Eu estava em Tibu, trabalhando na casa que Glória e eu
iríamos usar, gozando a idéia de morar ali com ela, e sentindo certo prazer no
trabalho de carpintaria do telhado. Por intermédio de uma das casas dos
motilones, fui informado de que grassava uma doença que os médicos feiticeiros
não eram capazes de tratar. Reuni todos os medicamentos que pude, pedindo ou
tomando emprestado, e parti no dia seguinte.
Só cheguei àquela casa alguns dias mais tarde. Ninguém se
aproximou da clareira ensolarada para me saudar. De dentro da casa eu podia
ouvir gemidos e choros. Abaixei-me e entrei.
Havia corpos espalhados por toda parte. O único sinal de que
eles estavam vivos eram os lamentos e lamúrias constantes que, uma vez ali
dentro, pareciam um cântico de loucos. Havia ali um mau cheiro horrível, que
fez com que o meu estômago baqueasse.
Corri de uma pessoa para outra, reconhecendo os amigos,
incapaz de parar e ajudar uma pessoa, porque no momento que eu parava para
ajudar, um gemido mais forte me fazia correr para outra pessoa. As pessoas
estavam deitadas sobre o seu próprio vômito, incapazes de limpar-se. As suas
fezes estavam espalhadas ao redor de suas redes. Algumas pessoas haviam caído
da rede e estavam deitadas no chão sobre toda aquela sujeira.
Comecei a limpar aqueles que estavam mais sujos e dar os
remédios. Eu mal acabava de limpar um homem, quando em seguida ele defecava, ou
vomitava, e todo o meu trabalho estava perdido. Eu tentava dar-lhes
comprimidos, e estes eram vomitados em meu rosto. Não demorou muito para que a
minha roupa e a minha pele estivessem duras por causa do vômito que havia
secado.
A maior parte das pessoas ali estava sem alimento e sem
água, havia mais de cinco dias; portanto, um dos maiores perigos era a desidratação.
A pele sobre os seus corpos estava flácida. Visto como não podiam beber sem
vomitar, os piores casos tiveram que ser alimentados através de injeções intravenosas.
Na primeira noite não dormi um instante sequer. Eu estava
morrendo de sono, mas não podia me deitar enquanto as pessoas estavam às portas
da morte. Continuei a movimentar-me; minhas pernas e meus pés doíam, e eles
queriam desmoronar.
No dia seguinte, Bobby e mais alguns homens chegaram. Entre
eles estava o meu velho amigo Adjibacbayra, o chefe que havia desafiado Bobby
para cantar, no Festival das Flechas, quando pela primeira vez os motilones
ouviram falar de Jesus. Coloquei minhas mãos sobre os seus ombros, dando-lhes
as boas-vindas. Era como se eu fosse a única pessoa viva num mundo de
fantasmas.
Naquele dia houve sinais de melhora. Os remédios e as
injeções endovenosas estavam produzindo resultado. E ter outros para trabalhar
conosco era animador. À medida que foi escurecendo, comecei a antecipar que
poderia dormir. Quando acendemos o fogo e trabalhamos à luz de uma chama
bruxuleante, aquela idéia se tornou uma obsessão. A única razão que fazia com
que eu continuasse trabalhando, era a idéia de que logo estaria terminado.
Mas as horas foram-se arrastando, e cada minuto era tão
doloroso como a espetada de uma faca.
Várias vezes eu dizia a mim mesmo, marcando um limite:
"Às dez horas eu vou parar." Mas as dez horas passavam, e havia muito
mais ainda para ser feito.
Às duas horas da manhã cheguei ao meu ponto máximo. Houve um
alívio momentâneo com as doenças, e eu me levantei e procurei Bobby. Ele veio
em minha direção.
— Vamos dormir — disse ele, e o meu coração respondeu, Oh
sim! — Então, às cinco horas, será melhor nos dirigirmos a Iquiacorara.
Teria eu ouvido, "Iquiacorara?"
— Sim — disse ele. — Lá está tão ruim como aqui.
— Bobby — eu disse — , você quer dizer que esta não é a
única casa?
— Oh, não — disse ele. — Todas as casas lá na área mais
baixa foram atingidas pela doença. Eles não se acham tão doentes como estes
aqui, mas todos estão muito doentes.
Fechei os olhos e parecia que a escuridão estava girando
dentro deles. Mais doença! Mais vômito. Talvez, até, alguns já tivessem
morrido. Oh, Senhor, livra-me.
A coisa que percebi, em seguida, é que eu estava sendo
sacudido para acordar. Abri os olhos e percebi que estava deitado numa rede, e
Bobby estava ali ao meu lado.
— Bruchko, você precisa se levantar — estava Bobby dizendo.
— Nós precisamos ir a Iquiacorara.
Com muito esforço me levantei da rede.
Não perdemos tempo em nos lavar. Bobby já havia dito a
alguns homens e mulheres que se haviam recuperado o suficiente para se
levantarem e circularem, o que deveriam fazer para ajudar aos outros. E então
partimos.
O pior daquela epidemia continuou cerca de três semanas.
Durante aquele tempo, eu não conseguia dormir mais do que duas ou três horas,
em cada vinte e quatro horas. Setecentas pessoas foram tratadas de sarampo ou
dos efeitos dessa doença.
Milagrosamente, apenas uma pessoa faleceu — uma meninazinha.
Quando a vi pela primeira vez, ela estava com Adjibacbayra. Ela havia diminuído
por causa da desidratação, e estava do tamanho de um bebê. Adji estendeu a mão
e tocou-lhe a pele. Ela estava solta e semelhante à borracha. Ele fez uma dobra
num pouco de pele e ela ficou dobrada quando ele retirou a mão. Dois dias
depois, apesar de todos os nossos esforços, ela faleceu.
Aquela noite eu não pude deitar-me. Estava cheio de rancor.
Eu precisava andar, mover-me. Comecei a caminhar em direção a outra casa
comunitária, sozinho. Acho que eu estava meio delirante, porque não me sentia
cansado. Minha raiva ardia como brasa, forçando as minhas pernas exaustas a caminhar.
Chegado ao topo da colina, vi um par de olhos à minha
frente, de um brilho amarelado. Pensei que fosse um sapo, pois que certos sapos
têm olhos daquela cor. Então percebi que os olhos estavam muito separados.
Pensei que talvez fossem dois sapos.
Então ouvi um silvo. Os olhos se moveram. E eu vi um corpo
comprido, liso, movendo-se delicadamente. Era uma pantera, a primeira que eu já
vira.
Parei. Toda a minha raiva se transferiu para os olhos frios,
fixos, daquele animal. Eu o odiei. Tateei em volta de meu pé, e encontrei um
pau. Peguei-o e gritando corri atrás da pantera. Ela grunhiu e se abaixou.
Então quando eu estava cerca de trinta centímetros dela, ela se virou e num
salto silencioso e rápido foi-se embora.
Fiquei ali, gritando. Então percebi o que havia feito. Meu
coração começou a bater depressa e de repente fiquei com medo que a pantera
voltasse.
"Obrigado, Senhor", murmurei ali no meio daquela
escuridão.
No dia seguinte deixei a selva. Eu precisava de mais medicamentos,
e a epidemia já havia abrandado o suficiente, de modo que eu não faria falta.
Havia um bom número de motilones trabalhando sob as ordens de Bobby.
Durante uma semana e meia lidei com relatórios e balancetes
financeiros, em vez de lidar com panteras, e não sabia bem qual deles eu
preferia. Tentei conseguir auxílio do governo colombiano, e de tomar emprestado
de qualquer pessoa que pudesse me emprestar. Quando julguei ter o suficiente,
voltei às selvas.
Encontrei Adjibacbayra às portas da morte. Visto como
havíamos trabalhado lado a lado durante três semanas, eu concluíra que ele
tinha imunidade natural à doença. Porém, não somente havia contraído a doença,
mas também estava com pneumonia, como resultado dela. Ele não podia comer. Dois
dias após a minha chegada, ele caiu em estado de coma. Seu corpo estava
amarelo, e as moscas lhe andavam sobre o peito, onde o vômito havia secado. Seu
rosto estava coberto de pequenos pontos azuis, resultado da erupção. Era uma
situação horrível para o homem que fora tão forte a ponto de cantar a Canção
das Flechas durante catorze horas, quando o Espírito de Deus se derramara sobre
os motilones.
Enquanto eu olhava para ele, ele piscou os olhos e acordou.
Debrucei-me sobre ele. Seu rosto estava pintado como se fosse uma máscara e
havia sulcos provocados pela dor.
— Bruchko — disse ele — , o meu corpo dói. Eu estou todo
dolorido.
— Psiu — eu disse. — Você precisa ficar quieto. Queremos que
você fique bom. Queremos que fique forte.
Ele sacudiu a cabeça, muito lentamente. — Não, Bruchko.
Eu não estou bem e não sou forte. Eu já fechei os olhos.
E realmente os seus olhos se fecharam, e ele desmaiou.
Fiquei ali perto dele. Mais tarde ele voltou a abrir os olhos.
— Bruchko, eu ouvi uma voz semelhante à dos espíritos quando
eles tentam matar.
Concordei com um aceno de cabeça.
— Mas essa voz me chamou pelo meu nome secreto, pelo meu
verdadeiro nome. Não há nenhum ser vivo que saiba o meu verdadeiro nome, porém
esse espírito me chamou pelo meu nome verdadeiro. Então eu respondi e disse:
"Quem é você?" e ele disse, "Eu sou Jesus que andei com você na
sua picada."
Diversos homens se reuniram ao redor dele, inclusive o pai
daquela menina que havia falecido.
— Então contei a Jesus que eu estava sentindo dores em toda
parte, da cabeça aos pés. E Jesus me disse que ele queria que eu voltasse para
o lar.
A sua respiração estava entrecortada.
— Ajuda-me, irmão! — sussurrou ele, olhando para mim.
— Ajuda-me! — E depois virou os olhos para outro lado.
— Você não pode — disse ele — , a morte me abraçou. Estou
partindo. Bruchko, eu vou indo. Não posso enxergar. Eu sinto uma dor. Só Deus
está aqui e ele quer me conduzir no caminho que nós nunca pudemos achar nas
nossas caçadas, o caminho que vai além do horizonte para o seu lar.
Então ele sorriu, e o seu rosto, por uns instantes, estava
semelhante ao rosto que eu conhecera. — Não estou só — ele disse. — Não estou
só. Eu não andarei naquele caminho sozinho. Há um Amigo que quer me levar. E
ele conhece o meu nome, o meu verdadeiro nome.
Depois o seu corpo cedeu. Ele agarrou a minha mão, e aos
poucos os seus dedos ficaram flácidos. Coloquei a sua mão junto ao seu corpo e
saí para fora da casa.
Eu parei lá na clareira. O sol estava brilhando. Era inacreditável.
Caminhei para a selva, onde era agradável, fresco e escuro, e encontrei uma
picada e comecei a andar nela, sem saber e sem me incomodar para onde ela me
levaria. Então comecei a cantar a canção de Adji, a canção que ele cantara na
picada. Comecei a cantar suavemente, mas logo eu estava cantando a plenos
pulmões, e estava chorando.
"Deus", eu cantei, "eu amava o meu irmão. Eu
anseio por cantar a sua canção com ele novamente."
Senti o toque de uma mão sobre o meu ombro. Olhei ao redor,
amedrontado. Era Atrara.
— Não chore — disse ele. — Não fique triste. A fala dele foi
além do horizonte. Ela não está perdida nas selvas. Você não precisa cantar
aqui. Ela foi para um outro lugar.