A gasolina estava no fim, por isso paramos num posto, um
pouco antes da ponte. Enquanto Miles ficou no carro, eu peguei o artigo da Life
e fui a uma cabine telefonar para o promotor de justiça, cujo nome estava
no artigo. Quando finalmente transferiram a ligação para o seu escritório,
tentei dar-lhe a impressão de um pastor cheio de dignidade, ocupado numa missão
divina, mas ele não ficou impressionado.
"O promotor público não aceitará a mínima interferência
nesse caso. Um bom-dia para o senhor!"
E assim dizendo, desligou o telefone.
Fiquei ali, perto de uma pirâmide de latas de óleo, tentando
captar novamente o sentimento de minha missão. Estávamos longe de casa, era
quase noite. Cansaço, desânimo e um certo medo apoderaram-se de mim. Sozinho
ali, na boca da noite, depois de experimentar esse malogro que, aliás, era de
se esperar, a orientação que eu recebera na segurança de minha casinha nas
montanhas não parecia tão convincente.
— Ei, David. Era Miles que chamava. Estamos interrompendo a
saída aqui.
Saímos para a estrada novamente. Num instante estávamos sendo
levados por uma gigantesca correnteza de tráfego. Mesmo que quiséssemos não
poderíamos ter voltado. Nunca vira tantos carros, e todos com pressa! Rodeavam-me,
buzinavam, e os breques dos enormes caminhões assobiavam.
Que visão espantosa oferecia aquela ponte! Um rio de luzes
vermelhas à direita — dos carros que iam à frente — e o clarão forte dos carros
que vinham. Ao fundo, a silhueta dos arranha-céus subindo dentro da noite.
Reconheci de repente que eu era mesmo bastante rústico.
— E agora, o que faremos? perguntei a Miles, quando atravessamos
a ponte, onde uma porção de setas apontavam para diferentes vias, cujos nomes
nada significavam para nós.
— Quando em dúvida, disse Miles, acompanhe o carro da frente.
Acontece que o carro da frente ia para a parte superior de
Manhattan. Nós também fomos.
— Olhe, disse Miles, depois de passarmos por dois sinais
vermelhos e quase atropelar um guarda, que ficou a menear a cabeça, depois que
passamos. Este nome eu conheço! Broadway!
O nome conhecido dessa rua pareceu-nos um rosto amigo, no
meio da multidão. Seguimos pela Broadway, passando por ruas numeradas que
desciam de mais de 200 até menos de 50, e de repente estávamos em Times Square.
Pensávamos nas noites calmas de Philipsburg, enquanto Miles lia os cartazes na
frente dos prédios: Segredos Nus, Amor sem Amor, Garota da Noite, Vergonha. Um
grande letreiro luminoso na frente de um teatro dizia "Apenas Para Adultos",
enquanto um homem de uniforme vermelho tentava manter em ordem um grupo de
crianças irrequietas.
Alguns quarteirões à frente, chegamos a Macy"s, depois
Gimbels. Senti-me mais animado diante das grandes lojas. Aqui estavam mais
nomes conhecidos. Gwen fazia pedidos a essas lojas; aliás, as meias de lã que
ela me fizera prometer trazer, foram compradas na Gimbels, penso eu. Era um
ponto de contato com o conhecido. Eu queria ficar perto dessas lojas.
— Vamos procurar um hotel por aqui, sugeri.
Do outro lado da rua estava o Hotel Martinique, e resolvemos
ficar ali mesmo. Depois surgiu o problema de estacionamento. Havia um local em
frente ao hotel, mas quando o porteiro disse: "Dois dólares pela estadia
durante a noite", dei marcha a ré rapidamente.
— É porque somos de fora, disse a Miles, enquanto saía com o
que esperava ser uma velocidade descabida. Eles pensam que podem fazer o que
querem com pessoas do interior.
Meia hora mais tarde estávamos de volta ao mesmo local.
"Muito bem, você ganhou", disse eu ao homem, que não sorriu.
Logo depois estávamos no nosso quarto, no décimo segundo
andar do Martinique. Fiquei à janela muito tempo, vendo o movimento da rua,
observando os carros e as pessoas que passavam. De vez em quando um vento mais
forte carregava nuvens de lixo e pedaços de jornal. Cinco jovens rodeavam uma
fogueirinha do outro lado da rua. Estavam dançando na noite fria, as mãos
estendidas para o fogo, tramando, sem dúvida, alguma aventura. Peguei novamente
a página da Life que estava no meu bolso, e imaginei, como alguns meses
antes, sete outros, parecidos com esses, entraram cheios de ódio e tédio no
Parque Highbridge.
— Vou telefonar para o escritório do promotor de justiça
novamente, disse eu a Miles.
Surpreendentemente, ainda estava aberto. Sabia que estava
sendo inconveniente, mas não conhecia outra maneira de me aproximar daqueles
meninos. Telefonei mais duas vezes, e finalmente, na terceira vez, consegui
fazer com que me dessem alguma informação.
— Olhe, disseram-me rispidamente, a única pessoa que pode lhe
dar permissão para ver esses meninos é o próprio Juiz Davidson.
— Como posso ver o Juiz Davidson?
A resposta foi dada numa voz entediada:
— Ele estará presente ao julgamento amanhã cedo. Rua do Fórum,
número 100. Agora, boa noite, reverendo. Por favor, não telefone para aqui
novamente; não podemos ajudá-lo.
Tentei mais um telefonema, dessa vez, para o Juiz Davidson,
mas a telefonista disse que sua linha fora desligada. Sentia muito, não havia a
menor possibilidade de fazer a ligação.
Fomos deitar, mas eu, pelo menos, não dormi. Para os meus
ouvidos acostumados ao silêncio do campo, cada barulho da grande cidade parecia
ameaçador. Passei as longas horas daquela noite imaginando o que estaria
fazendo ali, e dando graças porque, fosse o que fosse, não poderia me segurar
por muito tempo naquela cidade.
Logo depois das 7:00h nos levantamos, vestimo-nos e saímos.
Não tomamos café. Sentíamos instintivamente que iríamos enfrentar uma crise, e
que esse pequeno jejum nos deixaria mental e fisicamente mais alertas.
Se tivéssemos alguma experiência de como nos locomovermos na
cidade de Nova Iorque, teríamos ido de metrô até o centro da cidade.
Entretanto, inexperientes como éramos, tiramos o carro do estacionamento,
pedimos informações de como chegar à Rua do Fórum, e novamente pegamos a
Broadway.
Chegando ao local, verificamos que era um prédio de proporções
gigantescas e amedrontadoras, ao qual acorre grande número de pessoas que,
tendo alguma questão contra alguém, querem justiça. Todos os dias dirigem-se
para lá centenas de indivíduos que têm negócios ali, mas igualmente
espectadores curiosos e desagradáveis são atraídos, porque querem partilhar —
sem perigo — da fúria reinante. Um homem se destacava, naquele dia, pelos seus
comentários, enquanto esperávamos do lado de fora da sala do tribunal onde o
caso Michael Farmer teria prosseguimento.
"A cadeira elétrica é boa demais para eles", dizia
para o público em geral.
Depois, dirigindo-se ao guarda uniformizado que vigiava a
porta trancada, continuou:
"É preciso dar-lhes uma lição! Esses vagabundos
miseráveis!"
O guarda enfiou os polegares no cinturão e deu as costas ao
homem, como se houvesse aprendido há muito tempo que essa era a única defesa
contra os autonomeados guardiões da justiça. Quando chegamos, às 8:30h, havia
quarenta pessoas na fila, esperando a hora de entrar na sala. Mais tarde,
descobri que havia quarenta e dois lugares disponíveis ao público.
Muitas vezes fico imaginando que, se tivéssemos tomado café,
tudo o que aconteceu depois daquela manhã de 28 de fevereiro de 1958, teria
tomado um rumo bem diferente.
Durante uma hora e meia ficamos em pé, sem pensar em sair,
porque havia outros esperando uma chance de tomar os nossos lugares. Quando um
oficial de justiça passou por nós, perguntei-lhe, apontando para uma porta um
pouco adiante no corredor:
"Aquele é o gabinete do Juiz Davidson?" Ele acenou
afirmativamente. "Seria possível falar com ele?"
O homem olhou para mim e riu. Nem me respondeu, apenas deu
uma risadinha desdenhosa e continuou o seu caminho. Lá pelas 10:00h, um guarda
abriu as portas da sala do tribunal, e entramos todos num vestíbulo onde fomos
revistados. Eu supunha que estavam à procura de armas.
"Ameaçaram a vida do juiz", disse o homem à minha
frente, enquanto nos examinavam. "A quadrilha dos Dragões disse que o
pegaria no Tribunal."
Eu e Miles ocupamos os dois últimos lugares. Logo verifiquei
que ficara ao lado do homem que pensava que a justiça devia ser executada com
mais rapidez.
"Esses meninos já deveriam estar mortos, você não
acha?" disse ele, dirigindo-se a mim, mesmo antes de nos sentarmos;
depois, voltando-se, fez a mesma pergunta ao que estava do outro lado, sem
esperar minha resposta.
Fiquei surpreso com o tamanho da sala. Esperava ver um salão
imponente com centenas de lugares. Talvez eu tenha recebido essa idéia através
de Hollywood. Na realidade, metade da sala estava ocupada pelo pessoal da
própria corte de justiça, um quarto pela imprensa, e apenas uma pequena parte
atrás era reservada ao público.
Meu amigo da direita fazia comentários constantes do que
acontecia. Um grupo grande se dirigiu para a frente, e fui informado de que
eram os advogados escolhidos pelo Estado.
"Vinte e sete", continuava meu companheiro.
"Fornecidos pelo Estado. Ninguém mais queria defender essa ralé. Além
disso, não têm dinheiro. Filhos de espanhóis, sabe?"
Eu não sabia, mas não fiz nenhum comentário.
"Eles tiveram de pleitear inocência. É lei estadual para
homicídios de primeiro grau. Deveriam pegar a cadeira elétrica, todos."
Depois entraram os meninos.
Não sei o que eu esperava. Homens, talvez. Afinal era um
julgamento por homicídio e, na realidade, eu não conseguia imaginar que
crianças pudessem cometer homicídio. Mas eram crianças! Sete crianças meio
corcundas, magricelas e apavoradas, sendo julgadas por um crime hediondo.
Estavam algemadas, cada uma a um guarda, e aos meus olhos parecia que esses
policiais eram extraordinariamente robustos, como se escolhidos de propósito,
pelo contraste que apresentavam.
Os sete rapazes foram conduzidos para o lado esquerdo da
sala, e, depois que se assentaram, as algemas foram tiradas.
— Isso mesmo. E assim que devem ser tratados, continuava o
meu companheiro. Todo o cuidado é pouco com gente desse tipo. Deus! Como odeio
esses rapazes!
— Parece que Deus é o único que não os odeia, disse eu.
— O qu...?
Alguém estava martelando a mesa, exigindo ordem, enquanto
entrava o juiz, a passos rápidos, e todos se levantavam.
Assisti a tudo em silêncio, mas o meu companheiro continuava
com os seus comentários. Ele se expressava tão enfaticamente que várias vezes
algumas pessoas olharam para trás.
Uma menina era uma das testemunhas.
— É a "gata" da quadrilha, fui informado pelo meu
vizinho.
Gata é uma prostituta adolescente.
Mostraram uma faca à menina, perguntando se ela a reconhecia.
Confessou que era a faca da qual limpara sangue na noite do crime. Levou a
manhã toda para conseguir essa simples afirmação.
E de repente estava tudo terminado. Esse final abrupto
pegou-me de surpresa — o que talvez explique em parte o que aconteceu a seguir.
Não tive tempo de pensar no que iria fazer.
Vi o Juiz Davidson levantar-se e dizer que a sessão estava
suspensa. Na minha mente via-o passar por aquela porta e desaparecer para
sempre. Pareceu-me que, se eu não falasse com ele naquele momento, nunca mais
teria outra oportunidade.
— Vou falar com ele, disse baixinho a Miles.
— Você está ficando louco!
— Se eu não for...
O juiz estava juntando suas coisas, preparando-se para sair
da sala. Com uma rápida oração peguei a Bíblia na mão direita, esperando que
ela me identificasse como pastor, empurrei Miles para um lado, e corri para a
frente da sala!
— Vossa Excelência! gritei.
O juiz virou-se depressa, irritado e indignado com o rompimento
do protocolo da corte.
— Vossa Excelência, por favor, respeite-me como pastor e
permita-me uma audiência.
A essa altura os guardas me alcançaram. Talvez por ter sido
ameaçada a vida do juiz, foram tão rudes e severos comigo. Dois deles me
pegaram, um de cada lado, e quase me carregaram para a saída, enquanto houve
uma correria geral entre os representantes da imprensa, e os fotógrafos se
empurravam para conseguir fotos.
Saindo da sala, os guardas me entregaram a outros dois que
estavam no vestíbulo.
— Fechem as portas, disse um oficial. Ninguém deve sair.
Depois, voltando-se para mim, perguntou:
— Muito bem, senhor. Onde está o revólver? Assegurei-lhe de
que não estava armado, mas fui revistado novamente.
— Quem estava com você? Quem mais está aí?
— Miles Hoover, presidente da nossa mocidade. Trouxeram
Miles. Ele estava branco e tremia, mas eu acho que de raiva e vergonha, não de
medo.
Alguns fotógrafos conseguiram entrar na saleta, enquanto a
polícia nos interrogava. Mostrei meus documentos à polícia, provando que eu era
de fato um pastor ordenado. Discutiam entre si sobre que acusação fazer a meu
respeito, e o sargento resolveu saber qual era a vontade do Juiz Davidson.
Depois que ele saiu, os repórteres começaram a interrogarmos:
De onde éramos? Por que tínhamos feito isso? Fazíamos parte dos Dragões?
Havíamos roubado esses documentos, ou eram forjados?
O sargento voltou, dizendo que o juiz não quis fazer nenhuma
acusação, e que me deixariam partir se prometesse nunca mais voltar.
— Não se preocupem, disse Miles. Ele não voltará.
Levaram-me bruscamente até o corredor. Ali, um semicírculo
de fotógrafos estava à espera, com suas máquinas prontas. Um deles dirigiu-se a
mim:
— Ei, reverendo. Que livro é esse na sua mão?
— Minha Bíblia.
— Tem vergonha dela?
— Claro que não.
— Não? Então por que a esconde? Levante-a para que possamos
vê-la.
Na minha ingenuidade, levantei-a, e ouviu-se o estalar dos flashes.
Imediatamente compreendi o que estavam fazendo, e como sairia a notícia nos
jornais: Um pregador com cabelo desalinhado, vindo do interior, acenando com a
Bíblia, interrompe um julgamento de homicídio!
Um, apenas um, dos repórteres foi mais objetivo. Era Gabe
Pressman, do noticiário da NBC. Fez algumas perguntas sobre o porquê do meu
interesse em rapazes que haviam cometido um crime tão hediondo.
— Você já olhou para o rosto desses meninos?
— Sim, claro.
— E ainda me faz essa pergunta? Gabe Pressman sorriu
ligeiramente.
— Bem, entendo o que quer dizer. Pelo menos, reverendo, você
é diferente dos curiosos.
É claro que eu era diferente. Diferente o bastante, para pensar
que tinha recebido ordens divinas, enquanto o que fazia era papel de bobo.
Diferente a ponto de trazer essa vergonha sobre a minha igreja, minha cidade e
minha família.
Logo que conseguimos sair, fomos apressadamente ao local de
estacionamento, onde o nosso carro havia ganho mais uma conta de dois dólares.
Miles não disse nem uma palavra. Logo que entrei no carro e fechei a porta,
abaixei a cabeça e chorei por vinte minutos.
— Vamos para casa, Miles. Vamos sair daqui.
Passando novamente pela Ponte George Washington, voltei-me
para ver a silhueta dos prédios de Nova Iorque. Lembrei-me subitamente do Salmo
que nos dera tanto conforto: "Os que com lágrimas semeiam, com júbilo
ceifarão".
Que espécie de orientação fora aquela? Começava a duvidar da
existência de direções claras, da parte de Deus.
Como enfrentar minha esposa, meus pais, minha igreja? Dissera
à congregação que Deus tocara em meu coração, e agora deveria voltar e
dizer-lhes que eu me enganara e que não conhecia a vontade de Deus de jeito
nenhum.