terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 05


 A viagem de Philipsburg até a fazenda perto de Toledo, onde vovô gozava a sua aposentadoria, era bastante longa. Durante a viagem ocupei-me em tomar conhecimento do meu passado, como Gwen recomendara. As lembranças que eu tinha eram alegres e cheias de vida, principalmente quando vovô entrava em cena.

Ele nascera em Cleveland, estado de Tenessee. Já era prega­dor aos vinte anos, e enfrentava uma vida bastante rigorosa. Era pregador itinerante, o que significava que passava grande parte do seu ministério na garupa do cavalo. Galopava em seu animal, de uma igreja a outra, e geralmente era pregador, re­gente do coro e zelador ao mesmo tempo. Era o primeiro que chegava à igreja; acendia a lareira, varria os ninhos de rato, e arejava o lugar. Depois chegava a congregação, e ele então di­rigia os cânticos, hinos bem conhecidos como Graça Sublime e Quão Bondoso Amigo é Cristo. E depois, pregava.

Sua pregação não era muito convencional, e algumas das suas convicções chocavam os contemporâneos. Por exemplo, quando vovô era moço, era considerado pecado usar enfeites, como laços ou penas. Os presbíteros de algumas igrejas carre­gavam tesourinhas, amarradas por um cordão. Se alguma se­nhora penitente se chegava ao altar, usando uma fita no cha­péu, as tesouras entravam em ação acompanhadas de um ser­mão intitulado: "Como Entrar no Céu com Todas Estas Fitas na Roupa?"

Mas vovô não tinha essa opinião. Quando ficou mais velho, criou o que ele chamava de "A Escola Contrafilé" de evangeli­zação.

"Conquiste as pessoas como se conquista um cachorro", costumava dizer. "Você vê um cachorro passar pela rua com um osso seco na boca. Não adianta tirar o osso dele e dizer que não lhe fará bem. É provável que avance contra você, porque é a única coisa que ele tem. Mas se você joga um bom bife de contrafilé na frente dele, num instante ele larga aquele osso velho e pega o bife, abanando o rabo. E você ganhou um ami­go. Em vez de sair tomando ossos das pessoas ou cortando as suas penas, vou dar-lhes alguns bifes de contrafilé — alguma coisa que tenha bastante carne e vida. Vou falar-lhes sobre "A Nova Vida"."

Vovô pregava não só em igrejas, mas também em tendas de lona, e até hoje, quando viajo, ouço contar casos de como o velho Jay Wilkerson dirigia reuniões animadas. Certa vez, por exemplo, ele estava pregando em Jamaica, Long Island. Era quatro de julho, dia da independência americana e, por ser feriado, havia muita gente.

Durante aquela tarde, meu avô fora visitar um amigo que tinha uma grande loja. Este mostrou-lhe umas bombinhas, gran­de novidade naquele ano, que estava vendendo muito, para as festas da Independência — bastava jogar no chão ou pisar em cima, e elas soltavam uma fumaça e estouravam. Vovô gostou e comprou um pouco, pôs no bolso e se esqueceu delas.

Meu avô pregou sobre a nova vida em Cristo, mas também falou do inferno, descrevendo, às vezes, muito vividamente o que era esse lugar. Falava sobre isso quando levou a mão ao bolso e percebeu as bombinhas. Devagar, sem que ninguém percebesse, ele pegou algumas e jogou na plataforma atrás de si. Depois continuou falando sobre o inferno com a expressão da maior inocência, como se não estivesse percebendo a fumaça e os estalos.

Depois disso, correu um boato de que quando Jay Wilkerson falava do inferno, quase que se podia ouvir o crepitar do fogo e sentir o cheiro da fumaça.

A princípio, o povo esperava que o meu pai fosse igual ao vovô, mas ele era bem diferente. Era mais um pastor de almas do que evangelista. Por causa da vida que vovô levava, pregan­do em diversos lugares, meu pai cresceu sentindo falta da segu­rança de um lar fixo, o que refletiu na sua carreira. Durante todo o seu ministério esteve em apenas quatro igrejas, ao passo que vovô estava numa igreja diferente quase toda noite. Meu pai edificou igrejas estáveis e sólidas em que ele era benquisto, e o consultavam em época de problema ou dificuldade.

"Eu acho que é preciso esses dois tipos de pregadores para formar a igreja", disse-me papai, certo dia, quando moráva­mos em Pittsburgh. "Mas como gostaria de possuir o dom que seu avô tem de acabar com o orgulho das pessoas! Como pre­cisamos disso nesta igreja!"

E da próxima vez que vovô passou lá, deu-nos uma demons­tração dessa sua habilidade. (Vovô estava sempre "passando".)

A igreja do papai ficava num bairro elegante, onde mora­vam os banqueiros, advogados e médicos da cidade. Era de fato um lugar estranho para uma igreja pentecostal, porque nossos cultos tendem a ser um tanto barulhentos e sem soleni­dade. No caso presente, entretanto, nós os tornamos mais so­lenes, em deferência à vizinhança. Foi preciso que vovô apare­cesse, para nos mostrar que estávamos errados.

Quando o vovô chegou, todos estavam tentando viver como o vizinho, muito sóbria e elegantemente.

"E mortos", dizia vovô. "Ora, a religião de um homem deve dar-lhe vida!"

Papai, calado, dava de ombros e tinha de concordar. Depois cometeu o erro de pedir que vovô dirigisse o culto daquela noite.

Eu estava lá e nunca poderei me esquecer da expressão de meu pai, quando a primeira coisa que o vovô fez foi tirar os sapatos sujos e colocá-los em cima da grade do altar.

"E agora?" disse o vovô, ficando em pé e olhando para a congregação assustada. "Estão preocupados com um par de sapatos sujos, por quê? Ah, sujei sua linda igrejinha! Feri o seu orgulho, mas tenho certeza de que, se perguntasse antes se eram orgulhosos, todos diriam que não."

Papai estava vermelho de vergonha.

"Muito bem", disse vovô dirigindo-se a ele, "pode ficar ver­melho; você também precisa disso. Onde estão os diáconos desta igreja?"

Quando estes se identificaram, levantando as mãos, ele disse:

"Quero que abram todas as janelas. Vamos fazer um pouco de barulho, e eu quero que esses banqueiros e advogados, sen­tados nos seus alpendres nesta noite de domingo, o ouçam. Quero que saibam o que significa alegrar-se na sua religião. Vocês hoje vão pregar um sermão — aos vizinhos."

Vovô pediu que todos ficassem de pé. Ficamos. Em seguida ordenou que começássemos a andar ao redor dos bancos, ba­tendo palmas. E nós andamos e batemos palmas, por quinze minutos. Quando quisemos parar, ele disse que não, e tivemos de andar e bater palmas mais um pouco. Em seguida, ele nos fez cantar. Estávamos andando, batendo palmas e cantando. Se mostrávamos vontade de parar, vovô abria as janelas mais um pouco. Olhei para papai e imaginei o que ele estava pensando:

"Vai ser difícil enfrentar esses vizinhos, mas foi a melhor coisa que poderia ter acontecido."

Aí ele começou a cantar com vontade e mais alto do que todos.

Foi um culto inesquecível. No dia seguinte, papai recebeu as primeiras reações dos vizinhos. Ele foi ao banco cuidar de um negócio, e lá, atrás de uma escrivaninha, estava um deles. Papai quis sair depressa, mas ele o chamou:

"Reverendo Wilkerson." O banqueiro convidou-o a entrar para dentro do gradil, e disse: "Como vocês cantaram na sua igreja ontem! Todos estão comentando! Sempre ouvía­mos falar que vocês sabiam cantar bem, e estávamos sempre esperando ouvi-los. Foi a melhor coisa que já aconteceu neste bairro."

Durante os três anos seguintes, aquela igreja foi dominada por um espírito verdadeiro de liberdade e poder, e com isso eu aprendi uma tremenda lição.

"É preciso pregar o Pentecostes", dizia meu avô quando comentava com papai o culto-dos-sapatos-sujos. "Por si só o Pentecostes significa poder e vida. Foi isso que veio à igreja, quando o Espírito Santo desceu."

E vovô continuava, esmurrando a própria mão:

"Quando você tem poder e vida, será robusto, e quando você é robusto, é provável que faça barulho, o que só lhe pode­rá fazer bem, e certamente vai sujar os sapatos."

Para vovô, sujar os sapatos não significava apenas sujar as solas, andando no barro, onde houvesse necessidade, mas tam­bém esfolar os bicos, ao ajoelhar-se.

Vovô era um homem de oração; e nisso toda a família era parecida com ele. Ele ensinou meu pai a ser um homem de oração, e papai por sua vez transmitiu a mim esse grande ensi­namento.

Certa vez, quando vovô estava de passagem, disse-me:

"David, você tem coragem de orar quando está em dificul­dades?"

A princípio pareceu uma pergunta estranha, mas quando vovô insistiu, percebi que ele estava querendo dizer algo im­portante. Eu agradecia a Deus pelas coisas boas que tinha, como meus pais, um bom lar, alimento necessário, educação. Orava, também, num sentido geral e evasivo, para que o Senhor, de alguma maneira, algum dia me escolhesse para fazer o seu ser­viço. Mas orar por algo específico, isso eu raramente fazia.

E o vovô, olhando seriamente para mim, pela primeira vez sem piscar um olho, disse:

"David, quando você aprender a ser específico nas suas ora­ções em público, aí então descobrirá o poder."

Não entendi bem o que ele quis dizer, talvez porque tivesse doze anos de idade, e também porque instintivamente tive medo da idéia. Ser específico em público, ele dissera. Isso significava orar na vista dos outros: "Peço tal coisa". Significava correr o risco de não receber resposta para a oração.

Foi por acidente, num dia horrivelmente inesquecível, que fui forçado a descobrir o que vovô quisera dizer. Durante toda a minha infância, meu pai não gozara de boa saúde, tendo úl­ceras no duodeno e sofrendo dores quase constantes, por mais de dez anos.

Certo dia, voltando da escola, vi uma ambulância passar por mim a grande velocidade, e quando ainda estava a mais de um quarteirão de casa, descobri para onde ela ia. De longe ouvia os gritos de papai.

Um grupo de presbíteros da igreja estava sentado em atitu­de solene na sala, e o médico não permitiu que eu entrasse no quarto onde estava papai, por isso mamãe saiu e conversou comigo no corredor.

— Ele vai morrer, mãe?

Mamãe olhou bem para mim e resolveu contar-me a verda­de:

— O médico diz que talvez viva mais umas duas horas. Nesse instante, papai deu outro grito de dor, e mamãe, co­locando a mão no meu ombro, entrou depressa no quarto.

— Estou aqui, Kenneth, disse ela, enquanto fechava a porta.

Antes, porém, que a porta se fechasse, eu olhei para dentro do quarto e vi por que o médico não quis que eu entrasse: a cama do papai e o chão estavam cobertos de sangue.

Naquele instante, lembrei-me da promessa do vovô.

"Quando você aprender a ser específico nas suas orações em público, você descobrirá o poder."

Por um momento passou-me pela idéia dirigir-me àqueles ho­mens sentados na sala e anunciar que eu estava orando, para que papai levantasse da cama curado. Mas não podia fazê-lo. Mesmo naquela situação desesperadora, eu não podia testar a minha fé, colocando-a num lugar de onde talvez fosse derrubada.

Esquecendo-me das palavras do vovô, corri e escondi-me, querendo fugir de todas as pessoas. Escondi-me no lugar mais escuro e isolado (pensava eu) da casa — o depósito de carvão, e ali orei, tentando superar a falta de fé com o volume de voz, gritando a minha oração.

O que eu não sabia era que estava orando, numa espécie de sistema de alto-falantes. A nossa casa era aquecida por inter­médio de ar quente, e os canos, que tinham o formato de trom­beta, saíam da fornalha que ficava ao lado do depósito de carvão. Minha voz foi levada pelos canos, de modo que os ho­mens da igreja, sentados na sala, de repente, ouviram uma voz fervorosa em oração, sem ver ninguém. O médico no quarto ouviu-a, e meu pai no seu leito de morte, também.

— Traga David aqui, murmurou ele.

Assim, levaram-me para cima, passando diante dos presbíteros que me olharam de modo estranho. Quando entrei no quarto, papai pediu ao Dr. Brown que esperasse no corredor, uns instantes, e quando ele saiu, pediu à mamãe que lesse em voz alta Mateus 21.22. Mamãe abriu a Bíblia e leu a passagem: "E tudo quanto pedirdes em oração, crendo, recebereis".

Sentia-me emocionado.

— Mamãe, podemos tomar posse dessa promessa para o papai, agora?

Assim, enquanto papai jazia inerte na cama, mamãe come­çou a ler a mesma mensagem, repetidas vezes. Leu-a talvez doze vezes, e enquanto lia levantei-me da cadeira e fui até à beira da cama de papai, colocando as mãos na sua testa.

— Jesus, eu orava, Jesus, eu creio na tua palavra. Cura o meu pai!

E fiz ainda mais. Fui até a porta, e abrindo-a, disse em voz bem alta:

— Dr. Brown, pode vir. Eu... (como foi difícil dizê-lo) orei, crendo que o papai vai melhorar.

O médico olhou para toda a sinceridade dos meus doze anos e sorriu, um sorriso simpático, compassivo e totalmente incré­dulo. Mas o sorriso deu lugar, primeiro, a uma expressão de perplexidade e, depois, de assombro, ao curvar-se para exami­nar meu pai.

— Alguma coisa aconteceu, disse ele tão baixinho, que eu quase não podia ouvir.

O médico apanhou seus instrumentos com as mãos trêmu­las e mediu a pressão de papai.

— Kenneth, disse ele, levantando as pálpebras de papai, exa­minando seu abdome e medindo a pressão novamente. Kenneth, como está se sentindo?

— Como se uma nova força percorresse minhas veias.

— Kenneth, disse o médico, acabo de presenciar um mila­gre.

Naquele instante milagroso, papai pôde levantar-se, e eu me livrei de qualquer dúvida a respeito do poder da oração. Dirigindo-me para a fazenda do vovô, tantos anos depois, essa foi uma das recordações que me acompanharam na viagem.

Quando cheguei, constatei com prazer que vovô estava mais lúcido do que nunca. Talvez seus movimentos fossem mais com­passados, mas a mente trabalhava com a mesma agilidade e com a mesma sabedoria penetrante. Ele assentou-se numa ca­deira velha, inclinando-a para trás, ouvindo atentamente en­quanto eu relatava minhas estranhas experiências. Falei quase uma hora, e ele às vezes interrompia para fazer uma pergunta. Terminei a minha história com uma pergunta.

— O que quer dizer isso tudo, vovô? Você crê que eu tive um chamado real para ajudar aqueles meninos que estão sen­do julgados?

— Não, acho que não, disse vovô.

— Mas, tantas coisas... comecei a dizer. Mas ele continuou:

— Penso que aquela porta está fechada, bem fechada. Eu acho, David, que o Senhor não vai permitir que você veja aque­les sete meninos por muito, muito tempo. Eu lhe digo por quê. Se você os vir agora, poderá pensar que a sua responsabilidade entre os adolescentes em Nova Iorque está terminada. E eu acho que há planos maiores para você.

— Como assim?

— Eu sinto, David, que o plano não era que você visse ape­nas sete rapazes, mas milhares de rapazes como aqueles.

Vovô esperou um pouco, para aumentar o efeito das suas palavras; depois continuou.

— Refiro-me a todos os rapazes amedrontados, perplexos e abandonados de Nova Iorque, que talvez cheguem a cometer homicídio como aventura, a não ser que você os ajude. Sinto, David, que o que você tem a fazer é ampliar os seus horizontes.

Vovô tinha um jeito de dizer as coisas que me deixava ani­mado. De repente, desejei voltar à cidade e começar a traba­lhar, em vez de fugir dela o mais depressa possível, como havia sido a minha atitude até então. Disse a vovô o que sentia.

Vovô sorriu e disse:

— É fácil dizer isso sentado aqui na cozinha quentinha do seu avô, mas espere até encontrar mais alguns desses rapazes, antes de pensar em suas visões. Eles estão cheios de ódio e pecado, mais do que você jamais ouviu. São meninos apenas, mas já conhecem o homicídio, o estupro e a sodomia. Como é que você vai lidar com essas coisas, quando encontrá-las?

— Deixe-me responder a minha própria pergunta, David. Em vez de olhar para essas coisas, você tem de manter os olhos fitos no coração do evangelho. E o que é isso?

Olhei bem para ele.

— Já ouvi o senhor falar bastante sobre o assunto, e vou dar-lhe uma resposta de um dos seus próprios sermões. O coração do evangelho é mudança. É transformação. E nascer para uma vida nova.

— Dito assim por você, parece muito simples, David. Espere até ver o Senhor operar essa mudança, e então você terá mais emoção na voz. Mas a teoria é esta. O coração da mensa­gem de Cristo é extremamente simples: um encontro com Deus — um encontro verdadeiro — implica transformação.

Pela atitude de vovô, percebi que nossa entrevista estava chegando ao fim. Levantou-se da sua cadeira devagar e dirigiu-se à porta. Sabendo o quanto ele era dramático, senti que a parte mais importante da nossa conversa começaria agora.

— David, disse vovô com a mão na porta. Ainda estou preo­cupado com você, sobre o seu encontro com a vida nua e crua da cidade. Você teve uma vida protegida. Quando você encon­trar a impiedade encarnada, ficará petrificado.

A essa altura, vovô começou a contar uma história que, a princípio, não parecia ter a mínima relação com o assunto.

— Algum tempo atrás, eu estava andando nas montanhas, quando vi uma serpente enorme. Uma das grandes, David, de cinco centímetros de espessura e um metro de comprimento, deitada ali ao sol, tão asquerosa! Fiquei com medo e por muito tempo não dei nem um passo. Enquanto olhava fixamente para o bicho, vi um milagre. Um novo nascimento. Vi aquela ser­pente despir-se da sua pele e, deixando-a para trás, sair dali uma criatura nova e realmente linda.

— Quando você começar o trabalho na cidade, meu filho, não fique como eu fiquei, petrificado pela aparência exterior dos rapazes. Deus não fica. Ele está apenas esperando que cada um deles saia daquela casca velha de pecado, deixando-a para trás. Ele está esperando ansiosamente que o novo homem apa­reça. Não se esqueça disso, David, quando você se encontrar com as serpentes, como certamente acontecerá, nas sarjetas de Nova Iorque.