No dia antes ao de minha chegada a Caracas, havia sido
decretado estado de emergência por causa de demonstrações contra o governo.
Tive dificuldade em conseguir um táxi, e notei que havia muitas tropas
patrulhando as ruas.
A pensão para onde os meus amigos me enviaram ficava num
velho edifício, perto da Praça Simon Bolívar. As paredes tinham a espessura de
vários centímetros, para fins de isolamento, muito embora a temperatura apenas
atingisse o máximo de vinte e seis graus. Deram-me um quarto pequeno com uma
janela para a rua.
A casa estava repleta, especialmente de estudantes, e não
demorou muito para que eu me sentisse em casa. Os corredores estreitos,
iluminados por telhas de vidro, estavam pintados de cores brilhantes. A
"sala de jantar" ficava numa parte ampla, num desses corredores onde
havia sido colocada uma longa fila de mesas. Aquela noite, na hora do jantar,
quando as mesas estavam repletas de alimento, e as velhas cadeiras de madeira,
de costas retas, cheias de estudantes que conversavam animadamente, fez-me
pensar no carnaval.
No dia seguinte havia barulho nas ruas — e a maior parte,
justamente quase às portas da pensão. Enquanto eu me vestia, ouvi pipocar muito
ao longe. Nunca me passara pela cabeça que fossem tiros de arma de fogo. Assim
que pus os pés na rua, no entanto, ouvi o barulho que as paredes espessas
haviam abafado: o cântico compassado da multidão e o tiroteio. Fiquei gelado
junto à porta. E então os soldados surgiam na esquina, empurrando algumas
pessoas na frente. Eles pararam abruptamente. Ouvi o barulho de suas metralhadoras,
e vi a poeira erguendo-se quando as balas atingiram o pó que se acumulava nas
ruas pavimentadas.
Enquanto aquilo se passava diante de meus olhos, alguma
coisa dentro de mim me dizia: "Mexa-se, pelo amor de Deus, mexa-se."
Mas eu fiquei ali plantado, como se minhas pernas fossem raízes. Um dos jovens
que estavam correndo, de repente caiu — como um balão desamarrado — e caiu de
bruços na rua. As metralhadoras voltaram a atirar e eu vi mais duas pessoas
caírem, e o sangue espirrando de seus corpos.
A maior parte da multidão já havia desaparecido, mas algumas
pessoas ainda hesitavam pelas esquinas. Um deles, um jovem de rosto escuro, com
um lenço vermelho atado ao redor do pescoço, voltou-se, apanhou uma pedra e
correu em direção às tropas. Ele fazia pontaria para atirá-la, mas enquanto o
fazia, as metralhadoras que até então estiveram silenciosas, voltaram a
funcionar, e o rapaz pareceu explodir: um braço voou sob uma chuva vermelha e foi
rolar na sujeira.
Então eu me mexi, sem pensar, como se minha mente dissesse
ao corpo: "mexa-se", um minuto depois que meu corpo já estava em
movimento. Fechei a porta dupla, trancando-a a chave e pondo a tranca, e depois
corri para o meu quarto. Fechei a janela, para abafar qualquer som. Atirei-me
na cama. Eu sentia frio. Fiquei ali deitado o dia, todo, ouvindo o ruído das
armas de fogo.
No dia seguinte eu estava com febre e fiquei de cama. Quando
os meus amigos voltaram à escola, eu estava verdadeiramente doente, com febre
de quase quarenta graus. Trouxeram um médico, que receitou alguns remédios; não
perguntei de onde vieram, pois não podia pagar por eles, de jeito algum. Soube,
depois, que um jovem chamado Lúcio Mondragon, um estudante, é que havia pago
pelos remédios. Todos os dias ele passava pelo meu quarto para me ver, contava
uma ou duas piadas e depois saía.
Os remédios ajudaram, e eu já podia andar um pouco, embora
ainda levasse algum tempo para que realmente eu ficasse bom.
Enquanto me convalescia, travei amizade com um vaga-bundo da
cidade, e eu me encontrava com ele todos os dias durante uma hora, para
conversarmos em espanhol. A noite, eu estudava espanhol num livro antigo.
Um outro estudante partilhava comigo, do mesmo quarto da
pensão, mas ele mudou-se após o segundo mês de minha estada ali. Com isso eu
precisava pagar o aluguel sozinho, sendo agora duas vezes mais caro.
Lúcio, provavelmente, suspeitando que eu não possuía muito,
se porventura tivesse algum dinheiro, convidou-me a mudar para o seu quarto,
que ficava no outro pavimento. E ele até me ajudou. Era um sujeito elegante,
magro, com cabelos pretos, que caíam sobre a testa, e tinha movimentos rápidos
e nervosos. Ele abriu a porta de seu quarto, e a minha primeira impressão foi
de que tudo ali era vermelho. Então descobri que o vermelho estava no formato
de foices e martelos — existentes numa parede toda forrada deles.
Lúcio entrou e colocou no chão uma caixa com as minhas
coisas.
— Essa é a sua cama — disse ele, apontando. — Tudo o mais
está à sua disposição. Você tem toda liberdade para usar o rádio —. Foi até
onde ele estava e o ligou. Estava sintonizado na Rádio Havana, de Cuba. Lúcio
olhou-me com uma leve sombra de sorriso no rosto. — Será melhor não tentar
mudar para outras estações. Ele é muito temperamental. Será difícil depois
conseguir a estação certa.
Não demorou muito para eu descobrir que Lúcio era um dos
líderes dos estudantes do partido socialista no campus da universidade. Havia
um espírito anti-norte-americano muito forte ali, e Lúcio constantemente
tentava me provocar, às vezes numa forma de brincadeira, e outras num rancor um
tanto encoberto.
Aquele vagabundo com quem eu conversava regularmente era um
tipo original, e ele não me estava ensinando o melhor espanhol. Os meus amigos
estudantes riam-se de algumas das coisas que eu dizia. — O seu estilo não é
muito bom, Olson. Por que você não vai à Universidade, onde realmente poderá
aprender? — perguntou-me um deles.
Se bem que poder frequentar a Universidade fosse além dos
meus sonhos, resolvi experimentar. Não havia muitos outros estudantes
estrangeiros ali, de modo que um norte-americano alto, loiro como eu, chamava a
atenção imediatamente. Dentro de pouco tempo eu era conhecido pela maior parte
dos estudantes.
No entanto, era Lúcio, justamente com os seus amigos
extremistas, que eram os mais atenciosos comigo. Eu podia perceber que as suas
idéias eram de grande importância para o grupo e que eles realmente desejavam
auxiliar os pobres de seu país; eu compartilhava de sua compaixão — mas muitas
vezes tínhamos discussões bem fortes.
Por exemplo, Lúcio sempre me responsabilizava por qualquer
coisa que o governo norte-americano tivesse feito.
— Você, porco capitalista — disse ele um dia, enquanto nós
sentávamos num café com um grupo de outros estudantes. — Nós esperamos
desenvolver o nosso país, tornando-o tão bom para os pobres como para os ricos,
e no entanto, o que é que vocês norte-americanos, fazem? Vocês vêm aqui e nos
exploram, levando todos os nossos recursos e nos deixando sem coisa alguma.
Vocês dominam o nosso governo, pagando e despedindo as pessoas.
— Espere um instante — eu disse. — Eu não faço nada disso.
— Oh, então você não apóia o seu governo? Você é um
revolucionário?
— Não, eu não disse isso.
— Então, por que é que você está aqui se não for por motivos
capitalistas? Você é um espião, tentando descobrir como é que nós trabalhamos
para depois usá-lo contra nós, assim como o seu governo o usou no Vietnam e em
Cuba. Não é isso mesmo?
— Não — eu disse. — Eu estou aqui porque desejo auxiliar os
índios, se eu puder.
Os estudantes que se haviam reunido ao grupo para ouvir,
começaram a rir. Para eles, os índios não tinham valor para serem arrolados na
sua rebelião política.
Olhei para eles com um certo desdém. — E quem são vocês,
seus comunistas elegantes, que podem estabelecer as igualdades derrubando as
estruturas já existentes e depois colocando outras que não dão atenção aos
índios, os verdadeiros venezuelanos, e que realmente necessitam de auxílio?
Eles não são o seu povo? Ou vocês são tão seletivos quanto os ricos que estão
governando agora — para usar as suas próprias palavras?
Lúcio sempre tomava posições impossíveis, e me atacava com
elas. Isso tornava a vida muito tensa; eu nunca sabia se ele estava brincando
ou se estava falando sério. Éramos amigos, no entanto havia ódio em sua vida, e
uma parte dele estava sempre voltada para mim.
Um dia fomos nadar em Caria dei Mar, uma das lindas praias
nas costas da Venezuela. Havíamos discutido e ele me chamara de vários nomes
depreciativos. Quando chegamos às águas mais profundas, brincamos e nos
empurramos e nos derrubamos, simplesmente por brincadeira. Mas havia certa
crueldade na nossa maneira de brincar que ambos percebíamos.
De repente, Lúcio disse: — Eu vou matar você, seu cachorro
capitalista —. Ele me agarrou e me segurou por baixo da água. A princípio não
lutei. Eu tinha a certeza de que logo ele me largaria. Mas, não. Ele me
segurava com mão forte. Logo o meu coração começou a bater com muita força, e
eu sentia uma necessidade urgente de respirar. E mesmo assim, ele continuava me
segurando debaixo d'água. Eu ia morrer. Eu o sabia. Lutei contra ele com forças
que eu não sabia possuir, e finalmente comecei a sentir certa frouxidão na
maneira como ele me segurava. Dando um arranco com todas as minhas forças,
consegui escapar. Lúcio havia mergulhado, longe do alcance de meus olhos. Eu me
sentia muitíssimo fraco e terrivelmente triste. Nadei até à praia e deitei-me
na areia.
Lúcio ficou mais vinte minutos ali na água, e depois veio
para o meu lado. Não olhei para cima.
— Venha — disse ele. — Saiamos daqui —. Caminhamos para casa
em silêncio.
O meu senhorio nunca havia feito menção do aluguel e de
quanto eu lhe devia, e tampouco os meus amigos nunca pediram que eu lhes
pagasse a minha parte da conta, quando íamos tomar café. Mas, era uma situação
muito estranha ter de depender dos outros para tudo.
Perguntei a Deus a respeito disso, mas não recebi resposta
alguma. Não havia recebido mais dinheiro dos Estados Unidos, e eu não tinha
razão alguma de crer que ele começaria a vir, depois de todo esse tempo. Como
turista na Venezuela, era impossível trabalhar, recebendo dinheiro.
Uma noite, numa festa, eu me encontrei com Miguel Nieto, que
trabalhava em Caracas, com o ministro da saúde.
— O que está você fazendo na Venezuela? — perguntou, e
depois me explicou que estava procurando alguém para lecionar inglês a alguns
estudantes que estavam se preparando para ir estudar na Escola de Medicina
Tropical, em Harvard. — Você estaria disposto a fazer isso? — perguntou.
Eu estaria disposto? — Mas senhor Nieto, já me informaram
que é ilegal eu trabalhar na Venezuela — eu disse.
Ele sorriu. — Isso está muito bem. Nós lhe pagaremos
adiantado. Se surgir alguma coisa, não há nenhum contrato entre nós. E nós
simplesmente tomaremos isso como um negócio concluído —. Ele colocou uma nota
em minhas mãos. — Aí está o seu salário do primeiro mês. Venha falar comigo
amanhã, no Ministério da Saúde.
Fui para casa tão contente que poderia ter dançado pela rua.
Eu tinha um trabalho. Logo eu teria dinheiro suficiente para poder pagar as
minhas contas.
Em 1961, o Presidente Kennedy e os presidentes da América do
Sul se encontram em Punta Del Este, no Uruguai, para definir os planos de ação
entre os Estados Unidos e a América Latina. Foi um período de grande tensão
política na Universidade. Cartazes enormes, de cores brilhantes, foram
colocados na maior parte dos edifícios da Universidade e se opunham à
cooperação com os Estados Unidos. Um dos cartazes demonstrava Tio Sam como um
Tocador de Gaita Empastelado, atirando dólares aos presidentes da América do
Sul, que o seguiam avidamente.
As eleições na Universidade estavam-se aproximando, e Lúcio
era um dos candidatos na chapa dos socialistas radicais.» Ele trabalhava muitas
horas, tentando formar uma coligação de diferentes socialistas. Muitas vezes,
ele chegava em casa de madrugada e depois saía novamente antes do nascer do
sol.
Por esta ocasião eu nutria certa simpatia pelos ideais dos
estudantes comunistas. Havia visto os turistas, grosseiros, andando de ônibus e
desfilando pelas ruas. Vira a maneira desleal do comportamento do pessoal da
embaixada norte-americana, e não sentia orgulho algum deles. Os estudantes
comunistas tinham, pelo menos, uma preocupação muito séria pelo seu país, que
os ex-patriotas nunca pareciam demonstrar.
A coligação de Lúcio venceu as eleições na Universidade.
— Agora você verá alguma coisa, Olson, você realmente verá o
que vai acontecer — disse ele.
Ele logo descobriu que o pior inimigo de um reformador
político é vencer uma eleição. Dentro de poucos meses a coligação começou a se
dividir. Eram poucos os estudantes dedicados ao partido, quanto Lúcio; havia
discussões, lutas pelo poder, ameaças constantes de retirada da coligação. Finalmente
Lúcio foi forçado admitir que fracassara. Uma noite ele se atirou na cama,
praguejando.
— Olson, qual é a vantagem de tudo isso? Não obstante as
minhas idéias serem boas, há sempre alguém que as estraga.
Essa fora a primeira vez que ele pedira a minha opinião a
respeito de alguma coisa. Eu dificilmente sabia como lhe dar uma resposta.
— Sei como isso é, Lúcio — disse lentamente. — Todo mundo
deseja que você se adapte ao que eles querem que você faça.
Ele ergueu a cabeça do travesseiro e olhou para mim.__
Como é que você sabe como isso é? perguntou. — Você já foi
um organizador político?
— Não — eu disse. — Porém, quando comecei a seguir a Jesus
Cristo a mesma espécie de coisa aconteceu. Meu pai, particularmente — ele é um
banqueiro rico, você já sabe — queria que eu fosse em busca de sucesso, um bom
emprego, e todas as outras coisas que ele julgava serem importantes. E a minha
igreja desejava que eu explicasse tudo na maneira tradicional.
— Mas, Lúcio — eu disse — foi Jesus que me deu a capacidade
de ver muito além de tudo isso. Essa é a razão por que me encontro aqui,
planejando poder ajudar os índios. Você acha que o meu pai e os meus amigos
viam muito sentido nisso? Eles achavam que eu estava ficando louco! Tentaram
fazer com que eu desistisse. Mas Jesus me deu uma visão completamente
diferente. E ele lhe pode dar uma também. Ele lhe pode dar a perspectiva
correta da vida.
— Não, não, não — disse ele. — Nós já experimentamos o
Cristianismo aqui. Não funciona. A igreja faz parte do situacionismo. Eles
possuem mais terra, mais negócios do que qualquer outra pessoa na Venezuela —
ou em toda a América do Sul.
Conversamos até tarde da noite. Ele conhecia todos os
argumentos. Mas também sabia que deveria haver algo mais na vida — alguma coisa
que não podia ser tocada, alguma coisa que poderia trazer a paz. Ele percebia
isso em minha vida — aquela paz que não era simplesmente uma apatia, aquela paz
que proporcionava um propósito divino; e até mesmo um poder inexplicável.
Três dias mais tarde ele entrou correndo no quarto. — Olson
— ele disse. — Realmente isso funciona? Você está me dizendo a verdade?
— Sobre o quê?
— A respeito de Jesus. Você está mentindo para mim, está?
— Não, Lúcio. Não estou mentindo para você. Ele se sentou em
silêncio e cruzou as suas mãos.
— Está bem — disse, olhando para o chão. — Está muito bem,
eu o farei.
— Fazer o quê, Lúcio?
Ele olhou para mim, com uma determinação no rosto. — Eu
aceitarei a Jesus. Quero que ele dirija a minha vida.