A solidão me atacava. Quase sempre eu andava pelas ruas
durante horas, simplesmente olhando para o rosto das pessoas, e tentando
escutar as suas conversas.
Você está bancando o tolo, eu disse a mim mesmo. Você ê simplesmente
um estúpido e saudoso minesoteano. Mas eu não desejava voltar para os Estados
Unidos; a América do Sul me havia cativado.
O que eu precisava era realmente de um amigo verdadeiro —
alguém que me conhecesse completamente; um irmão. Eu não podia traduzir esse
anseio em palavras, mas o desejo estava ali. E de qualquer jeito, eu sabia que
Lúcio nunca poderia ser isso para mim.
Eu também estava preocupado com a minha matrícula na
Universidade. Eu estava na América do Sul para ajudar os índios. Havia dito
isso para todos. Mas a Universidade era um lugar muito esquisito para se
procurar índios.
Miguel Nieto, o meu superior no Ministério da Saúde, sabia
de meu interesse pelos índios, e um dia me chamou a seu escritório para
conversamos sobre eles.
— Você já ouviu falar da tribo dos motilones? — perguntou. A
nossa conversa resultou em algo monumental. Através dela eu descobri por que
Deus me havia dirigido à América do Sul.
Nieto me informou que o primeiro contato entre os motilones
e a civilização fora através das flechas. Ninguém ainda havia aprendido a
língua dos motilones, e tampouco havia estado tão próximo deles a fim de
descrever a sua cultura física. Ele me informara que os motilones vivem numa
área das selvas indômitas, nas fronteiras entre a Colômbia e a Venezuela.
Somente as grandes companhias petrolíferas norte-americanas
é que pareciam estar interessadas naquela área. Todas as vezes que os seus
funcionários ali penetravam eram atingidos pelas flechas. Um grande número
deles já havia sido ferido pelas flechas e muito deles já haviam sido mortos.
Parece que a melhor coisa a fazer seria esquecer os motilones.
Porém eu não podia. Uma curiosidade atormentadora e agitada se apossava de mim.
E ela não me deixava apesar de todos os bons argumentos que eu usava para me
opor a ela.
O que poderei eu fazer para um punhado de índios selvagens,
primitivos? perguntava a mim mesmo.
Não tinha importância o que eu pensava e o que poderia
fazer. Interiormente, eu sabia que, de um jeito ou de outro, Deus desejava que
eu fosse ter com eles. Mas, eu tinha medo, e tentei todo o possível para evitar
que me entregasse a essa idéia. Esquecera-me de como Deus pode tornar as coisas
tão difíceis para alguém que não faz aquilo que é exigido dele. Eu perdera a
capacidade de me concentrar, de fazer qualquer coisa, a não ser pensar nos
motilones.
E mesmo assim, eu não iria!
Um dia, eu estava no Ministério da Saúde, à espera de poder
falar com um funcionário público, quando alguém atirou um jornal na cadeira
junto à minha. Dei-lhe uma olhada.
A palavra "motilone" prendeu-me os olhos. Olhei
com mais cuidado ainda. Havia um artigo comentando uma epidemia de sarampo que
estava atingindo um grande número de motilones. Um dos funcionários de uma
companhia petrolífera havia descoberto mais de vinte corpos mortos — e
abandonados — numa das suas casas comunitárias. A descrição feita por ele, com
todos os detalhes daqueles corpos em decomposição, era deprimente.
Um ponto qualquer, dentro de mim, se partiu com um estalo.
Contra o que é que eu estava lutando?
Por que tanta resistência? Lá, nas selvas, havia gente que
necessitava de auxílio. Eu havia estudado medicina tropical; eu poderia
ajudá-los.
Dentro de uma semana eu estava num ônibus, a caminho de
Machiques, uma cidadezinha ao pé dos Andes. Não fora fácil conseguir sair. os
problemas para conseguir um visto haviam me levado até ao presidente do país. E
fora bastante penoso ter que deixar meus amigos estudantes. Eles tinham a
certeza de que eu enlouquecera.
No entanto, eu me sentia jubiloso. O ônibus estava repleto,
não somente de passageiros, mas com criação. Acabei carregando um porco enorme
no meu colo, durante a maior parte de nossa viagem de três dias. No entanto, eu
me sentia muito mais à vontade agora, do que quando deixara Caracas para subir
o Orinoco. Agora eu falava bem o espanhol e sentia prazer em conversar com os
outros passageiros. A esposa de um rancheiro, gorda, com um rosto avermelhado,
minha companheira de banco, já ouvira falar nos motilones, e então eu a
interroguei de todo jeito, em busca de informação. Ela me contou várias
histórias bem interessantes a respeito de pessoas que haviam sido feridas pelas
flechas longas e pesadas dos motilones.
— Não se aproxime deles — disse ela, sacudindo o seu dedo
enorme. — Eles o matarão.
Ouvi o mesmo conselho de diversas pessoas em Machiques. Mas
eu estava confiante — e muito entusiasmado por iniciar uma nova*aventura.
Também eu me lembrava vividamente de minha viagem quando subira o Orinoco.
Aqueles índios haviam-se mostrado tão amigos, tão maravilhosos para se conviver
com eles. Na minha mente, índios eram índios. E poder viver nas selvas não
seria tão difícil também. Afinal de contas, eu vivera lá no Orinoco.
Eu economizara dinheiro suficiente para comprar algumas
mercadorias, e decidi iniciar essa aventura com uma visita muito curta, talvez
de uma semana. O único meio de transporte de Machiques, através dos Andes, é a
pé, e então comprei uma mula, "uma de pé bem firme", segundo o homem
que a vendera. Nós dois saímos uma manhã bem cedinho e seguimos a trilha que me
fora indicada.
O caminho era fácil de seguir e gradualmente ele ia subindo
pelos Andes. A todo momento eu esperava encontrar-me com um motilone cordial e
que me levasse ao seu acampamento.
Andei um tanto lepidamente o dia todo, parando apenas para
mastigar um pedaço de pão. A medida que o sol ia baixando, e o verde tão lindo
da folhagem se tornava cada vez mais escuro, comecei a me sentir exausto.
Desapontado por não ter encontrado índio algum, e por precisar passar a noite
ao ar livre, eu fazia a mula avançar, com a esperança de encontrar uma das
aldeias dos índios.
De repente parei. Eu havia perdido a pista. À minha frente
havia apenas as trepadeiras e plantas rasteiras. Voltei até encontrar a pista
novamente. Mas não prossegui muito longe nela. A uns cem metros ela
desaparecera novamente.
Tornei a voltar. Parecia esquisito eu tomar caminho errado
duas vezes seguidas. Talvez fosse simplesmente a diferença de luz.
O caminho agora não estava tão bem marcado. Ele se tornara
um caminho repleto de ervas daninhas, estreito como um fio, indo através das
árvores. Quando o encontrei de novo, eu o segui cuidadosamente. Mas, havia
andado apenas uns poucos passos, quando percebi que não havia caminho algum.
Ziguezagueei aquela área, puxando atrás de mim a mula
cansada e teimosa, através de arbustos e trepadeiras. Não havia sinal algum de
trilha. Ela havia desaparecido.
Parei e olhei ao redor; meu coração batia aceleradamente.
Não havia coisa alguma em todos os lados, senão silêncio, árvores escuras, e as
trepadeiras. Tudo aquilo era tão igual.
Tentei lembrar-me de meu treinamento como escoteiro. Como é
que um escoteiro descobria em que lugar se encontrava? Eu não podia me lembrar.
Sabia o que poderia fazer. Poderia esperar até o sol surgir
no dia seguinte e então encontrar o meu caminho com o auxílio dele.
Aquele pensamento me aliviou. Era muito simples. Era
simplesmente esperar até o amanhecer.
Mas, em que direção eu havia viajado até então? Do lugar
onde me encontrava, onde é que ficava Machiques? Eu achava que caminhara em
direção ao leste, mas não tinha certeza.
Agora tudo estava completamente escuro. Eu apenas podia
enxergar as silhuetas das árvores. Não tinha coisa alguma onde pudesse dormir.
Teria que me deitar no chão. Pelo menos não estava frio.
Amarrei a mula, escolhi um lugar, e deitei-me. No virar de
um lado para outro, a fim de acomodar-me e encontrar uma posição mais cômoda,
acabei espetando um espinho em minhas costas. Sentei-me rapidamente.
Sentia-me tão infeliz, cansado, e deprimido. Realmente eu
sabia o que estava fazendo? As selvas, que durante o dia pareciam tão
agradáveis, começaram a parecer perigosas. Eu ouvia barulhos e pancadas no meio
das moitas. Gritos estranhos e lamentosos ecoavam através do ar. Eu não podia
dormir.
Fiquei à espera de que o sol nascesse. A noite parecia
muitas horas mais longa do que usualmente. Certa hora, quando eu estava a ponto
de pegar no sono, alguma coisa pousou em meu rosto, e imediatamente saltou para
o meio da moita. A adrenalina jorrou através de minhas veias. E eu estava
totalmente acordado.
Observei a escuridão transformando-se num cinza, que
gradualmente ia ficando cada vez mais claro. Quando, finalmente, podia
distinguir as cores, eu me levantei. Eu estava duro, e tinha na boca um sabor
horrível.
Eu tinha uma lata de sardinhas, que sobrara de meu almoço, e
uma vela para poder aquecê-las. Só em pensar em alimento, eu me sentia
vorazmente faminto, porque me havia esquecido de comer na noite anterior.
Revirei apressadamente a mochila até encontrar a lata de sardinhas.
Mas eu havia-me esquecido de colocar um abridor de latas.
Apanhei o canivete e comecei a abrir a lata. O canivete se
quebrou. Daquela pequena abertura que eu fizera, chupei avidamente o azeite de
oliva. Eu precisava comer! Não podia prosseguir sem comer! Poderia morrer de
inanição.
Tentei abrir a lata, batendo-a numa rocha, mas não adiantou
coisa alguma. Finalmente eu a atirei no meio da moita.
Eu havia perdido uma hora. E ainda não sabia onde me
encontrava. E tampouco tinha idéia alguma de como encontrar o caminho por onde
eu andara. Mas eu não queria voltar.
O sol estava surgindo ao longe, lá no alto de uma montanha.
Resolvi, então, caminhar naquela direção. Comecei a andar, puxando a mula que
se opunha. Agora que não havia caminho algum marcado, prosseguíamos
vagarosamente. A mula constantemente se emaranhava nas trepadeiras e na vegetação
rasteira. Algumas das moitas tinham espinhos agudos e longos, e muitos deles se
espetaram nas minhas mãos e pernas. Assim que eu os retirava, os cortes
inchavam horrivelmente. Comecei a sentir-me febril.
À medida que eu subia, cada vez mais alto, pelas montanhas,
a folhagem ia rareando, e borboletas lindas, iridescentes, voavam por toda
parte. Papagaios vermelhos como fogo grasnavam para mim. O ar tornara-se mais
ameno. A minha sede desaparecera, mas eu me sentia fraco. Os insetos continuavam
a picar-me, como o fizeram desde o momento em que eu iniciara a viagem. Cada
pedacinho de meu corpo, que se achava exposto, estava coberto de vergões
vermelhos.
Naquela noite realmente dormi, apesar de os pesadelos me
acordarem várias vezes. Estava frio, e eu não tinha roupas quentes para me
cobrir. Quando me levantei na manhã seguinte, a primeira coisa que fiz foi
esforçar-me para vomitar. Olhei para as mãos, e dificilmente podia
reconhecê-las. Estavam vermelhas, inchadas, e picadas; assemelhavam-se a pedaços
de carne crua.
"Por quê, Senhor?" perguntei. "Que é que eu
estou fazendo aqui?" Contudo, desamarrei a mula e prossegui. As colinas
eram muito íngremes para que eu pudesse montá-la, e então eu a puxava pelas
rédeas, tropeçando, e praticamente sem nenhum domínio sobre mim mesmo.
Então, olhando através de um vale bastante profundo, vi, no
outro lado do cume, um aglomerado de cabanas. Era uma vila dos índios. Pisquei
os olhos.
Graças a Deus, eu havia encontrado os motilones.
Vagarosamente fui descendo até ao vale, e depois, lenta e
cansativamente, fui subindo pelo outro lado. Isso levou várias horas. Eu
conservava os olhos voltados para a frente, na esperança de encontrar alguns
índios. E então, porque não olhava onde punha os pés, eu tropeçava e caía.
Finalmente atingi aquele aglomerado de cabanas. Senti um
alívio enorme enquanto um grupo de pessoas se encaminhava em minha direção. —
Eu estou aqui — gritei, não dando a mínima importância se eles iriam ou não me
entender.
Uns vinte ou mais índios me cercaram, mirando-me e tagarelando
em sua própria língua. Tentei conversar em espanhol com eles. Não houve
resposta alguma. Tentei as poucas frases que conhecia e que aprendera durante o
tempo que ficara com os índios em Orinoco. Ainda assim, não houve resposta alguma.
Todas as pessoas pareciam velhas e enrugadas. Elas me
olhavam, me cutucavam e davam gargalhadas. A maior parte delas estava sem
dentes. Quando abriam a boca, mostravam as gengivas vermelhas e desdentadas.
Caminhamos para a vila. Ali, mulheres e crianças saíram de
suas cabanas para me verem. Ninguém entendia uma palavra sequer do que eu
dizia. E eles nem mesmo tentavam escutar.
Eu tinha a certeza de que ali haveria um chefe. Talvez ele e
os mais jovens estivessem fora caçando. Eu estava sempre na expectativa de
vê-los voltar. Mas eles não voltaram, e me cansei de ficar de pé, ali no meio
daquele círculo de rostos sorridentes, de velhos decrépitos, mulheres e
crianças. Eu ainda me sentia doente e aturdido.
Que é que eu poderia fazer para me comunicar com eles? Então
me lembrei de minha flauta pequena de madeira, que eu trouxera para me
divertir. Talvez essas pessoas se interessassem em ouvir-me tocá-la.
Retirei-a de minha mochila, sentei-me no chão e comecei a
tocar. À medida que tocava, quase todos acompanhavam com movimentos de cabeça,
o compasso da música. Quando parei, um dos velhos colocou as mãos em frente de
sua boca, fazendo menção de tocar, como se estivesse indicando que eu deveria
continuar tocando. E então comecei a tocar uma melodia que aprendera com índios
lá no rio Orinoco. De repente, surgiu um homem com uma flauta e reproduziu as
primeiras notas que eu tocara. Toquei mais algumas notas, e ele as reproduziu
também. Logo estávamos tocando juntos aquela melodia.
Então ele tocou uma melodia que eu nunca ouvira. Eu a
reproduzi, nota por nota. Nessas alturas, a aldeia toda havia parado para
ouvir.
Prosseguimos tocando por muito tempo. Eu já estava-me
cansando, mas ninguém se levantava para sair. Finalmente, às três e meia da
manhã, paramos.
Choveu torrencialmente naquela noite. Fiquei deitado,
acordado, na choça para a qual me haviam levado, ouvindo a respiração pesada
dos homens que estavam ali comigo. Pelo menos eu estava num lugar seguro, com
pessoas que pareciam ser amigas.
Na manhã seguinte ainda não havia sinal algum do chefe.
Deram-me algo para beber, com um sabor horrível, e umas raízes fervidas e
ásperas. Eu as engoli à força; estava tão faminto que podia comer qualquer
coisa.
Ninguém dava mostras de estar interessado em continuar o
concerto de flauta, e deixaram-me, para cuidar de seus próprios interesses. Ás
crianças estavam brincando. Um velho sentou-se ao sol, reclinando de encontro a
uma das choças. Quando olhei para ele, ele sorriu para mim.
Encaminhei-me em sua direção. — Como vai o senhor? —
perguntei-lhe em inglês.
Ele começou a falar na sua própria língua, que era exatamente
o que eu desejava. Imitei o que ele dizia.
Ele riu, disse mais algumas palavras, e tentei repeti-las.
Ele riu novamente. Parece que a brincadeira o divertia, e continuamos assim por
perto de duas horas. Era a minha primeira experiência em tentar compreender uma
língua, sem ter dela nenhuma noção. Encantado com aquilo, logo eu me esquecera
de tudo mais. Eu começara a sentir que podia separar alguns dos sons, e era
apenas uma questão de tempo, pensei, antes que começasse a descobrir o
significado de algumas das palavras.
Repentinamente, sem nenhum aviso, fui atingido nas costas
por uma pancada, que me atirou com o rosto em terra. Fiquei ali aturdido. Um
homem estava de pé sobre mim, gritando e berrando, num tom esganiçado,
batendo-me com chicotes que ele tinha nas mãos. Uma espuma branca jorrava de
seus lábios. Tentei rolar, fugindo de suas pancadas, mas diversos jovens
surgiram e com flechas longas e aguçadas, que seguravam em suas mãos, me
empurraram na direção dele.
Depois, então, por ordem daquele homem, dois dos guerreiros
me levantaram e me atiraram na choça onde eu passara a noite. Ninguém me veio
ver. Fiquei deitado ali no chão, arquejando, quase aterrorizado. Vergões me
surgiam nos braços e nas pernas, onde os chicotes haviam atingido.
Uma flecha passou através da parede de palha e foi atingir a
outra parede, do outro lado da choça. Logo em seguida, outras setas cortaram a
choça, de lado a lado. Os homens haviam cercado a choça e estavam tentando me
atingir. As setas não tinham o impulso suficiente para me ferirem, depois de
passarem pelas paredes, mas eram pesadas e deixavam marcas roxas, feias e
sangrentas, onde me atingiam. Depois de quinze minutos desse sofrimento, caí ao
chão, com as mãos sobre os olhos.
O homem que usara o chicote chegou à porta e gritou comigo.
Acabei concluindo que ele era o chefe. Ele agora segurava um arco com uma
flecha bem longa, e a sua aparência era de uma pessoa fora de si. Eu abracei o
chão, e implorei em inglês: — Por favor, não atire. Por favor. Não atire.
Ele se afastou da soleira da porta. Seguiu-se uma longa
pausa e a esperança voltou a surgir dentro de mim. Então ouvi o zumbido, e uma
flecha me atingiu, cegando-me de dor.
À medida que as setas continuavam a cair, aquela cena
parecia irreal. Tinha a semelhança de algo que somente aparece nos filmes.
No instante de maior terror, ocorreu-me que o que eu
precisava fazer era orar.
"Deus", eu disse, "quanto tempo isso vai
durar?" Preciso passar por isso tudo?" Eu podia prever um futuro
cheio de torturas, incapacidade de me comunicar, e até a morte.
Então, algo estranho aconteceu. Era como se eu tivesse sido
derrubado. Podia ver Jesus na cruz. Comecei a chorar.
"Ó Jesus", eu disse, assustado e temeroso.
"Foi isso o que tu enfrentaste. Nós parecíamos vis para ti, assim como
esses índios se parecem para mim. "Oh, deve ter sido absurdo o nosso
ódio."
Fiquei ali em silêncio. "Deus, eu te darei tudo o que
puder. Eu te dou as minhas forças, a minha vida. Aguentarei qualquer coisa,
qualquer dificuldade e até mesmo estarei pronto a morrer, se tu me deixares
falar a respeito de teu Filho aos motilones."
Talvez eu já tivesse feito aquela mesma oração antes. Mas
desta vez, no entanto, eu era sincero nas minhas palavras. Julgando que a morte
estivesse tão perto, eu precisava ser sincero.
Mais algumas flechas me atingiram, mas eu não estava mais
amedrontado com elas. Depois de certo tempo, o chefe foi impedido de continuar
atirando as flechas por alguns dos homens mais velhos. Mais tarde eu soube que
ele estava bêbado — uma das condições em que se encontravam usua-mente, ele e
os demais índios da tribo.
Apanhei a flauta e comecei a tocar. Eu a deixara ali na
choça na noite anterior. Os seus sons melodiosos eram confortadores, e pareciam
diminuir a dor de meus braços e de minhas pernas. Logo alguém, lá fora, começou
a tocar juntamente comigo.
Porém o chefe demonstrou claramente que eu não era bem-vindo
ali na aldeia. Não havia razão por que eu não poderia deixar a aldeia. Arrumei
aquilo que me pertencia, montei na minha mula e comecei a voltar para
Machiques.
Justamente quando ia penetrar nas selvas, logo abaixo da
aldeia, um velho me chamou. Fez sinal para que eu esperasse, e desapareceu numa
das choças. Saiu dela carregando uma criança.
Voltei para ver a criança. Era um menino, talvez de quatro
anos de idade, que estava bastante doente. Alguns dos outros moradores,
vendo-me olhar para aquela criança, trouxeram outras crianças, que
aparentemente tinham a mesma doença. Um círculo de rostos preocupados e tristes
formou-se ao meu redor.
Eu tinha na minha mochila um pequeno frasco de antibiótico,
mas hesitava em usá-lo. Já haviam decorrido seis meses, desde a data marcada
para o seu uso. No entanto, essas crianças poderiam morrer se não recebessem
qualquer cuidado médico. Então procurei o frasco de remédio na minha mochila e
comecei a distribuí-lo. Não havia o suficiente para todas as crianças, por isso
dei a cada um apenas meia dose. Não tinha muita confiança de que isso iria
ajudá-las, mas isso era tudo o que eu poderia fazer.
Retirei a carga de minha mula e esperei para ver os resultados.
Pedi a Deus que curasse as crianças onde o remédio não poderia. Transcorreu um
dia, e não houve nenhuma mudança no estado daquelas crianças. Mas, no dia
seguinte, uma das crianças começou a demonstrar certa melhora. Algumas horas
depois, todas elas estavam demonstrando sinais encorajadores. Dentro de uma
semana, todas estavam brincando alegremente.
O chefe mudou a sua atitude para comigo. Ele podia ver que
eu estava interessado em ajudar a sua tribo. Mais tarde descobri que no dia em
que ele me encontrara na sua aldeia, dois de seus jovens haviam sido mortos a
tiro por colonizadores brancos. Portanto, ele tinha razão de me ver com maus
olhos.
A minha visita foi-se prolongando. Comecei a aprender a
língua. Logo cheguei à conclusão de que esses não eram os índios motilones.
Nenhuma das descrições dos motilones se entrosava com essa cultura.
Esses índios chamavam a si mesmos deloiucos. Levaria ainda
mais um ano para eu entrar em contato com os motilones. A recepção seria ainda
mais amedrontadora.