terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 03


 — Miles, disse eu, depois que rodáramos oitenta quilômetros, você se importa se voltarmos por Scranton? Miles sabia que eu me referia à casa de meus pais, pois moravam nessa cidade. Eu queria, abertamente, chorar um pouco no ombro deles.

Quando chegamos a Scranton, na manhã seguinte, a histó­ria já estava nos jornais. O caso Michael Farmer havia sido bem noticiado pela imprensa, mas já estava perdendo um pou­co do interesse. O aspecto horripilante do assassinato já havia sido explorado, até não restar mais horror que pudesse ser ex­traído dele.

Os detalhes psicológicos, sociológicos e penais do caso, há muito se tinham esgotado. Justamente quando come­çava a faltar novidade, aparece um aspecto grotesco para ani­mar os editores, e os jornais aproveitaram-no ao máximo.

Estávamos já nos limites de Scranton, e ainda não me passa­ra pela cabeça qual seria a atitude de meus pais diante disto tudo. Estivera ansioso para vê-los, como uma criança com um machucado; mas agora que já estava chegando, a idéia não me pareceu mais tão interessante. Afinal o nome que eu expusera ao ridículo era deles também.

— Talvez eles não tenham visto a notícia ainda, disse Miles, quando entramos no portão.

Mas já haviam visto, sim! Na mesa da cozinha estava um jornal aberto na página do relato do jovem pregador, de olhos arregalados, e Bíblia em punho, que havia sido expulso do jul­gamento do homicídio de Michael Farmer.

Papai e mamãe receberam-me com algo que se aproximava de formalidade.

— David, disse mamãe, que... surpresa agradável!

— Como vai, filho? disse papai.

Sentei-me. Miles, muito discretamente, disse que iria dar "uma voltinha", sabendo que esses primeiros minutos deveriam ser mais reservados.

— Eu sei o que estão pensando, apontei para o jornal. Não é preciso dizer nada, eu o direi. Como vamos encarar o mundo depois disso?

— Bem, filho, disse papai, não é por nós. É a igreja; e você, naturalmente. Sabe que pode perder a sua posição.

Reconhecendo a sua preocupação por mim, calei-me.

— O que vai fazer quando voltar a Philipsburg, David? per­guntou mamãe.

— Não pensei nisso ainda.

Mamãe foi até à geladeira e tirou um litro de leite.

— Você se importa se eu lhe der um conselho? perguntou ela, dando-me um copo de leite. (Ela estava sempre querendo fazer-me engordar.)

Geralmente quando mamãe queria dar algum conselho não se preocupava em pedir permissão, mas dessa vez esperou com o litro ainda na mão, até que eu respondesse afirmativamente. Era como se reconhecesse que essa era uma luta que eu teria de travar sozinho, e que talvez não quisesse conselhos de mãe.

— Quando voltar para casa, David, não se apresse em dizer que estava errado. O Senhor trabalha de maneiras misteriosas, para executar as suas maravilhas. E possível que isso tudo seja parte de um plano que você ainda não pode ver. Sempre acredi­tei no seu bom senso.

* * *

 

Durante toda a viagem a Philipsburg eu pensei no que ma­mãe dissera. Que bem poderia advir de um fiasco como esse?

Levei Miles à sua casa, depois fui para a minha, passando pelas ruas menos movimentadas. Se é possível entrar furtiva­mente na própria casa, com algo tão grande e barulhento como um carro, foi isso que eu fiz. Fechei a porta da garagem sem fazer barulho, e entrei quase que na ponta dos pés, na sala de minha casa. Lá estava Gwen.

Ela correu para mim, abraçou-me e disse:

— Pobre David!

Depois de muito tempo juntos, a sós, foi que ela me per­guntou o que acontecera.

Contei-lhe com detalhes tudo o que acontecera, desde que nos vimos pela última vez, até a idéia de minha mãe de que talvez não fora erro da minha parte.

— Mas vai ser difícil convencer esta cidade disso, David. O telefone não pára de tocar.

E continuou a tocar por muitos dias. Uma das autoridades lo­cais telefonou para passar-me uma descompostura. Companhei­ros de ministério não se acanharam de me dizerem que eu estava procurando publicidade barata.

Quando finalmente tive a cora­gem de andar na cidade, todos paravam para me olhar. Certo comerciante que estava sempre querendo atrair mais negócios para a cidade, apertou-me a mão e, batendo nas minhas costas, disse:

"Muito bem, reverendo, você colocou mesmo a velha Philips­burg no mapa!"

Mas o mais difícil foi enfrentar a congregação no primeiro domingo. Foram corteses — e silenciosos. Do púlpito, naquela manhã, tentei explicar o problema da melhor maneira possível.

"Eu sei que vocês devem estar pensando muita coisa", disse eu, dirigindo-me a 200 pessoas que pareciam ser de pedra. "Primeiramente, vocês sentem por mim, o que eu aprecio. Mas, sem dúvida, devem estar pensando: "Que espécie de egoísta temos como pastor, um homem que pensa que o seu menor capricho é uma ordem de Deus!" Dou-lhes toda razão, pois aparentemente confundi a minha própria vontade com a de Deus. Fui humilhado e rebaixado. Talvez isso tenha aconteci­do para me dar uma lição. No entanto vamos nos perguntar sinceramente: Se é verdade que a tarefa da humanidade sobre a Terra é cumprir a vontade de Deus, não é de se esperar que, de alguma maneira, ele revelará qual seja essa vontade?"

Ainda as mesmas fisionomias de pedra. Nenhuma resposta. Não estava defendendo muito bem a minha idéia de orientação divina.

Mesmo assim foram todos muito bondosos. A maioria disse que pensava que eu agira como tolo, mas achava que minhas intenções eram boas. Uma amável senhora disse:

"Mesmo que ninguém mais o queira, nós ainda o queremos."

Após falar essas palavras, ficou meio sem graça e passou mui­to tempo explicando que não era bem isso o que queria dizer.

Depois aconteceu uma coisa estranha.

Nas minhas horas de oração noturna, um determinado versículo estava constantemente nos meus pensamentos: "Sabemos que to­das as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito" (Rm 8.28).

Vinha com grande poder e uma sensação de confirmação, embora conscientemente eu não sentisse nenhuma segurança. Mas junto com o versículo vinha uma idéia tão absurda que, por várias noites, bani-a de minha mente, tão logo aparecia.

Volte a Nova Iorque.

Depois de três noites em que não consegui banir a idéia do pensamento — pelo contrário, continuava tão persistente como da primeira vez — resolvi enfrentá-la. Dessa vez estava disposto.

Para começar, Nova Iorque não era uma cidade com a qual eu simpatizava; não gostava mesmo de lá, e não estava preparado para a vida naquele lugar. E ficava evidente em cada atitude mi­nha ignorância. O nome "Nova Iorque" passou a ser para mim um símbolo de frustração. Seria errado, de qualquer ponto de vista, deixar Gwen e as crianças novamente. Não iria viajar oito horas para ir e oito para voltar, apenas pelo privilégio de me fazer de bobo novamente. Voltar à congregação e pedir-lhes dinheiro, estava completamente fora de cogitação. Esses fazendeiros e mi­neiros já estavam dando mais do que deveriam. Como explicar a eles uma coisa que eu também não compreendia?

Não conseguia entender essa nova ordem de voltar ao lugar da minha derrota anterior. Não teria uma chance melhor de ver aqueles meninos; pelo contrário, teria menos oportunidade ainda, porque agora era conhecido pela polícia, como um lunático. Nada, nada, faria com que eu voltasse à congregação com tal sugestão.

No entanto, tão persistente foi a idéia, que na quarta-feira seguinte levantei-me e pedi à congregação que me desse mais dinheiro para voltar a Nova Iorque. A resposta dos membros da igreja foi de fato surpreendente.

Um por um, levantaram-se, foram à frente e colocaram sua oferta na mesa da ceia. Dessa vez, havia muito mais pessoas na igreja, talvez umas 150, mas o interessante é que a oferta foi quase exatamente igual à anterior. Depois de contarmos todas as notas miúdas, e uma ou outra maior, havia justamente o necessário para voltarmos a Nova Iorque. Setenta dólares.

Na manhã seguinte, Miles e eu estávamos a caminho, às seis horas da manhã. Fomos pelo mesmo itinerário, paramos no mesmo posto de gasolina, passamos pela ponte e entramos em Nova Iorque. Atravessando a ponte, eu orei:

"Não tenho a mínima idéia por que tu permitiste que acon­tecesse o que ocorreu na semana passada, nem por que estou voltando para esta confusão. Não peço que me reveles os teus propósitos; apenas que guies os meus passos."

Novamente passamos pela Broadway e fomos para o sul, pelo único caminho que conhecíamos. Estávamos andando devagar, quando de repente tive a sensação incrível de que de­veria descer do carro.

— Vou procurar um lugar para estacionar, disse a Miles. Quero andar um pouco.

Achamos logo um lugar vago.

— Volto já, já, Miles; nem sei o que estou procurando. Deixei Miles no carro e comecei a andar. Não dei muitos passos quando ouvi uma voz:

— Oi, David!

Não virei primeiramente porque pensei que era algum ra­paz chamando um colega, mas ouvi novamente.

— Oi, David! Pregador!

Dessa vez olhei. Seis rapazes estavam encostados num edifí­cio, logo abaixo de uma placa que dizia: "É proibido demorar-se neste local". Estavam com calças de cano fino e casacos de zíper. Todos fumavam, menos um, e todos pareciam indiferentes.

O sétimo se separara do grupo e vinha em minha direção. Estava sorrindo e eu gostei do seu sorriso.

— Você não é o pregador que foi expulso do julgamento do caso Michael Farmer?

— Sim. Como é que você sabe?

— Sua fotografia estava em todos os jornais, e o seu rosto não é difícil de lembrar.

— Bem, obrigado!

— Não foi um elogio.

— Você sabe o meu nome, mas eu não sei o seu.

— Sou Tomé, presidente dos Rebeldes.

Perguntei a Tomé, presidente dos Rebeldes, se aqueles ra­pazes, encostados perto do aviso que proibia vadiagem eram seus amigos. Ele disse que sim, e ofereceu-se para apresentá-los. Continuaram com suas fisionomias indiferentes, até que Tomé contou-lhes que eu já tivera uma briga com a polícia.

Foi como mágica. Era minha carta branca com eles, e Tomé apre­sentou- me com grande orgulho.

— Ei, rapazes, disse ele, olhem aqui o pregador que foi ex­pulso do julgamento do caso Farmer.

Um por um os rapazes se desgrudaram da parede do prédio e vieram inspecionar-me. Apenas um não se mexeu. Abriu um canivete e começou a escrever, com ele, um palavrão, junto ao aviso que proibia se demorar naquele local. Enquanto conver­sávamos, duas ou três meninas também chegaram.

Tomé perguntou acerca do julgamento, e contei-lhes que estava interessado em ajudar adolescentes, principalmente os das quadrilhas. Todos, menos o que escrevia, ouviam-me aten­tamente, e vários deles disseram que eu era "um dos nossos".

— O que vocês querem dizer com isso? perguntei.

  A lógica deles era simples. A polícia não gostava de mim; a polícia não gostava deles. Estávamos na mesma situação; e, portanto, eu era um deles. Foi a primeira vez, mas certamente não foi a última que me apresentaram essa lógica. Momenta­neamente revivi aquela cena em que os policiais me arrasta­vam para fora daquela sala, mas agora via-a com outros olhos. Fiquei arrepiado como sempre me acontece quando sinto os perfeitos desígnios de Deus.

Não tive mais tempo de pensar nisso, pois o rapaz que segu­rava a faca chegou mais perto. Suas palavras ditas na lingua­gem própria de um rapaz de rua cortaram o meu coração mui­to mais do que poderia ter feito o seu enorme canivete.

— David, disse o menino.

Sacudiu os ombros para acomodar o paletó, e eu observei que, quando ele fez isso, outros rapazes se afastaram um pou­co. Deliberadamente, ele abriu e fechou o seu canivete várias vezes. Afinal, abriu-o e, calmamente, passou-o pela frente do meu paletó, batendo em cada um dos botões. Não disse ne­nhuma palavra, até chegar ao fim desse seu pequeno ritual.

— David, disse ele afinal, aceito você, mas se algum dia, David, você se colocar contra a turma desta cidade...

Senti a ponta da faca sendo espetada levemente na minha barriga.

— Qual é o seu nome, rapaz?

Era José, mas foi outro rapaz quem o disse.

— José, não sei por que Deus me trouxe a esta cidade, mas quero dizer-lhe uma coisa. Ele está do seu lado, isso posso lhe afirmar.

José me olhava fixamente, mas devagar senti que a pressão sobre a faca diminuía, até que afinal ele a tirou e desviou o olhar.

Habilmente Tomé mudou de assunto.

— David, se você quer conhecer os membros das quadri­lhas, por que não começa aqui mesmo? Estes camaradas aqui são todos Rebeldes, mas posso apresentá-lo a alguns GGU tam­bém?

— GGU?

— Grandes Gângsteres Unidos.

Meia hora depois de minha chegada a Nova Iorque, eu já estava sendo apresentado à segunda quadrilha das ruas. Tomé deu-me instruções quanto às ruas pelas quais deveria passar, mas eu não conseguia entendê-lo.

— Puxa, mas você é mesmo um caipira, hein!

— Nancy! disse ele, chamando uma das moças que estavam ali perto. Leve o pregador até os GGU, viu?

Os GGU se reuniam num porão da Rua 134. Para chegar ao seu "clube", Nancy e eu descemos por uma escadaria de ci­mento, passando por latas de lixo acorrentadas ao prédio, gatos magros de pêlo duro e imundo, e um monte de garrafas de vodca, até que, afinal, Nancy parou e bateu duas vezes depres­sa e quatro devagar, numa porta.

Uma mocinha abriu-a, e, a princípio, pensei que ela estava brincando. Era o tipo perfeito de uma pessoa vagabunda. Estava descalça, trazia uma latinha de cerveja na mão e um cigarro pendurado no canto da boca. O cabelo estava despenteado e o vestido caído de um dos ombros, de maneira provocadora. Duas coisas me impediram de rir. A fisionomia dessa menina não mostrava sinais de quem está brincando; e segundo, era uma criança, uma simples adolescente.

— Maria? disse Nancy. Podemos entrar? Quero que você conheça um amigo.

Maria sacudiu o ombro — aquele que sustentava o vestido — e abriu mais a porta. O lugar estava escuro, e demorou um pouco para que eu percebesse que estava cheio de casais. Rapa­zes e moças, todos adolescentes, se entrelaçavam nesse local frio e malcheiroso, e eu reconheci, de repente, que Tomé esta­va certo — eu era mesmo um caipira — não fora Maria quem tinha tirado os próprios sapatos, nem puxado o vestido.

Alguém ligou uma luz de boate, e os pares se desenlaçaram deva­gar, olhando para mim com aquele mesmo ar de monotonia que havia percebido nos Rebeldes.

— Este é o pregador que foi expulso do julgamento do caso Farmer, disse Nancy.

Imediatamente, deram-me toda atenção e, mais do que isso, sua simpatia. Naquela tarde tive a oportunidade de pregar o pri­meiro sermão a uma quadrilha nova-iorquina.

Naturalmente nem tentei transmitir-lhes uma mensagem complexa, apenas disse que eram amados! Eram amados, mesmo entre as garrafas de vodca, e na busca da satisfação ilusória do sexo. Deus compreendia o que estavam procurando, quando bebiam ou brincavam com o sexo, e ansiava dar-lhes o que procuravam: estímulo, bem-estar e a sensação de serem amados. Mas Deus tinha esperanças mui­to mais altas para todos eles; queria dar-lhes tudo o que eles nunca conseguiriam através de uma garrafa num porão frio.

Quando fiz uma pausa, um rapaz disse:

— Continue, pregador. Você está acertando na mosca! Era a primeira vez que ouvia essa expressão. Significava que eu estava alcançando seu sentimento mais íntimo, e era o mai­or elogio que me poderiam ter feito.

Teria saído daquele esconderijo meia hora mais tarde gran­demente animado, se não fosse o meu primeiro encontro com narcóticos. Maria — fiquei sabendo depois, que ela era presi­dente das gatas da GGU, a quadrilha feminina aliada aos GGU — interrompeu-me, quando disse que Deus poderia ajudá-los a alcançar uma nova vida.

— Eu não, David, eu não.

Maria largou a cerveja e puxou o vestido de volta para o ombro.

— E por que você não, Maria?

Em vez de responder, ela levantou a manga do vestido e mostrou-me o braço à altura do cotovelo, do lado interno. Não entendi.

— Não sei o que está dizendo, Maria.

— Venha cá.

Maria foi até a luz e mostrou-me o braço novamente. Esta­va cheio de ferimentos como picadas de pernilongo, infeccio­nadas. Algumas já antigas e azuis, outras recentes e lívidas. Ime­diatamente entendi que essa mocinha estava tentando me di­zer que era viciada em narcóticos.

— Eu tomo picadas na veia, David. Não há esperança para mim, nem mesmo da parte de Deus.

Olhei para os outros, para averiguar se ela estava sendo melodramática, mas nenhum deles sorria. Naquela rápida olha­da para os rostos daquelas crianças, aprendi o que veria mais tarde em estatísticas policiais e relatórios de hospitais: a medi­cina não tem cura para viciados em drogas. Maria expressara a opinião dos entendidos: não há esperança para o viciado que injeta heroína diretamente na corrente sanguínea.

Maria era uma dessas pessoas.