conversamos sobre o futuro deles.
— Vocês ficarão aqui? perguntei.
— Gostaríamos de sair, mas é muito difícil por causa do
emprego do meu marido.
— Mas o seu filho corre perigo aqui.
— Sim!
— Gostaria de mandá-lo para morar com a minha família na
Pensilvânia, por um pouco de tempo? Teríamos muito prazer em recebê-lo.
— Não, disse aquela pobre mulher, mexendo a comida. Quando
meu filho chegar é provável que vá embora, mas será para a casa de parentes.
Ninguém o verá. Será como alguém que nunca existiu...
Saindo de lá meia hora depois, voltei-me para dizer adeus e
vi o que estava escrito na parede. Tinham esfregado bastante, tentando apagar
as letras, mas ainda estava bem visível, principalmente o pedaço que dizia
"... ou mande matá-lo".
Foi assim que novamente fui impedido de entrar em contato com
os rapazes da quadrilha de Luis. Talvez eu devesse aceitar o fato de que havia
algum propósito nessas portas fechadas. É possível que fosse parte do sonho que
me perseguia. Por mais improvável que parecesse, por menos preparado e até
relutante que eu estivesse, começava a enfrentar a possibilidade de que, nessas
ruas, muito em breve eu encontraria aquilo a que os quacres chamavam de o meu
"fardo" de responsabilidade.
Deixando a Rua 125, e dirigindo-me ao carro novamente, elevei
uma prece aos céus:
"Senhor, se há trabalho para mim neste lugar, diga-me
qual é."
Foi esse o começo de uma longa caminhada pelas ruas de Nova Iorque, que durou quatro meses. Durante os meses de março, abril, maio e junho de 1958, fui à cidade uma vez por semana, aproveitando o meu dia de folga. Levantava cedo e, depois de oito horas de viagem, chegava a Nova Iorque à tarde Depois caminhava pelas ruas da cidade até a madrugada, voltando em seguida para casa.
Não estava ocupado em vãs explorações. Embora tudo aquilo
fosse um tanto misterioso para mim, sentia ainda que era impelido por um
propósito que não o meu. Não sabia como agir, senão voltar à cidade toda
semana, mantendo-me em estado de receptividade, esperando sempre que a ordem se
tornasse mais clara.
Lembro-me bem da primeira noite dessa caminhada. Antes de
deixar Maria no seu porão úmido e malcheiroso, ela me dissera que um dos
lugares mais brutais e violentos de Nova Iorque era Bedford-Stuyvesant, no
Brooklyn, Maria dissera:
"Pregador, se você quiser ver o pior de Nova Iorque,
atravesse a ponte do Brooklyn e abra os olhos."
Será que eu realmente queria ver o pior de Nova Iorque? Não
tinha muita certeza disso. Mas fora em berços como esse que haviam nascido os
sete implicados no caso Farmer. Se eu quisesse levantar os meus olhos, como
sugerira vovô, talvez tivesse de baixá-los primeiro.
Então peguei o carro e desci a Broadway, passei por Times
Square e pelo Martinique, onde Miles e eu havíamos pousado, e fui até à ponte
do Brooklyn. Depois de atravessá-la, pedi a um policial que me dissesse onde
ficava Bedford-Stuyvesant. Foi assim que entrei pela primeira vez no lugar que
tem mais assassinos por metro quadrado do que qualquer outro lugar na Terra.
Naquele instante, nem me passou pela cabeça que, um dia, eu conheceria aquelas
ruas tão bem como conhecia as de Philipsburg.
Bedford-Stuyvesant fora outrora o bairro residencial de distintas
famílias de classe média, que moravam em casinhas de dois pavimentos com um
jardim nos fundos. É agora um gueto de negros e porto-riquenhos. Foi numa fria
noite de março que fiquei conhecendo aquele bairro.
Tive de rodar alguns quarteirões antes de achar um lugar
para estacionar, porque, devido à demora da Prefeitura em retirar a neve, os
carros estavam todos grudados nas guias das calçadas, em meio a montões de
neve suja e congelada. Andar pela neve semiderretida, que cobria inteiramente
os pés, e por cima dos montes de lixo escorregadios devido ao congelamento,
era uma aventura até perigosa. Sozinho, vagueei pelas ruas, observando e
ouvindo, sentindo a vida num nível tão baixo que, na segurança de minhas
montanhas, eu não supusera existir.
Um homem bêbado estava deitado no passeio gelado. Abaixei-me
para ajudá-lo, mas ele me xingou. Dirigi-me então a um policial que estava na
esquina e falei-lhe acerca do bêbado. Ele sacudiu os ombros, e disse que
tomaria providências. Mas, depois de dar alguns passos, ao olhar para trás,
verifiquei que ele ainda estava de pé, na esquina, balançando seu cassetete.
Duas garotas paradas em frente de uma porta aberta me
disseram:
— Ei, garotão, você está procurando companhia?
Do outro lado da rua um grupo de jovens estava na porta de
uma confeitaria. Usavam casacos de couro com um emblema curioso nas costas.
Queria falar-lhes, mas hesitei. Será que me ouviriam? Ou me ridicularizariam?
Afinal resolvi não atravessar a rua — não naquela noite. Andei
mais um pouco, passei por bares, por latas de lixo a transbordar, passei por
algumas igrejas e delegacias de polícia até chegar a um conjunto habitacional,
com vidraças e lâmpadas quebradas, e uma tabuleta partida, que dizia: "Não
pise na grama", enterrada na neve fuliginosa.
Voltando para onde estava o carro, ouvi o que me pareceu ser
o barulho de alguns tiros, mas pensei que me enganara porque ninguém naquela
rua movimentada deu atenção. Dentro de alguns minutos um carro de radiopatrulha
passou com a sirena tocando, e parou rangendo os freios, com a luz vermelha
piscando. Apenas seis pessoas pararam a fim de observar quando tiraram um homem
de uma pensão, com o braço inerte pingando sangue. Era preciso mais do que um
tiro no ombro para reunir um grupo de curiosos em Bedford-Stuyvesant.
Voltei ao carro, e depois de colocar uma camisa velha na
janela à guisa de isolamento, deitei-me, cobri-me com a capa do estofamento e
finalmente dormi.
Hoje eu não faria isso, de maneira nenhuma. Não tanto pelo
medo dos assassinos adultos, nem mesmo das quadrilhas dos adolescentes, mas sim
dos "Pequenos". São crianças de oito, nove e dez anos que agem na
periferia das quadrilhas dos jovens. Esses pequenos são realmente perigosos,
porque cultivam a violência em razão da própria violência. Carregam as facas e
revólveres dos seus heróis mais velhos e pensam que, usando-as, tornam-se
homens. Se, hoje, eu tivesse de dormir num carro na rua, é dos Pequenos que eu
teria medo.
Mas de manhã acordei são e salvo. Seria minha própria
inocência que me preservara? Ou seriam as palavras do salmo que eu repetira
várias vezes antes de dormir?
"Pois disseste: O Senhor é o meu refúgio. Fizeste do
Altíssimo a tua morada. Nenhum mal te sucederá, praga nenhuma chegará à tua
tenda. Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em
todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos, para não tropeçares
nalguma pedra. Pisarás o leão e a áspide, calcarás aos pés o leãozinho e a
serpente." (91.9-13.)
Pouco a pouco, durante aqueles quatro meses, fiquei conhecendo as ruas. Maria e Angelo me ajudaram muito nisso. (Sempre mantive contato com Angelo depois do nosso encontro na escada do apartamento de Luis.)
Certo dia, quando andávamos juntos numa rua do Harlem
perguntei-lhe:
— Angelo, na sua opinião, qual é o maior problema que os
rapazes enfrentam nesta cidade?
— Solidão, respondeu ele imediatamente.
Era uma resposta estranha; solidão numa cidade de oito
milhões de habitantes. Mas Angelo disse que eram solitários, porque sentiam
falta de amor, e que todos os seus amigos nas quadrilhas sentiam isso, acima de
tudo. Quanto mais eu conhecia Nova Iorque, mais me certificava de que Angelo
estava certo.
Antes de me envolver pessoalmente com os problemas desses
rapazes, não tinha a mínima idéia do que seria uma quadrilha de jovens de rua.
Quando eu era moço, em Pittsburgh, tínhamos o nosso clube. Vários outros
grupos faziam o mesmo, e o que acontecia dentro dessas cabanas variava de
acordo com a idade e a personalidade da turma; mas em geral a atividade se
limitava à conversa sobre meninas, automóveis, esportes, pais. Suponho ser
importante que os adolescentes tenham suas turmas, para assim divagarem sobre o
mundo adulto, sem perigo de serem ouvidos.
Existe esse tipo de clubinho também em Nova Iorque, simples
reuniões sociais. Mas existe outro tipo de associação de adolescentes em Nova
Iorque, bem diferente do primeiro: são as quadrilhas de briga. Esses rapazes
nunca se afastam da violência. Sei de um caso em que uma briga levou dois
meses para ser planejada; sei de outro caso em que às duas horas da tarde dez
rapazes estavam numa esquina, bebendo refrigerantes, e às quatro um deles
estava morto, e dois outros no hospital: uma briga entre quadrilhas inimigas
começou e terminou nesse intervalo.
Além dessas, há ainda as quadrilhas especializadas. Além dos
clubinhos e das quadrilhas de briga, existem as quadrilhas de homossexuais, de
lésbicas e de sádicos. Depois que cheguei a conhecer melhor esses garotos,
fiquei sabendo das festas loucas que faziam em apartamentos desocupados, depois
de saírem da escola. Em algumas, se reuniam para arrancar as pernas de um gato.
Outras eram simples orgias sexuais. Alguns rapazes me contaram que, às vezes,
se reuniam num canto escuro de um parque, rodeavam um casal, e enquanto este
praticava no chão o ato sexual, os outros se masturbavam mutuamente.
Fomentando esse aspecto da vida das quadrilhas, existe a
indústria da pornografia. Alguns me mostravam fotografias que traziam
escondidas em compartimentos secretos das carteiras. Não são fotos de garotas
como as que se vendem nas esquinas das ruas, mas sim fotografias ou desenhos de
atos contrários à natureza, entre rapazes e meninas, e de atos com animais.
Contaram-me que, às vezes, passavam as tardes nos seus clubes de porão, usando
essas fotografias como guias.
Por mais revoltante que seja saber da existência de brigas, promiscuidade e atos contra a natureza, entre os jovens, existe uma depravação que sobrepuja as outras: o vício de entorpecentes.
Não demorou para que eu encontrasse os traficantes de maconha
operando perto das escolas. Eram audaciosos e atrevidos. Falavam sem inibição
das suas atividades, e um deles disse-me que eu deveria dar uma tragada, já que
estava tão interessado no assunto. Quando lhe mostrei um jornal com a foto de
um menino numa cama de hospital, se contorcendo por causa das dores do período
em que tentava deixar o vício, ele riu na minha cara.
"Não se preocupe", disse ele, "aquele garoto
tomava heroína. Um pouco de maconha não faz mal a ninguém. E quase a mesma
coisa que fumar um simples cigarro. Experimente!"
Não faz mal? A maconha em si mesma não vicia, mas leva
rapidamente ao uso da heroína, que é uma das drogas mais cruéis que o homem
conhece. E vicia terrivelmente.
Certa vez, durante a minha caminhada, houve um "pânico",
que é o termo usado para designar uma época de escassez de drogas, devido à
prisão de um grande número de traficantes. Andando por uma rua, ouvi um grito
agonizante.
Ninguém deu atenção. Os gritos continuavam.
— Parece que alguém está sentindo dor, disse eu, dirigindo-me
a uma mulher que estava debruçada na janela do mesmo prédio.
Ela ouviu por um instante, e deu de ombros.
— Terceiro andar, disse ela. É horrível. Ele tem vinte anos.
É heroína. É viciado e não acha a droga.
— A senhora o conhece?
— Desde que usava fraldas.
— Não podemos fazer alguma coisa para ajudá-lo?
— O quê? Só a morte o ajudaria, agora.
— Não poderíamos levá-lo a um hospital?
A mulher olhou para mim sem dizer nada; depois me perguntou:
— Moço, você é novo por aqui, não é?
— Sim.
— Tente colocar um viciado nesses hospitais para ver o que
consegue.
Como eu me lembraria dessas palavras nos meses seguintes! Em
toda a Nova Iorque, existe apenas um hospital público, onde um viciado pode ser
tratado: o Hospital Riverside. Está sempre superlotado, de modo que a admissão
é muito demorada, quando não impossível. O outro hospital público, em todos
os Estados Unidos, onde um viciado de Nova Iorque pode ser admitido, é uma
instituição de aspecto desagradável em Lexington, estado de Kentucky,
especializada no problema.
Brigas, sexo, entorpecentes: manifestações dramáticas da necessidade dos adolescentes membros de quadrilhas de Nova Iorque. Mas, como Angelo me dissera, era apenas a exteriorização de uma profunda necessidade interior: solidão. A ânsia de ter algum significado na vida. A coisa mais triste que descobri nessa minha caminhada foi o ideal pateticamente baixo desses meninos. Ouvia atentamente, enquanto alguns descreviam as suas esperanças.
Esperanças? Será que poderia ser chamado de esperança o alvo,
único na vida, de comprar um chapéu novo de aba estreita? O chapéu é um
símbolo, para esses rapazes. Quantas vezes pude observar meninos na rua,
tremendo de frio, sem um agasalho, mas tendo na cabeça um chapéu que
certamente teria custado mais de vinte dólares, com uma pena vistosa na fita!
Outro dos seus ideais seria, talvez, um passeio. Atravessar a
Ponte Brooklyn e visitar Manhattan, por exemplo. Que aventura seria! Quem
sabe, um dia! Eles viviam uma vida completamente isolada, nunca saindo dos
próprios domínios, com medo das quadrilhas inimigas que ocupavam os outros
bairros.
Devagar, resultando das minhas visitas, formou-se em minha
mente uma imagem; um quadro de necessidade, que começava com a solidão e que
passava pelas brigas de quadrilhas, orgias sexuais, entorpecentes, e terminava
em morte precoce e vergonhosa. Para confirmar as minhas impressões, visitei
delegacias de polícia, conversei durante horas seguidas com assistentes sociais
e oficiais de justiça, e passei muitas horas na biblioteca pública. Depois de
tudo, a impressão final que tive dos adolescentes de Nova Iorque foi tão
estonteante que quase abandonei tudo.
Foi nesse instante que o Espírito Santo entrou em cena para
me ajudar; e não o fez de maneira dramática; apenas deu-me uma idéia. Deu forma
nítida à visão que por tanto tempo parecera apenas um sonho semi-esquecido.
Estava voltando a Philipsburg, quando de repente perguntei a
mim mesmo: "E se você pudesse escolher alguma coisa para esses
adolescentes, o que desejaria?"
A resposta me veio à mente num segundo: que pudessem começar
a viver de novo, com a personalidade inocente e pura de um recém-nascido, e que
fossem cercados de amor, em vez de ódio e medo.
Mas é certo que isso seria impossível. Como poderiam pessoas,
já na adolescência, apagar tudo pelo que haviam passado antes? E como construir
um novo ambiente para elas? "Será isso um sonho que colocaste no meu
coração, Senhor? Ou estou apenas a imaginar fantasias?"
Eles têm de começar de novo, e têm de ser cercados de amor.
Essa idéia veio à minha mente como um pensamento completo e
nítido, tão claro como fora a primeira ordem para ir a Nova Iorque. Junto com
ela me veio à mente uma casa onde esses novos adolescentes poderiam viver. Uma
casa bonita, que seria deles e onde seriam bem-vindos — bem-vindos e amados.
Poderiam viver na sua casa o tempo que quisessem, a porta estaria sempre
aberta, e nunca faltariam muitas e muitas camas, roupas e uma espaçosa
cozinha.
"Ó Senhor", disse eu em voz alta, "que sonho maravilhoso! Mas para a sua realização seria preciso um milagre; muitos milagres, milagres até então nunca vistos."