Pela manhã havia um nevoeiro úmido suspenso no acampamento. Fiquei contente de Betsie não ter que estar lá fora.
Aquela cobertura de névoa permaneceu sobre Ravensbruck o
dia todo: um dia sombrio de sons abafados e sol escondido. Eu fora escalada
para o setor das batatas: carregávamos cestas cheias de batatas e as
despejávamos em compridas valetas. Depois, elas seriam recobertas de terra
para proteção contra o rigor do inverno. Eu estava grata por aquele trabalho árduo,
pois ajudava-me a me manter aquecida, e também pelos pedaços de batata crua que
comíamos quando os guardas não nos observavam.
No dia seguinte, a neblina branca ainda presente, minha
saudade de Betsie tornou-se insuportável. Logo que fomos dispensadas, após a
chamada, cometi uma temeridade. Mien havia me ensinado, um modo de chegar ao
hospital sem passar pela sentinela à porta.
A janela do sanitário, aos fundos, era bem ampla, e, de
tão emperrada, não se fechava direito. Como eles não permitissem visitas no
hospital, os parentes dos doentes muitas vezes entravam por ali.
O nevoeiro estava bem denso, e foi relativamente fácil alcançar
a janela sem ser vista. Galguei-a, e tapei o nariz com a mão por causa do forte
mau cheiro. Havia uma fileira de toaletes, sem tampo, sem portas, todos cheios
até as bordas e rodeados do que lhes sobrava. Corri para a porta, e parei de
súbito, a pele toda arrepiada. Junto à parede, diretamente em frente, vi cerca
de dez ou doze cadáveres, despidos, deitados de costas, lado a lado. Alguns
estavam de olhos abertos, como se estivessem fixos no teto.
Fiquei ali parada, paralisada de horror. Dois homens entraram
carregando um corpo envolto num lençol. Nem mesmo me olharam. Compreendi que
me tomavam por um dos pacientes. Passei por eles e entrei no corredor, o
estômago embrulhando por causa do que vira. Depois de alguns momentos,
dirigi-me para a esquerda, sem saber que rumo tomar.
O hospital era uma confusão de portas e corredores. Em
pouco, eu já não estava mais certa se saberia voltar aos banheiros. E se a
turma saísse para o trabalho antes de eu voltar? Foi então que me pareceu
reconhecer um dos corredores. Fui de porta em porta, correndo de uma para
outra. Por fim, encontrei a enfermaria onde Betsie havia entrado. Não havia
nenhum funcionário do hospital à vista. Andei por entre as fileiras de camas
olhando bem cada rosto.
- Corrie!
Betsie estava sentada numa cama junto à janela. Parecia
bem melhor; seus olhos brilhavam e o rosto encovado tinha readquirido um pouco
da cor. Nenhum médico ou enfermeira a havia examinado ainda, disse-me, mas o
fato de poder ficar deitada e não ter que sair, já fizera muita diferença.
Três dias depois, ela regressou ao alojamento 28. Não
fora examinada nem recebera medicação, e sua testa me parecia febril.
Entretanto a alegria de vê-la de volta abafou minhas preocupações.
O melhor de tudo foi que, após sua breve hospitalização,
ela recebeu designação para permanecer na "brigada do tricô", que
era o grupo que víramos assentado às mesas no quarto central, naquele primeiro
dia que ali chegáramos. Este trabalho era reservado para as prisioneiras mais
fracas, e, agora, elas se espalhavam pelos dormitórios também.
As que trabalhavam nos quartos eram menos vigiadas que as
que estavam no cômodo central, e assim, Betsie viu-se livre grande parte do
dia para falar às outras. Ela tecia muito depressa e sempre completava sua
quota antes do meio-dia. Agora, ela ficava sempre com a Bíblia, e passava horas
seguidas, lendo-a em voz alta, indo de plataforma em plataforma.
Uma noite, regressei ao acampamento, após ter trabalhado
nos bosques adjacentes à cata de gravetos. Havia uma camada fina de neve no
chão, o que tornara difícil encontrá-los. Betsie me esperava como sempre, para
que pudéssemos estar juntas na fila do jantar. Seus olhos brilhavam.
- Você me parece muito satisfeita, disse-lhe.
- Você sabe que nunca entendemos a razão por que tínhamos
tanta liberdade nesses quartos, falou-me. Descobri por quê.
Naquela tarde, contou, tinha havido uma confusão no seu
grupo de tricô, acerca do tamanho das meias, e elas pediram à supervisora que
fosse até lá, e resolvesse o caso.
- Mas ela não quis. Ela não queria entrar; as guardas também
não. Sabe por quê?
Betsie mal conseguia disfarçar o tom de triunfo de sua
voz.
- Por causa das pulgas! Foi o que ela disse: "Este
lugar está cheio de pulgas!"
Meu pensamento retornou ao primeiro dia, à primeira hora
que passáramos ali. Lembrei-me de Betsie, com a cabeça inclinada; lembrei-me
de ela ter dado graças a Deus por aqueles insetos, com os quais eu jamais
poderia me reconciliar.
Apesar de não mais precisar pegar no trabalho pesado, Betsie ainda tinha que se submeter ao suplício da chamada, duas vezes por dia. Em dezembro, à medida que a temperatura caía, elas se tornavam verdadeiros testes de resistência, aos quais muitos não sobreviveram.
Numa manhã escura, quando o gelo cristalizado nas
lâmpadas deitava um halo de luz ao redor de cada uma delas, uma jovem
retardada, que se encontrava duas fileiras à nossa frente, caiu subitamente ao
chão. Uma guarda avançou para ela, e começou a chicoteá-la, enquanto a moça
berrava de dor e medo. A situação era sempre mais horrível quando a espancada
era uma dessas criaturas inocentes. A guarda continuava a golpeá-la. Era a que
apelidáramos de "Serpente", por causa do vestido de tecido brilhante
que sempre usava.
Naquele momento, eu o via sob a longa capa,rebrilhando à
luz da lâmpada cada vez que ela erguia o braço. Senti-me aliviada quando afinal
a jovem ficou em silêncio, quieta, caída no chão recoberto de cascalho.
- Betsie, sussurrei quando a "Serpente" já se
distanciava, o que poderíamos fazer por essas pessoas? Quero dizer, depois.
Não poderíamos arranjar um lar para elas, cuidar delas, dar-lhes carinho?
- Corrie, eu peço a Deus todos os dias, exatamente isso
-que nós possamos mostrar a elas que o amor é maior que tudo.
Somente mais tarde, quando eu já estava apanhando gravetos,
foi que compreendi que, enquanto eu estivera pensando na moça retardada,
Betsie referira-se à sua algoz.
Alguns dias depois, minha turma de trabalho recebeu ordens de ir ao hospital para se submeter a um exame médico. Deixei o vestido na pilha que estava à porta, e reuni-me às outras mulheres. À nossa frente, um médico estava examinando-as com um estetoscópio, com o cuidado deliberado de um verdadeiro exame.
- Para que é isso? perguntei à mulher que estava à minha
frente.
- Inspeção para transferência, murmurou em resposta, sem
ao menos virar a cabeça. Para as fábricas de munição.
Transferência! Mas eles não podiam fazer isso! Não podiam
me mandar embora! Oh! Deus! Não deixe que me separem de Betsie!
Para meu horror, porém, passei de um setor para outro
-coração, pulmões, pele e couro cabeludo, garganta - e ainda não fora
dispensada. Muitas haviam sido mandadas de volta no decorrer do exame; contudo
as que ficaram não pareciam assim tão melhores. Estômagos inchado?, peitos
afundados, pernas muito finas... A Alemanha deveria estar necessitando
desesperadamente de mão-de-obra.
Parei diante de uma mulher que trajava um uniforme branco
imundo. Ela pôs uma mão fria no meu ombro e colocou-me diante de um quadro de
oculista na parede.
- Leia a menor linha que conseguir.
- Eu... parece que não consigo ler nenhuma. (Perdoa-me,
Senhor!) Só a letra de cima, aquele E maiúsculo.
A letra era F.
A mulher pareceu ver-me pela primeira vez.
- Acho que você enxerga melhor que isto. Quer ser rejeitada?
Em Ravensbruck, a transferência para munições era considerada
um privilégio; dizia-se que as condições de vida e de alimentação nas fábricas
eram bem melhores que as dali do campo.
- Claro, doutora. Minha irmã está aqui. Ela não está passando
bem. Não posso deixá-la.
Ela sentou-se à mesa e rabiscou qualquer coisa num pedaço
de papel.
- Volte amanhã para uma consulta, para a receita de óculos.
De volta à fila, desdobrei o pedacinho de papel azul. A
prisioneira 66730 tinha instruções para comparecer ali, no dia seguinte, às
6:30h, para uma consulta mais detalhada, a fim de se passar a receita para os
óculos. Seis e meia era a hora que os prisioneiros eram embarcados nos veículos
de transferência.
Assim, quando as imensas carretas romperam pela Lagerstrasse,
no dia seguinte, eu me achava no corredor do hospital, aguardando minha
vez na clínica de olhos. O rapaz que me atendeu talvez fosse mesmo oculista,
mas todo o seu equipamento consistia de uma caixa cheia de óculos, que variavam
desde um bifocal com armação de metal, a um par de óculos de criança com
armação de plástico. Não encontrei nenhum que me servisse, e fui mandada de
volta para o trabalho.
Entretanto eu não tinha sido escalada para nenhum trabalho,
já que estivera designada para ser transferida. Voltei para o alojamento 28,
sentindo-me meio insegura. Entrei na saleta central. A supervisora olhou para
mim por sobre as cabeças da turma de mulheres.
- Número?
Dei meu número, e ela o anotou num livrinho de capa
preta.
- Apanhe um novelo e uma dessas folhas de papel com a
receita, continuou. Você vai ter que arranjar lugar no dormitório; não há mais
espaço aqui.
Dito isto, voltou-se para a pilha de meias já concluídas
sobre a mesa. Fiquei por um instante no centro da sala, piscando espantada.
Depois, pegando uma meada daquela lã cinza escura, atravessei apressadamente a
porta do dormitório. E assim começaram os melhores e mais gloriosos dias que
passei em Ravensbruck.
Naquele santuário das "pulgas de Deus", eu e
Betsie falamos para todas as prisioneiras daquele quarto. Houve ocasião de
estarmos ao lado de leitos de morte que se revelaram verdadeiros portais dos
céus. Vimos mulheres que haviam perdido tudo, enriquecerem-se de esperanças.
Aquele grupo de tricotadoras do alojamento 28 tornou-se o centro de oração
daquele corpo enfermo que era Ravensbruck, intercedendo por todo o campo: tanto
pelos guardas - pela insistência de Betsie - como pelas prisioneiras. Nossa
oração ultrapassava as muralhas de concreto: orávamos por toda a Europa, pela
Alemanha e pelo mundo -como mamãe fizera outrora, da sua prisão em um corpo
entrevado.
Enquanto orávamos, Deus nos falava acerca do mundo de
após guerra. Foi algo de extraordinário; naquele lugar, onde alto-falantes e
apitos tomavam o lugar das decisões, Deus indagava de nós o que iríamos fazer
nos anos que se seguiriam.
Betsie estava sempre certa de qual seria nossa tarefa. Íamos
ter uma casa, uma casa bem grande - maior que o Beje -onde as pessoas
que tinham sido atingidas pelo horror dos campos de concentração, poderiam
viver até que se sentissem aptas para voltar ao mundo novamente.
- Será uma linda casa, Corrie. O assoalho é todo
taqueado; estatuetas nas paredes, uma escadaria ampla... e jardins! Jardins ao
redor de toda a casa, para poderem cultivar flores. Faz bem à gente cultivar
flores, Corrie, cuidar delas.
Eu a olhava espantada, enquanto ela dizia estas coisas.
Ela falava como se estivesse vendo - era como se aquela escadaria majestosa e
os jardins cheios de flores de cores alegres fossem a realidade, e o
alojamento sujo e atulhado de gente, a visão imaginária.
Mas não era. Era a verdade dolorosa e crua, e era durante as chamadas que ó peso acumulado de tudo aquilo parecia querer me sufocar.
Certa manhã, três mulheres de nosso alojamento demoraram
alguns minutos para sair, desejando resguardar-se um pouco mais do frio.
Durante a semana seguinte, todo o alojamento foi punido com uma hora a mais em
posição de sentido. As luzes da Lagerstrasse nem estavam acesas, quando
éramos tiradas da cama às 3:30h.
Foi durante este alinhamento que precedia a chamada,
certa manhã, que eu vi algo em que, até então, eu me recusara a acreditar. No
outro extremo da rua apareceram faróis acesos, que se refletiam sobre a neve.
Vimos algumas camionetas com a carroceria aberta atrás aproximarem-se
espirrando lama e neve semi-derretida.
Pararam em frente do hospital. A porta se abriu, e surgiu
uma enfermeira amparando uma velhinha cujas pernas se dobravam, enquanto ela
descia as escadas. A enfermeira, gentilmente, ajudou-a a subir ao veículo.
Agora vinham muitos e muitos, velhos e doentes, apoiando-se às enfermeiras e ao
pessoal do hospital. Por último, vieram os enfermeiros carregando macas.
Nossos olhos pareciam fixar-se hipnoticamente em cada
detalhe da cena, mas nosso cérebro se recusava a aceitar o que víamos. Sempre
soubéramos que, quando o acúmulo de gente atingisse um certo grau, os mais
doentes seriam levados àquela construção de tijolos, ao pé da grande chaminé
quadrada.
Mas, aquelas mulheres ali, bem à nossa frente, aquelas
ali? Não era possível! E sobretudo, eu não conseguia conciliar aquilo com a
gentileza e a bondade das enfermeiras. Aquela que estava agora naquele carro,
ali bem próximo a nós, e que se inclinava solicitamente, ternamente, sobre o
seu paciente... o que pensaria ela agora?
E o frio aumentava. Certa noite, durante a chamada, um grupo começou a bater os pés ritmadamente. Outros se uniram a eles e o ruído aumentou. Os guardas nem tentaram nos fazer parar, e daí a pouco, toda a coluna estava marcando passo no lugar, batendo os sapatos já tão gastos contra a terra gelada, para reavivar a circulação dos pés e pernas. Daí em diante, esse foi o som que sempre se ouvia na hora da chamada: o barulho de milhares de pés na longa estrada escura.
À medida que o frio aumentava, crescia também a pior
tentação que se sofria num campo de concentração: pensar apenas em si mesmo.
Ela tomava as formas mais diversas e sutis. Descobri que, quando conseguíamos
nos colocar no meio do grupo, na formação para a chamada, ficávamos mais bem protegidas
do frio.
Eu sabia que aquilo era egoísmo meu: quando eu e Betsie
estávamos no centro, alguém tinha que estar na periferia. Como era fácil
dar-lhe um nome mais digno! Eu agia assim pelo bem de Betsie. Tínhamos um
ministério importante ali, e por isso precisávamos estar bem de saúde. Na
Polônia era mais frio que na Holanda, e assim as mulheres polonesas talvez não
se ressentissem do frio tanto quanto nós.
O egoísmo tinha vida própria. Quando vi que o saquinho de
levedo que Mien havia nos trazido estava se esgotando, comecei a retirá-lo de
sob a palha somente depois que as luzes se apagavam; assim, as outras não o
veriam e não poderiam pedir. A saúde de Betsie era mais importante. (Tu sabes,
Senhor, ela pode fazer tanto por elas! Lembra-te daquela casa, após a guerra!)
Apesar de não ser muito certo, isso não era assim tão
errado, era? Não tão horrível quanto o sadismo, a matança, e as outras
monstruosidades que testemunhávamos em Ravensbruck.
Isto, porém, era um truque de Satanás: expunha-nos à maldade
de forma tão gritante que a gente era levada a crer que nossos pecados secretos
não eram nada.
E o câncer aumentou. Na segunda semana de dezembro, cada
ocupante de nosso alojamento recebeu mais um cobertor. No dia seguinte, chegou
um grande grupo de prisioneiras vindo da Tchecoslováquia. Uma delas foi enviada
para nossa plataforma, mas não lhe foi dado nenhum cobertor, e Betsie insistiu
que lhe déssemos um dos nossos. Naquela noite, então, eu lhe
"emprestei" um. Não o "dei" para ela. No coração, eu me
aferrara ao meu direito de posse àquele cobertor.
Teria sido coincidência? Toda a alegria e poder que eu
gozava, quase que imperceptivelmente desapareceram do meu trabalho de conforto
e consolação. Minhas orações passaram a ter um toque mecânico. A leitura
bíblica tornou-se pesada e sem vida. Betsie tentou tomar o meu lugar, mas a
tosse a impedia de ler em voz alta.
Eu continuei lutando para manter um culto que tinha perdido
sua realidade. Este estado de coisas permaneceu até que numa tarde fria e chuvosa,
quando mal conseguia ler à fraca luz que penetrava pela janela cheguei à parte
em que Paulo fala de seu "espinho na carne". Fosse qual fosse aquele
"espinho", ele pedira a Deus três vezes que lhe retirasse aquela
fraqueza.
E todas as vezes Deus lhe respondeu: "Confie em
mim." Por fim, Paulo concluiu que - as palavras pareciam saltar da página
e vir ao meu encontro - aquela fraqueza era algo por que ele tinha que dar
graças a Deus. Paulo sabia que nenhuma daquelas maravilhas e milagres que
acompanhavam seu ministério provinha de sua própria virtude ou poder. Eram realizados na força de Cristo, nunca na
de Paulo. E ali estava a verdade agora. Sua luz brilhou para mim, como se fosse
o sol entrando no alojamento 28. O pecado que eu realmente cometera não fora o
de escorregar para o centro do grupo para escapar ao frio. O verdadeiro erro
estava em eu pensar que o poder para a transformação de vidas vinha de mim..
Naturalmente, não era minha integridade que importava, e, sim, a de Cristo.
O dia terminava - mais um curto dia de inverno. Eu não
conseguia mais enxergar as palavras tão bem. Fechei a Bíblia e voltei-me para
aquelas mulheres se achegando ao meu redor, e falei-lhes a verdade a meu
respeito - confessei meu egoísmo, minha mesquinhez, minha falta de amor.
Naquela noite, a grande alegria de servir a Deus retornou ao meu coração.
A cada chamada matinal o vento parecia mais cortante. Sempre que podia, Mien, clandestinamente, nos passava jornais que tirava do pessoal do hospital, para forrarmos nossa roupa. A blusa azul de Nollie, que Betsie usava sob o vestido, estava preta de tinta de impressão.
O frio parecia estar afetando as pernas de Betsie. Às
vezes, pela manhã, ela não conseguia movê-las, e nós tínhamos que carregá-la.
Não era difícil. Ela não pesava mais que uma criança. Todavia, ela não poderia
bater os pés, como nós fazíamos, para conservar o sangue circulando. Quando
regressávamos ao dormitório, eu massageava seus pés e mãos, mas parecia que as
minhas mãos pegavam a friagem das dela.
Uma semana antes do Natal, Betsie acordou de manhã
sentindo-se incapaz de mover braços e pernas. Desci por entre as alas,
apressadamente, abrindo caminho com os ombros, e cheguei à saleta do centro.
Quem estava de guarda era a "Serpente".
- Por favor, pedi. Betsie está doente. Ela tem que ser
levada para o hospital!
- Sentido! Dê seu número.
- Prisioneira 66730 apresentando-se. Por favor, minha
irmã está doente.
- Todas as prisioneiras têm que se apresentar para a contagem.
Se ela está doente, pode dirigir-se à enfermaria.
Maryke de Graaf, uma holandesa que ocupava a plataforma
acima da nossa, ajudou-me a fazer uma "cadeira de braços" e carregar
Betsie. A batida rítmica já havia começado na Lagerstrasse. Levamo-la
para o hospital e paramos. À luz das lâmpadas da rua, vimos a fila de doentes
que se estendia até a extremidade do prédio e depois sumia de vista, dobrando a
esquina. Havia três corpos no chão, sobre a neve suja, ainda jazendo onde
haviam caído.
Sem dizer palavra, eu e Maryke nos viramos e a carregamos
de volta para a Lagerstrasse. Após a chamada, levamo-la para a cama. Sua
fala era lenta e pastosa, mas ela estava tentando dizer-me alguma coisa.
- O campo, Corrie... o campo de concentração. Nós somos
responsáveis.
Tive que inclinar-me sobre ela para poder ouvir. O campo
era na Alemanha, mas não mais uma prisão: era um lar onde as pessoas que haviam
sido moldadas por essa filosofia de ódio e força poderiam ir morar, de livre
vontade. Não haveria muralhas, nem arame farpado, e os alojamentos teriam caixas
de flores nas janelas.
- Vai lhes fazer bem... ver as plantas crescerem. A gente
aprende a amar com as flores...
Agora eu já sabia quem eram as pessoas a quem ela se
referia. Os alemães. Pensei na "Serpente" de pé à porta do alojamento,
naquela manhã.
"Dê seu número. Todas as prisioneiras têm que se
apresentar para a contagem..."
Olhei para o rosto enrugado de Betsie.
- O campo vai ser na Alemanha mesmo, Betsie? Em vez do
casarão que iríamos organizar na Holanda?
- Não, não! ela parecia chocada. A casa vai ser antes. Já
está pronta, só esperando a gente... com janelas altas, a luz do sol jorrando
para dentro...
Foi tomada por um acesso de tosse. Quando finalmente ela
se acalmou, havia uma mancha escura de sangue sobre a palha. Ela dormiu
intermitentemente, durante todo o dia e a noite seguinte acordando várias
vezes, para falar animadamente de algum detalhe novo de nosso trabalho na
Holanda ou na Alemanha.
- Os alojamentos são cinzentos, Corrie, mas vamos
pintá-los de verde, verde-claro brilhante, como a cor da primavera.
- Nós vamos estar juntas, Betsie? Vamos fazer tudo isso
juntas? Tem certeza disso?
- Sempre juntas, Corrie! Eu e você... sempre juntas.
Quando a sirene soou na manhã seguinte, eu e Maryke a
carregamos para fora de novo. A "Serpente" estava à porta da saída.
Quando começávamos a atravessar a porta, ela se colocou à nossa frente.
- Levem-na de volta para a cama.
- Pensei que todos os prisioneiros...
- Leve-a de volta!
Sem compreender, recolocamos Betsie na cama. A nevasca
batia ruidosamente contra as janelas. Seria possível que a atmosfera do
alojamento 28 tivesse afetado até mesmo aquela policial cruel?
Logo que fomos dispensadas, após a chamada, corri para o
dormitório. À beira de nossa cama estava a "Serpente". Ao seu lado,
dois enfermeiros do hospital estavam estendendo a maca. À minha aproximação, a
"Serpente" se endireitou, como que apanhada em falta.
- A prisioneira está pronta para ser transferida, disse
secamente.
Olhei-a mais cuidadosamente: ela se arriscara a enfrentar
pulgas e piolhos para evitar que Betsie tivesse que entrar na fila de enfermos.
Segui atrás da maca, e ela não me impediu. Nosso grupo de tricotadeiras tinha
acabado de se reunir na saleta do centro. Ao passarmos, uma polonesa caiu de
joelhos e fez o sinal da cruz.
Já fora, fomos açoitados pela tempestade de neve. Acerquei-me
da maca procurando proteger Betsie um pouco. Passamos pela fila de doentes à
espera de serem atendidos, e entramos numa ampla enfermaria. Eles abaixaram a
maca, e eu me inclinei sobre ela para ouvir o que dizia.
- ... temos que contar aos outros o que aprendemos aqui.
Temos que dizer a eles que, por mais profundo que seja o sofrimento, o Senhor
pode ir além. Eles vão nos ouvir, Corrie, porque nós estivemos neste lugar.
Olhei seu corpo abatido.
- Quando será isso, Betsie?
- Agora. Já. Muito breve! No começo do ano, Corrie, estaremos
fora da prisão.
Uma enfermeira avistou-me. Afastei-me até à porta e fiquei
olhando. Deitaram Betsie num catre estreito, perto da janela. Dei a volta para
o lado exterior do prédio. Por fim, Betsie me viu; trocamos sorrisos e palavras
silenciosas, até que um policial deu comigo e gritou-me para ir andando. Ao
meio-dia, deixei meu tricô e fui ao aposento central.
- Prisioneira 66730 apresentando-se. Solicito permissão
para visitar o hospital.
Permaneci de pé, tesa como uma vara.
A "Serpente" olhou-me rapidamente e depois
rabiscou num pedaço de papel, um passe para mim. Cheguei à porta da enfermaria,
mas a horrível enfermeira não me deixou entrar, nem mesmo com o passe. Voltei à
janela junto da qual Betsie se encontrava. Esperei a enfermeira deixar o quarto
e bati de leve. Ela abriu os olhos e girou a cabeça lentamente.
- Você está bem? perguntei só com os lábios. Ela acenou
que sim.
- Você precisa descansar bem, continuei.
Ela respondeu-me com os lábios mas não consegui compreender.
Ela formou as palavras de novo. Virei a cabeça de lado, ao nível da dela. Seus
lábios azulados se moveram:
- ... tanto trabalho para se fazer...
A "Serpente" folgou durante a tarde e a noite,
e embora eu suplicasse aos guardas várias vezes, não obtive permissão para
voltar ao hospital. No dia seguinte, no minuto que fomos dispensados, corri
para o hospital, sem me preocupar em obter permissão.
Cheguei à janela e levei as mãos à testa, para fazer sombra
nos olhos, para ver melhor lá dentro. Havia uma enfermeira entre mim e Betsie.
Escondi-me um instante; esperei um minuto, e depois olhei de novo. Outra
enfermeira juntara-se à primeira, as duas cobrindo-me a visão. Depois, uma
postou-se aos pés da cama, enquanto a outra se colocava à cabeceira: olhei
ansiosamente para o vulto sobre a cama. Parecia uma estátua esculpida em
marfim. Estava sem roupa; eu distinguia cada costela, e o contorno dos dentes
através da pele enrugada do rosto.
Levei alguns instantes para compreender que era Betsie.
Cada enfermeira pegou um lado do lençol. Carregaram-na do
quarto antes que meu coração se recuperasse e voltasse a pulsar.
Betsie! Ela tinha tanto para fazer! Não podia...
Onde a estariam levando? Para onde haviam se dirigido?
Saí da janela e comecei a correr ao redor do edifício, com o peito ardendo pelo
esforço da respiração.
Lembrei-me do banheiro aos fundos; a janelinha - era ali
que... Meus pés me levaram mecanicamente a rodear o prédio. Com a mão no
peitoril, parei. E se ela estivesse lá mesmo? E se tivessem posto Betsie
naquele assoalho?
Comecei a caminhar. Vaguei muito tempo, ainda com aquela
dor no peito. Meus pés, porém, sempre me levavam de volta àquela janela. Eu não
entrava; eu não olhava. Betsie não podia estar lá.
Andei mais um pouco, e, estranhamente, embora eu passasse
por vários policiais, nenhum deles tentou me deter, nem me interrogar.
- Corrie!
Voltei-me e vi Mien correndo para mim.
- Procurei você por toda a parte. Venha comigo, Corrie!
Ela agarrou meu braço e puxou-me para os fundos do hospital. Quando vi onde
ela me conduzia desvencilhei-me dela.
- Eu sei, Mien. Eu já sei.
Ela não pareceu me ouvir. Pegou-me novamente e levou-me
até a janela, e empurrou-me por detrás. No fétido quartinho estava uma
enfermeira. Encolhi-me assustada, mas Mien estava atrás de mim.
- Esta aqui é a irmã, disse à mulher.
Virei a cabeça. Não queria olhar para aqueles cadáveres
dispostos ao longo da parede. Mien pôs um braço no meu ombro e empurrou-me
através do cômodo guiando-me até aquela visão triste.
- Corrie, você está vendo Betsie?
Fixei os olhos no rosto de Betsie. Senhor Jesus, o que fizeste?
Ó Senhor, o que estás me dizendo! O que estás me dando!
Ali estava Betsie: tinha os olhos fechados, como se dormisse,
o rosto cheio e jovem. As rugas da preocupação, do sofrimento e o encovado da
fome e da doença haviam sumido. À minha frente, estava a Betsie de Haarlem,
feliz e em paz. Forte e livre.
Esta era a Betsie dos céus, irradiando alegria e saúde.
Até o cabelo dela estava arrumado graciosamente, como se um anjo a tivesse
preparado. Por fim, voltei-me para Mien. A enfermeira foi à porta, e, sem dizer
palavra, abriu-a para nós.
- Podem sair pelo corredor, disse suavemente.
Olhei mais uma vez para o rosto radiante de minha irmã.
Depois, eu e Mien saímos juntas. No corredor, havia um monte de roupas. Bem em
cima estava a blusa azul de Nollie. Inclinei-me para apanhá-la. Estava puída e
manchada de tinta de jornal, mas era um elo que me ligaria a Betsie. Mien
agarrou meu braço.
- Não toque nisso! Piolho negro! Eles vão queimar tudo.
E assim deixei para trás o último laço físico que me prenderia
a ela. Não me importei. Era até melhor. Agora, o que me unia a Betsie era a
esperança dos céus.