segunda-feira, 3 de maio de 2021

Por esta cruz te matarei - Capítulo 24


 ALÉM DO HORIZONTE

Primeiramente fui a Bogotá e passei três dias com a mãe de Glória. O chamado tão insistente para descer o rio dera-me uma perspectiva de minha dor. Eu perdera Glória. Mas ainda tinha Bobby.

Em vez de voltar a Tibu, voei para os Estados Unidos, a fim de abordar o assunto deste livro. Passei três semanas lá. Quando voltei à América do Sul, Bobby encontrou-se comigo em Tibu. Eu estava cansado da civilização e feliz por estar de volta às selvas.

Mas a civilização ainda necessitava de mim. Os proscritos naquela região estavam conspirando a forçar os motilones a irem muito além de seu território. Em nossa viagem rio acima, fomos ameaçados por Humberto Abril. Tentei rejeitar isso, porém as suas palavras estavam continuamente se repetindo em minha mente.

"Por esta cruz, eu te matarei", ele dissera. Elas eram palavras tão frias e ameaçadoras.

Novas ameaças chegaram através de cartas — não apenas para mim, mas para Bobby também. Uma das cartas informava-o de que todos os motilones teriam que sair porque eles (os proscritos) iriam apossar-se da terra. Eles ameaçavam violência.

No dia seguinte, o sócio de Humberto Abril, Graciano, e mais cinco pessoas, chegaram numa canoa a Iquiacorora. Encontrei-me com ele na margem do rio.

— Quem são aquelas pessoas? — perguntei.

— Elas estão doentes e precisam de cuidados médicos — ele disse. — Um deles está com uma infecção muito ruim. Os outros precisam de algum cuidado, por isso vieram comigo.

— Oh, sim — ele acrescentou. — Eu lhe trouxe uma carta, também —. Ele ma entregou e depois se dirigiu ao centro de saúde com os outros companheiros.

Tirei a minha faca e abri o envelope. A carta era de Abril.

— "Saia daqui", ela dizia. "Esta terra deve ser colonizada e nós vamos matá-lo. Qualquer índio que fizer resistência, será eliminado."

Profundamente enraivecido subi a colina, indo ao centro de saúde. Meti a carta no rosto de Graciano.

— Leia-a — ordenei.

Ele sacudiu a cabeça. — Eu não sei ler.

— Pois bem, eu vou lê-la para você — . E eu a ü em voz alta.

— Até que ponto vocês pensam que somos bobos?

— perguntei. — Vocês nos ameaçam com morte, e no entanto esperam que curemos os seus doentes alegremente. Recebam o seu tratamento e saiam daqui em seguida. E não se preocupem em voltar aqui.

Naquela noite os chefes motilones se reuniram comigo, para discutirmos o problema.

— Nós resolvemos que lutaremos se eles usarem de violência — eles me disseram. — Estamos nos preparando agora. Tencionamos arranjar algumas armas e usá-las juntamente com as nossas flechas, para defendermos as nossas casas.

Eles me perguntaram o que eu pensava a respeito daquele plano.

— Eu não penso nada — disse. — Eu apóio o que vocês decidirem, como sempre.

Passaram-se dois meses de grande tensão. Mais e mais ameaças foram feitas, particularmente contra os motilones que haviam construído pequenas casas ao longo do rio.

Bobby e eu trabalhávamos na tradução de Filipenses. Era uma das ocasiões mais intensas, mais extraordinárias que já tivéramos. Parecia que as nossas mentes estavam preocupadas com a morte, por causa do inevitável conflito com os colonizadores. E Filipenses nos falava a respeito dessa morte!

Enquanto trabalhávamos no primeiro capítulo, chegamos ao versículo vinte, onde Paulo diz que a sua grande esperança é aquela de não se envergonhar, mas que Cristo seja exaltado nele, tanto na vida como na morte.

Eu precisava da palavra certa para esperança. Um motilone espera ir para a cama à noite, porém aquela palavra não dava muita força.

O centro de emoção para um motilone é o seu estômago. Ter estômago cheio é sentir o coração alegre. Qual era a maneira certa de ter um estômago cheio? Talvez fosse a de ter caçado e morto uma grande anta. Você come anta até não poder mais.

Então eu tomei o verbo que significava possuir uma anta, e inventei um novo tempo: eu o pus no tempo futuro de algo que houvesse acontecido, e depois eu fiz dele um superlativo.

Mostrei a palavra a Bobby. Isso o chocou. — Não — disse ele. — Essa palavra é grande demais. Ela tem muita força. Como é que você pode esperar uma coisa tão grande assim?

Nós a deixamos de lado, porém ela deve ter preocupado Bobby. Dois ou três dias mais tarde ele disse: — Bruchko, vamos voltar àquela palavra.

— Está certo — disse eu.

Ele esteve em silêncio por uns instantes, pensando, e depois disse: — Bruchko, Jesus é essa esperança para você, em sua vida? Realmente?

Aquilo me fez parar. Uma coisa é pensar na palavra certa a ser usada, e outra completamente diferente é ser indagado se ela é verdade em sua própria vida. Pensei na minha conversão, e em algumas das crises que eu suportara com os iucos e os motilones. Finalmente, depois de um longo silêncio, eu disse: — Sim.

Então assenti com a cabeça vigorosamente. — Sim, Bobby. Com todas as minhas forças e todo o meu desejo, quero dar-me a mim mesmo a essa esperança em Jesus Cristo.

Bobby olhou para os seus pés. — Sim — disse ele. — É uma boa palavra.

— Você tem certeza? — perguntei. Ele assentiu com a cabeça.

Continuando com a tradução, chegamos àquela parte onde Paulo diz que deseja conformar-se à imagem de Jesus Cristo, através de seu próprio sofrimento ou de sua morte. Bobby tomou aquela mesma construção gramatical forte que acabávamos de usar, — alguma coisa já realizada, no entanto ainda no futuro, numa forma superlativa — e aplicou-a ao verbo que dá a idéia de conformidade com Cristo.

— Eu estarei completo na conformidade com a morte de Cristo — ele disse.

Senti-me sobrecarregado, como se estivesse levando ambos os pesos, o de Bobby e o meu. Que é que eu fizera? Eu trouxera Jesus Cristo aos motilones, era verdade, mas estava eu pronto a trazer-lhes essa espécie de conformidade — conformidade com a morte de Cristo? Trouxera eu a morte, tanto quanto a vida? Eu estava ansioso por orar. Bobby estava ainda mais ansioso do que eu. Mas a oração de Bobby fez-me sentir arrepios pelo corpo todo.

— "Jesus Cristo, quero estar conforme à tua imagem. Tu és a minha expectativa."

Naquela atmosfera carregada de perigo, aquela oração parecia audaciosa. Bobby estava dizendo: Não me importa se eu vivo ou morro; quero ser semelhante a Jesus. Ele estava entregando a sua vida.

Durante as três semanas seguintes, tudo estava calmo. Esperávamos ouvir mais alguma coisa dos proscritos, mas não chegou palavra alguma. Talvez tivesse sido um jogo, uma ameaça desnecessária, que nunca seria levada a termo.

Bobby precisava descer o rio para vender alguns cachos de banana. Ele levou mais dois motilones consigo. Ele era esperado de volta lá pelas quatro horas do dia seguinte. O rio estava na sua altura normal; a canoa estava em boas condições e não havia razão alguma para que ela retardasse. Mas as quatro horas chegaram, e depois cinco horas, e ainda assim nenhum sinal de Bobby. Comecei a preocupar-me. Eu não gostara nada de vê-lo partir. Agora a minha mente estava cheia de coisas que poderiam ter acontecido a ele. Eram seis horas. O sol se pôs. Somente o rio é que brilhava fracamente na penumbra. Na selva, os barulhos noturnos começaram a surgir. Eles eram uma parte natural da vida e eu dificilmente os notava, mas naquela noite, cada um deles parecia um agouro.

Às seis e meia, Abacuriana, Asrayda, George Camiyocbara e eu tomamos uma canoa e descemos o rio em busca de Bobby e sua canoa. Os outros não estavam muito ansiosos em ir. Não é muito fácil viajar pelo rio à noite. Não havia lua, e as rochas podiam surgir no caminho de nosso barco, sem aviso algum. Depois de passar pelas primeiras correntezas, a canoa se encheu de água. Nós a esvaziamos e depois prosseguimos. Nas outras correntezas arranhamos a nossa hélice de encontro a uma rocha, porém pudemos consertá-la e continuamos a viagem.

Quando fizemos a curva do rio, uma outra canoa surgiu na escuridão. Nós quase a batemos. Iluminei-a com a minha lanterna e vi Aniano Buitrago, um dos homens de Humberto Abril, e mais alguns de seu bando. Não conversei com eles, mas mantive o foco de luz sobre os seus olhos, de modo que eles não pudessem nos reconhecer. Num instante o rio nos afastara rapidamente deles. Mas, que é que estavam eles fazendo, à noite, no rio?

Um pouco mais à frente, encontramos outra canoa que ia rio acima. Ela estava cheia de foragidos da lei. Os raios de luz de nossa lanterna vasculharam a praia, enquanto procurávamos Bobby ou a sua canoa. Não havia sinal algum dele.

Mais duas canoas passaram por nós, indo rio acima, cheias de homens que eu não conhecia. Então passamos junto à casa de um dos colonizadores. Havia ali, pelo menos, umas dez canoas amarradas ao desembarcadouro. A noite parecia cheia de ameaça.

Então George sussurrou: — Veja! Não é a canoa de Bobby?

— Ele estava apontando para o desembarcadouro. Firmei a vista para ver, mas não podia afirmar. Chegamos mais perto. Não poderia ser a de Bobby. Ele não iria parar na casa de um dos colonizadores, especialmente quando Saphadana, uma pequena casa motilone, estava localizada a poucos metros descendo o rio.

Resolvemos voltar para olhar pela segunda vez.

— Não é — disse eu. — Vamos até Saphadana e perguntemos a Aystoicana se ele viu Bobby.

Paramos a canoa junto à margem, perto da casa comunitária. Não havia fogo lá dentro, e tampouco som algum. Então ouvi uma voz de um motilone. "Bruchko?"

— Sim.

Aystoicana desceu correndo até à margem. Eu quase não podia ver o seu rosto. — Bruchko, eles mataram Bobarishora. Ele está morto.

Eu não podia compreender o que ele estava dizendo.

— Isso é impossível! — repliquei. — Nós o estamos esperando lá em Iquiacarora. Ele passou por aqui?

Aystoicana agarrou o meu braço. — Bruchko, ouça, Bobby está morto. Eles o assassinaram.

Aturdido, caí na praia de joelhos. — Onde estão os dois homens que estavam com ele?

— Eu não sei — disse ele. — Eles estavam muito feridos. Eles foram embora.

Estendi as mãos e agarrei os joelhos de Aystoicana, pondo-me de pé. A noite parecia coberta de manchas vermelhas e azuis, semelhantes a feridas. — "O que é que aconteceu?" sussurrei.

— Bobby estava com Satayra e Akasara. Eles estavam subindo o rio, passando pela fazenda de Israel. Israel estava lá na margem, fazendo sinal para que eles se aproximassem. Bobby estava atrasado. Ele não queria parar, mas visto que conhecia a Israel havia muito tempo, achou que talvez fosse uma emergência.

— Israel, nos últimos meses, esteve na clínica duas ou três vezes, para tratamento — disse eu, numa voz rouca. — Ele quebrara o braço, que eu costurei e concertei. E ele recebeu de nós os medicamentos de que precisava."

— Sim — disse Aystoicana.— Então Bobby julgou que ele fosse um amigo. Ele dirigiu a canoa para a margem. Enquanto estava debruçado sobre o motor, para desligá-lo, Satayra olhou para cima e viu um homem escondido atrás de uma árvore, com uma espingarda de caça. Satayra gritou para Bobby e Akasara, dizendo a eles que se atirassem ao rio. Ele não ouviu, porque estava muito perto do motor. Satayra se atirou a margem e agarrou a espingarda. Enquanto lutava com o homem, pela espingarda, ele pegou a sua faca de mato. Satayra deixou escapar a arma, para se proteger, e o homem usou a sua faca para cortar o braço de Satayra do pulso até ao cotovelo. Satayra caiu no rio, e Akasara se atirou para fora do barco para se proteger. Bobby tentou sair do barco, porém um tiro de espingarda pegou-o na virilha. Ele caiu no rio. Alguns dos grãos de chumbo atingiram a perna de Akasara, porém ele e Satayra nadaram para o outro lado do rio. Eles procuraram Bobby, mas tudo o que podiam ver era o vermelho sobre a água. E então viram o seu corpo flutuando. Viram também bandos de colonizadores na outra margem. Todos eles tinham armas. Eles estavam à espera de Bobby. Akasara e Satayra estavam amedrontados e correram. Eles chegaram aqui e nos contaram.

— Oh, não, não; não pode ser — disse eu baixinho.

Um motilone assobiou a certa distância. Visto que a sua linguagem é tonal, os motilones nem sempre usam palavras. Esse assobio dizia que duas canoas estavam navegando rio abaixo. Não havia barulho algum dos motores. Concluí que os que estavam nos barcos, tentavam ficar em silêncio. Deveriam ser os inimigos.

— Eu quero ir rio abaixo para ir buscar a força militar — disse eu enraivecido. — George, você vem comigo.

Entrei no barco. Enquanto eu puxava a corda, para dar partida ao motor, ouvi um barulho zunindo sobre a água. Eram espingardas de balas de chumbo, e os tiros vinham de uma longa distância, e não podiam nos fazer mal. Finalmente o motor pegou, na terceira tentativa, e rapidamente deixamos as espingardas para trás.

Foram necessárias várias horas para chegarmos ao posto militar no Rio de Ouro. Acordei o comandante do posto. Ele desceu de pijamas. Contei-lhe que se dera um atentado para assassinar Bobarishora, e que eu fora informado que ele morrera.

Ele ouviu a minha história, olhando para o ar com olhos sonolentos.

— Está bem, eu verificarei isso — disse ele, e abriu a porta para eu sair.

— Não quero que o senhor verifique — eu disse. — Quero auxílio agora. Preciso de alguém para proteger os motilones.

— Sinto muito — disse ele — , mas não posso fazer coisa alguma hoje à noite.

Fui à polícia. Eles tampouco iam fazer coisa alguma. Não creio que eles estivessem interessados no problema. Estavam com medo de que eles mesmos pudessem ser atacados.

Eu estava furioso e frustrado. Às quatro horas da manhã comecei a subir o rio juntamente com George. A alvorada estava começando a surgir. A luz cor de pérola cinzenta que se espalhava sobre as águas tornava-se cada vez mais brilhante, à medida que subíamos o rio. A folhagem tinha um tom verde opulento. Tudo parecia tão inocente. Ali estavam as árvores e o rio que eu amava. Isso era lar para mim.

Bobby não podia estar morto. Eu me recusava a crer. Comecei a pensar naquela ocasião há poucos meses, quando o nosso barco fora levado pelo remoinho. Eu pensara que ele estivesse morto. Porém ele sobrevivera. Milagrosamente, talvez, ele agora estivesse na selva, esperando por auxílio, escondendo-se dos foragidos.

Quando chegamos a Saphadana, o sol brilhava e não parecia possível que tivessem atirado em nós ali. Mas Aystoicana nos disse que os colonizadores e os foragidos da lei passaram a noite toda atirando nas casas dos motilones que estavam junto ao rio, e gritando que os motilones precisavam se retirar, e que a terra não lhes pertencia mais.

— Vocês procuraram Bobby? — perguntei.

— Nós o procuramos, porém não achamos nenhum vestígio.

— Precisamos procurar — disse eu. — Talvez ele esteja precisando de auxílio. Ele poderá estar ferido aí nas selvas.

Aystoicana olhou para os seus pés, um tanto quanto embaraçado. Passamos o dia todo nas selvas, procurando Bobby. Os outros queriam parar, porém eu não os deixei.

Fazia um dia e meio que eu não dormia, e já estava no fim de minhas forças físicas. As vezes, a minha voz falhava, e não havia nada mais senão o som do gorjeio suave dos pássaros cantando nas árvores. Não havia resposta alguma de Bobby.

Às cinco horas paramos a busca. Seria já bastante escuro quando chegássemos a Saphadana. Não conversávamos; estávamos exaustos, doentes.

Quando chegamos ao ponto onde o Rio Cano Tomas se reúne ao Rio de Ouro, vi alguma coisa boiando no rio. Parecia um tronco de árvore. Chegamos até perto para investigar. Era Bobby, que estava de bruços.

Não havia mais esperança, tudo se findara. Eu me senti totalmente vazio — como uma casca. Havia-me convencido de que esta seria semelhante àquela vez quando quase nos afogáramos. Bobby estaria vivo. Nós nos reuniríamos novamente.

O rio estava raso. Desci da canoa e virei Bobby. O seu rosto, completamente branco, estava todo enrugado por ter estado na água. Fechei-lhe os olhos com os meus dedos. Ele havia morrido imediatamente. A rajada do tiro havia estraçalhado a parte inferior de seu corpo.

— "Deus", exclamei, "oh, Deus, por quê?"

Ele havia sido o líder de seu povo, o primeiro a conhecer a Cristo, o primeiro a aprender a ler e a construir escolas, o primeiro a tomar uma posição contra os ladrões da civilização.

George me entregou um cobertor. Eu o enrolei em volta do corpo de Bobby, e depois ajudei a colocá-lo na canoa.

No dia seguinte, levamos o seu corpo para Iquiacarora. A minha mente não me deixava em paz. Eu havia chorado naquela noite até não ter mais lágrimas. E ainda assim, os meus pensamentos estavam girando num círculo. Por que todas essas mortes, Senhor? eu perguntava continuamente. O rio era morte. A selva era morte. A morte brotava pelos vales abaixo. Ela está sempre tocando alguém que eu amava ... Glória, Bobby. E entrelaçados em meus pensamentos estavam as palavras de Humberto: "Por essa cruz te matarei."

O rio estava baixo, e tivemos que gastar muito tempo para poder navegar nas partes mais baixas. Num desses lugares ouvi o zunido das balas batendo na água. Elas vinham de duas canoas do outro lado do rio. De repente um tiro abriu um dos lados de nossa canoa. Nós lutamos freneticamente para ultrapassar os foragidos, porém eles estavam nos alcançando.

Senti uma queimadura intensa em minha perna. Uma bala havia me atingido.

Finalmente conseguimos livrar a canoa. Enquanto nos dirigíamos a águas mais profundas, uma bala passou de raspão pelo meu peito. Isso fez-me sentir bem. Eu realmente queria ser ferido; queria sentir dor; queria a morte.

Porém, sofri apenas ferimentos superficiais. Fizemos parar o fluxo de sangue; os chumbos teriam que ser retirados mais tarde.

Navegamos lentamente durante muitas horas mais, rio acima, e finalmente chegamos à curva do rio que nos levava a Iquiacorara. Diversas centenas de motilones armados estavam ali na margem. Quando nos reconheceram, eles esperaram imóveis, até que desembarcássemos. A notícia da morte de Bobby já se havia espalhado, e as pessoas tinham vindo de muitos quilômetros ao redor daquela área. Elas cercaram o barco.

Eu vi Atacadara, a esposa de Bobby, de pé, ali sobre um pequeno outeiro. Ela estava me observando, esperando. Olhei para ela, acenando com a cabeça, para confirmar que realmente Bobby estava morto. Ela se virou e saiu andando, com uma de suas meninas agarrada à sua perna. Ela carregava em seus braços o filho mais novo de Bobby.

Pegamos a minha rede lá da casa comunitária, e a amarramos num mastro de três metros de comprimento. Retirando o corpo de Bobby do barco, nós o colocamos na rede, e depois o cobrimos com o meu cobertor, porque ele era o meu irmão de pacto. Depois levamos a rede através do rio, e rio abaixo, e o penduramos bem alto, nos galhos mais altos, de modo que os abutres pudessem comer o corpo de Bobby.

Voltando, encontrei Atacadara sozinha, de pé, junto à entrada da selva. Os seus olhos estavam escuros e vazios, como estiveram quando a sua filhinha falecera.

Ela olhou para mim, e eu desandei a chorar.

Ela agarrou o meu ombro. — Não, não — disse ela. Eu a segurei por uns instantes e depois deixei que fosse embora.

Fiquei ali sentado do lado de fora da casa o dia todo, olhando os abutres precipitando-se lá do céu. Eles começavam como pequenas manchas pretas. Circulando cada vez mais próximo sem bater as suas enormes asas, eles pousavam nas árvores com batidas curtas e compassadas.

Lembrei-me de quando eu pensara que aquela cerimônia era fria e cruel; eu pensara que colocar uma pessoa num caixão, e colocá-lo num buraco, era muito melhor do que atá-la bem alto numa árvore a fim de ser levada bem alto no céu. Eu sabia agora o que aquilo significava. Queria dizer que Bobby estava livre para ir além do horizonte.

Eu simplesmente desejava poder ir com ele.

Enquanto estava acocorado lá fora da casa, alguns dos motilones tentaram conversar comigo, tentaram me animar. Mas eu estava ali como uma pedra.

Naquela noite não pude aguentar mais, então fui até à selva, perto das árvores onde estava a rede de Bobby. Eu me deitaria ali, para dormir, sob a rede que guardava o corpo de Bobby, para lhe dizer o adeus final. Porém, quando eu saí, a casa toda me seguiu. Havia cerca de duzentas pessoas. Atravessamos o rio juntos. Estava bem escuro sob a rede. Não havia lua.

— Vamos nos dar as mãos, fazendo um círculo que não tem nem começo nem fim, e vamos conversar com Deus — disse eu.

Isso não era de acordo com a cultura dos motilones, mas parecia ser a coisa exata a ser feita.

Odo, o filho adotivo de Bobby, foi o primeiro a orar. Ele tinha apenas catorze anos, mas Deus lhe deu a oração profética mais linda que eu jamais ouvi.

"Ó Deus", ele disse em voz alta, olhando para a silhueta da rede de Bobby. "Deus, aqui está preto, está escuro. Eu não posso ver. Nós estamos perdidos."

Por um momento ele ficou em silêncio, depois continuou numa voz mais calma e diferente. "Deus, há uma árvore, com as suas raízes se aprofundando bem fundas no solo. Somos nós, Senhor, o povo motilone.

"Nós temos vivido nesta terra toda a nossa vida, gerações após gerações, e as nossas raízes são muito profundas, e nós nos erguemos muito alto.

"Nós tentamos seguir a Deus, porém nós o perdemos enquanto tentávamos segui-lo. Tentamos seguir os nossos próprios caminhos, e eles nunca nos levaram ao lugar onde deveriam nos levar; eles simplesmente iam ter a uma outra casa, ou outro rio. Eles nunca nos levaram além do horizonte, onde nós te encontraríamos.

"E então Bobarishora encontrou o teu caminho em Jesus Cristo, e ele andou nele, e nos mostrou como deveríamos andar nele. Nós nos sentimos felizes.

"Mas, Deus! Aonde é que esse caminho o levou? Por que é que esse caminho o levou a esse lugar? Deus, isso não pode ser!"

Ele parou. Houve um silêncio total.

"A árvore é linda", ele disse. "Ela é linda. Ela está coberta de flores grandes e perfeitas que se abriram ao sol. Cada um de nós é uma flor.

"Porém, há uma flor que é maior que todas e muito mais bonita do que todas as outras. Ela produziu o fruto mais perfeito. Esse é Bobarishora. Ele nos deu a agricultura, e os nossos estômagos ficaram satisfeitos. Estávamos morrendo por causa das doenças, e ele nos trouxe a cura por intermédio de Jesus Cristo, através dos medicamentos. Ele nos mostrou o caminho de como andar com Jesus Cristo, de modo que temos razões para viver. Todos nós estávamos entusiasmados com a sua nova vida.

"Mas, ó Senhor, está tão escuro. Um vento soprou, e o fruto, o fruto mais perfeito secou e murchou e caiu ao solo. Suas sementes foram chutadas e pisadas no solo escuro, bem escuro. Ele morreu ... Bobarishora morreu, e nos deixou.

"Deus, não deixes que a semente se perca. Faze com que as nossas vidas sejam um solo fértil de modo que a sua semente possa crescer em nós. Faze com que a sua morte seja uma grande árvore crescendo em nosso solo, de modo que possamos viver como ele viveu, ajudando-nos mutuamente, e aprendendo a amar. Faze com que isso cresça em nós por causa de sua morte. Nós te pedimos isso porque somos uma só pessoa hoje à noite, num círculo de mãos dadas, nascidos em Jesus Cristo, teu único Filho."

O nosso círculo se partiu e lentamente foi-se separando. Eu vi alguma coisa que nunca vira entre os motilones antes: as pessoas estavam escondendo os seus olhos e fungando.

Ocdabidayna caminhou em minha direção, tentando sorrir. — Olhe só para nós, todos nós estamos resfriados! — disse ele.

— Não — eu disse. — Não é resfriado o que eu tenho. Não é resfriado!

Então Ocdabidayna, um dos líderes dirigentes, agarrou a sua cabeça com suas duas mãos, e caiu ao chão. — Oh, Bruchko — disse ele, olhando para mim. — Eu não sou um homem. Eu sou um bebê, um bebê muito pequeno. Somente os bebês é que choram.

A sua tristeza abalou os motilones como eu nunca os vira tão abatidos. Eles correram para a selva a fim de esconder um do outro as suas lágrimas.

— Bruchko — disse Ocdabidayna — , Jesus Cristo morreu por todas as tribos do mundo. Bobby é quase semelhante a ele. Ele morreu pelos motilones.

Passei as três semanas seguintes recuperando-me de meus ferimentos. Eu ansiava por deixar a selva, deixar o cheiro de morte. Também queria informar às autoridades competentes a respeito da situação dos foragidos da lei. Mas eu não podia sair. O rio estava cheio de emboscadas. Qualquer pessoa que tentasse sair dali teria sido morta. Os caçadores também descobriram que nas picadas que saíam das selvas havia armadilhas com espingardas. Um dos homens conseguira sair e ir a Tibu, levando diversas cartas. Ele levou uma semana para chegar lá, andando apenas à noite, e sempre evitando as picadas.

O único caminho seguro era transpondo as montanhas — uma viagem que exigia cento e quarenta horas de marcha. Aminha perna havia sarado, e então comecei aminha viagem. Quando eu havia caminhado metade do percurso, ouvi um helicóptero. O Presidente da Colômbia havia mandado buscar-me. Logo eu estava fora das selvas.

Passei uma semana muito inquieto lá em Bogotá. Que é que tudo aquilo significava? Para os motilones, Bobby poderia crescer como uma árvore florida. Mas, para mim, que significava a morte de meu irmão de pacto?

Uma noite, enquanto eu conversava com um dos principais ministros do governo Colombiano, recebi a minha resposta. Ele conhecera Bobarishora pessoalmente e tinha um grande interesse pelo povo motilone. Eu acabara de descrever a morte de Bobby e havia lágrimas nos seus olhos.

— Mas Bruce — ele disse — , você continua falando como se desejasse que Jesus interviesse e pusesse um fim a todas essas perturbações. Você não pode ver que é justamente o oposto. Se não fosse Jesus, os motilones seriam empurrados de volta às selvas, até que fossem lenta, mas seguramente, exterminados! Se não fosse por Jesus, não haveria luta; Bobby nunca teria que morrer da maneira que ele morreu. Não, Bruce. Não é a despeito de Jesus que Bobby morreu. É por causa de Jesus.

Ele colocou a sua mão sobre o meu ombro. — Onde é que os motilones estariam se Bobby não tivesse sido o tipo de pessoa a quem os bandidos sentiam que precisavam matar? Onde é que você estaria se Bobby não tivesse sido aquele tipo de pessoa?

— Não estaria em parte alguma — eu disse. — Eu não estaria em lugar algum.

Portanto, a vida tem que ser semelhante a isso, pensei. Ela precisa ser luta e choro, e até mesmo a morte.

Repentinamente vi os meus pais, e todas as dores pelas quais passáramos ...

Vi os iucos, e os semblantes colonizadores ...

Vi os rostos dos motilones, para quem o resto do Novo Testamento ainda precisava ser traduzido.

Havia tanto serviço a ser feito ... tantas coisas que Cristo me chamara para fazer. Isso traria novas dores, mais solidão. E talvez a morte.

Por que é que estava sendo tão difícil? Por quê?

Então eu vi Jesus. Ele estava lutando para subir uma colina com uma grande carga. O seu rosto estava crispado de dor. As suas costas estavam curvadas.

Endireitei-me no encosto da cadeira, e olhei para o ministro.

— Creio que eu vejo — eu disse. — É a cruz.

Ergui a mão e pus o meu polegar sob o indicador. — É por esta cruz.

FIM