Acordei com o cair suave da chuva. A casa comunitária estava
cheia daquela luz suave da manhã, e todos os outros estavam dormindo. Deve ter
chovido a noite toda, porque ninguém havia saído para caçar. Virei-me na minha
rede e voltei a adormecer.
Algumas horas mais tarde acordei. Ainda estava chovendo.
Isso é estranho eu pensei. Quase nunca chove na selva durante o dia.
Vários meses já se haviam passado desde aquela epidemia de
sarampo. Tinha sido um período de descanso, e eu esperava pelo meu casamento
com Glória, e a oportunidade de passar uma boa parte do tempo com Bobby. Eu
também estivera trabalhando num material sobre linguística, que eu havia
colecionado durante os dez anos que ficara com os motilones. Entre linguistas
havia muito interesse pelo meu material, e eu estava planejando publicar alguns
trabalhos a respeito da língua dos motilones.
Resolvi trabalhar nesse projeto. Não havia muita razão para
eu tentar fazer outra coisa, enquanto estivesse chovendo. Fui até ao centro de
saúde, que ficava a uma distância de quinhentos metros. Estava apenas garoando,
mas havia poças de água em toda parte. Caminhei junto ao bananal e vi que as
plantas mais novas estavam crescendo muito bem. Nenhuma delas havia sido
derrubada pelo vento. Escorreguei no barro e caí; desandei a rir. Não podia me
lembrar de quando vira tanta água assim.
Lá no centro de saúde eu me sentei à escrivaninha que nós
fizéramos, cortando uma parte de uma árvore de mogno, que havia caído. Ela e um
arquivo à prova de água e de inseto para os meus papéis, eram as minhas
possessões mais valiosas.
A água caía alegremente no telhado de zinco do centro de
saúde, e eu me preparei para trabalhar. Um pouco mais de uma hora depois, fui
perturbado por vozes que falavam alto. Fui até à porta e olhei para fora. Dois
homens motilones estavam gritando do outro lado do rio, pedindo uma canoa para
trazê-los de volta. A canoa estava cheia de água e precisava ser esvaziada.
Como a água estava muito alta, por causa de tanta chuva, levou algum tempo
antes que os homens pudessem atravessar e voltar com os dois passageiros. Resolvi
ir até a casa, para ouvir o que eles tinham a dizer. Eu sabia que eles eram de
uma área que ficava não muito distante de Tibu, e achei que talvez tivessem um
recado para mim.
Quando cheguei à casa comunitária, todos observavam os dois
homens enquanto comiam. Eles estavam andando pelos caminhos havia vários dias,
e estavam cansados e famintos. Riam-se de algumas das coisas que lhes
aconteceram. Evidentemente havia sido uma viagem muito dura. Um bom número de
árvores havia sido derrubado, e alguns dos rios foram difíceis de atravessar.
Eu me abaixei junto a eles para ouvir. Alguns minutos depois, Bobby também
chegou. Acenei com a mão para ele e sorri. Os dois homens falavam a respeito de
uma caçada que fizeram e um deles contou uma história muito engraçada a
respeito da topada que dera no dedo, durante a viagem. Aborrecido, levantei-me
para sair. Eles não tinham nada para conversar, senão uma conversa fiada.
Voltei ao centro de saúde e comecei a escrever novamente.
Uma hora mais tarde, levantando os olhos, vi os dois parados
junto à porta. Eles me entregaram um pacote contendo cinco envelopes.
— De onde é que vem isso? — perguntei.
Eles encolheram os ombros. — George Camiyocbayra no-los deu
para entregá-los a você — . George possuía uma procuração lá em Tibu.
— Obrigado — disse eu.
Eram telegramas. Abri o primeiro. "Ela foi
enterrada", dizia.
Quem é que fora enterrada? Deveria ser a mãe de Glória. Mas
não, fora a sua mãe que enviara o telegrama. Ela o havia assinado no final.
Rasguei os outros. Glória sofrera um acidente. O seu carro
se lançara sobre um penhasco. "Venha em seguida", dizia um dos
telegramas. "Estamos esperando por você. Venha imediatamente." E ele
estava datado de duas semanas atrás. O outro telegrama dizia que Glória
falecera e que seria enterrada dentro de três dias.
Atirei os telegramas ao chão e corri para a casa comunitária.
Bobby estava fazendo suas flechas. Ele olhou para mim com o mesmo sorriso
alegre que tivera quando menino.
— Bobby — solucei — , ela não virá. Ela não virá mais aqui.
— O quê? — disse ele.
— Ela não virá, Bobby. Glória não virá mais. Ela morreu. Ela
está morta.
Um outro motilone se aproximou e pôs as mãos sobre o meu
ombro, não sabendo que eu estava transtornado. Afastei-o de mim.
— Como é que você sabe que ela está morta? — Bobby
perguntou.
— O papel diz isso. Aquelas cartas que vieram hoje de Tibu.
— Bobby — eu disse — , preciso ir a Bogotá. Nós precisamos
ir agora mesmo.
— Pois bem, nós iremos — ele disse. — Assim que as águas
baixarem, partiremos.
Aquele foi um dia muito longo. Às vezes a tristeza era muito
maior do que eu podia suportar. Outras vezes, era quase irreal. Eu quase não
podia acreditar que tivesse acontecido. Li e reli os telegramas várias vezes.
Bobby conversou comigo e cantou para mim, falando sobre Glória, relembrando
como fora ela a primeira mulher estrangeira a vir até à região dos motilones.
Relembrando como havia pegado o seu peixe com o arpão.
A minha mente estava a todo momento envolvida com a morte de
Glória, semelhante a uma máquina que não parava de trabalhar. Eu não podia
chorar nem orar, apesar de tentá-lo. Mas orar para quê? Ela já estava morta.
Ela já havia morrido fazia várias semanas.
Aquela noite eu acendi uma vela e fiquei na minha rede
ouvindo a chuva. Ela continuou o dia todo e agora caía a cântaros. De repente
senti que eu precisava sair dali. Eu precisava ir a Bogotá. Eu precisava ver,
pelo menos, o túmulo de Glória e conversar com a mãe dela. Se eu não fosse,
nunca saberia se realmente aquilo não fora um pesadelo.
Virei-me na rede a noite toda, esperando que amanhecesse. Às
três horas da manhã acordei e fui sacudir Bobby.
— Bobby, quero ir agora. Eu preciso ir a Bogotá. Acho que já
está amanhecendo, e nós podemos viajar.
Ele me disse que voltasse para a minha rede. Ainda estava
escuro e chovendo. Depois, então, realmente começou a chover torrencialmente.
Orei para que a chuva parasse. Ouvi o barulho das águas do rio correndo sobre
as rochas e penhascos; depois o som parou, então eu sabia que as águas haviam
transbordado sobre as margens. Quando amanheceu, elas haviam atingido três
metros e meio, além do nível da inundação e estavam quase dois metros distantes
da casa comunitária.
Mas eu precisava descer o rio. Era um impulso irresistível.
— Bobby — disse eu — , vamos!
— Bruchko, não podemos. Nós vamos nos afogar!
— Mas eu sei que você é um bom piloto, Bobby. Sei que você
pode nos levar rio abaixo.
Ele sacudiu a cabeça. — É impossível. O rio está muito alto.
Eu não estava pedindo a ele. Eu estava ordenando. E,
finalmente, entristecido, ele concordou. Empacotei o meu material de linguística
numa sacola à prova d'água, engaiolei os dois ursinhos que desejava mandar para
um amigo nos Estados Unidos. Mais ou menos às dez horas, partimos. Se bem que o
rio já tivesse baixado perto de um metro e meio, mesmo assim ainda estava alto,
as águas barrentas e feias, com remoinhos sorventes com uma espuma amarela, ao
redor das rochas. Bobby estava preocupado.
— Você tem certeza de que precisa fazer isso, Bruchko?
— perguntou. — O rio está alto demais para tentarmos ir. Não
respondi. Simplesmente continuei a pôr os pacotes na canoa.
Finalmente, partimos. Bobby, eu e mais dois outros homens.
Outros motilones chegaram até à casa e ficaram ali na chuva a nos dizer adeus.
— Quando você for ver a mãe de Glória, diga a ela que o meu
estômago sente dor por ela — disse Atacadara, a esposa de Bobby. — Diga a ela
que quando ouvimos dizer que Glória havia morrido, nós não pudemos comer.
Sabemos como ela se sente.
Dei um último olhar à casa e subi na canoa. Demos-lhe um
empurrão e as águas nos envolveram e nos levaram rio abaixo.
Não tínhamos que lutar contra a corrente, nem mesmo com o
motor do lado externo da canoa. Tudo o que tínhamos a fazer, era nos desviarmos
dos maus lugares. O rosto de Bobby estava tenso. Ele conhecia o rio melhor do
que qualquer outra pessoa viva, porém nem ele mesmo podia prever os troncos,
quando as águas barrentas estavam correndo com uma velocidade duas vezes mais
rápido do que o normal.
De repente um enorme tronco rolou ao lado de nossa canoa, à
esquerda, Nós o observamos atentamente, para termos a certeza de que ele não
iria virar e nos atingir. Enquanto nos aproximávamos de uma curva do rio,
percebi que havia um remoinho à nossa direita. Aquele tronco nos levaria para
lá, se não fôssemos cuidadosos.
— Bobby, cuidado aí na sua frente! — gritei. Porém ele
estava debruçado sobre o motor. A linha de nylon que controlava o acelerador
havia-se partido e ele estava tentando consertá-la.
De repente, um outro tronco surgiu, vindo do fundo do rio.
Ele bateu no tronco maior, à nossa esquerda, fazendo-o bater em nossa canoa, o
que fez com que ela fosse atirada direta¬mente na direção ao remoinho. Bobby
tentou desligar o motor, para diminuir a marcha e se afastar do tronco. Mas não
houve tempo. Podíamos ver o remoinho, bem perto e duas vezes maior do que o seu
tamanho normal. Bobby tentou desviar a canoa ao redor, e ir contra a corrente
de água, porém ela era muito forte. A canoa atingiu as bordas do remoinho.
Todos nós fomos atirados para fora dela. Vi os tanques de gasolina flutuando na
água. Eu tinha os meus papéis nas mãos, e os dois ursinhos debaixo de um braço.
Eu queria me agarrar ao barco para me manter sobre as águas, e então deixei
escapar os ursos. Em seguida eles começaram a nadar, e eu agarrei o barco com
uma das mãos e segurei os meus papéis com a outra.
Então vi Bobby sendo levado para o centro do remoinho. Sem
um borrifo qualquer ele foi levado para baixo e desapareceu. Eu não podia ver
coisa alguma, senão o cone lamacento de água suja. A canoa começou a se
aproximar do remoinho e começou a se mover rapidamente. Todo esse tempo estávamos
girando e girando. De repente fui atirado para longe do barco e levado pela
água. Eu ainda estava segurando os meus papéis. A água me carregou uma vez, num
círculo, e depois mais outra, aproximando-me cada vez mais do olho do remoinho.
Não havia jeito de evitá-lo.
Na terceira vez que dei a volta, vi um ramo de árvore
estendido sobre a água. Fiquei pensando por que é que eu não o vira antes.
Estendi a mão que estava livre e agarrei-o. Ele estava firme. Então olhei para
cima e vi um dos motilones na outra extremidade. Ele me puxou para fora da
água, com as mãos para cima, e depois eu gatinhei para a margem, no barro,
tentando sorver o ar. Louvado seja Deus!
Mas onde estava Bobby? Então eu compreendi o que fizera, ao
insistir nessa viagem tão maluca! Bobby morrera.
— Você viu Bobby? — perguntei freneticamente.
— Não. Ele desapareceu no remoinho.
Eu disse aos homens que eu ia saltar novamente e ir rio
abaixo, até encontrar Bobby. Porém eles disseram que eu não poderia, pois o rio
me sorveria e eu também morreria.
Um rochedo contornava o rio naquele local, e nós não podíamos
ir rio abaixo sem escalá-lo, por isso começamos a nos arrastar para cima. Eu
estava desvairado. Caí e cortei o dedo.
Eu preciso achar Bobby, disse a mim mesmo.
Deixei os papéis e continuei subindo. Tornei a cair novamente,
e fiz um corte muito profundo na perna. Quando cheguei ao topo, um espinho
espetou meu pé descalço. Penetrou uns dois centímetros, e tive que parar por
causa da dor. O inferno todo se abriu contra mim, pensei. Mas fui-me arrastando,
e assim que pude ficar de pé, olhei ao redor e sobre o rio, investigando as
suas margens.
Vi a canoa, que parecia com uma agulha chata, ao longo de
uma das margens. Então eu vi Bobby segurando-se a ela. Oh, Deus! Corri pela
colina abaixo, caindo sobre as rochas. Cheguei até lá e ajudei-o a retirar a
canoa; depois o ajudei a sair da água. Coloquei a minha mão no seu ombro.
— Eu achava que você havia morrido — disse ele.
— Eu achava que você havia morrido — disse eu.
Ele estava completamente nu: o remoinho havia estraçalhado
toda a sua roupa.
— Veja — disse ele — , perdi toda a minha roupa que iria
usar no mundo civilizado e o meu dinheiro estava nela.
— E que importância tem isso? — eu disse — Você está vivo.
Jesus seja louvado!
Depois os outros dois homens se aproximaram. Eu estava tão aliviado,
que quase não podia falar muita coisa. Sorri e os toquei. Depois, então,
baldeamos a canoa e continuamos rio abaixo.
O resto da viagem correu sem nenhum incidente. Quando
estávamos a poucos quilômetros do Rio de Ouro, paramos junto ao rio. Bobby fez
um cordão-G de uma folha grande e fomos à cidade.
Quando eu entrei no avião, para ir a Tibu, Bobby colocou a
sua mão no meu ombro. — Diga à mãe de Glória que estamos famintos por ela, que
todos nós estamos tristes porque ela morreu — disse ele. — Cuide de você e
volte logo.
— Eu voltarei — prometi.