Primeiramente fui a Bogotá e passei três dias com a mãe de
Glória. O chamado tão insistente para descer o rio dera-me uma perspectiva de
minha dor. Eu perdera Glória. Mas ainda tinha Bobby.
Em vez de voltar a Tibu, voei para os Estados Unidos, a fim
de abordar o assunto deste livro. Passei três semanas lá. Quando voltei à
América do Sul, Bobby encontrou-se comigo em Tibu. Eu estava cansado da
civilização e feliz por estar de volta às selvas.
Mas a civilização ainda necessitava de mim. Os proscritos
naquela região estavam conspirando a forçar os motilones a irem muito além de
seu território. Em nossa viagem rio acima, fomos ameaçados por Humberto Abril.
Tentei rejeitar isso, porém as suas palavras estavam continuamente se repetindo
em minha mente.
"Por esta cruz, eu te matarei", ele dissera. Elas
eram palavras tão frias e ameaçadoras.
Novas ameaças chegaram através de cartas — não apenas para
mim, mas para Bobby também. Uma das cartas informava-o de que todos os
motilones teriam que sair porque eles (os proscritos) iriam apossar-se da
terra. Eles ameaçavam violência.
No dia seguinte, o sócio de Humberto Abril, Graciano, e mais
cinco pessoas, chegaram numa canoa a Iquiacorora. Encontrei-me com ele na
margem do rio.
— Quem são aquelas pessoas? — perguntei.
— Elas estão doentes e precisam de cuidados médicos — ele
disse. — Um deles está com uma infecção muito ruim. Os outros precisam de algum
cuidado, por isso vieram comigo.
— Oh, sim — ele acrescentou. — Eu lhe trouxe uma carta,
também —. Ele ma entregou e depois se dirigiu ao centro de saúde com os outros
companheiros.
Tirei a minha faca e abri o envelope. A carta era de Abril.
— "Saia daqui", ela dizia. "Esta terra deve
ser colonizada e nós vamos matá-lo. Qualquer índio que fizer resistência, será
eliminado."
Profundamente enraivecido subi a colina, indo ao centro de
saúde. Meti a carta no rosto de Graciano.
— Leia-a — ordenei.
Ele sacudiu a cabeça. — Eu não sei ler.
— Pois bem, eu vou lê-la para você — . E eu a ü em voz alta.
— Até que ponto vocês pensam que somos bobos?
— perguntei. — Vocês nos ameaçam com morte, e no entanto
esperam que curemos os seus doentes alegremente. Recebam o seu tratamento e
saiam daqui em seguida. E não se preocupem em voltar aqui.
Naquela noite os chefes motilones se reuniram comigo, para
discutirmos o problema.
— Nós resolvemos que lutaremos se eles usarem de violência —
eles me disseram. — Estamos nos preparando agora. Tencionamos arranjar algumas
armas e usá-las juntamente com as nossas flechas, para defendermos as nossas
casas.
Eles me perguntaram o que eu pensava a respeito daquele
plano.
— Eu não penso nada — disse. — Eu apóio o que vocês
decidirem, como sempre.
Passaram-se dois meses de grande tensão. Mais e mais ameaças
foram feitas, particularmente contra os motilones que haviam construído
pequenas casas ao longo do rio.
Bobby e eu trabalhávamos na tradução de Filipenses. Era uma
das ocasiões mais intensas, mais extraordinárias que já tivéramos. Parecia que
as nossas mentes estavam preocupadas com a morte, por causa do inevitável
conflito com os colonizadores. E Filipenses nos falava a respeito dessa morte!
Enquanto trabalhávamos no primeiro capítulo, chegamos ao
versículo vinte, onde Paulo diz que a sua grande esperança é aquela de não se
envergonhar, mas que Cristo seja exaltado nele, tanto na vida como na morte.
Eu precisava da palavra certa para esperança. Um motilone
espera ir para a cama à noite, porém aquela palavra não dava muita força.
O centro de emoção para um motilone é o seu estômago. Ter
estômago cheio é sentir o coração alegre. Qual era a maneira certa de ter um
estômago cheio? Talvez fosse a de ter caçado e morto uma grande anta. Você come
anta até não poder mais.
Então eu tomei o verbo que significava possuir uma anta, e
inventei um novo tempo: eu o pus no tempo futuro de algo que houvesse
acontecido, e depois eu fiz dele um superlativo.
Mostrei a palavra a Bobby. Isso o chocou. — Não — disse ele.
— Essa palavra é grande demais. Ela tem muita força. Como é que você pode
esperar uma coisa tão grande assim?
Nós a deixamos de lado, porém ela deve ter preocupado Bobby.
Dois ou três dias mais tarde ele disse: — Bruchko, vamos voltar àquela palavra.
— Está certo — disse eu.
Ele esteve em silêncio por uns instantes, pensando, e depois
disse: — Bruchko, Jesus é essa esperança para você, em sua vida? Realmente?
Aquilo me fez parar. Uma coisa é pensar na palavra certa a
ser usada, e outra completamente diferente é ser indagado se ela é verdade em
sua própria vida. Pensei na minha conversão, e em algumas das crises que eu
suportara com os iucos e os motilones. Finalmente, depois de um longo silêncio,
eu disse: — Sim.
Então assenti com a cabeça vigorosamente. — Sim, Bobby. Com
todas as minhas forças e todo o meu desejo, quero dar-me a mim mesmo a essa
esperança em Jesus Cristo.
Bobby olhou para os seus pés. — Sim — disse ele. — É uma boa
palavra.
— Você tem certeza? — perguntei. Ele assentiu com a cabeça.
Continuando com a tradução, chegamos àquela parte onde Paulo
diz que deseja conformar-se à imagem de Jesus Cristo, através de seu próprio
sofrimento ou de sua morte. Bobby tomou aquela mesma construção gramatical
forte que acabávamos de usar, — alguma coisa já realizada, no entanto ainda no
futuro, numa forma superlativa — e aplicou-a ao verbo que dá a idéia de
conformidade com Cristo.
— Eu estarei completo na conformidade com a morte de Cristo
— ele disse.
Senti-me sobrecarregado, como se estivesse levando ambos os
pesos, o de Bobby e o meu. Que é que eu fizera? Eu trouxera Jesus Cristo aos
motilones, era verdade, mas estava eu pronto a trazer-lhes essa espécie de
conformidade — conformidade com a morte de Cristo? Trouxera eu a morte, tanto
quanto a vida? Eu estava ansioso por orar. Bobby estava ainda mais ansioso do
que eu. Mas a oração de Bobby fez-me sentir arrepios pelo corpo todo.
— "Jesus Cristo, quero estar conforme à tua imagem. Tu
és a minha expectativa."
Naquela atmosfera carregada de perigo, aquela oração parecia
audaciosa. Bobby estava dizendo: Não me importa se eu vivo ou morro; quero ser
semelhante a Jesus. Ele estava entregando a sua vida.
Durante as três semanas seguintes, tudo estava calmo.
Esperávamos ouvir mais alguma coisa dos proscritos, mas não chegou palavra
alguma. Talvez tivesse sido um jogo, uma ameaça desnecessária, que nunca seria
levada a termo.
Bobby precisava descer o rio para vender alguns cachos de
banana. Ele levou mais dois motilones consigo. Ele era esperado de volta lá
pelas quatro horas do dia seguinte. O rio estava na sua altura normal; a canoa
estava em boas condições e não havia razão alguma para que ela retardasse. Mas
as quatro horas chegaram, e depois cinco horas, e ainda assim nenhum sinal de
Bobby. Comecei a preocupar-me. Eu não gostara nada de vê-lo partir. Agora a
minha mente estava cheia de coisas que poderiam ter acontecido a ele. Eram seis
horas. O sol se pôs. Somente o rio é que brilhava fracamente na penumbra. Na
selva, os barulhos noturnos começaram a surgir. Eles eram uma parte natural da
vida e eu dificilmente os notava, mas naquela noite, cada um deles parecia um
agouro.
Às seis e meia, Abacuriana, Asrayda, George Camiyocbara e eu
tomamos uma canoa e descemos o rio em busca de Bobby e sua canoa. Os outros não
estavam muito ansiosos em ir. Não é muito fácil viajar pelo rio à noite. Não
havia lua, e as rochas podiam surgir no caminho de nosso barco, sem aviso
algum. Depois de passar pelas primeiras correntezas, a canoa se encheu de água.
Nós a esvaziamos e depois prosseguimos. Nas outras correntezas arranhamos a
nossa hélice de encontro a uma rocha, porém pudemos consertá-la e continuamos a
viagem.
Quando fizemos a curva do rio, uma outra canoa surgiu na
escuridão. Nós quase a batemos. Iluminei-a com a minha lanterna e vi Aniano
Buitrago, um dos homens de Humberto Abril, e mais alguns de seu bando. Não
conversei com eles, mas mantive o foco de luz sobre os seus olhos, de modo que
eles não pudessem nos reconhecer. Num instante o rio nos afastara rapidamente
deles. Mas, que é que estavam eles fazendo, à noite, no rio?
Um pouco mais à frente, encontramos outra canoa que ia rio
acima. Ela estava cheia de foragidos da lei. Os raios de luz de nossa lanterna
vasculharam a praia, enquanto procurávamos Bobby ou a sua canoa. Não havia
sinal algum dele.
Mais duas canoas passaram por nós, indo rio acima, cheias de
homens que eu não conhecia. Então passamos junto à casa de um dos
colonizadores. Havia ali, pelo menos, umas dez canoas amarradas ao
desembarcadouro. A noite parecia cheia de ameaça.
Então George sussurrou: — Veja! Não é a canoa de Bobby?
— Ele estava apontando para o desembarcadouro. Firmei a
vista para ver, mas não podia afirmar. Chegamos mais perto. Não poderia ser a
de Bobby. Ele não iria parar na casa de um dos colonizadores, especialmente
quando Saphadana, uma pequena casa motilone, estava localizada a poucos metros
descendo o rio.
Resolvemos voltar para olhar pela segunda vez.
— Não é — disse eu. — Vamos até Saphadana e perguntemos a
Aystoicana se ele viu Bobby.
Paramos a canoa junto à margem, perto da casa comunitária.
Não havia fogo lá dentro, e tampouco som algum. Então ouvi uma voz de um
motilone. "Bruchko?"
— Sim.
Aystoicana desceu correndo até à margem. Eu quase não podia
ver o seu rosto. — Bruchko, eles mataram Bobarishora. Ele está morto.
Eu não podia compreender o que ele estava dizendo.
— Isso é impossível! — repliquei. — Nós o estamos esperando
lá em Iquiacarora. Ele passou por aqui?
Aystoicana agarrou o meu braço. — Bruchko, ouça, Bobby está
morto. Eles o assassinaram.
Aturdido, caí na praia de joelhos. — Onde estão os dois
homens que estavam com ele?
— Eu não sei — disse ele. — Eles estavam muito feridos. Eles
foram embora.
Estendi as mãos e agarrei os joelhos de Aystoicana, pondo-me
de pé. A noite parecia coberta de manchas vermelhas e azuis, semelhantes a
feridas. — "O que é que aconteceu?" sussurrei.
— Bobby estava com Satayra e Akasara. Eles estavam subindo o
rio, passando pela fazenda de Israel. Israel estava lá na margem, fazendo sinal
para que eles se aproximassem. Bobby estava atrasado. Ele não queria parar, mas
visto que conhecia a Israel havia muito tempo, achou que talvez fosse uma
emergência.
— Israel, nos últimos meses, esteve na clínica duas ou três
vezes, para tratamento — disse eu, numa voz rouca. — Ele quebrara o braço, que
eu costurei e concertei. E ele recebeu de nós os medicamentos de que
precisava."
— Sim — disse Aystoicana.— Então Bobby julgou que ele fosse
um amigo. Ele dirigiu a canoa para a margem. Enquanto estava debruçado sobre o
motor, para desligá-lo, Satayra olhou para cima e viu um homem escondido atrás
de uma árvore, com uma espingarda de caça. Satayra gritou para Bobby e Akasara,
dizendo a eles que se atirassem ao rio. Ele não ouviu, porque estava muito
perto do motor. Satayra se atirou a margem e agarrou a espingarda. Enquanto
lutava com o homem, pela espingarda, ele pegou a sua faca de mato. Satayra
deixou escapar a arma, para se proteger, e o homem usou a sua faca para cortar
o braço de Satayra do pulso até ao cotovelo. Satayra caiu no rio, e Akasara se
atirou para fora do barco para se proteger. Bobby tentou sair do barco, porém
um tiro de espingarda pegou-o na virilha. Ele caiu no rio. Alguns dos grãos de
chumbo atingiram a perna de Akasara, porém ele e Satayra nadaram para o outro
lado do rio. Eles procuraram Bobby, mas tudo o que podiam ver era o vermelho
sobre a água. E então viram o seu corpo flutuando. Viram também bandos de
colonizadores na outra margem. Todos eles tinham armas. Eles estavam à espera
de Bobby. Akasara e Satayra estavam amedrontados e correram. Eles chegaram aqui
e nos contaram.
— Oh, não, não; não pode ser — disse eu baixinho.
Um motilone assobiou a certa distância. Visto que a sua
linguagem é tonal, os motilones nem sempre usam palavras. Esse assobio dizia
que duas canoas estavam navegando rio abaixo. Não havia barulho algum dos
motores. Concluí que os que estavam nos barcos, tentavam ficar em silêncio.
Deveriam ser os inimigos.
— Eu quero ir rio abaixo para ir buscar a força militar —
disse eu enraivecido. — George, você vem comigo.
Entrei no barco. Enquanto eu puxava a corda, para dar
partida ao motor, ouvi um barulho zunindo sobre a água. Eram espingardas de
balas de chumbo, e os tiros vinham de uma longa distância, e não podiam nos
fazer mal. Finalmente o motor pegou, na terceira tentativa, e rapidamente
deixamos as espingardas para trás.
Foram necessárias várias horas para chegarmos ao posto
militar no Rio de Ouro. Acordei o comandante do posto. Ele desceu de pijamas.
Contei-lhe que se dera um atentado para assassinar Bobarishora, e que eu fora
informado que ele morrera.
Ele ouviu a minha história, olhando para o ar com olhos
sonolentos.
— Está bem, eu verificarei isso — disse ele, e abriu a porta
para eu sair.
— Não quero que o senhor verifique — eu disse. — Quero
auxílio agora. Preciso de alguém para proteger os motilones.
— Sinto muito — disse ele — , mas não posso fazer coisa
alguma hoje à noite.
Fui à polícia. Eles tampouco iam fazer coisa alguma. Não
creio que eles estivessem interessados no problema. Estavam com medo de que
eles mesmos pudessem ser atacados.
Eu estava furioso e frustrado. Às quatro horas da manhã
comecei a subir o rio juntamente com George. A alvorada estava começando a
surgir. A luz cor de pérola cinzenta que se espalhava sobre as águas tornava-se
cada vez mais brilhante, à medida que subíamos o rio. A folhagem tinha um tom
verde opulento. Tudo parecia tão inocente. Ali estavam as árvores e o rio que
eu amava. Isso era lar para mim.
Bobby não podia estar morto. Eu me recusava a crer. Comecei
a pensar naquela ocasião há poucos meses, quando o nosso barco fora levado pelo
remoinho. Eu pensara que ele estivesse morto. Porém ele sobrevivera.
Milagrosamente, talvez, ele agora estivesse na selva, esperando por auxílio,
escondendo-se dos foragidos.
Quando chegamos a Saphadana, o sol brilhava e não parecia
possível que tivessem atirado em nós ali. Mas Aystoicana nos disse que os
colonizadores e os foragidos da lei passaram a noite toda atirando nas casas
dos motilones que estavam junto ao rio, e gritando que os motilones precisavam
se retirar, e que a terra não lhes pertencia mais.
— Vocês procuraram Bobby? — perguntei.
— Nós o procuramos, porém não achamos nenhum vestígio.
— Precisamos procurar — disse eu. — Talvez ele esteja
precisando de auxílio. Ele poderá estar ferido aí nas selvas.
Aystoicana olhou para os seus pés, um tanto quanto embaraçado.
Passamos o dia todo nas selvas, procurando Bobby. Os outros queriam parar,
porém eu não os deixei.
Fazia um dia e meio que eu não dormia, e já estava no fim de
minhas forças físicas. As vezes, a minha voz falhava, e não havia nada mais
senão o som do gorjeio suave dos pássaros cantando nas árvores. Não havia
resposta alguma de Bobby.
Às cinco horas paramos a busca. Seria já bastante escuro
quando chegássemos a Saphadana. Não conversávamos; estávamos exaustos, doentes.
Quando chegamos ao ponto onde o Rio Cano Tomas se reúne ao
Rio de Ouro, vi alguma coisa boiando no rio. Parecia um tronco de árvore.
Chegamos até perto para investigar. Era Bobby, que estava de bruços.
Não havia mais esperança, tudo se findara. Eu me senti
totalmente vazio — como uma casca. Havia-me convencido de que esta seria
semelhante àquela vez quando quase nos afogáramos. Bobby estaria vivo. Nós nos
reuniríamos novamente.
O rio estava raso. Desci da canoa e virei Bobby. O seu
rosto, completamente branco, estava todo enrugado por ter estado na água.
Fechei-lhe os olhos com os meus dedos. Ele havia morrido imediatamente. A
rajada do tiro havia estraçalhado a parte inferior de seu corpo.
— "Deus", exclamei, "oh, Deus, por quê?"
Ele havia sido o líder de seu povo, o primeiro a conhecer a
Cristo, o primeiro a aprender a ler e a construir escolas, o primeiro a tomar
uma posição contra os ladrões da civilização.
George me entregou um cobertor. Eu o enrolei em volta do
corpo de Bobby, e depois ajudei a colocá-lo na canoa.
No dia seguinte, levamos o seu corpo para Iquiacarora. A
minha mente não me deixava em paz. Eu havia chorado naquela noite até não ter
mais lágrimas. E ainda assim, os meus pensamentos estavam girando num círculo.
Por que todas essas mortes, Senhor? eu perguntava continuamente. O rio era
morte. A selva era morte. A morte brotava pelos vales abaixo. Ela está sempre
tocando alguém que eu amava ... Glória, Bobby. E entrelaçados em meus
pensamentos estavam as palavras de Humberto: "Por essa cruz te
matarei."
O rio estava baixo, e tivemos que gastar muito tempo para
poder navegar nas partes mais baixas. Num desses lugares ouvi o zunido das
balas batendo na água. Elas vinham de duas canoas do outro lado do rio. De
repente um tiro abriu um dos lados de nossa canoa. Nós lutamos freneticamente
para ultrapassar os foragidos, porém eles estavam nos alcançando.
Senti uma queimadura intensa em minha perna. Uma bala havia
me atingido.
Finalmente conseguimos livrar a canoa. Enquanto nos dirigíamos
a águas mais profundas, uma bala passou de raspão pelo meu peito. Isso fez-me
sentir bem. Eu realmente queria ser ferido; queria sentir dor; queria a morte.
Porém, sofri apenas ferimentos superficiais. Fizemos parar o
fluxo de sangue; os chumbos teriam que ser retirados mais tarde.
Navegamos lentamente durante muitas horas mais, rio acima, e
finalmente chegamos à curva do rio que nos levava a Iquiacorara. Diversas
centenas de motilones armados estavam ali na margem. Quando nos reconheceram,
eles esperaram imóveis, até que desembarcássemos. A notícia da morte de Bobby
já se havia espalhado, e as pessoas tinham vindo de muitos quilômetros ao redor
daquela área. Elas cercaram o barco.
Eu vi Atacadara, a esposa de Bobby, de pé, ali sobre um
pequeno outeiro. Ela estava me observando, esperando. Olhei para ela, acenando
com a cabeça, para confirmar que realmente Bobby estava morto. Ela se virou e
saiu andando, com uma de suas meninas agarrada à sua perna. Ela carregava em
seus braços o filho mais novo de Bobby.
Pegamos a minha rede lá da casa comunitária, e a amarramos
num mastro de três metros de comprimento. Retirando o corpo de Bobby do barco,
nós o colocamos na rede, e depois o cobrimos com o meu cobertor, porque ele era
o meu irmão de pacto. Depois levamos a rede através do rio, e rio abaixo, e o
penduramos bem alto, nos galhos mais altos, de modo que os abutres pudessem
comer o corpo de Bobby.
Voltando, encontrei Atacadara sozinha, de pé, junto à entrada
da selva. Os seus olhos estavam escuros e vazios, como estiveram quando a sua
filhinha falecera.
Ela olhou para mim, e eu desandei a chorar.
Ela agarrou o meu ombro. — Não, não — disse ela. Eu a
segurei por uns instantes e depois deixei que fosse embora.
Fiquei ali sentado do lado de fora da casa o dia todo,
olhando os abutres precipitando-se lá do céu. Eles começavam como pequenas
manchas pretas. Circulando cada vez mais próximo sem bater as suas enormes
asas, eles pousavam nas árvores com batidas curtas e compassadas.
Lembrei-me de quando eu pensara que aquela cerimônia era
fria e cruel; eu pensara que colocar uma pessoa num caixão, e colocá-lo num
buraco, era muito melhor do que atá-la bem alto numa árvore a fim de ser levada
bem alto no céu. Eu sabia agora o que aquilo significava. Queria dizer que
Bobby estava livre para ir além do horizonte.
Eu simplesmente desejava poder ir com ele.
Enquanto estava acocorado lá fora da casa, alguns dos
motilones tentaram conversar comigo, tentaram me animar. Mas eu estava ali como
uma pedra.
Naquela noite não pude aguentar mais, então fui até à selva,
perto das árvores onde estava a rede de Bobby. Eu me deitaria ali, para dormir,
sob a rede que guardava o corpo de Bobby, para lhe dizer o adeus final. Porém,
quando eu saí, a casa toda me seguiu. Havia cerca de duzentas pessoas. Atravessamos
o rio juntos. Estava bem escuro sob a rede. Não havia lua.
— Vamos nos dar as mãos, fazendo um círculo que não tem nem
começo nem fim, e vamos conversar com Deus — disse eu.
Isso não era de acordo com a cultura dos motilones, mas
parecia ser a coisa exata a ser feita.
Odo, o filho adotivo de Bobby, foi o primeiro a orar. Ele
tinha apenas catorze anos, mas Deus lhe deu a oração profética mais linda que
eu jamais ouvi.
"Ó Deus", ele disse em voz alta, olhando para a
silhueta da rede de Bobby. "Deus, aqui está preto, está escuro. Eu não
posso ver. Nós estamos perdidos."
Por um momento ele ficou em silêncio, depois continuou numa
voz mais calma e diferente. "Deus, há uma árvore, com as suas raízes se
aprofundando bem fundas no solo. Somos nós, Senhor, o povo motilone.
"Nós temos vivido nesta terra toda a nossa vida,
gerações após gerações, e as nossas raízes são muito profundas, e nós nos
erguemos muito alto.
"Nós tentamos seguir a Deus, porém nós o perdemos enquanto
tentávamos segui-lo. Tentamos seguir os nossos próprios caminhos, e eles nunca
nos levaram ao lugar onde deveriam nos levar; eles simplesmente iam ter a uma
outra casa, ou outro rio. Eles nunca nos levaram além do horizonte, onde nós te
encontraríamos.
"E então Bobarishora encontrou o teu caminho em Jesus
Cristo, e ele andou nele, e nos mostrou como deveríamos andar nele. Nós nos
sentimos felizes.
"Mas, Deus! Aonde é que esse caminho o levou? Por que é
que esse caminho o levou a esse lugar? Deus, isso não pode ser!"
Ele parou. Houve um silêncio total.
"A árvore é linda", ele disse. "Ela é linda.
Ela está coberta de flores grandes e perfeitas que se abriram ao sol. Cada um
de nós é uma flor.
"Porém, há uma flor que é maior que todas e muito mais
bonita do que todas as outras. Ela produziu o fruto mais perfeito. Esse é
Bobarishora. Ele nos deu a agricultura, e os nossos estômagos ficaram
satisfeitos. Estávamos morrendo por causa das doenças, e ele nos trouxe a cura
por intermédio de Jesus Cristo, através dos medicamentos. Ele nos mostrou o
caminho de como andar com Jesus Cristo, de modo que temos razões para viver.
Todos nós estávamos entusiasmados com a sua nova vida.
"Mas, ó Senhor, está tão escuro. Um vento soprou, e o
fruto, o fruto mais perfeito secou e murchou e caiu ao solo. Suas sementes
foram chutadas e pisadas no solo escuro, bem escuro. Ele morreu ... Bobarishora
morreu, e nos deixou.
"Deus, não deixes que a semente se perca. Faze com que
as nossas vidas sejam um solo fértil de modo que a sua semente possa crescer em
nós. Faze com que a sua morte seja uma grande árvore crescendo em nosso solo,
de modo que possamos viver como ele viveu, ajudando-nos mutuamente, e
aprendendo a amar. Faze com que isso cresça em nós por causa de sua morte. Nós
te pedimos isso porque somos uma só pessoa hoje à noite, num círculo de mãos
dadas, nascidos em Jesus Cristo, teu único Filho."
O nosso círculo se partiu e lentamente foi-se separando. Eu
vi alguma coisa que nunca vira entre os motilones antes: as pessoas estavam
escondendo os seus olhos e fungando.
Ocdabidayna caminhou em minha direção, tentando sorrir. —
Olhe só para nós, todos nós estamos resfriados! — disse ele.
— Não — eu disse. — Não é resfriado o que eu tenho. Não é
resfriado!
Então Ocdabidayna, um dos líderes dirigentes, agarrou a sua
cabeça com suas duas mãos, e caiu ao chão. — Oh, Bruchko — disse ele, olhando
para mim. — Eu não sou um homem. Eu sou um bebê, um bebê muito pequeno. Somente
os bebês é que choram.
A sua tristeza abalou os motilones como eu nunca os vira tão
abatidos. Eles correram para a selva a fim de esconder um do outro as suas
lágrimas.
— Bruchko — disse Ocdabidayna — , Jesus Cristo morreu por
todas as tribos do mundo. Bobby é quase semelhante a ele. Ele morreu pelos
motilones.
Passei as três semanas seguintes recuperando-me de meus
ferimentos. Eu ansiava por deixar a selva, deixar o cheiro de morte. Também
queria informar às autoridades competentes a respeito da situação dos foragidos
da lei. Mas eu não podia sair. O rio estava cheio de emboscadas. Qualquer
pessoa que tentasse sair dali teria sido morta. Os caçadores também descobriram
que nas picadas que saíam das selvas havia armadilhas com espingardas. Um dos
homens conseguira sair e ir a Tibu, levando diversas cartas. Ele levou uma
semana para chegar lá, andando apenas à noite, e sempre evitando as picadas.
O único caminho seguro era transpondo as montanhas — uma
viagem que exigia cento e quarenta horas de marcha. Aminha perna havia sarado,
e então comecei aminha viagem. Quando eu havia caminhado metade do percurso,
ouvi um helicóptero. O Presidente da Colômbia havia mandado buscar-me. Logo eu
estava fora das selvas.
Passei uma semana muito inquieto lá em Bogotá. Que é que
tudo aquilo significava? Para os motilones, Bobby poderia crescer como uma árvore
florida. Mas, para mim, que significava a morte de meu irmão de pacto?
Uma noite, enquanto eu conversava com um dos principais
ministros do governo Colombiano, recebi a minha resposta. Ele conhecera
Bobarishora pessoalmente e tinha um grande interesse pelo povo motilone. Eu
acabara de descrever a morte de Bobby e havia lágrimas nos seus olhos.
— Mas Bruce — ele disse — , você continua falando como se
desejasse que Jesus interviesse e pusesse um fim a todas essas perturbações.
Você não pode ver que é justamente o oposto. Se não fosse Jesus, os motilones
seriam empurrados de volta às selvas, até que fossem lenta, mas seguramente,
exterminados! Se não fosse por Jesus, não haveria luta; Bobby nunca teria que
morrer da maneira que ele morreu. Não, Bruce. Não é a despeito de Jesus que
Bobby morreu. É por causa de Jesus.
Ele colocou a sua mão sobre o meu ombro. — Onde é que os
motilones estariam se Bobby não tivesse sido o tipo de pessoa a quem os
bandidos sentiam que precisavam matar? Onde é que você estaria se Bobby não
tivesse sido aquele tipo de pessoa?
— Não estaria em parte alguma — eu disse. — Eu não estaria
em lugar algum.
Portanto, a vida tem que ser semelhante a isso, pensei. Ela
precisa ser luta e choro, e até mesmo a morte.
Repentinamente vi os meus pais, e todas as dores pelas quais
passáramos ...
Vi os iucos, e os semblantes colonizadores ...
Vi os rostos dos motilones, para quem o resto do Novo
Testamento ainda precisava ser traduzido.
Havia tanto serviço a ser feito ... tantas coisas que Cristo
me chamara para fazer. Isso traria novas dores, mais solidão. E talvez a morte.
Por que é que estava sendo tão difícil? Por quê?
Então eu vi Jesus. Ele estava lutando para subir uma colina
com uma grande carga. O seu rosto estava crispado de dor. As suas costas
estavam curvadas.
Endireitei-me no encosto da cadeira, e olhei para o ministro.
— Creio que eu vejo — eu disse. — É a cruz.
Ergui a mão e pus o meu polegar sob o indicador. — É por
esta cruz.
FIM