No dia seguinte permutamos os nossos nomes. Apontei para mim
mesmo.
— Bruce Olson — pronunciei claramente.
A maior parte das pessoas ao meu redor tinha um olhar
confuso. Um dos homens tentou dizê-lo. "Bruchalonga." Ele tornou a experimentar.
"Bruchko."
— Bruce Olson — eu disse.
Ele sorriu e abanou a cabeça. — Bruchko — ele disse.
Virando-se, disse alegremente a um homem perto dele:
— Bruchko — ; tentativamente aquele índio repetiu-o
— Bruchko —. Logo o grupo todo havia espalhado o meu nome
por toda parte. "Bruchko" eles repetiam, apontando para mim.
Então fiquei sendo Bruchko.
E também eu era uma celebridade. Eles imitavam o meu modo de
falar, apertavam-me os braços, ou passavam a mão no meu estômago. Às vezes,
quando eu estava deitado na minha rede, duas ou três crianças subiam na rede e
ficavam ali comigo, falando e trepando por cima de mim, como se eu fosse uma
grande peça de estatuária.
Eu comia uma boa quantidade de peixe defumado e mandioca
fervida. Tudo era delicioso. O primeiro homem a me reconhecer, cujo nome era
Arabadoyca, usualmente era aquele que me trazia o alimento, numa grande folha
de bananeira. Eu descia de minha rede e comia, enquanto ele ficava ali de pé,
sorrindo, juntamente com o grupo usual de curiosos. Tudo o que eu fazia,
parecia interessá-los. E eles estavam sempre rindo, cantando ou conversando.
Logo cedo de manhã, os homens saíam à caça, e as mulheres
começavam o seu trabalho diário. As crianças brincavam de pega-pega, ou faziam
pequenas flechas e as atiravam a um alvo. Horas mais tarde, os homens voltavam
trazendo o que haviam caçado e então haveria uma refeição, e todo mundo
desfrutava o aroma da carne assada, gritando de um lado para outro, no centro
da casa comunitária. Cada família cozinhava a sua própria comida, e a comia com
prazer todo especial. Quando estavam satisfeitos, os seus estômagos ficavam salientes,
e eles caminhavam em volta, acariciando o estômago uns dos outros, como mães
orgulhosas quando estão comparando seus bebês.
Parece que todos ali estavam gostando de mim, e eu me sentia
animado. Eu já estava me aplicando intensamente para aprender a língua dos
motilones, mas via que seria um processo muito longo e lento.
Lá em Minesota eu trabalhara com clubes de meninos, e
conseguira fazer uma "mágica", de retirar o meu olho e limpá-lo.
Diversos meninos estavam na minha rede quando me lembrei dessa mágica. Peguei
cada um deles, sentei-os no chão, e me preparei para apresentar o meu papel.
Outras crianças se aproximaram para ver o que estava acontecendo.
Coloquei meus dedos num dos olhos, e os mexi de um lado para
outro, fazendo um certo barulho com os dentes. Depois, fechando o olho, fiz de
conta que o estava tirando da órbita, soprei sobre ele, limpei-o com a camisa.
Coloquei-o novamente na órbita, dei uma viradinha para ajustá-lo, e depois o
abri. Ah! Agora era bem melhor. Eu via com muito mais clareza.
As crianças ficaram encantadas. Pediram que eu fizesse o
mesmo com o outro olho. Então eu o fiz. Depois, fiz de conta que estavam
cruzados. Aquilo foi uma grande sensação. A maior parte das crianças correu
para fora a chamar outras crianças ou os seus pais, a fim de que pudessem ver
aquele maravilhoso espetáculo.
Eu estava tão satisfeito de ser tão bem recebido. Mas à
medida que as pessoas se iam reunindo ali, deduzi que aquela cena deveria ter
um significado prático na aprendizagem da língua. Então apanhei um caderno e
lápis que estavam numa prateleira, que rodeava o interior da casa, e enquanto
eu apresentava a minha mágica, prestava atenção ao que o povo dizia, e ia
anotando tão bem quanto me era possível, o que estava ouvindo.
Quando tirei os meus dois olhos, as crianças disseram alguma
coisa parecida com isto: "Agora ele colocará os seus olhos-cruzados",
e então eu aprendi o verbo no futuro.
Quando coloquei um olho em minha boca, e o engoli, houve uma
expressão de surpresa. "Ele o engoliu!" um dos garotos disse num
sopro. Isso me deu o verbo no passado.
Quando arrotei o olho, ouvi um verbo no passado, mas com um
significado de algo que continua no presente.
Apresentei a minha mágica a cada um dos motilones na casa
comunitária, umas dúzias de vezes, até que tive a impressão de que os meus
olhos se tornariam pretos e azuis. Mas, ao mesmo tempo, o meu caderninho
estava-se enchendo de palavras da língua dos motilones.
Também, os outros jogos dos quais eu me lembrava foram
úteis. Eu fingia cortar o braço, com a minha mão acima da manga da camisa, e
depois puxava o braço para fora da manga, como se estivesse quebrado. Os
motilones riam a valer, depois cortavam os seus próprios braços e puxavam. Mas
nada acontecia. Eles olhavam com certo espanto, e eu dizia: — Por que vocês não
deixam que eu faça isso no seu braço? — Eles riam e diziam: — Não, faça no seu
próprio braço —, e saiam correndo, fugindo de mim.
Eu deixava o braço tenso, e o virava em círculos, como se
estivesse quebrado no cotovelo e pendurado. Naturalmente, os motilones estavam
abismados, pois não conheciam a farsa.
Eles tinham uma capacidade inacreditável para ver essas
apresentações vezes seguidas. Mas, com o tempo, todo mundo se cansou disso. E
depois de algumas semanas a maior parte dos motilones havia perdido interesse
nelas, e eu também.
Tentei interessar-me mais na vida dos adultos ali na casa
comunitária. Um dia eu observava Arabadoyca fazendo as suas flechas e até
tentei fazer uma para mim mesmo. Naturalmente, ela estava errada por completo,
mas Arabadoyca era um professor muito paciente. Era interessante, mas também
era necessário certa dose de prática. Após alguns dias, procurei outra coisa
para fazer.
Comecei a observar as mulheres quando teciam. Geralmente
elas nunca deixavam um homem sentar-se ali e observar, mas desde que eu era
pessoa de fora, elas me permitiram, apesar de que cochichavam e enrubesciam
enquanto eu estava ali. A tecelagem fora um dos meus passatempos favoritos, e
eu me interessei intensamente em observar as mulheres tecerem o fio, com aquele
algodão rústico que haviam colhido, e depois tecerem aquela fazenda áspera para
as suas saias. Era a hora de camaradagem social para elas, e ao mesmo tempo eu
podia ouvir muita conversa entre elas. Naturalmente, eu não entendia coisa
alguma, mas ia-me acostumando aos sons da língua, que eu julgava me ajudariam
mais tarde. Comecei a pensar que gostaria de ter o meu próprio tear onde eu
pudesse trabalhar. Mas eu sabia que não era uma idéia muito boa. Se eu passasse
as horas tecendo, logo os homens me expulsariam, pois aquele era o trabalho das
mulheres. Era interessante, durante um dia, dois ou talvez três, observar a fabricação
de flechas, as mulheres tecendo, mas depois desse tempo, não se aguenta mais.
Comecei a almejar que o dia tivesse apenas três horas, e que
o resto do tempo fosse separado para dormir. Eu ficava em minha rede horas
seguidas durante o dia, olhando para o alto teto, desejando poder dormir.
Comecei a ir para a minha rede muito cedo, logo depois do jantar. Mas então eu
acordava às duas da manhã, por isso me forcei a ficar acordado à noite. Eu
ficava olhando para alguma coisa, ou então me esforçava a escutar as conversas
sem sentido, para mim, até que fosse bastante tarde para eu ir dormir.
Um nevoeiro de depressão começou a encher os meus dias.
Parecia que o sol não se movia de jeito algum, e cada dia durava muito mais
tempo, e que todos os dias eram semelhantes.
Eu não me deveria sentir infeliz. Os motilones eram alegres,
gentis, um povo amigo. Um dia observei uma das mães tecendo, segurando a filha
ao colo. A criança pôs as mãos na fazenda e misturou todos os fios até que
todos eles ficassem emaranhados. Mas a mãe não a repreendeu. Ela simplesmente a
colocou de lado, e com paciência reparou o dano feito; depois lhe mostrou como
é que ela poderia ajudar a cortar o fio.
Certa vez, vi dois irmãos brigando. A mãe, perturbada,
apanhou uma cabeça de galinha, e gentilmente bicou a perna de um dos meninos.
Ela o havia tocado somente de leve, mas o menino desandou a chorar porque ele
havia entristecido a mãe. Essa foi a maneira de punição mais forte que eu vi
aplicada, ou que fosse necessária.
Mas havia outras coisas, as quais não me atraíam muito. O
lar comunitário, abrigando perto de oitenta motilones, deveria ser um excelente
lugar para um viver comunitário. Porém cada família vivia à sua moda. Se uma
família, porventura, tivesse alimento sobrando, num determinado dia, ela o
jogava fora, mesmo que a família ao seu lado estivesse faminta. Não havia laço
de ligação entre as famílias. Uma família podia morar próxima da outra por
certo tempo, sem contudo se chamarem pelo nome.
E a população da casa estava constantemente em mudança. Uma
família simplesmente decidia partir, ia-se embora, sem nenhum aviso antecipado.
Outras vezes, diferentes famílias surgiam ali, acomodavam-se conosco, sem que
qualquer pessoa tomasse conhecimento delas, ou mesmo dando demonstração de que
haviam chegado. Às vezes as semanas passavam, antes que alguém soubesse quem
eram eles.
Nunca havia derramamento de lágrimas, e nenhum sinal de dor
ou de tristeza fora jamais mostrado. Os motilones pareciam não ter tais
sentimentos. Os sorrisos e as constantes gargalhadas pareciam sem sentido.
Quando se chega ao âmago da questão, acredita-se que esses
índios sejam incivilizados, sem nenhuma espécie de sentimento que se possa
observar, pensei.
Li e reli a Bíblia várias vezes, ate que ela me parecia
velha. Eu sabia qual era o versículo que se seguia ao que eu estava lendo.
Lembrava-me dos pensamentos que tivera a respeito dessas passagens, e as
orações que eu fizera. Na verdade, havia uma evidência muito clara de que Deus
ouvira aquelas orações. Afinal de contas, eu estava ali, vivendo pacificamente
com índios motilones, de tanta má fama.
Mas todo entusiasmo já havia terminado. Eu viera para falar
a respeito de Jesus Cristo aos índios motilones. Porventura estava eu cumprindo
isso? Eu não conhecia a língua, a não ser umas frases muito rudimentares.
Pensava a respeito de alguns grandes missionários cujas
biografias eu lera. Não havia nada nas suas vidas que aparentemente me poderia
ajudar na situação em que eu me encontrava. Podia enfrentar os grandes
obstáculos, mas que faria eu com aquele tédio horrível e enervante? Comecei a
pensar a respeito dos missionários semelhantes àqueles que eu vira em
Minneapolis, e os missionários que trabalhavam no Orinoco, os quais tanto me
criticaram. Após quatro anos de trabalho, eles voltavam para seu país, a fim de
contar a respeito de seus convertidos.
Realmente o que me deixou acabrunhado foi pensar a respeito
disso. Eu já estava na América do Sul havia três anos. Onde é que estavam os
meus convertidos? Lá na universidade estavam os meus amigos, com toda certeza,
porém eu não os poderia contar como convertidos. Eram simplesmente meus amigos,
com os quais eu tivera a oportunidade de compartilhar.
E após três anos, eu não tinha dinheiro algum, e nenhuma
junta de missões para pagar a minha passagem de volta ao meu lar. E, na
verdade, o único lugar no mundo onde eu tinha a certeza de conseguir algo para
comer, era nas selvas, ao lado dos motilones.
Então me senti desanimado. Cada manhã eu tinha pavor de
pensar em comer. O alimento tornara-se tão insípido, ou mais ainda, do que o
alimento dos iucos. Sem sal ou açúcar, havia certo limite quanto ao seu
paladar. E muitas vezes, quando havia apenas carne de macaco ou larvas, após
ingeri-los eu os vomitava. Minhas pulgas estavam cada vez piores, e eu tinha
uma erupção na pele, por estar constantemente sujo.
E por que a língua era tão difícil? Nos primeiros dias eu
julgava que estava progredindo, mas agora ela me parecia muito mais difícil de
aprender do que a língua dos iucos. Eu não queria passar três meses
inteiramente sem me comunicar, como fizera com os iucos. Eu estava sempre à
espera de oportunidades, mas não surgiam.
Certa manhã, completamente desanimado pelas horas
intermináveis que tinha diante de mim, desci da rede e fui lá fora. Quando me
abaixei para sair pela porta, escorreguei e quase caí. Eu pisara numa porção de
excremento humano. Limpei o sapato, tão bem quanto me foi possível, e depois
fui sentar-me num tronco de árvore. Eram mais ou menos onze horas. O sol estava
a pino, fazendo com que o dia estivesse muito quente e cheio de vapor. Não
havia árvore alguma junto à casa para dar-lhe sombra e conforto. As moscas
zuniam ao sol sobre outros montes de excremento.
Por que eles precisavam defecar justamente ali, junto à
porta? Eles não poderiam ir a outro lugar para as suas necessidades, onde não
importunariam pessoa alguma?
Justamente naquele instante, uma das mulheres saiu à porta e
atirou um punhado de lixo: cascas de banana e de abacaxi, e tudo mais que restara
dos peixes e dos macacos que comêramos.
Pelo padrão dos índios, naturalmente, ela fora higiênica.
Uma outra mulher não jogou fora o lixo durante uma semana. Ele ficara lá no
chão até que cogumelos cresceram.
Que lugar imundo! Senti um aperto no peito. Fechei os olhos
para afastar tudo aquilo.
Uma velha saiu da casa e caminhou em minha direção, dando um
largo sorriso com sua boca desdentada. Ela se esfregou em mim, de maneira
amistosa, tagarelando. Ela cheirava mal. Olhei para os seus cabelos pretos, grossos
e emaranhados. Os piolhos andavam por toda parte. Seus seios flácidos estavam
caídos.
Levantei-me e me afastei dela, sentindo-me mal. Ela me
seguiu, colocando suas mãos na minha cintura e me abraçando. Depois ela riu —
um riso estúpido, lunático. Olhei para as suas mãos; elas estavam encardidas.
Delicadamente retirei-as de mim, e caminhei um pouco em direção à selva. Ela me
seguiu a certa distância, com as suas risadinhas.
Eu nem sequer podia dizer a ela que se afastasse. Uma coisa
tão simples e no entanto eu não podia proferi-la. Não havia ali uma alma que
pudesse me compreender.
Quanto tempo levaria? Três meses? Quatro? Será que eu
poderia comunicar-me de maneira compreensível dentro de um ano?
Há um antigo hino evangélico que diz: "Se você não
puder suportar a cruz, então não poderá usar a coroa." Cheguei à conclusão
de que eu não queria a cruz; queria a coroa, com todas as suas pedras
preciosas, sem contudo carregar a cruz.
Olhando novamente para aquela velha, tampouco tinha a
certeza de que desejava a coroa.