segunda-feira, 3 de maio de 2021

Por esta cruz te matarei - Capítulo 09


  SUBORNO

Terminei de carregar a mula, e andei ao seu redor, para ter a certeza de que todas as correias estavam bem apertadas. Um pequeno punhado de loucos me observava. Eu os olhava com alguma incerteza. Deveria eu fazer alguma coisa mais do que simplesmente dizer-lhe adeus? Deveria eu apertar-lhe as mãos, ou abraçar cada um deles? Os loucos me olhavam impassivelmente, sem nenhum sinal de emoção em suas faces.

Levantei a mão. — Adeus — eu disse. — Sinto deixá-los.

Mentiroso, eu disse a mim mesmo.

Montei na mula e parti, olhando para trás uma vez, para acenar-lhes adeus.

Conduzi a mula sobre a trilha rochosa e íngreme que saía da aldeia. Haviam-me informado que ela levaria à civilização.

Bem, eu havia feito mais do que a minha parte. Devia estar satisfeito com o que fizera. Apesar de tudo, o que deveria ter sido uma longa visita de uma semana, terminara sendo de quatro meses.

Gente, como seria bom voltar à civilização e poder falar com alguém que entendesse inglês. E a comida. A minha boca encheu-se de água, só em pensar numa coca-cola e num hambúrguer. A comida dos loucos era terrível. Dia após dia, era sempre a mesma coisa. Milho e chicha. A chicha era uma bebida alcoólica feita de milho mastigado e cuspido numa grande cabaça, e deixado ali para fermentar. O seu sabor era tão bom quanto a sua descrição.

Era um dia frio e nevoento. Os picos ao redor da aldeia estavam encobertos pelas nuvens. Eu sonhava em desejar voltar às selvas mais quentes e úmidas das elevações mais baixas. Mas quatro meses de constante temor me haviam abalado.

Ê uma tolice sentir-se culpado por partir, pensei comigo mesmo. Eu estava doente. Havia dois meses já que vinha evacuando sangue. Eu precisava de cuidados médicos.

A mula continuou a caminhar pesadamente, levando-me cada vez mais longe dos iucos.

O tédio tornara-se o meu maior inimigo. Eu podia aceitar as flechas atiradas em mim. Pelo menos aquilo terminava logo. Mas levantar todas as manhãs, para ver o mesmo alimento, sentir o mesmo cheiro horrível, estar com as mesmas pessoas com as quais eu não tinha nenhuma afinidade: tudo aquilo me aborrecia. Então era tempo de partir. Eu havia feito a minha parte. E daí? pois ninguém havia chegado a conhecer a Cristo. Eu aprendera o suficiente de sua língua para contar-lhes a respeito dele. Fiz o que pude.

A mula, lentamente, me foi levando por um declive abaixo e depois para cima, na fralda mais alta. O homem que a vendera, não mentira. Era um animal firme de pés, e muito bom. Se essa picada realmente saía das selvas, como os índios haviam dito, logo poderíamos sair dali.

De repente a mula empinou. Tentei segurar-me mas não consegui. Fui atirado ao ar. Minhas mãos se estenderam a fim de agarrar alguma coisa, mas a mula não estava sob o meu corpo. Caí pesadamente sobre o ombro direito, enquanto ouvia a mula galopando através das moitas.

Levantei-me lentamente. Com a queda, havia deslocado o ombro. Minha mochila se abrira e todas as minhas coisas estavam espalhadas ao longo da picada. Fazia apenas uma hora que eu deixara a aldeia, mas eu não sentia desejo algum de voltar lá. Eu podia prosseguir à pé, na esperança de poder chegar, mas realmente eu precisava daquela mula, e ela estava a caminho da aldeia. Eu precisava ir lá também.

Para voltar a pé, era uma longa distância, e o meu ombro doía terrivelmente. A pior coisa, no entanto, era a dificuldade emocional de voltar a um lugar que eu abandonara fazia pouco. De jeito nenhum eu desejava ir àqueles índios novamente.

Meus piores temores se concretizaram quando me aproximei da aldeia. As pessoas já haviam visto a mula, muito antes que eu lá chegasse, portanto já sabiam o que acontecera. Vieram ao meu encontro, às gargalhadas! O grande homem branco havia sido derrubado por uma mula. Ninguém me auxiliou a levar a mochila.

Eu estava cansado pela caminhada e o meu ombro estava rijo, mas eu não iria ficar e ser motivo de riso. Selei a mula, carreguei-a, e parti novamente.

Desta vez as coisas caminharam muito melhor. Fora esquisito que a mula houvesse pinoteado e me atirado. Não se espera que as mulas procedam dessa forma. E essa era, particularmente, de bom temperamento.

Prossegui durante três horas, e já estava-me sentindo muito melhor. Logo eu estaria no meio da civilização.

De repente a mula empacou, e abaixou a cabeça. Apertei as rédeas, como me haviam dito que fizesse. Mas a mula começou a dar coices e me atirou por cima de sua cabeça. Fui cair numa poça imunda e fria. Contudo, a mula não havia corrido, e eu me levantei e tentei pegá-la. Ela pinoteou e me deu um coice e o seu casco atingiu-me o braço e depois o rosto. O sangue jorrou de minha boca, descendo pelo pescoço e me encharcando a roupa. A dor era de cegar. Eu desejava morrer, mas a dor foi simplesmente aumentando e aumentando como uma espécie de parede que vibrava como uma concha envolvendo-me.

Quando a dor havia diminuído o suficiente para eu poder ver, a mula já havia desaparecido. Fiz pressão na minha boca, para estancar o sangue.

Eu não podia voltar à aldeia; precisava deixar essas selvas. Eu andaria até sair. Mas não agora. Já era tarde. Podia passar a noite ali, e continuar no dia seguinte.

Naquela noite senti calafrios e tremi; dormi apenas intermitentemente. Todo o lado direito de meu maxilar estava inchado e deformado.

Na manhã seguinte eu me sentia terrivelmente doente e sabia que deveria voltar à aldeia. Comecei a pensar o que é que Deus estava querendo me dizer com tudo isso.

Os loucos não gostavam de mim. Eles ficaram tão contentes quanto eu, quando eu partira. Portanto, por duas vezes, por que eu não pudera partir? Por que Deus permitirá que a mula me atirasse duas vezes ao chão?

Então me lembrei da junta de missões e da lição que eu aprendera dela. A junta de missões me recusara, mas Deus não. Agora tudo estava acontecendo novamente. Os iucos não queriam, particularmente, que eu ficasse ali, mas Deus queria. E eu precisava seguir a Deus.

O sol estava brilhante naquele dia, e eu me sentia febril e tonto. Não demorou muito para eu pensar que estava sendo assado pelo sol. Minhas roupas estavam duras pelo barro e o sangue seco. A cabeça parecia vazia.

Caminhei aos tropeções. Quando cheguei lá embaixo, num dos vales, vi um riacho que antes eu vira apenas de passagem. Abaixei-me e deitei-me na água fresca, deixando que ela me amaciasse a pele. Fiquei ali deitado, sem mexer, pelo menos uma hora.

Quando me levantei, já era bem tarde. Eu sabia que precisava atingir a aldeia antes do anoitecer. Eu me sentia muito fraco, bastante fraco até para ficar de pé. Caí vezes seguidas, e ficava imóvel por uns minutos, antes de poder reunir forças suficientes para me levantar novamente.

À medida que me aproximara da aldeia, comecei a gritar: "Ajudem-me, por favor, ajudem-me." Desta vez, eu não me importaria se eles rissem de mim.

De repente alguns iucos apareceram. O chefe estava com eles. Eles não deram risadas.

O próprio chefe me carregou para a aldeia e ajudou a tomar conta de mim. Levou uma semana para que eu me sentisse com forças para me levantar. Quando me levantei, então não desejava mais partir. Os índios haviam-se tornado gente para mim. Eles haviam cuidado de mim quando eu necessitara de auxílio. Agora eu iria ficar e ver como é que poderia auxiliá-los.

Não queria dizer que isso se tornara mais fácil. A vida ainda era enfadonha ali, eu ainda estava com disenteria amebiana, e ainda estava expelindo sangue todas as manhãs. Mas eu progredia no conhecimento da língua e logo pude falar razoavelmente bem. Isso ajudou grandemente. Quanto mais eu falava, mais começava a compreender essas pessoas, e quanto mais eu as compreendia, desejava muito mais ajudá-las. Aquilo que me parecera ignorância e estupidez, não se assemelhava a isso agora.

Era algo de que eu precisaria me lembrar muitas vezes: Antes mesmo de realmente compreender um povo, não o julgue.

Mas eu ainda sentia o desejo de ir ter com os motilones. Naturalmente, era tarde demais para ir ajudá-los com a epidemia de sarampo. Mas isso não queria dizer que eu não deveria ir até lá. Gradualmente aquele desejo, que anteriormente fora tão forte, antes que eu me encontrasse com os iucos, reacendera.

Perguntei aos iucos a respeito das tribos daquela área. Uma das tribos se destacava em suas mentes, a tribo com a qual haviam combatido. Os iucos os conheciam como "o povo do petróleo". Aquilo fazia sentido; a região dos motilones era tão rica em petróleo que havia percolações naturais em várias partes dela. Dessa informação e de outras descrições que me deram, logo eu estava convencido que o "povo do petróleo" eram os motilones.

Perguntei aos iucos se eles me levariam aos motilones. Os seus olhos se esbugalharam de temor.

— Oh, não, nós não chegamos perto deles. Ele nos matariam — disse um deles.

Eu insisti.

— Bem — disse ele — há uma tribo de iucos ao sul. Talvez eles possam levá-lo. Você poderá tentar lá.

Desta vez a partida não foi tão difícil. Deus realmente desejava que eu voltasse, embora não tivesse conseguido realizar alguma coisa muito grande. Nenhum dos iucos chegara a conhecer a Cristo. Eu não conseguira me sentir à vontade na cultura deles. Havia ali um negócio inacabado, mas eu sentia a urgência de estar com os motilones — uma insistência que somente poderia vir de Deus.

Então me despedi e fui habitar com aquela tribo mais ao sul. Não esperava ficar ali muito tempo, mas no momento que tentei conversar com um deles, descobri que iria ter certa dose de problemas. Esses iucos falavam um dialeto diferente. Eu não podia entendê-los.

Todavia eles se demonstraram amigos. Aceitaram-me e deixaram que eu comesse e dormisse com eles. Após um mês, eu já aprendera o suficiente de sua língua para poder perguntar-lhes a respeito da possibilidade de me levarem aos motilones.

Ficaram petrificados. — Oh, não, nós não chegamos perto deles. Quem sabe a tribo que fica a leste daqui poderá levá-lo até eles.

Então comecei a ir de tribo em tribo, tentando conseguir alguém que me levasse. Às vezes eu tinha a intenção de pôr-me a caminho, sozinho, mas eu aprendera o suficiente a respeito das selvas para não experimentar isso novamente.

Em cada tribo havia sempre "talvez alguém" que me poderia levar. Certa vez consegui um grupo que fosse comigo, mas após o primeiro dia de andar pela picada, fiquei terrivelmente doente e precisei voltar. A princípio eu julgava que talvez estivesse indo contra a vontade de Deus, como eu o fizera quando ele usara a mula para me fazer voltar. Num segundo pensamento, sabia que desta vez eu estava certo. Eu não ia aos motilones simplesmente para o meu próprio conforto. Ia porque sentira que o chamado era de Deus. Portanto eu insistia.

Tinha os olhos voltados para um jovem iuco. Ele era forte, e um sujeito pronto a rir e a divertir-se. Ele tinha a reputação de estar pronto a fazer qualquer coisa, desde que houvesse a possibilidade de tirar algum proveito.

Eu tinha um trunfo em minhas mãos. Os iucos adoram coisas brilhantes, e na primeira tribo que eu estivera, eles ficaram fascinados pelos meus zíperes. As minhas roupas, à moda do oeste, havia muito que se gastaram, e eu usava o tradicional poncho dos iucos. Mas eu conservara os zíperes de minhas calças, e os guardava no fundo de minha mochila.

Após esperar dois meses, retirei um deles e o amarrei a um pedaço de cordão. Depois levei aquele jovem à parte. Secretamente eu o fui levando até à selva, e então retirei o zíper da mochila. Deixei-o balançar na ponta do cordão, de modo que o sol, batendo nele, o fizesse brilhar.

Ele tentou agarrá-lo, mas eu o retirei. — Eu lhe darei isso se você me levar até aos motilones — eu disse.

Eu podia ver o conflito em que se achava. Cada vez que ele pensava em se aproximar dos motilones, ele franzia a testa e se afastava. Mas cada vez que olhava para o zíper, ele o desejava ainda mais.

Finalmente, sacudindo os ombros, disse: — Está certo. Por que não?

Eu o segurei pelos ombros. — Maravilhoso. Partiremos amanhã?

Ele sacudiu a cabeça taciturnamente.