segunda-feira, 3 de maio de 2021

Por esta cruz te matarei - Capítulo 20


 COMO DAVI E JÔNATAS

George Camibocbayra encontrou-se comigo no lado de fora da casa e me levou a um lado. — Será melhor que você vá já ver Bobby — ele disse. — A sua filhinha está muito doente, e eles a levaram ao hospital em Tibu.

Entrei na casa e encontrei Bobby sentado numa esteira, olhando para os pés. Seu rosto estava triste; coloquei a mão sobre o seu ombro. Ele olhou para cima, e depois novamente para os seus pés.

— Ouvi dizer que sua filha está doente — disse-lhe.

Ele assentiu com a cabeça. — Nós a levamos a Tibu, há três dias.

— Por que você voltou para cá?

— Eu tinha de cuidar de minha esposa. Ela está grávida, você sabe. E eu tenho outros trabalhos a fazer, trazer o mantimento e levar as coisas para vender. E que poderia eu fazer lá em Tibu?

— E no entanto — eu disse, sorrindo levemente — parece-me que tampouco você está sendo muito útil aqui.

Ele olhou para mim novamente. Seu rosto parecia cansado e envelhecido.

— É, isso é verdade — disse ele. — Eu não posso deixar de pensar nela.

Ele se levantou e ficou ao meu lado. Olhei para Atacadara, sua esposa. Ela estava em pé, olhando para Bobby, com uma grande preocupação. O seu ventre estava grande, por causa da gravidez, no entanto, ela ainda conservava o seu rosto fino, e os olhos escuros de uma mulher muito linda. Ela amava Bobby. Mesmo com a filhinha doente, e longe, lá no hospital, ela estava muito mais preocupada com Bobby.

Voltei a olhar para Bobby. — Vamos orar juntos a favor de sua filha — eu disse. — E depois irei a Tibu para ver se posso auxiliar em alguma coisa. Você deve ficar aqui e cuidar de Atacadara.

Quatro dias depois eu estava junto ao leito daquela criança. Seu corpo parecia diminuído. Estava que era pele e ossos, e os olhos tinham uma membrana fina sobre eles.

O médico estava ali junto de mim. — Que doença ela tem? — perguntei.

Ele era um rapaz recém-formado. — Não sabemos — ele disse. — Talvez seja uma combinação de diversas coisas. Não sei se poderemos fazer muita coisa a seu favor.

Um arrepio gelado me percorreu todo o corpo, até à ponta dos dedos. — O senhor quer dizer que ela vai morrer?

— Quem é que sabe? — ele disse. — Se não descobrirmos o que há de errado com ela, provavelmente morrerá.

Saí do hospital lembrando-me de como Bobby costumava erguê-la até à minha rede. Eu costumava sentá-la no meu estômago e cantar canções para ela, enquanto ela sorria e balbuciava, na tentativa de falar.

Lembrei-me de quando Bobby se casara com Atacadara. Fora logo depois que ele aceitara a Cristo. Atacadara fora a moça mais linda e mais inteligente da casa comunitária. Bobby a fizera saber, através de um amigo, que gostava dela. Todas as vezes que se viam e se encontravam, ambos enrubesciam. Atacadara sentia-se apaixonada por Bobby. Era um jovem guerreiro, forte, vistoso, e que era, pode-se dizer, um prêmio valioso da tribo.

Um dia ela mudou a rede para junto da de Bobby, e eles se casaram. O pai dela ficara muito zangado. Ele não estava interessado num genro. Ele queria que a filha ficasse junto à família. Mas ela se recusara.

Ri quando me lembrei de como me sentira na ocasião. Eu tivera receio de que o casamento pudesse trancar a nossa amizade, e que nunca poderíamos nos sentir tão perto novamente. Porém, tudo se deu de modo diferente. Atacadara e eu havíamo-nos tornado irmão e irmã, e quando a sua primeira filha nasceu, de acordo com os costumes motilones, eu era o seu segundo pai. Nós nos havíamos tornado numa só família.

Bobby era um pai e esposo devotado. Não era muito comum entre os homens motilones partilhar muita coisa com suas esposas, porém Bobby e Atacadara, desde o início de seu casamento, eram muito chegados um ao outro. Fora a conversa de Bobby, antes mesmo do Festival das Flechas, que a levara a conhecer a Cristo. Eles não eram apenas marido e mulher, mas amigos. Muitas vezes eles se deitavam na mesma rede e conversavam por horas seguidas. Podia-se ouvir as suas vozes, bem baixinho, sussurrando através da casa comunitária, até altas horas da noite.

E agora a filhinha deles estava às portas da morte. Deus tinha que curá-la. Ela significa muita coisa para Bobby e Atacadara.

No dia seguinte, quando o médico me informou que ela falecera durante a noite, foi como se eu recebesse um soco no rosto.

Eu precisava contar isso a Bobby. Quando lhe contei, o seu rosto empalideceu. Sem dizer uma palavra sequer, ele caminhou em direção à selva, e não voltou até à noite. E assim mesmo, ele não conversou, e não mostrou sinal algum de afeto por Atacadara ou por mim. Dois dias mais tarde, Atacadara deu à luz outra menina, mas Bobby simplesmente fez um leve reconhecimento. Todos os dias ele fazia uma grande caminhada pela selva. Quando voltava, não fazia menção de onde estivera. Se eu conversasse com ele, geralmente não respondia.

Era, na verdade, sua primeira prova como cristão e estava sendo muito difícil. Continuava a não mostrar nenhum sinal de amor por Atacadara e pela outra filhinha. Orávamos por ele, porém durante duas longas semanas havia somente uma grande tristeza.

Então ele começou a observar a nova filha. Eu a peguei e a coloquei nos seus braços. Ele a segurou e a balançou. Dentro de uma semana, ele a estava levando a toda parte, e ele e Atacadara eram mais amigos do que nunca. Todos observavam essa união. O sogro de Bobby, que ficara zangado com aquele casamento, começara a tomar as refeições junto com eles. Ele podia ver que estivera errado. Mais tarde ele se tomou cristão, principalmente por causa do relacionamento matrimonial de sua filha.

A família de Bobby crescera também. Dentro de um ano, o seu primeiro filho nasceu, e isso o fez muito feliz. Porém, ele não era egoísta em relação à sua família. Pensei que talvez ele fosse passar o tempo todo trabalhando para os seus, em vez de cooperar com os outros motilones. Mas parece que se deu o oposto; seu amor pela sua família parecia transbordar para todos, e estava, mais do que nunca, interessado no bem-estar alheio.

Numa de nossas viagens ao território dos motilones, que ficava montanha acima, encontramos um menino de oito anos, mais ou menos, que se chamava Odo. Toda a família daquele menino havia morrido numa epidemia; não tendo ninguém, estava crescendo como um jovem delinquente. Ele passava de uma casa comunitária para outra, sempre encontrando alguma coisa para comer, porém nunca era totalmente aceito.

Ele não era um menino muito agradável. Achava, pelas suas condições, que deveria ser alimentado e que deveriam cuidar dele; mas nunca era grato, quando alguém o fazia. Frequentemente estava em apuros e transtornava as coisas.

Bobby e eu já havíamos observado aquele garoto, porém, como estávamos simplesmente de passagem, não pensei muito no caso. Contudo, Bobby não deixava de preocupar-se. Um dia ele me disse que iria levar Odo consigo, quando partíssemos.

— Para que, Bobby? Ele só vai nos atrapalhar.

— Ele precisa de alguém — disse Bobby. — Quem sabe, se ele nos acompanhar, poderá ajudar-nos e nós poderemos ajudá-lo.

Quando sugerimos a Odo que nos acompanhasse, ele ficou desconfiado.

— Por que vocês querem que eu vá com vocês?

Bobby não deu atenção à sua suspeita. — Nós precisamos de um auxílio extra. Há tanto trabalho para ser feito, e é demais para nós dois. Todo mundo pode ver que você é esperto, portanto achamos que você aprenderá rapidamente.

Odo olhava ora para um e ora para outro, para descobrir o que realmente queríamos com ele; finalmente, fez sinal que sim com a cabeça. — Está bem — disse ele.

A princípio não foi fácil aguentá-lo. Bobby me surpreendia pela sua paciência. Ele nunca se zangava e aparentemente não parecia estar perturbado. Dentro de algumas semanas comecei a observar certa mudança nas atitudes de Odo. Ele estava constantemente perto de Bobby. Em vez de nos atrapalhar, pelo contrário, ele realmente estava começando a nos ajudar. Quando voltamos para a nossa casa comunitária, Odo nos acompanhou e se tornou parte da família de Bobby. Quando, antigamente, ele estava sempre sujo, agora começara a se lavar, apesar de que Bobby nada comentara a esse respeito.

Dentro de alguns meses, ele estava sendo notado pelas pessoas, não por causa de seu mau comportamento, mas pelo fato de que era um jovem valioso. Ao imitar Bobby, ele se preocupava pelos outros.

Essa foi a época mais feliz e agradável que eu já tivera. Bobby e eu estávamos constantemente juntos. Não havia segredo algum entre nós. Eu podia notar que ele estava-se tomando um líder jovem de projeção entre os motilones. Eu nunca precisava dizer-lhe o que tinha que fazer. Na verdade, quando ele vinha a mim, em busca de conselhos, eu lhe dizia que ele precisava decidir por si mesmo. Outros jovens que também haviam aceitado a Cristo, e que sentiam certa preocupação pelos outros, começaram a trabalhar conosco. Desenvolveu-se um sistema de liderança. Era extraordinário ver o trabalho progredir. Novas colheitas foram desenvolvidas, as pessoas doentes foram curadas, e cada vez mais, outros motilones encontravam a sua verdadeira identidade em Cristo.

Porém, o melhor de tudo, eram as horas que eu passava com Bobby. A Bíblia diz que Davi, em seu amor a Jônatas, "era muito maior do que o amor que tinha por qualquer mulher". Eu nunca compreendera isso. Mas há um perfeito amor fraternal, e à medida que esse amor a Bobby crescia, deixei de me preocupar para onde ele nos levaria. Eu simplesmente queria passar o tempo com ele, com sua família, e gozar as coisas que Deus nos dera.

Talvez as nossas melhores horas fossem aquelas após a refeição da noite, quando nos sentávamos ao redor do fogo ou ficávamos deitados em nossas redes, Bobby e Atacadara juntos, Odo e eu ali perto, com os filhos de Bobby passando de um para outro, rindo alegremente. Cantávamos as canções dos motilones e conversávamos sobre os acontecimentos do dia. Se tivéssemos comido uma boa refeição, alisávamos os nossos estômagos, ou eu ia até à rede de Bobby e batia no seu estômago e ríamos juntos. Contávamos histórias e lendas do passado dos motilones, e sempre as histórias de Jesus e das coisas que ele fizera quando homem e quando andara no trilho dos motilones. Às vezes eu tirava a minha Bíblia e conversava a respeito de uma passagem. Finalmente os fogos se extinguiam, o ar ficava silencioso e a chuva noturna começava a cair. E um a um, caímos no sono.

Um dia Bobby me perguntou se não podíamos traduzir a Bíblia, de modo que os motilones pudessem entendê-la por si mesmos. Eles queriam saber mais a respeito de Jesus. Até então, eu passara uma boa parte do tempo contando a eles a respeito de Jesus, e respondendo as suas perguntas. Eu sabia que sozinho não poderia traduzir a Bíblia no idioma deles, porque ainda não dominava completamente a língua e não tinha uma compreensão total das lendas dos motilones. Porém, com o auxílio de Bobby, seria possível, porque não havia barreira alguma em nossa comunicação.

E então começamos a traduzir o livro de Marcos. Uma coisa é aprender a falar uma nova língua, porém outra totalmente diferente é colocar um livro todo, semelhante ao de Marcos, num novo idioma. Nas minhas viagens, fora das selvas, adquirira vários volumes sobre linguística e como fazer traduções, e encontrei-me com um jovem de Caracas que estava interessado em usar um computador para auxiliar na tradução. Desde que havia muito tempo me interessava pela linguística, foi animador e excitante estar envolvido nisso.

Porém, a parte mais excitante do trabalho foi a parte concreta da tradução que eu fiz com Bobby. Uma vez determinado como escrever a linguagem dos motilones, ainda havia o problema de fazer com que as frases bíblicas fossem compreensíveis. E era aí que Bobby auxiliava.

Como é que se pode falar a uma tribo primitiva a respeito de coisas como graça, quando no seu vocabulário não há tal palavra? Às vezes eu tentava adaptar uma idéia cristã à cultura dos motilones. Eu já tivera sucesso com a palavra/é que eu relacionara com "suspender a sua rede em Cristo", e a palavra encarnação que eu relacionara à lenda do homem motilone que se tornara numa formiga. Se a minha tentativa fosse boa, Bobby o confirmava. Outras vezes, ele dizia: "Não, isso não está certo, Bruchko. Jesus não é assim"; e eu precisava tentar novamente.

Ele, também, me esclarecia a respeito de certos aspectos da cultura em que eu falhara compreender completamente. Os motilones, por exemplo, sempre usam nomes que tenham um significado. Não há nomes como Kent ou Kim que são apenas nomes e nada mais. Então, os personagens bíblicos precisavam receber nomes que tivessem sentido. Abraão, tornou-se no "O Homem que Conhece a Deus". João Batista ficou sendo chamado o " Anunciador" e "Habitante das Selvas", e Jesus "O único Filho de Deus conosco".

Todas as vezes que tínhamos que dar um nome, ficávamos longas horas ao redor do fogo discutindo a pessoa e qual seria o melhor nome para ela. Muitas vezes, outros motilones se reuniam conosco e nos ajudavam na decisão.

Algumas das parábolas pareciam também que não se adaptavam à cultura dos motilones. Tomemos, por exemplo, a parábola do homem que construiu a sua casa sobre a rocha, de modo que ela fosse firme. Quando Bobby a ouviu pela primeira vez, ele sugeriu que ela fosse suprimida.

— Isso não está certo, Bruchko. Para que uma casa fique firme, ela precisa ser construída sobre a areia. Pois de outro jeito, os mastros não ficarão muito profundos e a casa se desmanchará.

Então demos um arranjo na parábola. Afinal de contas, Jesus havia escolhido aquela parábola para esclarecer a verdade aos seus ouvintes. Portanto, não queria ele que os motilones também a compreendessem?

Ficamos ambos tão orgulhosos quando terminamos a tradução. No entanto, o nosso trabalho estava apenas se iniciando. Eu era o único que podia lê-lo. Bobby começou a ensinar algumas das crianças. Todas as tardes, fora da casa comunitária, onde era mais agradável, tínhamos as nossas classes.

Mas começamos a ouvir certas queixas dos homens mais velhos. Depois de um mês de termos começado o nosso ensino, Bobby me disse que teríamos que pará-lo.

Fiquei chocado. — Mas por quê? Nós apenas o iniciamos — disse eu.

— É por causa dos mais velhos, dos chefes. Eles acham que não é direito ensinar as crianças coisas que os seus pais não conhecem.

Por um instante fiquei zangado.

— Então deveríamos parar de ensinar o Evangelho simplesmente por que um punhado de velhos está enciumado? — falei abruptamente.

Bobby não respondeu. Ele simplesmente estava triste.

Eu poderia ter-me matado por ter dito aquelas palavras. Não era o meu Evangelho. Era o Evangelho dos motilones. Nenhuma notícia boa deveria estraçalhar o sistema social deles.

Deixamos de ensinar as crianças e em seu lugar convidamos os homens mais velhos. Havia uma grande competição entre eles. Eles não aprendiam tão depressa quanto as crianças, porém tentavam.

Depois de um mês e pouco, eles se sentiam bastante à vontade, para deixar que as crianças aprendessem também. Em vez de viverem em mundos totalmente diferentes, como em geral acontece em toda parte entre as gerações, os homens mais velhos e as mulheres compartilhavam o seu novo conhecimento com seus filhos. Isso favoreceu a união da tribo em vez de destruí-la.

Dentro de pouco tempo, um bom número de motilones sabia ler e escrever. Eles repetiam o evangelho de Marcos como uma metralhadora, e as sílabas, num staccato; saíam de suas bocas tão depressa quanto podiam falar. Porém, não havia compreensão alguma.

Então, um dos chefes mais velhos sugeriu uma regra, que é usada agora, onde quer que as classes sejam ensinadas. Todas as vezes que alguém lê um versículo, outra pessoa faz uma pergunta a respeito dele.

Por exemplo, um motilone poderá ler, "Pois Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu unigênito Filho, para que todo aquele que nele crê não pereça ..."

Um outro motilone perguntará: "Quem é que amou o mundo?"

Se o primeiro homem não puder responder, ele lê o versículo novamente, tentando compreendê-lo. Quando ele o compreende, começa a perguntar a si mesmo: "E como é que isso pode me afetar?"

E assim o trabalho foi progredindo. Porém, eu já estava ficando impaciente de novo. Quanto tempo Deus iria me conservar ali?