segunda-feira, 3 de maio de 2021

Por esta cruz te matarei - Capítulo 13


 DESÂNIMO

No dia seguinte permutamos os nossos nomes. Apontei para mim mesmo.

— Bruce Olson — pronunciei claramente.

A maior parte das pessoas ao meu redor tinha um olhar confuso. Um dos homens tentou dizê-lo. "Bruchalonga." Ele tornou a experimentar. "Bruchko."

— Bruce Olson — eu disse.

Ele sorriu e abanou a cabeça. — Bruchko — ele disse. Virando-se, disse alegremente a um homem perto dele:

— Bruchko — ; tentativamente aquele índio repetiu-o

— Bruchko —. Logo o grupo todo havia espalhado o meu nome por toda parte. "Bruchko" eles repetiam, apontando para mim.

Então fiquei sendo Bruchko.

E também eu era uma celebridade. Eles imitavam o meu modo de falar, apertavam-me os braços, ou passavam a mão no meu estômago. Às vezes, quando eu estava deitado na minha rede, duas ou três crianças subiam na rede e ficavam ali comigo, falando e trepando por cima de mim, como se eu fosse uma grande peça de estatuária.

Eu comia uma boa quantidade de peixe defumado e mandioca fervida. Tudo era delicioso. O primeiro homem a me reconhecer, cujo nome era Arabadoyca, usualmente era aquele que me trazia o alimento, numa grande folha de bananeira. Eu descia de minha rede e comia, enquanto ele ficava ali de pé, sorrindo, juntamente com o grupo usual de curiosos. Tudo o que eu fazia, parecia interessá-los. E eles estavam sempre rindo, cantando ou conversando.

Logo cedo de manhã, os homens saíam à caça, e as mulheres começavam o seu trabalho diário. As crianças brincavam de pega-pega, ou faziam pequenas flechas e as atiravam a um alvo. Horas mais tarde, os homens voltavam trazendo o que haviam caçado e então haveria uma refeição, e todo mundo desfrutava o aroma da carne assada, gritando de um lado para outro, no centro da casa comunitária. Cada família cozinhava a sua própria comida, e a comia com prazer todo especial. Quando estavam satisfeitos, os seus estômagos ficavam salientes, e eles caminhavam em volta, acariciando o estômago uns dos outros, como mães orgulhosas quando estão comparando seus bebês.

Parece que todos ali estavam gostando de mim, e eu me sentia animado. Eu já estava me aplicando intensamente para aprender a língua dos motilones, mas via que seria um processo muito longo e lento.

Lá em Minesota eu trabalhara com clubes de meninos, e conseguira fazer uma "mágica", de retirar o meu olho e limpá-lo. Diversos meninos estavam na minha rede quando me lembrei dessa mágica. Peguei cada um deles, sentei-os no chão, e me preparei para apresentar o meu papel. Outras crianças se aproximaram para ver o que estava acontecendo.

Coloquei meus dedos num dos olhos, e os mexi de um lado para outro, fazendo um certo barulho com os dentes. Depois, fechando o olho, fiz de conta que o estava tirando da órbita, soprei sobre ele, limpei-o com a camisa. Coloquei-o novamente na órbita, dei uma viradinha para ajustá-lo, e depois o abri. Ah! Agora era bem melhor. Eu via com muito mais clareza.

As crianças ficaram encantadas. Pediram que eu fizesse o mesmo com o outro olho. Então eu o fiz. Depois, fiz de conta que estavam cruzados. Aquilo foi uma grande sensação. A maior parte das crianças correu para fora a chamar outras crianças ou os seus pais, a fim de que pudessem ver aquele maravilhoso espetáculo.

Eu estava tão satisfeito de ser tão bem recebido. Mas à medida que as pessoas se iam reunindo ali, deduzi que aquela cena deveria ter um significado prático na aprendizagem da língua. Então apanhei um caderno e lápis que estavam numa prateleira, que rodeava o interior da casa, e enquanto eu apresentava a minha mágica, prestava atenção ao que o povo dizia, e ia anotando tão bem quanto me era possível, o que estava ouvindo.

Quando tirei os meus dois olhos, as crianças disseram alguma coisa parecida com isto: "Agora ele colocará os seus olhos-cruzados", e então eu aprendi o verbo no futuro.

Quando coloquei um olho em minha boca, e o engoli, houve uma expressão de surpresa. "Ele o engoliu!" um dos garotos disse num sopro. Isso me deu o verbo no passado.

Quando arrotei o olho, ouvi um verbo no passado, mas com um significado de algo que continua no presente.

Apresentei a minha mágica a cada um dos motilones na casa comunitária, umas dúzias de vezes, até que tive a impressão de que os meus olhos se tornariam pretos e azuis. Mas, ao mesmo tempo, o meu caderninho estava-se enchendo de palavras da língua dos motilones.

Também, os outros jogos dos quais eu me lembrava foram úteis. Eu fingia cortar o braço, com a minha mão acima da manga da camisa, e depois puxava o braço para fora da manga, como se estivesse quebrado. Os motilones riam a valer, depois cortavam os seus próprios braços e puxavam. Mas nada acontecia. Eles olhavam com certo espanto, e eu dizia: — Por que vocês não deixam que eu faça isso no seu braço? — Eles riam e diziam: — Não, faça no seu próprio braço —, e saiam correndo, fugindo de mim.

Eu deixava o braço tenso, e o virava em círculos, como se estivesse quebrado no cotovelo e pendurado. Naturalmente, os motilones estavam abismados, pois não conheciam a farsa.

Eles tinham uma capacidade inacreditável para ver essas apresentações vezes seguidas. Mas, com o tempo, todo mundo se cansou disso. E depois de algumas semanas a maior parte dos motilones havia perdido interesse nelas, e eu também.

Tentei interessar-me mais na vida dos adultos ali na casa comunitária. Um dia eu observava Arabadoyca fazendo as suas flechas e até tentei fazer uma para mim mesmo. Naturalmente, ela estava errada por completo, mas Arabadoyca era um professor muito paciente. Era interessante, mas também era necessário certa dose de prática. Após alguns dias, procurei outra coisa para fazer.

Comecei a observar as mulheres quando teciam. Geralmente elas nunca deixavam um homem sentar-se ali e observar, mas desde que eu era pessoa de fora, elas me permitiram, apesar de que cochichavam e enrubesciam enquanto eu estava ali. A tecelagem fora um dos meus passatempos favoritos, e eu me interessei intensamente em observar as mulheres tecerem o fio, com aquele algodão rústico que haviam colhido, e depois tecerem aquela fazenda áspera para as suas saias. Era a hora de camaradagem social para elas, e ao mesmo tempo eu podia ouvir muita conversa entre elas. Naturalmente, eu não entendia coisa alguma, mas ia-me acostumando aos sons da língua, que eu julgava me ajudariam mais tarde. Comecei a pensar que gostaria de ter o meu próprio tear onde eu pudesse trabalhar. Mas eu sabia que não era uma idéia muito boa. Se eu passasse as horas tecendo, logo os homens me expulsariam, pois aquele era o trabalho das mulheres. Era interessante, durante um dia, dois ou talvez três, observar a fabricação de flechas, as mulheres tecendo, mas depois desse tempo, não se aguenta mais.

Comecei a almejar que o dia tivesse apenas três horas, e que o resto do tempo fosse separado para dormir. Eu ficava em minha rede horas seguidas durante o dia, olhando para o alto teto, desejando poder dormir. Comecei a ir para a minha rede muito cedo, logo depois do jantar. Mas então eu acordava às duas da manhã, por isso me forcei a ficar acordado à noite. Eu ficava olhando para alguma coisa, ou então me esforçava a escutar as conversas sem sentido, para mim, até que fosse bastante tarde para eu ir dormir.

Um nevoeiro de depressão começou a encher os meus dias. Parecia que o sol não se movia de jeito algum, e cada dia durava muito mais tempo, e que todos os dias eram semelhantes.

Eu não me deveria sentir infeliz. Os motilones eram alegres, gentis, um povo amigo. Um dia observei uma das mães tecendo, segurando a filha ao colo. A criança pôs as mãos na fazenda e misturou todos os fios até que todos eles ficassem emaranhados. Mas a mãe não a repreendeu. Ela simplesmente a colocou de lado, e com paciência reparou o dano feito; depois lhe mostrou como é que ela poderia ajudar a cortar o fio.

Certa vez, vi dois irmãos brigando. A mãe, perturbada, apanhou uma cabeça de galinha, e gentilmente bicou a perna de um dos meninos. Ela o havia tocado somente de leve, mas o menino desandou a chorar porque ele havia entristecido a mãe. Essa foi a maneira de punição mais forte que eu vi aplicada, ou que fosse necessária.

Mas havia outras coisas, as quais não me atraíam muito. O lar comunitário, abrigando perto de oitenta motilones, deveria ser um excelente lugar para um viver comunitário. Porém cada família vivia à sua moda. Se uma família, porventura, tivesse alimento sobrando, num determinado dia, ela o jogava fora, mesmo que a família ao seu lado estivesse faminta. Não havia laço de ligação entre as famílias. Uma família podia morar próxima da outra por certo tempo, sem contudo se chamarem pelo nome.

E a população da casa estava constantemente em mudança. Uma família simplesmente decidia partir, ia-se embora, sem nenhum aviso antecipado. Outras vezes, diferentes famílias surgiam ali, acomodavam-se conosco, sem que qualquer pessoa tomasse conhecimento delas, ou mesmo dando demonstração de que haviam chegado. Às vezes as semanas passavam, antes que alguém soubesse quem eram eles.

Nunca havia derramamento de lágrimas, e nenhum sinal de dor ou de tristeza fora jamais mostrado. Os motilones pareciam não ter tais sentimentos. Os sorrisos e as constantes gargalhadas pareciam sem sentido.

Quando se chega ao âmago da questão, acredita-se que esses índios sejam incivilizados, sem nenhuma espécie de sentimento que se possa observar, pensei.

Li e reli a Bíblia várias vezes, ate que ela me parecia velha. Eu sabia qual era o versículo que se seguia ao que eu estava lendo. Lembrava-me dos pensamentos que tivera a respeito dessas passagens, e as orações que eu fizera. Na verdade, havia uma evidência muito clara de que Deus ouvira aquelas orações. Afinal de contas, eu estava ali, vivendo pacificamente com índios motilones, de tanta má fama.

Mas todo entusiasmo já havia terminado. Eu viera para falar a respeito de Jesus Cristo aos índios motilones. Porventura estava eu cumprindo isso? Eu não conhecia a língua, a não ser umas frases muito rudimentares.

Pensava a respeito de alguns grandes missionários cujas biografias eu lera. Não havia nada nas suas vidas que aparentemente me poderia ajudar na situação em que eu me encontrava. Podia enfrentar os grandes obstáculos, mas que faria eu com aquele tédio horrível e enervante? Comecei a pensar a respeito dos missionários semelhantes àqueles que eu vira em Minneapolis, e os missionários que trabalhavam no Orinoco, os quais tanto me criticaram. Após quatro anos de trabalho, eles voltavam para seu país, a fim de contar a respeito de seus convertidos.

Realmente o que me deixou acabrunhado foi pensar a respeito disso. Eu já estava na América do Sul havia três anos. Onde é que estavam os meus convertidos? Lá na universidade estavam os meus amigos, com toda certeza, porém eu não os poderia contar como convertidos. Eram simplesmente meus amigos, com os quais eu tivera a oportunidade de compartilhar.

E após três anos, eu não tinha dinheiro algum, e nenhuma junta de missões para pagar a minha passagem de volta ao meu lar. E, na verdade, o único lugar no mundo onde eu tinha a certeza de conseguir algo para comer, era nas selvas, ao lado dos motilones.

Então me senti desanimado. Cada manhã eu tinha pavor de pensar em comer. O alimento tornara-se tão insípido, ou mais ainda, do que o alimento dos iucos. Sem sal ou açúcar, havia certo limite quanto ao seu paladar. E muitas vezes, quando havia apenas carne de macaco ou larvas, após ingeri-los eu os vomitava. Minhas pulgas estavam cada vez piores, e eu tinha uma erupção na pele, por estar constantemente sujo.

E por que a língua era tão difícil? Nos primeiros dias eu julgava que estava progredindo, mas agora ela me parecia muito mais difícil de aprender do que a língua dos iucos. Eu não queria passar três meses inteiramente sem me comunicar, como fizera com os iucos. Eu estava sempre à espera de oportunidades, mas não surgiam.

Certa manhã, completamente desanimado pelas horas intermináveis que tinha diante de mim, desci da rede e fui lá fora. Quando me abaixei para sair pela porta, escorreguei e quase caí. Eu pisara numa porção de excremento humano. Limpei o sapato, tão bem quanto me foi possível, e depois fui sentar-me num tronco de árvore. Eram mais ou menos onze horas. O sol estava a pino, fazendo com que o dia estivesse muito quente e cheio de vapor. Não havia árvore alguma junto à casa para dar-lhe sombra e conforto. As moscas zuniam ao sol sobre outros montes de excremento.

Por que eles precisavam defecar justamente ali, junto à porta? Eles não poderiam ir a outro lugar para as suas necessidades, onde não importunariam pessoa alguma?

Justamente naquele instante, uma das mulheres saiu à porta e atirou um punhado de lixo: cascas de banana e de abacaxi, e tudo mais que restara dos peixes e dos macacos que comêramos.

Pelo padrão dos índios, naturalmente, ela fora higiênica. Uma outra mulher não jogou fora o lixo durante uma semana. Ele ficara lá no chão até que cogumelos cresceram.

Que lugar imundo! Senti um aperto no peito. Fechei os olhos para afastar tudo aquilo.

Uma velha saiu da casa e caminhou em minha direção, dando um largo sorriso com sua boca desdentada. Ela se esfregou em mim, de maneira amistosa, tagarelando. Ela cheirava mal. Olhei para os seus cabelos pretos, grossos e emaranhados. Os piolhos andavam por toda parte. Seus seios flácidos estavam caídos.

Levantei-me e me afastei dela, sentindo-me mal. Ela me seguiu, colocando suas mãos na minha cintura e me abraçando. Depois ela riu — um riso estúpido, lunático. Olhei para as suas mãos; elas estavam encardidas. Delicadamente retirei-as de mim, e caminhei um pouco em direção à selva. Ela me seguiu a certa distância, com as suas risadinhas.

Eu nem sequer podia dizer a ela que se afastasse. Uma coisa tão simples e no entanto eu não podia proferi-la. Não havia ali uma alma que pudesse me compreender.

Quanto tempo levaria? Três meses? Quatro? Será que eu poderia comunicar-me de maneira compreensível dentro de um ano?

Há um antigo hino evangélico que diz: "Se você não puder suportar a cruz, então não poderá usar a coroa." Cheguei à conclusão de que eu não queria a cruz; queria a coroa, com todas as suas pedras preciosas, sem contudo carregar a cruz.

Olhando novamente para aquela velha, tampouco tinha a certeza de que desejava a coroa.