terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 04


 Quando voltei ao carro, que ainda estava estacionado na Broadway, Miles já estava preocupado. — Fiquei com medo de você ter se metido em outro caso de homicídio, sendo você a vítima, disse ele.

Quando lhe falei das duas quadrilhas que encontrara uma hora depois de minha chegada a Nova Iorque, Miles apresentou o mesmo pensamento fantástico que também me ocorrera.

— Você está percebendo, naturalmente, que nunca teria tido uma oportunidade de falar-lhes, se não tivesse sido expulso do tribunal e fotografado daquela maneira?

Fomos à cidade, e resolvemos ir pessoalmente ao escritório do promotor de justiça, apenas porque o único caminho para aqueles sete rapazes era por ali, e não porque tínhamos qual­quer ilusão quanto à nossa recepção naquele lugar.

— Gostaria de poder convencê-los de que o único interesse que tenho em ver aqueles rapazes é o bem-estar deles, disse eu.

— Reverendo, mesmo que cada palavra que diz saísse dire­tamente dessa sua Bíblia, ainda assim não poderíamos permitir que visitasse esses rapazes. A única maneira de vê-los, sem a permissão do Juiz Davidson, é conseguir uma permissão assi­nada pelos pais.

Eis que se abria um novo caminho!

— Poderia dar-me seus nomes e endereços?

— Sinto muito, mas isso é impossível.

Saindo de lá, peguei a página já rasgada e amassada daquela revista Life, e verifiquei que o nome do líder da quadrilha era Luis Alvarez. Enquanto Miles ficava novamente no carro, en­trei num bar e troquei cinco dólares — quase todo o dinheiro que nos restava — por fichas telefônicas. Comecei então a tele­fonar a todos os Alvarez que havia na lista telefónica, mais de duzentos, apenas no centro.

"É da residência de Luis Alvarez, o que está sendo julgado pelo assassinato de Michael Farmer?" perguntava.

Silêncio de quem se sente ofendido. Palavras malcriadas. Um fone colocado no gancho com força. Já havia usado qua­renta fichas, e era claro que nunca encontraria os rapazes dessa maneira.

Saí novamente e voltei ao carro. Eu e Miles ficamos desani­mados, sem a mínima idéia do que fazer em seguida. Ali mes­mo no carro, com os arranha-céus de Manhattan elevando-se acima de nós, curvei a cabeça e orei:

"Senhor, se estamos aqui por tua conta, é preciso que nos guies. Chegamos ao fim de nossas humildes idéias; leva-nos aonde devemos ir, porque não sabemos como fazê-lo."

Saímos ao acaso, na direção em que o carro estava virado — para o norte — e logo nos vimos em meio a um engarrafa­mento de trânsito. Quando afinal conseguimos sair de lá, nos perdemos no Central Park. Rodamos a esmo, e tomamos en­tão a primeira saída — apenas para sairmos do parque. Demos numa avenida que levava ao coração do Harlem Espanhol, e de repente senti aquele desejo incompreensível de sair do carro.

— Vamos procurar um estacionamento, disse eu a Miles.

Estacionamos na primeira vaga que encontramos e saí. An­dei um pouco, mas parei sem saber o que fazer. Não sentia mais aquele impulso que me impelia para a frente. Alguns ra­pazes estavam sentados num degrau e eu lhes perguntei:

— Onde mora Luis Alvarez?

Olharam todos para mim com ar carrancudo, e nada responderam. Dei mais alguns passos sem rumo. Daí, um menino negro veio correndo atrás de mim:

— Você procura Luis Alvarez?

— Sim.

Ele me olhou de modo estranho.

— O que está na cadeia por causa do menino aleijado?

— Sim. Você o conhece?

O rapaz ainda me olhava desconfiado.

— Aquele carro é seu? perguntou.

Já estava cansado de perguntas.

— E meu sim; por quê?

O menino riu e disse:

— Puxa, você parou bem em frente à casa dele.

Fiquei arrepiado e apontei para o velho prédio de pequenos apartamentos, em frente ao qual eu parara.

— Ele mora lá? perguntei quase num cochicho.

O garoto acenou que sim. Quantas vezes minha fé vacilou, quando minhas orações não eram respondidas; mas é ainda mais difícil de se acreditar na oração respondida. Pedimos a Deus que nos guiasse, e ele nos havia colocado bem na porta de Luis Alvarez.

— Obrigado, Senhor, disse eu em voz alta.

— O que foi que você disse?

— Obrigado, disse eu, dirigindo-me ao menino. Muito obri­gado, mesmo.

No vestíbulo sujo daquele prédio havia uma caixa para correspondência, indicando que os Alvarez moravam no ter­ceiro andar. Subi as escadas correndo.

O hall do terceiro andar cheirava a urina e poeira, as paredes de cor marrom-escuro eram de lata, onde havia um desenho em alto-relevo.

— Sr. Alvarez? chamei diante de uma porta que ostentava esse nome impresso, em letra de fôrma.

Ouvi uma voz que dizia algo em espanhol, no interior do apartamento, e, esperando ser um convite para que eu entras­se, empurrei a porta e olhei. Vi um homem magro de pele escura, assentado numa enorme cadeira vermelha, segurando um rosário. Ele sorriu quando me viu.

— Você, David, o pregador! disse ele bem devagar. Os sol­dados jogaram você para fora!

— Sim, disse eu, e entrei. O Sr. Alvarez levantou-se.

— Eu oro para você vir; você ajuda meu menino?

— Eu quero muito ajudá-los, Sr. Alvarez, mas não permitem que eu entre para visitar o Luis. Preciso ter permissão por es­crito de você e dos pais dos outros rapazes.

— Isso eu dá.

O Sr. Alvarez pegou lápis e papel da gaveta da cozinha. Com muita dificuldade escreveu que eu teria permissão para visitar Luis Alvarez. Dobrou o papel e o entregou a mim.

— O senhor tem os nomes e endereços dos pais dos outros rapazes?

— Não, disse o pai de Luis, dando-me as costas. Você sabe, o problema é esse, não tenho intimidade com meu filho. Deus, que trouxe você aqui, levará você aos outros.

Foi assim que, apenas alguns minutos depois de parar a esmo na Rua Harlem, eu já tinha a primeira permissão assinada. Saí do apartamento pensando se era possível que Deus houvesse dirigido meu carro a esse endereço, em resposta à oração desse pai. Minha mente procurava outra solução. Quem sabe vira o endereço em algum jornal e o meu subconsciente o guardara.

Mas, ainda enquanto pensava nisso, descendo aquelas escadas escuras, deu-se outro acontecimento que nunca poderia ser ex­plicado como memória subconsciente. Virando-me, depois de um dos lances da escada, colidi com um jovem que subia correndo.

— Desculpe-me, disse eu, sem parar.

O rapaz olhou para mim, resmungou qualquer coisa e já ia continuando, quando eu passei sob uma luz. Aí então, ele pa­rou e olhou-me novamente.

— Pregador?

Virei-me. O rapaz estava olhando atentamente, tentando enxergar melhor naquela escuridão.

— Não é você que foi expulso do julgamento de Luis?

— Sim, eu sou David Wilkerson. O rapaz estendeu a mão.

— Eu sou Angelo Morales, reverendo, e faço parte da qua­drilha de Luis. Você foi visitar a família Alvarez?

— Sim.

Então, contei a Angelo que precisava de permissão paterna para visitar Luis, e de repente vi a mão de Deus no nosso encontro.

— Angelo, disse eu, preciso conseguir a permissão de todos os pais. O Sr. Alvarez não sabe onde moram os outros; você sabe?

Angelo foi por todo o Harlem conosco, mostrando-nos onde moravam os outros seis envolvidos no julgamento do caso de Michael Farmer. Enquanto rodávamos, Angelo nos contou um pouco sobre a sua própria vida. Ele deveria ter estado com aquela turma que "acabara" com Michael Farmer, mas estivera com dor de dente, o que o impediu de sair com eles. Disse que os rapazes não entraram no parque com qualquer intenção es­pecial; estavam apenas "procurando barulho". Se não fosse Farmer, eles estariam numa luta de quadrilhas.

Aprendemos muito com Angelo, e confirmamos muita coi­sa que já suspeitávamos. Os componentes dessa quadrilha — senão de todas — sentiam-se entediados, abandonados e tinham raiva de tudo e de todos. Procuravam emoção e aventuras de qualquer sorte.

Angelo tinha um jeito especial de contar as coisas bem cla­ramente. Era um menino vivo e simpático e queria ajudar-nos. Miles e eu concordamos que, independentemente do resto dos nossos planos, manteríamos contato com Angelo Morales, e mostraríamos a ele um caminho melhor.

Dentro de duas horas conseguimos todas as assinaturas.

Despedimo-nos de Angelo, depois de anotar seu endereço e prometer mantermos contato com ele. Voltamos à cidade com o coração alegre, e até cantamos ao passar novamente pelas dificuldades do tráfego da Broadway.

Fechamos as vidraças e cantamos, com vontade, os velhos hinos evangélicos que co­nhecíamos desde a infância. Os inegáveis milagres que se haviam realizado nessas últimas horas nos davam nova segurança de que quando saíssemos, confiando em Cristo e na sua promessa de nos guiar, todas as portas se abririam.

Nunca pensamos, ao nos dirigirmos para o centro can­tando, que alguns minutos mais tarde, todas as portas se fe­chariam novamente, porque nem com aquelas assinaturas conseguiríamos visitar os sete rapazes.

O oficial de justiça ficou bastante surpreso ao ver-nos de volta tão depressa e, quando apresentamos as assinaturas exigidas, ele olhou-as como alguém que contempla algo im­possível. Telefonou para a prisão e disse que, se os rapazes quisessem nos ver, teriam de nos deixar entrar.

Foi na própria prisão que deparamos com um empecilho estranho e totalmente inesperado. Não foi da parte dos rapa­zes nem dos oficiais, mas de um colega de ministério. O cape­lão da cadeia, sob cujos cuidados estavam, considerou inopor­tuno serem apresentados a outra personalidade.

Todos os ra­pazes assinaram um formulário em que afirmavam: "Quere­mos falar com o Reverendo David Wilkerson". O capelão acres­centou um "Não" ao início da frase, e nenhuma persuasão con­seguiu fazer com que aquela decisão fosse desrespeitada.

Novamente atravessamos a Ponte George Washington — bas­tante perplexos. Por que teríamos recebido ânimo de forma tão dramática, para depois ver tudo dar em nada novamente?

Foi enquanto rodávamos pela estrada da Pensilvânia, tarde da noite, quase na metade do caminho de volta à nossa cidadezinha, que eu vi um raio de esperança naquela escuridão que nos cercava.

— Ah! Já sei! disse eu em voz alta, acordando Miles que cochilava.

— Já sabe o quê?

— Já sei o que vou fazer.

— Ainda bem que já está resolvido, disse Miles enquanto se enrolava e dormia novamente.

O raio de esperança era um homem, um homem notável: o pai de meu pai. A esperança era que ele concordasse em ouvir o meu problema.

— Sabe o que eu acho que você está fazendo? perguntou Gwen enquanto tomávamos uma xícara de chá na cozinha, antes da minha partida para visitar vovô. Acho que você precisa sentir que é parte de uma grande tradição, e não apenas um pobre galho isolado. Acho que você quer ter contato com o passado novamente, e o que é mais, creio que você está certo. Procure voltar ao passa­do tanto quanto puder, David; é disso que você precisa agora.

Eu telefonara para o vovô dizendo que queria vê-lo.

— Pode vir, meu filho, respondeu. Vamos bater um bom papo.

Meu avô tinha setenta e nove anos de idade e não havia perdido a vitalidade. Vovô fora conhecido por toda aquela re­dondeza, quando mais moço. Era descendente de ingleses, ga­leses e holandeses. Era filho, neto e talvez bisneto de pregado­res. A tradição se perde na história primitiva da Reforma Pro­testante, na Europa e nas Ilhas Britânicas. Que eu saiba, desde o dia em que os clérigos começaram a se casar na igreja cristã, existe um Wilkerson no ministério, aliás, um ministério infla­mado.