Terminei de carregar a mula, e andei ao seu redor, para ter
a certeza de que todas as correias estavam bem apertadas. Um pequeno punhado de
loucos me observava. Eu os olhava com alguma incerteza. Deveria eu fazer alguma
coisa mais do que simplesmente dizer-lhe adeus? Deveria eu apertar-lhe as mãos,
ou abraçar cada um deles? Os loucos me olhavam impassivelmente, sem nenhum
sinal de emoção em suas faces.
Levantei a mão. — Adeus — eu disse. — Sinto deixá-los.
Mentiroso, eu disse a mim mesmo.
Montei na mula e parti, olhando para trás uma vez, para
acenar-lhes adeus.
Conduzi a mula sobre a trilha rochosa e íngreme que saía da
aldeia. Haviam-me informado que ela levaria à civilização.
Bem, eu havia feito mais do que a minha parte. Devia estar
satisfeito com o que fizera. Apesar de tudo, o que deveria ter sido uma longa
visita de uma semana, terminara sendo de quatro meses.
Gente, como seria bom voltar à civilização e poder falar com
alguém que entendesse inglês. E a comida. A minha boca encheu-se de água, só em
pensar numa coca-cola e num hambúrguer. A comida dos loucos era terrível. Dia
após dia, era sempre a mesma coisa. Milho e chicha. A chicha era uma bebida
alcoólica feita de milho mastigado e cuspido numa grande cabaça, e deixado ali
para fermentar. O seu sabor era tão bom quanto a sua descrição.
Era um dia frio e nevoento. Os picos ao redor da aldeia
estavam encobertos pelas nuvens. Eu sonhava em desejar voltar às selvas mais
quentes e úmidas das elevações mais baixas. Mas quatro meses de constante temor
me haviam abalado.
Ê uma tolice sentir-se culpado por partir, pensei comigo
mesmo. Eu estava doente. Havia dois meses já que vinha evacuando sangue. Eu
precisava de cuidados médicos.
A mula continuou a caminhar pesadamente, levando-me cada vez
mais longe dos iucos.
O tédio tornara-se o meu maior inimigo. Eu podia aceitar as
flechas atiradas em mim. Pelo menos aquilo terminava logo. Mas levantar todas
as manhãs, para ver o mesmo alimento, sentir o mesmo cheiro horrível, estar com
as mesmas pessoas com as quais eu não tinha nenhuma afinidade: tudo aquilo me
aborrecia. Então era tempo de partir. Eu havia feito a minha parte. E daí? pois
ninguém havia chegado a conhecer a Cristo. Eu aprendera o suficiente de sua
língua para contar-lhes a respeito dele. Fiz o que pude.
A mula, lentamente, me foi levando por um declive abaixo e
depois para cima, na fralda mais alta. O homem que a vendera, não mentira. Era
um animal firme de pés, e muito bom. Se essa picada realmente saía das selvas,
como os índios haviam dito, logo poderíamos sair dali.
De repente a mula empinou. Tentei segurar-me mas não
consegui. Fui atirado ao ar. Minhas mãos se estenderam a fim de agarrar alguma
coisa, mas a mula não estava sob o meu corpo. Caí pesadamente sobre o ombro
direito, enquanto ouvia a mula galopando através das moitas.
Levantei-me lentamente. Com a queda, havia deslocado o
ombro. Minha mochila se abrira e todas as minhas coisas estavam espalhadas ao
longo da picada. Fazia apenas uma hora que eu deixara a aldeia, mas eu não
sentia desejo algum de voltar lá. Eu podia prosseguir à pé, na esperança de
poder chegar, mas realmente eu precisava daquela mula, e ela estava a caminho
da aldeia. Eu precisava ir lá também.
Para voltar a pé, era uma longa distância, e o meu ombro
doía terrivelmente. A pior coisa, no entanto, era a dificuldade emocional de
voltar a um lugar que eu abandonara fazia pouco. De jeito nenhum eu desejava ir
àqueles índios novamente.
Meus piores temores se concretizaram quando me aproximei da
aldeia. As pessoas já haviam visto a mula, muito antes que eu lá chegasse,
portanto já sabiam o que acontecera. Vieram ao meu encontro, às gargalhadas! O
grande homem branco havia sido derrubado por uma mula. Ninguém me auxiliou a
levar a mochila.
Eu estava cansado pela caminhada e o meu ombro estava rijo,
mas eu não iria ficar e ser motivo de riso. Selei a mula, carreguei-a, e parti
novamente.
Desta vez as coisas caminharam muito melhor. Fora esquisito
que a mula houvesse pinoteado e me atirado. Não se espera que as mulas procedam
dessa forma. E essa era, particularmente, de bom temperamento.
Prossegui durante três horas, e já estava-me sentindo muito
melhor. Logo eu estaria no meio da civilização.
De repente a mula empacou, e abaixou a cabeça. Apertei as
rédeas, como me haviam dito que fizesse. Mas a mula começou a dar coices e me
atirou por cima de sua cabeça. Fui cair numa poça imunda e fria. Contudo, a
mula não havia corrido, e eu me levantei e tentei pegá-la. Ela pinoteou e me
deu um coice e o seu casco atingiu-me o braço e depois o rosto. O sangue jorrou
de minha boca, descendo pelo pescoço e me encharcando a roupa. A dor era de
cegar. Eu desejava morrer, mas a dor foi simplesmente aumentando e aumentando
como uma espécie de parede que vibrava como uma concha envolvendo-me.
Quando a dor havia diminuído o suficiente para eu poder ver,
a mula já havia desaparecido. Fiz pressão na minha boca, para estancar o
sangue.
Eu não podia voltar à aldeia; precisava deixar essas selvas.
Eu andaria até sair. Mas não agora. Já era tarde. Podia passar a noite ali, e
continuar no dia seguinte.
Naquela noite senti calafrios e tremi; dormi apenas intermitentemente.
Todo o lado direito de meu maxilar estava inchado e deformado.
Na manhã seguinte eu me sentia terrivelmente doente e sabia que
deveria voltar à aldeia. Comecei a pensar o que é que Deus estava querendo me
dizer com tudo isso.
Os loucos não gostavam de mim. Eles ficaram tão contentes
quanto eu, quando eu partira. Portanto, por duas vezes, por que eu não pudera
partir? Por que Deus permitirá que a mula me atirasse duas vezes ao chão?
Então me lembrei da junta de missões e da lição que eu
aprendera dela. A junta de missões me recusara, mas Deus não. Agora tudo estava
acontecendo novamente. Os iucos não queriam, particularmente, que eu ficasse
ali, mas Deus queria. E eu precisava seguir a Deus.
O sol estava brilhante naquele dia, e eu me sentia febril e
tonto. Não demorou muito para eu pensar que estava sendo assado pelo sol.
Minhas roupas estavam duras pelo barro e o sangue seco. A cabeça parecia vazia.
Caminhei aos tropeções. Quando cheguei lá embaixo, num dos
vales, vi um riacho que antes eu vira apenas de passagem. Abaixei-me e
deitei-me na água fresca, deixando que ela me amaciasse a pele. Fiquei ali
deitado, sem mexer, pelo menos uma hora.
Quando me levantei, já era bem tarde. Eu sabia que precisava
atingir a aldeia antes do anoitecer. Eu me sentia muito fraco, bastante fraco
até para ficar de pé. Caí vezes seguidas, e ficava imóvel por uns minutos,
antes de poder reunir forças suficientes para me levantar novamente.
À medida que me aproximara da aldeia, comecei a gritar:
"Ajudem-me, por favor, ajudem-me." Desta vez, eu não me importaria se
eles rissem de mim.
De repente alguns iucos apareceram. O chefe estava com eles.
Eles não deram risadas.
O próprio chefe me carregou para a aldeia e ajudou a tomar
conta de mim. Levou uma semana para que eu me sentisse com forças para me
levantar. Quando me levantei, então não desejava mais partir. Os índios
haviam-se tornado gente para mim. Eles haviam cuidado de mim quando eu
necessitara de auxílio. Agora eu iria ficar e ver como é que poderia
auxiliá-los.
Não queria dizer que isso se tornara mais fácil. A vida
ainda era enfadonha ali, eu ainda estava com disenteria amebiana, e ainda estava
expelindo sangue todas as manhãs. Mas eu progredia no conhecimento da língua e
logo pude falar razoavelmente bem. Isso ajudou grandemente. Quanto mais eu
falava, mais começava a compreender essas pessoas, e quanto mais eu as
compreendia, desejava muito mais ajudá-las. Aquilo que me parecera ignorância e
estupidez, não se assemelhava a isso agora.
Era algo de que eu precisaria me lembrar muitas vezes: Antes
mesmo de realmente compreender um povo, não o julgue.
Mas eu ainda sentia o desejo de ir ter com os motilones.
Naturalmente, era tarde demais para ir ajudá-los com a epidemia de sarampo. Mas
isso não queria dizer que eu não deveria ir até lá. Gradualmente aquele desejo,
que anteriormente fora tão forte, antes que eu me encontrasse com os iucos, reacendera.
Perguntei aos iucos a respeito das tribos daquela área. Uma
das tribos se destacava em suas mentes, a tribo com a qual haviam combatido. Os
iucos os conheciam como "o povo do petróleo". Aquilo fazia sentido; a
região dos motilones era tão rica em petróleo que havia percolações naturais em
várias partes dela. Dessa informação e de outras descrições que me deram, logo
eu estava convencido que o "povo do petróleo" eram os motilones.
Perguntei aos iucos se eles me levariam aos motilones. Os
seus olhos se esbugalharam de temor.
— Oh, não, nós não chegamos perto deles. Ele nos matariam —
disse um deles.
Eu insisti.
— Bem — disse ele — há uma tribo de iucos ao sul. Talvez
eles possam levá-lo. Você poderá tentar lá.
Desta vez a partida não foi tão difícil. Deus realmente
desejava que eu voltasse, embora não tivesse conseguido realizar alguma coisa
muito grande. Nenhum dos iucos chegara a conhecer a Cristo. Eu não conseguira
me sentir à vontade na cultura deles. Havia ali um negócio inacabado, mas eu
sentia a urgência de estar com os motilones — uma insistência que somente
poderia vir de Deus.
Então me despedi e fui habitar com aquela tribo mais ao sul.
Não esperava ficar ali muito tempo, mas no momento que tentei conversar com um
deles, descobri que iria ter certa dose de problemas. Esses iucos falavam um
dialeto diferente. Eu não podia entendê-los.
Todavia eles se demonstraram amigos. Aceitaram-me e deixaram
que eu comesse e dormisse com eles. Após um mês, eu já aprendera o suficiente
de sua língua para poder perguntar-lhes a respeito da possibilidade de me
levarem aos motilones.
Ficaram petrificados. — Oh, não, nós não chegamos perto
deles. Quem sabe a tribo que fica a leste daqui poderá levá-lo até eles.
Então comecei a ir de tribo em tribo, tentando conseguir
alguém que me levasse. Às vezes eu tinha a intenção de pôr-me a caminho,
sozinho, mas eu aprendera o suficiente a respeito das selvas para não
experimentar isso novamente.
Em cada tribo havia sempre "talvez alguém" que me
poderia levar. Certa vez consegui um grupo que fosse comigo, mas após o
primeiro dia de andar pela picada, fiquei terrivelmente doente e precisei
voltar. A princípio eu julgava que talvez estivesse indo contra a vontade de
Deus, como eu o fizera quando ele usara a mula para me fazer voltar. Num
segundo pensamento, sabia que desta vez eu estava certo. Eu não ia aos
motilones simplesmente para o meu próprio conforto. Ia porque sentira que o
chamado era de Deus. Portanto eu insistia.
Tinha os olhos voltados para um jovem iuco. Ele era forte, e
um sujeito pronto a rir e a divertir-se. Ele tinha a reputação de estar pronto
a fazer qualquer coisa, desde que houvesse a possibilidade de tirar algum
proveito.
Eu tinha um trunfo em minhas mãos. Os iucos adoram coisas
brilhantes, e na primeira tribo que eu estivera, eles ficaram fascinados pelos
meus zíperes. As minhas roupas, à moda do oeste, havia muito que se gastaram, e
eu usava o tradicional poncho dos iucos. Mas eu conservara os zíperes de minhas
calças, e os guardava no fundo de minha mochila.
Após esperar dois meses, retirei um deles e o amarrei a um
pedaço de cordão. Depois levei aquele jovem à parte. Secretamente eu o fui
levando até à selva, e então retirei o zíper da mochila. Deixei-o balançar na
ponta do cordão, de modo que o sol, batendo nele, o fizesse brilhar.
Ele tentou agarrá-lo, mas eu o retirei. — Eu lhe darei isso
se você me levar até aos motilones — eu disse.
Eu podia ver o conflito em que se achava. Cada vez que ele
pensava em se aproximar dos motilones, ele franzia a testa e se afastava. Mas
cada vez que olhava para o zíper, ele o desejava ainda mais.
Finalmente, sacudindo os ombros, disse: — Está certo. Por
que não?
Eu o segurei pelos ombros. — Maravilhoso. Partiremos amanhã?
Ele sacudiu a cabeça taciturnamente.