domingo, 2 de maio de 2021

Por esta cruz te matarei - Capítulo 06

AUXÍLIO DE ÚLTIMA HORA

Após três semanas, o Dr. Christian retornou e voltamos para Puerto Ayachucho onde tínhamos reservado um apartamento no hotel. Ele me convidou a ficar ali, enquanto foi a Caracas.

Mais uma vez eu estava só. Não tinha mais dinheiro. O apartamento, repleto de vasos e de estatuetas de louça que a Sra. Christian gostava de colecionar, parecia pequeno. Também eu me sentia deslocado tendo que ficar na residência particular de alguém, e desejava estar de volta às selvas do Orinoco.

No entanto, Puerto Ayachucho era uma cidade fronteiriça, agradável, e assim todas as manhãs eu saía para andar. As ruas, sombreadas pelas amendoeiras plantadas nos dois lados, nunca estavam repletas e assim eu estava livre para poder orar e pensar.

A junta de missões com a qual o Sr. Saunders estava afiliado possuía uma enorme casa na cidade. Um dia eu me encontrei com Bob, filho de um dos missionários. Ele tinha dezoito anos, cabelos ruivos, com um sorriso aberto e infantil. Por ser apenas um ano mais jovem do que eu, logo estávamos nos divertindo. Era um prazer poder conversar em inglês depois do esforço imenso em falar em espanhol durante vários meses. Comparávamos as nossas histórias e trocávamos as nossas piadas. Mais tarde, naquele dia, outro filho de missionários, chamado Tom, juntou-se a nós. Ele era um pouco mais velho, mas possuía um bom senso de humor, e nos fazia rir o tempo todo.

Quando começou a entardecer, Tom disse: — Bob e eu precisamos voltar por estar na hora do jantar —. Ele podia ver que eu sentia vê-los ir embora. — Olhe — acrescentou — eu gostaria que você pudesse ir jantar conosco, mas o meu pai, bem... ele não deixaria.

— Oh — eu disse. Era a mesma coisa que os outros missionários me haviam dito. Se eles me oferecessem hospedagem, pensariam que estavam assumindo a responsabilidade de tomar conta de mim.

Voltei para o apartamento vazio e escuro, sentei-me no sofá e pus as mãos atrás da cabeça. Ao fazer isso, derrubei um vaso de cerâmica da prateleira. Ele se espatifou com a queda. Tremendo, varri os cacos e os joguei fora.

Como eu ansiava por poder sair daquele apartamento, e estar com amigos. Mas para onde eu poderia ir?

Deitei-me. "Oh, Senhor", orei. "Eu não tenho coisa alguma. Não tenho dinheiro... não tenho amigos. Os cristãos aqui não me querem aceitar. Não sou missionário ligado a uma junta de missões, portanto não tenho nenhum apoio nem de lá nem daqui. Por favor, ajuda-me. Por favor, conserva o meu juízo."

No dia seguinte na rua não havia nenhum sinal de Tom e tampouco de Bob. Resolvi ir vê-los na casa da missão. Quando bati à porta, ela se abriu somente um pouquinho.

— O que você deseja? — perguntou alguém.

— Eu gostaria de ver Tom, se for possível — respondi. Tom veio à porta, mas bastante constrangido. — Eu sinto muito. Mas não tenho permissão de ver você mais — disse ele.

— Por que não?

Meu pai diz que você foi expulso da comunidade. Isso quer dizer que nenhum dos missionários tem permissão de saudá-lo.

— Estou fora da comunidade? Por quê? — Eu sabia que a minha voz estava se alterando, mas eu não podia parar.

Tom sacudiu os ombros. — Você não lhes obedece. Eles lhe disseram para voltar para os Estados Unidos, ligar-se a uma missão, e então voltar aqui e trabalhar.

— De que maneira eu poderia voltar? Por acaso eles pagarão a minha passagem? E desde quando eu devo obedecer às ordens deles? — Minha respiração estava ofegante.

Tom se encolheu, hesitou. — Acho que não devo conversar mais com você a respeito disso — respondeu. "Até-logo". E fechou a porta.

Caminhei até à praça, sentindo-me mais solitário do que nunca. Eu queria correr. Mas, para onde?

Sentei-me num banco lá na praça, desejando ficar para sempre ali ao sol.

Depois de uma hora ou mais, um padre se aproximou e iniciou uma conversa. Ele disse que era italiano, e estava ensinando inglês aos alunos do ginásio, mas que sonhava em ir trabalhar com os índios. Ele nunca tivera a oportunidade de ir rio acima para ver as colônias. Quando lhe contei a respeito de minha experiência com o Dr. Christian, ele ficou fascinado. Apesar de meu preconceito contra os católicos — especialmente contra o clero — eu logo estava entabulando uma conversa agradável, e me esquecera de meus problemas. Quando ele se levantou e foi dar a sua aula, continuei sentado ao sol, sentindo-me um pouco mais animado.

Logo mais um grupo de meninos se aproximou, andando pelo passeio, sorrindo meio constrangidos. Cercaram-me e cada um por sua vez apertou-me a mão e disse "Hello", mas com uma acentuação tão exagerada que soava como "Heyloe". Depois dessa cerimônia, um deles deu um passo à frente, olhou para o céu e recitou: — Nós desejamos convidar você para ir à nossa classe para falar de inglês.

Tentando não rir (por causa do inglês que falavam), eu lhe agradeci solenemente e depois os acompanhei até à escola, onde, sem muita surpresa, o padre era o professor. Passei ali, pelo menos uma hora, falando a respeito dos Estados Unidos.

Depois da aula os meninos ficaram em volta de mim. Um deles foi chamar o irmão mais velho, um estudante da universidade, que estava em casa, por causa das férias de Natal. Fui apresentado a ele. Era baixo, musculoso, com sobrancelhas escuras e bastas, de pele bronzeada. Tinha um olhar feroz, mas as suas maneiras eram gentis. Seu nome era Rafael. Ele me convidou a ficar com sua família, e aceitei. Descobri, mais tarde, que era inadmissível, entre as famílias latinas responsáveis, deixar um jovem como eu ficar só. Descobri, também, que acreditavam que se fizessem o bem aos outros, fariam o mesmo por seus filhos, quando estes estivessem fora do lar. Mas naquela ocasião eu não estava me preocupando com as diferentes razões. Eu simplesmente estava feliz porque finalmente estava sendo aceito.

A casa de Rafael, no distrito mais pobre da cidade, consistia em uma só sala. Era de chão batido, paredes escuras e telhado de sapé. As baratas circulavam por toda parte. Eu dormia na rede, assim como todos os outros membros da família. Mas pouco me importava.

Na manhã seguinte, Rafael me acordou quando ainda estava escuro. — Apresse-se — disse ele — é o primeiro dia da celebração do Natal —. Juntamo-nos a uma multidão de pessoas nas ruas. Era divertido. Corremos para cima e para baixo, soltando fogos e bombas vermelhas, durante a manhã, ainda fria, acotovelando-nos contra as outras pessoas também alegres, conversando e gritando. Parecia o dia Quatro de Julho, lá em Minesota.

Às cinco horas, todas as pessoas começaram a dirigir-se à igreja.

— Venha, vamos à missa — disse Rafael.

Eu sacudi a cabeça negativamente. — Não posso. Sou protestante.

Ele me puxou pelo braço. — Não tem importância. Venha conosco.

Olhei para ele. Ele agora era o meu amigo. Como é que eu poderia recusar-me ir à missa com meu amigo? Esse era um acontecimento muito importante para ele e sua família. Então os acompanhei.

Aqueles foram dias de travessuras. Todas as manhãs nos levantávamos cedo, soltávamos fogos, e depois íamos à missa, e realmente eu me divertia imensamente.

Porém, quando os missionários souberam que eu estava assistindo a missa, eles me isolaram completamente. Desde que eles haviam dito que eu estava fora da comunidade, não podia ver como isso faria muita diferença, apesar de que as suas palavras de condenação me feriram.

Não havia nada que os satisfizesse, concluí, exceto a minha partida — e eu não estou pronto a fazer isso — especialmente agora.

Finalmente, pude entender um pouco do que Deus estava tentando ensinar-me. Que importava que os missionários me houvessem rejeitado! As pessoas com as quais eu mais contava não agiam da maneira que eu julgava que fossem agir; contudo, Jesus não me havia rejeitado. Ele me havia encaminhado aos venezuelanos. Eu estava seguindo o seu plano e ele iria usar cada experiência para o meu bem.

Após o Natal, Rafael precisou fazer uma viagem e depois iria para a universidade em Caracas. Eu não desejava ficar em sua casa enquanto ele estivesse ausente e assim fiz planos para sair quando ele partisse.

— Mas, para onde é que você irá? — perguntou.

Eu disse a ele que iria para Caracas também; o Dr. Christian me havia explicado a respeito de um programa de permuta norte-americano-venezuelano, e talvez eu pudesse me envolver nele.

— Mas onde é que você irá ficar? — perguntou Rafael. — Você não pode simplesmente ir a Caracas, e andar circulando. Há tumultos por todos os lados, e há uma demonstração anti-norte-americana muito forte.

Ele me deu o endereço de uma pensão particular, na qual ele ficava, e uma carta de apresentação para os proprietários.

— Esse é o melhor lugar em toda Caracas — disse ele. — É barato, limpo e fica na parte antiga de Caracas. Todos nós ficamos lá.

O que eu não disse a Rafael é que não tinha meio algum de chegar a Caracas. No entanto eu sabia que, de qualquer jeito, isso seria resolvido. Então reservei meu lugar no avião.

No dia em que eu devia partir, fiquei ao lado de minhas malas na casa de Rafael, imaginando o que eu deveria fazer. Eu já dissera adeus a todos os meus novos amigos. Mas Caracas estava muito longe para um jovem norte-americano sem dinheiro.

Então, o irmãozinho de Rafael chegou com uma carta para mim, a primeira carta que eu recebia desde que deixara Caracas com o Dr. Christian.

Era dos Lange, apenas uma notinha. Porém com ela havia um cheque de cem dólares — o auxílio prometido pela igreja. Ele chegara exatamente quando eu necessitava, nem um dia antes, e nem um dia depois.

Paguei a passagem lá no aeroporto e voei para Caracas, sem ter noção de que eu quase seria morto no meu primeiro dia ali.