segunda-feira, 3 de maio de 2021

Por esta cruz te matarei - Capítulo 17


 JESUS, O MOTILONE

Já estávamos no caminho havia três dias, e nos aproximávamos de Norecayra. Eram os últimos momentos do entardecer. Bobby e mais dois motilones estavam na minha frente e os seus corpos escuros estavam longe do alcance de minha vista, cobertos pelas trepadeiras e arbustos espessos que havia nas selvas. Era um dos instantes mais lindos do dia. A escuridão que se aproximava fazia com que o verde da selva tomasse um tom suave e semelhante ao veludo.

Andávamos apressadamente. Dentro de poucos instantes chegaríamos à casa comunitária. Comecei a ouvir gritos altos à nossa frente, clamores excruciantes como se partissem de muitas bocas diferentes. Eu nunca ouvira coisa tão angustiante como essa. Apressei os passos e mentalmente comecei a separar os remédios que havia em minha sacola.

Os gritos pareciam muito mais desesperadores à medida que nos aproximávamos. Eu nunca ouvira os motilones gritarem daquela maneira. Eles nunca choramingavam sequer sob a dor mais tremenda. Porém, Bobby e os outros motilones continuaram caminhando numa linha reta, à minha frente, como se nada estivesse errado.

— Parem — eu disse. Bobby e os outros se voltaram.

— Que gritaria é aquela? — perguntei. — Não deveríamos ir ver o que podemos fazer?

Bobby olhou para baixo, para a picada. Um dos outros homens, que era médico-feiticeiro, sacudiu a cabeça. — Não há nada que possamos fazer.

— Mas, que é que está acontecendo?

Nenhum dos três disse uma palavra sequer. Olharam para mim com seus olhos pretos e silenciosos.

Como os gritos continuassem a ecoar através das selvas, fiquei um tanto agitado. — Pois bem — eu disse — talvez não se importem com quem quer que seja, porém eu me importo. Quero ver se podemos ajudar.

Mesmo assim, não me responderam. Eles estão tristes, pensei. Há alguma coisa lá que é muito triste para eles suportarem.

— Pois bem — eu disse — vocês não precisam vir comigo. Porém, eu quero ver o que está acontecendo.

Eles ficaram ali parados, até que eu me voltei, saí da picada e caminhei para a selva, em direção aos sons. Depois de ter andado alguns metros, ouvi um barulho atrás de mim. Eles estavam me seguindo.

Os homens que gritavam estavam muito mais perto do que eu pensara. E havia apenas dois deles. Eu conhecia um deles muito bem. Era um dos chefes na casa comunitária, e guerreiro muito feroz. Ele matara os empregados da companhia petrolífera, somente para pegar os seus capacetes e usá-los como panelas de cozinhar. Ele usava um colar feito com os botões tirados da roupa de sua vítima, e um outro colar feito com dentes de jaguar, uma onça pintada que ele caçara com seu arco. Agora, em frente de um buraco que ele cavara, um buraco de quase dois metros de profundidade, ele gritava numa voz desesperada, buscando algo: "Deus, ó Deus, sai desse buraco."

O outro homem estava no topo de uma árvore. Enfiava folhas na boca, tentando mastigá-las, enquanto gritava: "Deus, ó Deus, vem daí do horizonte."

Era o quadro mais estranho que eu já vira. Poderia ser algo do qual se dar gargalhadas, porém algo me fez ver que não havia nada de engraçado naquilo tudo.

Meus três companheiros colocaram-se ao meu lado, evidentemente tristes e embaraçados.

— Você sabia a respeito disso? — perguntei a Bobby. Ele assentiu com a cabeça.

— Por que fazem isso?

Então ele explicou que o irmão do homem que estava gritando para dentro do buraco havia falecido numa região que não era o seu próprio lar. Ele fora mordido por uma cobra venenosa e morrera antes que tivessem tempo de trazê-lo de volta. E de acordo com as suas tradições, isso significava que o seu idioma, seu espírito, sua vida, nunca poderiam ir a Deus além do horizonte. Agora o homem estava tentando buscar a Deus, para fazer com ele trouxesse o seu idioma de volta à vida, para poder viver no seu corpo.

— Ê o que faz com que ele pense que poderá achar Deus, gritando para dentro de um buraco?

Bobby encolheu os ombros. — É um bom lugar como qualquer outro para se procurar.

A expressão do seu desespero estampava-se nas suas palavras.

Essa era a razão pela qual Deus permitira que eu vivesse. Eu estava ali para dizer-lhes onde é que poderiam achar Deus. Talvez essa fosse uma oportunidade que Deus arranjara. O meu corpo ficou tenso com o pensamento de poder compartilhar Cristo, depois de cinco anos de espera. No entanto, parecia que era esperar demais. Eu estava orando silenciosamente.

O homem parou de gritar para o buraco e veio em nossa direção. Seus cabelos estavam desalinhados, seu corpo estava coberto de sujeira. Seus olhos estavam fundos nas olheiras escuras. — Não há razão alguma — ele disse. — Nós fomos enganados.

— Quanto tempo faz que você está aqui? — perguntei tranquilamente.

— Desde que o sol nasceu hoje de manhã.

— E por que você diz que foi enganado?

Ele me contou novamente a história do falso profeta que os motilones haviam seguido, cujas promessas falsas os afastaram de Deus. — Nós não conhecemos mais a Deus — ele disse com calma.

Então os outros homens tentaram explicar uma lenda dos motilones, que confirmava porque a morte desse irmão tinha implicações tão terríveis. Não compreendi tudo.

As lendas dos motilones são tão complicadas quanto qualquer teologia. Porém compreendi alguma coisa nova: a grande sensação de solidão. Muitas e muitas vezes eu ponderara o que é que Cristo teria a oferecer a eles. A maneira como eles viviam, uns com os outros, era muito superior à maneira dos norte-americanos. Porém na vida havia muito mais do que aquilo.

Lembrei-me da noite quando Jesus penetrou em minha vida. Havia sido muitos anos antes; era simplesmente um pontinho no tempo. No entanto, daquela raiz nascera tudo o que eu era. Através dela, Deus me dera a paz e um verdadeiro propósito.

E aqui estavam os motilones em busca de Deus. Mas como poderia eu explicar coisas tais como graça, sacrifício e encarnação? Poderia contar uma história simples, e eles entenderiam. Porém, como poderia eu transmitir a real verdade espiritual?

Iniciamos, então, um debate animado. O homem que estivera no alto da árvore descera e se juntara a nós. Ele nos fez recordar aquela lenda de que um profeta viria, trazendo talos de bananeira e que Deus sairia daqueles talos.

Eu não podia compreender muito bem a idéia ligada àquela lenda.

— Por que esperar que Deus venha de um talo de bananeira? — perguntei.

Houve um silêncio um tanto constrangedor. Aquilo tinha sentido para eles, porém não sabiam explicá-lo. Bobby se dirigiu a uma bananeira, que crescia ali por perto. Ele cortou uma parte dela e atirou-a em nossa direção.

— Esse é o tipo de talo de bananeira da qual Deus poderá vir — ele disse. Era uma secção transversal. Ela rolou aos nossos pés.

Um dos motilones abaixou-se e atingiu-a com a sua machadinha, partindo-a ao meio, acidentalmente. Uma parte ficou de pé, enquanto a outra se dividiu. As folhas que ainda estavam dentro do talo, à espera de se desenvolver e sair, começaram a se desfolhar, de maneira que presas àquele talo, se assemelhavam às paginas de um livro.

De repente, uma palavra surgiu em minha mente. "Livro! Livro!" Apanhei minha sacola e peguei a Bíblia. Eu a abri. Folheando suas páginas, apresentei-a aos homens. Apontei para as folhas do talo da bananeira, e depois para a Bíblia.

— Aqui está ele — eu disse. — Eu o tenho aqui. Este é o Deus do talo da bananeira.

Um dos motilones, aquele que subira à árvore, arrancou a Bíblia de minhas mãos. Começou a rasgar-lhe as páginas e enfiá-las na boca. Ele julgava que comendo as páginas, teria Deus dentro de si.

Visto que nada aconteceu, eles começaram a fazer perguntas. Como poderia eu explicar-lhes o Evangelho? Como poderia eu explicar que Deus, em Jesus, seria semelhante a eles?

De repente, lembrei-me de uma de suas lendas, a respeito de um homem que se transformara numa formiga. Ele estivera sentado num trilho, atrás de uma caça, e notara algumas formigas construindo a casa. Ele queria ajudá-las a construir uma boa casa, igual à dos motilones, por isso começou a cavar o solo. Mas, porque ele era tão grande e desconhecido, as formigas se amedrontaram e fugiram.

Então, milagrosamente, ele se transformou numa formiga. Pensava como formiga, assemelhava-se a uma formiga e falava a linguagem de uma formiga. Viveu com as formigas e elas chegaram a confiar nele.

E, um dia, ele contou a elas que realmente ele não era formiga, mas, sim, um motilone, e que tentara, certa vez, ajudá-las a construir a sua casa, porém as assustara.

As formigas disseram algo parecido como: "Você está brincando? Então era você?" E elas riram, porque ele não se parecia nada com aquele ser tão grande e amedrontador que estivera removendo a terra.

Então, naquele momento, ele voltou a ser motilone, e começou a trabalhar a terra no formato de uma casa igual à dele. Desta vez as formigas o reconheceram e deixaram que ele fizesse o seu trabalho, porque sabiam que ele não lhes faria mal algum. Essa é a razão por que, segundo a lenda, as formigas têm formigueiros semelhantes às casas dos motilones.

À medida que a história ia passando pela minha mente, pela primeira vez, vi e compreendi a lição: se alguém for grande e poderoso, precisa tornar-se pequeno e fraco, a fim de trabalhar com os outros seres que são mais fracos. Era um paralelo perfeito para aquilo que Deus fizera em Jesus.

Porém, havia tantos fatores desconhecidos na maneira como os motilones raciocinavam. Como poderia eu ter certeza de que estava transmitindo a coisa correta?

Eu não podia. No entanto, tinha certeza de que Deus me dera aquela oportunidade para falar. Então peguei a frase, "transformou-se numa formiga", e usei-a para a encarnação. — Deus está encarnado no homem — eu disse.

Eles ficaram assombrados. Em seguida um silêncio muito tenso. A idéia de que Deus se tornara homem os abismara.

— Onde é que ele andou? — perguntou o médico-feiticeiro num sussurro.

Cada motilone tem a sua própria picada. É a sua marca de identificação. Você simplesmente anda no caminho de outra pessoa, se deseja encontrá-la. Deus deveria ter um caminho também. Se desejássemos achá-lo, precisaríamos andar no seu caminho.

Meu sangue corria apressado e o coração batia desordenadamente. — Jesus Cristo é Deus feito homem — eu disse. — Ele pode mostrar a vocês o caminho de Deus.

A expressão de surpresa estampava-se em seus rostos e era quase de temor. O homem que estivera gritando para dentro do buraco olhou para mim.

— Mostra-nos Cristo — ele disse num sussurro áspero. Tentei encontrar uma resposta. — Vocês mataram Cristo — eu disse. — Vocês destruíram Deus.

Seus olhos tornaram-se maiores ainda. — Eu matei a Cristo? Eu fiz isso? Como poderia eu fazer isso? E como pode Deus ser morto?

Eu queria dizer a eles como a morte de Jesus os libertara da mediocridade, da morte e dos poderes do mal.

— Como é que o mal, a morte e a decepção encontram poderes sobre os motilones? — perguntei.

— Por intermédio dos ouvidos — respondeu Bobby, pois a linguagem é muito importante para os motilones. É a essência da vida. Se uma linguagem má vem através do ouvido, isso significa a morte.

— Vocês se lembram — eu disse — como depois de uma caçada de javali o guia retira a pele do animal e a coloca sobre a cabeça, para cobrir os ouvidos e protegê-los contra os maus espíritos das selvas?

Eles acenaram com a cabeça, afirmativamente, escutando com toda atenção.

— Jesus Cristo foi morto — eu disse. — E assim como vocês colocam a pele sobre a cabeça do chefe, para esconder-lhe os ouvidos, assim também Jesus, quando morreu, derramou o seu sangue sobre a decepção de vocês, escondendo-a da vista de Deus.

Fiquei ali parado, olhando para eles, com uma profunda esperança de que estivessem entendendo. Então notei nos seus rostos, que estavam compreendendo.

Eu lhes disse que Jesus fora enterrado. Uma onda de tristeza se estampou em seus rostos. O homem que procurava a linguagem de seu irmão desandou a chorar. Era a primeira vez que eu via um motilone chorar. Pois o fato de pensar que Deus estava morto, e que eles estavam perdidos, trouxera lágrimas e soluços.

Apanhei a Bíblia e abri-a, dizendo: — A Bíblia diz que Jesus voltou a viver após a sua morte e que está vivo hoje.

Um dos homens tomou-me a Bíblia e a colocou junto ao seu ouvido. — Eu não posso ouvir coisa alguma — disse ele.

Tomei-a de volta. — A maneira como a Bíblia fala não muda — eu disse. — Ela representa o mesmo que o talo da bananeira; diz sempre a mesma coisa. A Bíblia diz que Jesus voltou à vida. É o talo de bananeira que Deus enviou.

Mostrei-lhe a página e lhe disse que aquelas marcas pequeninas tinham um significado.

— Ninguém jamais voltou dos mortos em toda a história dos motilones — ele disse.

— Eu sei — respondi. — Mas Jesus voltou. É a prova de que ele é realmente o Filho de Deus.

Eles fizeram muitas outras perguntas. Algumas delas eu não compreendia totalmente. Mas tinha a certeza de que Deus falara por meu intermédio. Aquela noite eu orei: "Deus, dá validade à tua Palavra. Faze com que ela toque essas vidas." Eu reivindiquei a promessa de Deus de que a sua Palavra não voltaria a ele sem ter uma resposta.

No entanto, parecia que não haveria resposta. Continuei a caminhar pelas picadas com Bobby, dando remédios aos médicos feiticeiros e mostrando-lhes como poderiam fazer o seu trabalho com muito mais eficiência.

No entanto, uma tarde Bobby começou a fazer perguntas. Estávamos sentados ao redor do fogo. A luz do fogo refletia levemente sobre ele. O seu rosto estava sério.

— Como posso eu andar no caminho de Jesus? — perguntou. — Nenhum motilone já fez isso. É algo novo. Não há outro motilone que possa dizer como se faz isso.

Lembrei-me das dificuldades que eu tivera, quando menino, como às vezes era quase impossível continuar crendo em Jesus, quando a minha família e os meus amigos se opunham à minha consagração. Bobby estava passando por essa mesma experiência.

— Bobby — eu disse — você se lembra de meu primeiro Festival das Flechas, da primeira vez que vi todos os motilones reunidos a fim de cantarem as suas canções? — O festival era a cerimônia mais importante na cultura dos motilones.

Ele assentiu com a cabeça. O fogo brilhou por uns instantes e eu pude ver os seus olhos atentamente fixados em mim.

— Você se lembra de que eu estava com medo de subir nas redes tão altas, para cantar, pois tinha medo de que a corda se partisse? E que eu lhe disse que somente cantaria se pudesse ter um pé na rede e outro no chão?

— Sim Bruchko.

— E que foi que você me disse?

Ele riu.— Eu lhe disse que você precisava ter os dois pés na rede. Você precisava estar suspenso, foi o que eu lhe disse.

— Sim — eu disse. — Você precisa estar suspenso. É assim que se deve estar quando se segue a Jesus, Bobby. Nenhum homem poderá dizer-lhe como você deve andar na trilha de Jesus. Somente ele poderá fazê-lo. Porém, para descobrir isso, você terá que atar as cordas de sua rede nele, e estar suspenso em Deus.

Bobby não disse palavra alguma. O fogo dançava em seus olhos. Levantou-se e saiu, andando pela noite escura.

No dia seguinte ele se aproximou de mim. — Bruchko — disse ele — Quero atar as cordas de minha rede em Jesus Cristo. Mas como posso fazer isso? Eu não posso vê-lo e tampouco posso tocá-lo.

— Você andou falando com os espíritos, não é?

— Oh — disse ele —, agora eu vejo.

No dia seguinte ele tinha um vasto sorriso na face. — Bruchko, eu atei as cordas de minha rede em Jesus. Agora falo uma nova língua.

Não compreendi o que ele queria dizer. — Você aprendeu a falar um pouco de espanhol, como eu falo?

Ele deu uma gargalhada, feliz e gostosa. — Não, Bruchko, eu falo uma nova língua.

Então compreendi. Para os motilones, a língua é vida. Se Bobby tinha uma nova vida, ele possuía um novo modo de falar. A sua fala seria orientada por Cristo.

Colocamos nossas mãos sobre os ombros, um do outro. Minha mente voltou à primeira vez que me encontrei com Jesus, e a vida que senti sendo derramada dentro de mim. Agora meu irmão Bobby estava tendo a mesma experiência, com o próprio Jesus, da mesma maneira que eu sentira. Ele começara a andar com Jesus.

— Jesus ressuscitou dentre os mortos! — exclamou Bobby, tão alto que o som de suas palavras ecoou a uma grande distância ali nas selvas. — Ele andou pelos nossos caminhos! Eu me encontrei com ele.

Daquele dia em diante a nossa amizade foi intensificada por causa de nosso amor a Jesus. Falávamos constantemente a respeito dele, e Bobby me fazia inúmeras perguntas. Porém ele nunca me perguntou qual era a cor do cabelo de Jesus, ou se porventura ele tinha olhos azuis. Para Bobby, as respostas eram óbvias: Jesus tinha pele escura e os seus olhos eram pretos. Ele usava um cordão-G e caçava com flechas e arcos. Jesus era motilone.