terça-feira, 8 de junho de 2021

A cruz e o punhal - capítulo 02


 Chegamos aos arredores da cidade de Nova Iorque pela Rota 46, que liga a estrada de Nova Jersey à Ponte George Washington. Continuava tentando organizar as idéias. O que iria fazer quando chegasse ao outro lado da ponte? Não sabia.

A gasolina estava no fim, por isso paramos num posto, um pouco antes da ponte. Enquanto Miles ficou no carro, eu pe­guei o artigo da Life e fui a uma cabine telefonar para o pro­motor de justiça, cujo nome estava no artigo. Quando final­mente transferiram a ligação para o seu escritório, tentei dar-lhe a impressão de um pastor cheio de dignidade, ocupado numa missão divina, mas ele não ficou impressionado.

"O promotor público não aceitará a mínima interferência nesse caso. Um bom-dia para o senhor!"

E assim dizendo, desligou o telefone.

Fiquei ali, perto de uma pirâmide de latas de óleo, tentando captar novamente o sentimento de minha missão. Estávamos longe de casa, era quase noite. Cansaço, desânimo e um certo medo apoderaram-se de mim. Sozinho ali, na boca da noite, depois de experimentar esse malogro que, aliás, era de se esperar, a orientação que eu recebera na segurança de minha casi­nha nas montanhas não parecia tão convincente.

— Ei, David. Era Miles que chamava. Estamos interrompen­do a saída aqui.

Saímos para a estrada novamente. Num instante estávamos sendo levados por uma gigantesca correnteza de tráfego. Mes­mo que quiséssemos não poderíamos ter voltado. Nunca vira tantos carros, e todos com pressa! Rodeavam-me, buzinavam, e os breques dos enormes caminhões assobiavam.

Que visão espantosa oferecia aquela ponte! Um rio de luzes vermelhas à direita — dos carros que iam à frente — e o clarão forte dos carros que vinham. Ao fundo, a silhueta dos arranha-céus subindo dentro da noite. Reconheci de repente que eu era mesmo bastante rústico.

— E agora, o que faremos? perguntei a Miles, quando atra­vessamos a ponte, onde uma porção de setas apontavam para diferentes vias, cujos nomes nada significavam para nós.

— Quando em dúvida, disse Miles, acompanhe o carro da frente.

Acontece que o carro da frente ia para a parte superior de Manhattan. Nós também fomos.

— Olhe, disse Miles, depois de passarmos por dois sinais vermelhos e quase atropelar um guarda, que ficou a menear a cabeça, depois que passamos. Este nome eu conheço! Broadway!

O nome conhecido dessa rua pareceu-nos um rosto amigo, no meio da multidão. Seguimos pela Broadway, passando por ruas numeradas que desciam de mais de 200 até menos de 50, e de repente estávamos em Times Square. Pensávamos nas noi­tes calmas de Philipsburg, enquanto Miles lia os cartazes na frente dos prédios: Segredos Nus, Amor sem Amor, Garota da Noite, Vergonha. Um grande letreiro luminoso na frente de um teatro dizia "Apenas Para Adultos", enquanto um homem de uniforme vermelho tentava manter em ordem um grupo de crianças irrequietas.

Alguns quarteirões à frente, chegamos a Macy"s, depois Gimbels. Senti-me mais animado diante das grandes lojas. Aqui estavam mais nomes conhecidos. Gwen fazia pedidos a essas lojas; aliás, as meias de lã que ela me fizera prometer trazer, foram compradas na Gimbels, penso eu. Era um ponto de con­tato com o conhecido. Eu queria ficar perto dessas lojas.

— Vamos procurar um hotel por aqui, sugeri.

Do outro lado da rua estava o Hotel Martinique, e resolve­mos ficar ali mesmo. Depois surgiu o problema de estaciona­mento. Havia um local em frente ao hotel, mas quando o por­teiro disse: "Dois dólares pela estadia durante a noite", dei marcha a ré rapidamente.

— É porque somos de fora, disse a Miles, enquanto saía com o que esperava ser uma velocidade descabida. Eles pensam que podem fazer o que querem com pessoas do interior.

Meia hora mais tarde estávamos de volta ao mesmo local. "Muito bem, você ganhou", disse eu ao homem, que não sorriu.

Logo depois estávamos no nosso quarto, no décimo segun­do andar do Martinique. Fiquei à janela muito tempo, vendo o movimento da rua, observando os carros e as pessoas que pas­savam. De vez em quando um vento mais forte carregava nu­vens de lixo e pedaços de jornal. Cinco jovens rodeavam uma fogueirinha do outro lado da rua. Estavam dançando na noite fria, as mãos estendidas para o fogo, tramando, sem dúvida, alguma aventura. Peguei novamente a página da Life que esta­va no meu bolso, e imaginei, como alguns meses antes, sete outros, parecidos com esses, entraram cheios de ódio e tédio no Parque Highbridge.

— Vou telefonar para o escritório do promotor de justiça novamente, disse eu a Miles.

Surpreendentemente, ainda estava aberto. Sabia que estava sendo inconveniente, mas não conhecia outra maneira de me aproximar daqueles meninos. Telefonei mais duas vezes, e fi­nalmente, na terceira vez, consegui fazer com que me dessem alguma informação.

— Olhe, disseram-me rispidamente, a única pessoa que pode lhe dar permissão para ver esses meninos é o próprio Juiz Davidson.

— Como posso ver o Juiz Davidson?

A resposta foi dada numa voz entediada:

— Ele estará presente ao julgamento amanhã cedo. Rua do Fórum, número 100. Agora, boa noite, reverendo. Por favor, não telefone para aqui novamente; não podemos ajudá-lo.

Tentei mais um telefonema, dessa vez, para o Juiz Davidson, mas a telefonista disse que sua linha fora desligada. Sentia muito, não havia a menor possibilidade de fazer a ligação.

Fomos deitar, mas eu, pelo menos, não dormi. Para os meus ouvidos acostumados ao silêncio do campo, cada barulho da grande cidade parecia ameaçador. Passei as longas horas da­quela noite imaginando o que estaria fazendo ali, e dando gra­ças porque, fosse o que fosse, não poderia me segurar por muito tempo naquela cidade.

Logo depois das 7:00h nos levantamos, vestimo-nos e saí­mos. Não tomamos café. Sentíamos instintivamente que iría­mos enfrentar uma crise, e que esse pequeno jejum nos deixa­ria mental e fisicamente mais alertas.

Se tivéssemos alguma experiência de como nos locomover­mos na cidade de Nova Iorque, teríamos ido de metrô até o centro da cidade. Entretanto, inexperientes como éramos, ti­ramos o carro do estacionamento, pedimos informações de como chegar à Rua do Fórum, e novamente pegamos a Broadway.

Chegando ao local, verificamos que era um prédio de pro­porções gigantescas e amedrontadoras, ao qual acorre grande número de pessoas que, tendo alguma questão contra alguém, querem justiça. Todos os dias dirigem-se para lá centenas de indivíduos que têm negócios ali, mas igualmente espectadores curiosos e desagradáveis são atraídos, porque querem parti­lhar — sem perigo — da fúria reinante. Um homem se destacava, naquele dia, pelos seus comentários, enquanto esperávamos do lado de fora da sala do tribunal onde o caso Michael Farmer teria prosseguimento.

"A cadeira elétrica é boa demais para eles", dizia para o pú­blico em geral.

Depois, dirigindo-se ao guarda uniformizado que vigiava a porta trancada, continuou:

"É preciso dar-lhes uma lição! Esses vagabundos miseráveis!"

O guarda enfiou os polegares no cinturão e deu as costas ao homem, como se houvesse aprendido há muito tempo que essa era a única defesa contra os autonomeados guardiões da justi­ça. Quando chegamos, às 8:30h, havia quarenta pessoas na fila, esperando a hora de entrar na sala. Mais tarde, descobri que havia quarenta e dois lugares disponíveis ao público.

Mui­tas vezes fico imaginando que, se tivéssemos tomado café, tudo o que aconteceu depois daquela manhã de 28 de fevereiro de 1958, teria tomado um rumo bem diferente.

Durante uma hora e meia ficamos em pé, sem pensar em sair, porque havia outros esperando uma chance de tomar os nossos lugares. Quando um oficial de justiça passou por nós, perguntei-lhe, apontando para uma porta um pouco adiante no corredor:

"Aquele é o gabinete do Juiz Davidson?" Ele acenou afirmativamente. "Seria possível falar com ele?"

O homem olhou para mim e riu. Nem me respondeu, ape­nas deu uma risadinha desdenhosa e continuou o seu caminho. Lá pelas 10:00h, um guarda abriu as portas da sala do tri­bunal, e entramos todos num vestíbulo onde fomos revistados. Eu supunha que estavam à procura de armas.

"Ameaçaram a vida do juiz", disse o homem à minha frente, enquanto nos examinavam. "A quadrilha dos Dragões disse que o pegaria no Tribunal."

Eu e Miles ocupamos os dois últimos lugares. Logo verifi­quei que ficara ao lado do homem que pensava que a justiça devia ser executada com mais rapidez.

"Esses meninos já deveriam estar mortos, você não acha?" disse ele, dirigindo-se a mim, mesmo antes de nos sentarmos; depois, voltando-se, fez a mesma pergunta ao que estava do outro lado, sem esperar minha resposta.

Fiquei surpreso com o tamanho da sala. Esperava ver um salão imponente com centenas de lugares. Talvez eu tenha re­cebido essa idéia através de Hollywood. Na realidade, metade da sala estava ocupada pelo pessoal da própria corte de justiça, um quarto pela imprensa, e apenas uma pequena parte atrás era reservada ao público.

Meu amigo da direita fazia comentários constantes do que acontecia. Um grupo grande se dirigiu para a frente, e fui informado de que eram os advogados escolhidos pelo Esta­do.

"Vinte e sete", continuava meu companheiro. "Fornecidos pelo Estado. Ninguém mais queria defender essa ralé. Além disso, não têm dinheiro. Filhos de espanhóis, sabe?"

Eu não sabia, mas não fiz nenhum comentário.

"Eles tiveram de pleitear inocência. É lei estadual para homicí­dios de primeiro grau. Deveriam pegar a cadeira elétrica, todos."

Depois entraram os meninos.

Não sei o que eu esperava. Homens, talvez. Afinal era um julgamento por homicídio e, na realidade, eu não conseguia imaginar que crianças pudessem cometer homicídio. Mas eram crianças! Sete crianças meio corcundas, magricelas e apavora­das, sendo julgadas por um crime hediondo. Estavam algema­das, cada uma a um guarda, e aos meus olhos parecia que esses policiais eram extraordinariamente robustos, como se escolhi­dos de propósito, pelo contraste que apresentavam.

Os sete rapazes foram conduzidos para o lado esquerdo da sala, e, depois que se assentaram, as algemas foram tiradas.

— Isso mesmo. E assim que devem ser tratados, continuava o meu companheiro. Todo o cuidado é pouco com gente desse tipo. Deus! Como odeio esses rapazes!

— Parece que Deus é o único que não os odeia, disse eu.

— O qu...?

Alguém estava martelando a mesa, exigindo ordem, enquan­to entrava o juiz, a passos rápidos, e todos se levantavam.

Assisti a tudo em silêncio, mas o meu companheiro conti­nuava com os seus comentários. Ele se expressava tão enfatica­mente que várias vezes algumas pessoas olharam para trás.

Uma menina era uma das testemunhas.

— É a "gata" da quadrilha, fui informado pelo meu vizinho.

Gata é uma prostituta adolescente.

Mostraram uma faca à menina, perguntando se ela a reco­nhecia. Confessou que era a faca da qual limpara sangue na noite do crime. Levou a manhã toda para conseguir essa sim­ples afirmação.

E de repente estava tudo terminado. Esse final abrupto pegou-me de surpresa — o que talvez explique em parte o que aconteceu a seguir. Não tive tempo de pensar no que iria fazer.

Vi o Juiz Davidson levantar-se e dizer que a sessão estava suspensa. Na minha mente via-o passar por aquela porta e de­saparecer para sempre. Pareceu-me que, se eu não falasse com ele naquele momento, nunca mais teria outra oportunidade.

— Vou falar com ele, disse baixinho a Miles.

— Você está ficando louco!

— Se eu não for...

O juiz estava juntando suas coisas, preparando-se para sair da sala. Com uma rápida oração peguei a Bíblia na mão direi­ta, esperando que ela me identificasse como pastor, empurrei Miles para um lado, e corri para a frente da sala!

— Vossa Excelência! gritei.

O juiz virou-se depressa, irritado e indignado com o rompi­mento do protocolo da corte.

— Vossa Excelência, por favor, respeite-me como pastor e permita-me uma audiência.

A essa altura os guardas me alcançaram. Talvez por ter sido ameaçada a vida do juiz, foram tão rudes e severos comigo. Dois deles me pegaram, um de cada lado, e quase me carrega­ram para a saída, enquanto houve uma correria geral entre os representantes da imprensa, e os fotógrafos se empurravam para conseguir fotos.

Saindo da sala, os guardas me entregaram a outros dois que estavam no vestíbulo.

— Fechem as portas, disse um oficial. Ninguém deve sair. Depois, voltando-se para mim, perguntou:

— Muito bem, senhor. Onde está o revólver? Assegurei-lhe de que não estava armado, mas fui revistado novamente.

— Quem estava com você? Quem mais está aí?

— Miles Hoover, presidente da nossa mocidade. Trouxeram Miles. Ele estava branco e tremia, mas eu acho que de raiva e vergonha, não de medo.

Alguns fotógrafos conseguiram entrar na saleta, enquanto a polícia nos interrogava. Mostrei meus documentos à polícia, provando que eu era de fato um pastor ordenado. Discutiam entre si sobre que acusação fazer a meu respeito, e o sargento resolveu saber qual era a vontade do Juiz Davidson.

Depois que ele saiu, os repórteres começaram a interrogarmos: De onde éramos? Por que tínhamos feito isso? Fazíamos parte dos Dra­gões? Havíamos roubado esses documentos, ou eram forjados?

O sargento voltou, dizendo que o juiz não quis fazer nenhu­ma acusação, e que me deixariam partir se prometesse nunca mais voltar.

— Não se preocupem, disse Miles. Ele não voltará.

Levaram-me bruscamente até o corredor. Ali, um semicír­culo de fotógrafos estava à espera, com suas máquinas prontas. Um deles dirigiu-se a mim:

— Ei, reverendo. Que livro é esse na sua mão?

— Minha Bíblia.

— Tem vergonha dela?

— Claro que não.

— Não? Então por que a esconde? Levante-a para que pos­samos vê-la.

Na minha ingenuidade, levantei-a, e ouviu-se o estalar dos flashes. Imediatamente compreendi o que estavam fazendo, e como sairia a notícia nos jornais: Um pregador com cabelo desalinhado, vindo do interior, acenando com a Bíblia, inter­rompe um julgamento de homicídio!

Um, apenas um, dos repórteres foi mais objetivo. Era Gabe Pressman, do noticiário da NBC. Fez algumas perguntas sobre o porquê do meu interesse em rapazes que haviam cometido um crime tão hediondo.

— Você já olhou para o rosto desses meninos?

— Sim, claro.

— E ainda me faz essa pergunta? Gabe Pressman sorriu ligeiramente.

— Bem, entendo o que quer dizer. Pelo menos, reverendo, você é diferente dos curiosos.

É claro que eu era diferente. Diferente o bastante, para pen­sar que tinha recebido ordens divinas, enquanto o que fazia era papel de bobo. Diferente a ponto de trazer essa vergonha sobre a minha igreja, minha cidade e minha família.

Logo que conseguimos sair, fomos apressadamente ao local de estacionamento, onde o nosso carro havia ganho mais uma conta de dois dólares. Miles não disse nem uma palavra. Logo que entrei no carro e fechei a porta, abaixei a cabeça e chorei por vinte minutos.

— Vamos para casa, Miles. Vamos sair daqui.

Passando novamente pela Ponte George Washington, voltei-me para ver a silhueta dos prédios de Nova Iorque. Lembrei-me subitamente do Salmo que nos dera tanto conforto: "Os que com lágrimas semeiam, com júbilo ceifarão".

Que espécie de orientação fora aquela? Começava a duvi­dar da existência de direções claras, da parte de Deus.

Como enfrentar minha esposa, meus pais, minha igreja? Dissera à congregação que Deus tocara em meu coração, e agora deveria voltar e dizer-lhes que eu me enganara e que não co­nhecia a vontade de Deus de jeito nenhum.