segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 14


 A Blusa Azul

                       Pela manhã havia um nevoeiro úmido suspenso no acam­pamento. Fiquei contente de Betsie não ter que estar lá fora.

            Aquela cobertura de névoa permaneceu sobre Ravensbruck o dia todo: um dia sombrio de sons abafados e sol escondido. Eu fora escalada para o setor das batatas: carregávamos ces­tas cheias de batatas e as despejávamos em compridas vale­tas. Depois, elas seriam recobertas de terra para proteção contra o rigor do inverno. Eu estava grata por aquele traba­lho árduo, pois ajudava-me a me manter aquecida, e também pelos pedaços de batata crua que comíamos quando os guar­das não nos observavam.

            No dia seguinte, a neblina branca ainda presente, minha saudade de Betsie tornou-se insuportável. Logo que fomos dispensadas, após a chamada, cometi uma temeridade. Mien havia me ensinado, um modo de chegar ao hospital sem pas­sar pela sentinela à porta.

            A janela do sanitário, aos fundos, era bem ampla, e, de tão emperrada, não se fechava direito. Como eles não permi­tissem visitas no hospital, os parentes dos doentes muitas vezes entravam por ali.

            O nevoeiro estava bem denso, e foi relativamente fácil al­cançar a janela sem ser vista. Galguei-a, e tapei o nariz com a mão por causa do forte mau cheiro. Havia uma fileira de toaletes, sem tampo, sem portas, todos cheios até as bordas e ro­deados do que lhes sobrava. Corri para a porta, e parei de súbito, a pele toda arrepiada. Junto à parede, diretamente em frente, vi cerca de dez ou doze cadáveres, despidos, dei­tados de costas, lado a lado. Alguns estavam de olhos aber­tos, como se estivessem fixos no teto.

            Fiquei ali parada, paralisada de horror. Dois homens en­traram carregando um corpo envolto num lençol. Nem mes­mo me olharam. Compreendi que me tomavam por um dos pacientes. Passei por eles e entrei no corredor, o estômago embrulhando por causa do que vira. Depois de alguns mo­mentos, dirigi-me para a esquerda, sem saber que rumo to­mar.

            O hospital era uma confusão de portas e corredores. Em pouco, eu já não estava mais certa se saberia voltar aos ba­nheiros. E se a turma saísse para o trabalho antes de eu vol­tar? Foi então que me pareceu reconhecer um dos corredo­res. Fui de porta em porta, correndo de uma para outra. Por fim, encontrei a enfermaria onde Betsie havia entrado. Não havia nenhum funcionário do hospital à vista. Andei por en­tre as fileiras de camas olhando bem cada rosto.

            - Corrie!

            Betsie estava sentada numa cama junto à janela. Parecia bem melhor; seus olhos brilhavam e o rosto encovado tinha readquirido um pouco da cor. Nenhum médico ou enfermei­ra a havia examinado ainda, disse-me, mas o fato de poder ficar deitada e não ter que sair, já fizera muita diferença.

            Três dias depois, ela regressou ao alojamento 28. Não fora examinada nem recebera medicação, e sua testa me parecia febril. Entretanto a alegria de vê-la de volta abafou minhas preocupações.

            O melhor de tudo foi que, após sua breve hospitalização, ela recebeu designação para permanecer na "brigada do tri­cô", que era o grupo que víramos assentado às mesas no quarto central, naquele primeiro dia que ali chegáramos. Este traba­lho era reservado para as prisioneiras mais fracas, e, agora, elas se espalhavam pelos dormitórios também.

            As que trabalhavam nos quartos eram menos vigiadas que as que estavam no cômodo central, e assim, Betsie viu-se li­vre grande parte do dia para falar às outras. Ela tecia muito depressa e sempre completava sua quota antes do meio-dia. Agora, ela ficava sempre com a Bíblia, e passava horas segui­das, lendo-a em voz alta, indo de plataforma em plataforma.

            Uma noite, regressei ao acampamento, após ter trabalha­do nos bosques adjacentes à cata de gravetos. Havia uma camada fina de neve no chão, o que tornara difícil encontrá-los. Betsie me esperava como sempre, para que pudéssemos estar juntas na fila do jantar. Seus olhos brilhavam.

            - Você me parece muito satisfeita, disse-lhe.

            - Você sabe que nunca entendemos a razão por que tí­nhamos tanta liberdade nesses quartos, falou-me. Descobri por quê.

            Naquela tarde, contou, tinha havido uma confusão no seu grupo de tricô, acerca do tamanho das meias, e elas pediram à supervisora que fosse até lá, e resolvesse o caso.

            - Mas ela não quis. Ela não queria entrar; as guardas tam­bém não. Sabe por quê?

            Betsie mal conseguia disfarçar o tom de triunfo de sua voz.

            - Por causa das pulgas! Foi o que ela disse: "Este lugar está cheio de pulgas!"

            Meu pensamento retornou ao primeiro dia, à primeira hora que passáramos ali. Lembrei-me de Betsie, com a cabeça in­clinada; lembrei-me de ela ter dado graças a Deus por aque­les insetos, com os quais eu jamais poderia me reconciliar.

            Apesar de não mais precisar pegar no trabalho pesado, Betsie ainda tinha que se submeter ao suplício da chamada, duas vezes por dia. Em dezembro, à medida que a tempera­tura caía, elas se tornavam verdadeiros testes de resistência, aos quais muitos não sobreviveram.

            Numa manhã escura, quando o gelo cristalizado nas lâmpadas deitava um halo de luz ao redor de cada uma delas, uma jovem retardada, que se encontrava duas fileiras à nossa frente, caiu subitamente ao chão. Uma guarda avançou para ela, e começou a chicoteá-la, enquanto a moça berrava de dor e medo. A situação era sempre mais horrível quando a espancada era uma dessas criaturas inocentes. A guarda continuava a golpeá-la. Era a que apelidáramos de "Serpente", por causa do vestido de te­cido brilhante que sempre usava.

            Naquele momento, eu o via sob a longa capa,rebrilhando à luz da lâmpada cada vez que ela erguia o braço. Senti-me aliviada quando afinal a jovem ficou em silêncio, quieta, caída no chão recoberto de casca­lho.

            - Betsie, sussurrei quando a "Serpente" já se distanciava, o que poderíamos fazer por essas pessoas? Quero dizer, de­pois. Não poderíamos arranjar um lar para elas, cuidar delas, dar-lhes carinho?

            - Corrie, eu peço a Deus todos os dias, exatamente isso -que nós possamos mostrar a elas que o amor é maior que tudo.

            Somente mais tarde, quando eu já estava apanhando gra­vetos, foi que compreendi que, enquanto eu estivera pensan­do na moça retardada, Betsie referira-se à sua algoz.

            Alguns dias depois, minha turma de trabalho recebeu or­dens de ir ao hospital para se submeter a um exame médico. Deixei o vestido na pilha que estava à porta, e reuni-me às outras mulheres. À nossa frente, um médico estava examinando-as com um estetoscópio, com o cuidado deliberado de um verdadeiro exame.

            - Para que é isso? perguntei à mulher que estava à minha frente.

            - Inspeção para transferência, murmurou em resposta, sem ao menos virar a cabeça. Para as fábricas de munição.

            Transferência! Mas eles não podiam fazer isso! Não podiam me mandar embora! Oh! Deus! Não deixe que me separem de Betsie!

            Para meu horror, porém, passei de um setor para outro -coração, pulmões, pele e couro cabeludo, garganta - e ainda não fora dispensada. Muitas haviam sido mandadas de volta no decorrer do exame; contudo as que ficaram não pareciam assim tão melhores. Estômagos inchado?, peitos afundados, pernas muito finas... A Alemanha deveria estar necessitando desesperadamente de mão-de-obra.

            Parei diante de uma mulher que trajava um uniforme bran­co imundo. Ela pôs uma mão fria no meu ombro e colocou-me diante de um quadro de oculista na parede.

            - Leia a menor linha que conseguir.

            - Eu... parece que não consigo ler nenhuma. (Perdoa-me, Senhor!) Só a letra de cima, aquele E maiúsculo.

            A letra era F.

            A mulher pareceu ver-me pela primeira vez.

            - Acho que você enxerga melhor que isto. Quer ser rejei­tada?

            Em Ravensbruck, a transferência para munições era con­siderada um privilégio; dizia-se que as condições de vida e de alimentação nas fábricas eram bem melhores que as dali do campo.

            - Claro, doutora. Minha irmã está aqui. Ela não está pas­sando bem. Não posso deixá-la.

            Ela sentou-se à mesa e rabiscou qualquer coisa num peda­ço de papel.

            - Volte amanhã para uma consulta, para a receita de ócu­los.

            De volta à fila, desdobrei o pedacinho de papel azul. A prisioneira 66730 tinha instruções para comparecer ali, no dia seguinte, às 6:30h, para uma consulta mais detalhada, a fim de se passar a receita para os óculos. Seis e meia era a hora que os prisioneiros eram embarcados nos veículos de transferência.

            Assim, quando as imensas carretas romperam pela Lagerstrasse, no dia seguinte, eu me achava no corredor do hos­pital, aguardando minha vez na clínica de olhos. O rapaz que me atendeu talvez fosse mesmo oculista, mas todo o seu equi­pamento consistia de uma caixa cheia de óculos, que varia­vam desde um bifocal com armação de metal, a um par de óculos de criança com armação de plástico. Não encontrei nenhum que me servisse, e fui mandada de volta para o tra­balho.

            Entretanto eu não tinha sido escalada para nenhum traba­lho, já que estivera designada para ser transferida. Voltei para o alojamento 28, sentindo-me meio insegura. Entrei na saleta central. A supervisora olhou para mim por sobre as cabeças da turma de mulheres.

            - Número?

            Dei meu número, e ela o anotou num livrinho de capa preta.

            - Apanhe um novelo e uma dessas folhas de papel com a receita, continuou. Você vai ter que arranjar lugar no dormi­tório; não há mais espaço aqui.

            Dito isto, voltou-se para a pilha de meias já concluídas sobre a mesa. Fiquei por um instante no centro da sala, pis­cando espantada. Depois, pegando uma meada daquela lã cinza escura, atravessei apressadamente a porta do dormitó­rio. E assim começaram os melhores e mais gloriosos dias que passei em Ravensbruck.

            Naquele santuário das "pulgas de Deus", eu e Betsie falamos para todas as prisioneiras daquele quarto. Houve ocasião de estarmos ao lado de leitos de mor­te que se revelaram verdadeiros portais dos céus. Vimos mu­lheres que haviam perdido tudo, enriquecerem-se de espe­ranças. Aquele grupo de tricotadoras do alojamento 28 tornou-se o centro de oração daquele corpo enfermo que era Ravensbruck, intercedendo por todo o campo: tanto pelos guardas - pela insistência de Betsie - como pelas prisionei­ras. Nossa oração ultrapassava as muralhas de concreto: orá­vamos por toda a Europa, pela Alemanha e pelo mundo -como mamãe fizera outrora, da sua prisão em um corpo entrevado.

            Enquanto orávamos, Deus nos falava acerca do mundo de após guerra. Foi algo de extraordinário; naquele lugar, onde alto-falantes e apitos tomavam o lugar das decisões, Deus in­dagava de nós o que iríamos fazer nos anos que se seguiriam.

            Betsie estava sempre certa de qual seria nossa tarefa. Ía­mos ter uma casa, uma casa bem grande - maior que o Beje -onde as pessoas que tinham sido atingidas pelo horror dos campos de concentração, poderiam viver até que se sentis­sem aptas para voltar ao mundo novamente.

            - Será uma linda casa, Corrie. O assoalho é todo taqueado; estatuetas nas paredes, uma escadaria ampla... e jardins! Jar­dins ao redor de toda a casa, para poderem cultivar flores. Faz bem à gente cultivar flores, Corrie, cuidar delas.

            Eu a olhava espantada, enquanto ela dizia estas coisas. Ela falava como se estivesse vendo - era como se aquela es­cadaria majestosa e os jardins cheios de flores de cores ale­gres fossem a realidade, e o alojamento sujo e atulhado de gente, a visão imaginária.

            Mas não era. Era a verdade dolorosa e crua, e era durante as chamadas que ó peso acumulado de tudo aquilo parecia querer me sufocar.

            Certa manhã, três mulheres de nosso alojamento demora­ram alguns minutos para sair, desejando resguardar-se um pouco mais do frio. Durante a semana seguinte, todo o aloja­mento foi punido com uma hora a mais em posição de senti­do. As luzes da Lagerstrasse nem estavam acesas, quando éra­mos tiradas da cama às 3:30h.

            Foi durante este alinhamento que precedia a chamada, certa manhã, que eu vi algo em que, até então, eu me re­cusara a acreditar. No outro extremo da rua apareceram faróis acesos, que se refletiam sobre a neve. Vimos algu­mas camionetas com a carroceria aberta atrás aproxima­rem-se espirrando lama e neve semi-derretida.

            Pararam em frente do hospital. A porta se abriu, e surgiu uma enfer­meira amparando uma velhinha cujas pernas se dobravam, enquanto ela descia as escadas. A enfermeira, gentilmen­te, ajudou-a a subir ao veículo. Agora vinham muitos e muitos, velhos e doentes, apoiando-se às enfermeiras e ao pessoal do hospital. Por último, vieram os enfermeiros car­regando macas.

            Nossos olhos pareciam fixar-se hipnoticamente em cada detalhe da cena, mas nosso cérebro se recusava a aceitar o que víamos. Sempre soubéramos que, quando o acúmulo de gente atingisse um certo grau, os mais doentes seriam leva­dos àquela construção de tijolos, ao pé da grande chaminé quadrada.

            Mas, aquelas mulheres ali, bem à nossa frente, aquelas ali? Não era possível! E sobretudo, eu não conseguia conciliar aquilo com a gentileza e a bondade das enfermeiras. Aquela que estava agora naquele carro, ali bem próximo a nós, e que se inclinava solicitamente, ternamente, sobre o seu pacien­te... o que pensaria ela agora?

            E o frio aumentava. Certa noite, durante a chamada, um grupo começou a bater os pés ritmadamente. Outros se uni­ram a eles e o ruído aumentou. Os guardas nem tentaram nos fazer parar, e daí a pouco, toda a coluna estava marcan­do passo no lugar, batendo os sapatos já tão gastos contra a terra gelada, para reavivar a circulação dos pés e pernas. Daí em diante, esse foi o som que sempre se ouvia na hora da chamada: o barulho de milhares de pés na longa estrada es­cura.

            À medida que o frio aumentava, crescia também a pior tentação que se sofria num campo de concentração: pensar apenas em si mesmo. Ela tomava as formas mais diversas e sutis. Descobri que, quando conseguíamos nos colocar no meio do grupo, na formação para a chamada, ficávamos mais bem protegidas do frio.

            Eu sabia que aquilo era egoísmo meu: quando eu e Betsie estávamos no centro, alguém tinha que estar na periferia. Como era fácil dar-lhe um nome mais digno! Eu agia assim pelo bem de Betsie. Tínhamos um ministério importante ali, e por isso precisávamos estar bem de saúde. Na Polônia era mais frio que na Holanda, e assim as mulheres polonesas talvez não se ressentissem do frio tanto quanto nós.

            O egoísmo tinha vida própria. Quando vi que o saquinho de levedo que Mien havia nos trazido estava se esgotando, comecei a retirá-lo de sob a palha somente depois que as luzes se apagavam; assim, as outras não o veriam e não po­deriam pedir. A saúde de Betsie era mais importante. (Tu sa­bes, Senhor, ela pode fazer tanto por elas! Lembra-te daquela casa, após a guerra!)

            Apesar de não ser muito certo, isso não era assim tão erra­do, era? Não tão horrível quanto o sadismo, a matança, e as outras monstruosidades que testemunhávamos em Ravensbruck.

            Isto, porém, era um truque de Satanás: expunha-nos à maldade de forma tão gritante que a gente era levada a crer que nossos pecados secretos não eram nada.

            E o câncer aumentou. Na segunda semana de dezembro, cada ocupante de nosso alojamento recebeu mais um cober­tor. No dia seguinte, chegou um grande grupo de prisioneiras vindo da Tchecoslováquia. Uma delas foi enviada para nossa plataforma, mas não lhe foi dado nenhum cobertor, e Betsie insistiu que lhe déssemos um dos nossos. Naquela noite, en­tão, eu lhe "emprestei" um. Não o "dei" para ela. No coração, eu me aferrara ao meu direito de posse àquele cobertor.

            Teria sido coincidência? Toda a alegria e poder que eu gozava, quase que imperceptivelmente desapareceram do meu trabalho de conforto e consolação. Minhas orações passaram a ter um toque mecânico. A leitura bíblica tornou-se pesada e sem vida. Betsie tentou tomar o meu lugar, mas a tosse a impedia de ler em voz alta.

            Eu continuei lutando para manter um culto que tinha per­dido sua realidade. Este estado de coisas permaneceu até que numa tarde fria e chuvosa, quando mal conseguia ler à fraca luz que penetrava pela janela cheguei à parte em que Paulo fala de seu "espinho na carne". Fosse qual fosse aquele "espi­nho", ele pedira a Deus três vezes que lhe retirasse aquela fraqueza.

            E todas as vezes Deus lhe respondeu: "Confie em mim." Por fim, Paulo concluiu que - as palavras pareciam saltar da página e vir ao meu encontro - aquela fraqueza era algo por que ele tinha que dar graças a Deus. Paulo sabia que nenhuma daquelas maravilhas e milagres que acompanha­vam seu ministério provinha de sua própria virtude ou poder.    Eram realizados na força de Cristo, nunca na de Paulo. E ali estava a verdade agora. Sua luz brilhou para mim, como se fosse o sol entrando no alojamento 28. O pecado que eu realmente cometera não fora o de escorregar para o centro do grupo para escapar ao frio. O verdadeiro erro estava em eu pensar que o poder para a transformação de vidas vinha de mim.. Naturalmente, não era minha integridade que importava, e, sim, a de Cristo.

            O dia terminava - mais um curto dia de inverno. Eu não conseguia mais enxergar as palavras tão bem. Fechei a Bíblia e voltei-me para aquelas mulheres se achegando ao meu redor, e falei-lhes a verdade a meu respeito - confessei meu egoísmo, minha mesquinhez, minha falta de amor. Naquela noite, a grande alegria de servir a Deus retornou ao meu coração.

            A cada chamada matinal o vento parecia mais cortante. Sempre que podia, Mien, clandestinamente, nos passava jor­nais que tirava do pessoal do hospital, para forrarmos nossa roupa. A blusa azul de Nollie, que Betsie usava sob o vestido, estava preta de tinta de impressão.

            O frio parecia estar afetando as pernas de Betsie. Às vezes, pela manhã, ela não conseguia movê-las, e nós tínhamos que carregá-la. Não era difícil. Ela não pesava mais que uma cri­ança. Todavia, ela não poderia bater os pés, como nós fazía­mos, para conservar o sangue circulando. Quando regressá­vamos ao dormitório, eu massageava seus pés e mãos, mas parecia que as minhas mãos pegavam a friagem das dela.

            Uma semana antes do Natal, Betsie acordou de manhã sentindo-se incapaz de mover braços e pernas. Desci por en­tre as alas, apressadamente, abrindo caminho com os om­bros, e cheguei à saleta do centro. Quem estava de guarda era a "Serpente".

            - Por favor, pedi. Betsie está doente. Ela tem que ser leva­da para o hospital!

            - Sentido! Dê seu número.

            - Prisioneira 66730 apresentando-se. Por favor, minha irmã está doente.

            - Todas as prisioneiras têm que se apresentar para a con­tagem. Se ela está doente, pode dirigir-se à enfermaria.

            Maryke de Graaf, uma holandesa que ocupava a platafor­ma acima da nossa, ajudou-me a fazer uma "cadeira de bra­ços" e carregar Betsie. A batida rítmica já havia começado na Lagerstrasse. Levamo-la para o hospital e paramos. À luz das lâmpadas da rua, vimos a fila de doentes que se estendia até a extremidade do prédio e depois sumia de vista, dobrando a esquina. Havia três corpos no chão, sobre a neve suja, ainda jazendo onde haviam caído.

            Sem dizer palavra, eu e Maryke nos viramos e a carrega­mos de volta para a Lagerstrasse. Após a chamada, levamo-la para a cama. Sua fala era lenta e pastosa, mas ela estava tentando dizer-me alguma coisa.

            - O campo, Corrie... o campo de concentração. Nós so­mos responsáveis.

            Tive que inclinar-me sobre ela para poder ouvir. O campo era na Alemanha, mas não mais uma prisão: era um lar onde as pessoas que haviam sido moldadas por essa filosofia de ódio e força poderiam ir morar, de livre vontade. Não haveria muralhas, nem arame farpado, e os alojamentos teriam cai­xas de flores nas janelas.

            - Vai lhes fazer bem... ver as plantas crescerem. A gente aprende a amar com as flores...

            Agora eu já sabia quem eram as pessoas a quem ela se referia. Os alemães. Pensei na "Serpente" de pé à porta do alojamento, naquela manhã.

            "Dê seu número. Todas as prisioneiras têm que se apre­sentar para a contagem..."

            Olhei para o rosto enrugado de Betsie.

            - O campo vai ser na Alemanha mesmo, Betsie? Em vez do casarão que iríamos organizar na Holanda?

            - Não, não! ela parecia chocada. A casa vai ser antes. Já está pronta, só esperando a gente... com janelas altas, a luz do sol jorrando para dentro...

            Foi tomada por um acesso de tosse. Quando finalmente ela se acalmou, havia uma mancha escura de sangue sobre a palha. Ela dormiu intermitentemente, durante todo o dia e a noite seguinte acordando várias vezes, para falar animada­mente de algum detalhe novo de nosso trabalho na Holanda ou na Alemanha.

            - Os alojamentos são cinzentos, Corrie, mas vamos pintá-los de verde, verde-claro brilhante, como a cor da primavera.

            - Nós vamos estar juntas, Betsie? Vamos fazer tudo isso juntas? Tem certeza disso?

            - Sempre juntas, Corrie! Eu e você... sempre juntas.

            Quando a sirene soou na manhã seguinte, eu e Maryke a carregamos para fora de novo. A "Serpente" estava à porta da saída. Quando começávamos a atravessar a porta, ela se colocou à nossa frente.

            - Levem-na de volta para a cama.

            - Pensei que todos os prisioneiros...

            - Leve-a de volta!

            Sem compreender, recolocamos Betsie na cama. A nevasca batia ruidosamente contra as janelas. Seria possível que a atmosfera do alojamento 28 tivesse afetado até mesmo aque­la policial cruel?

            Logo que fomos dispensadas, após a chamada, corri para o dormitório. À beira de nossa cama estava a "Serpente". Ao seu lado, dois enfermeiros do hospital estavam estendendo a maca. À minha aproximação, a "Serpente" se endireitou, como que apanhada em falta.

            - A prisioneira está pronta para ser transferida, disse se­camente.

            Olhei-a mais cuidadosamente: ela se arriscara a enfrentar pulgas e piolhos para evitar que Betsie tivesse que entrar na fila de enfermos. Segui atrás da maca, e ela não me impediu. Nosso grupo de tricotadeiras tinha acabado de se reunir na saleta do centro. Ao passarmos, uma polonesa caiu de joe­lhos e fez o sinal da cruz.

            Já fora, fomos açoitados pela tempestade de neve. Acer­quei-me da maca procurando proteger Betsie um pouco. Pas­samos pela fila de doentes à espera de serem atendidos, e entramos numa ampla enfermaria. Eles abaixaram a maca, e eu me inclinei sobre ela para ouvir o que dizia.

            - ... temos que contar aos outros o que aprendemos aqui. Temos que dizer a eles que, por mais profundo que seja o sofrimento, o Senhor pode ir além. Eles vão nos ouvir, Corrie, porque nós estivemos neste lugar.

            Olhei seu corpo abatido.

            - Quando será isso, Betsie?

            - Agora. Já. Muito breve! No começo do ano, Corrie, es­taremos fora da prisão.

            Uma enfermeira avistou-me. Afastei-me até à porta e fi­quei olhando. Deitaram Betsie num catre estreito, perto da janela. Dei a volta para o lado exterior do prédio. Por fim, Betsie me viu; trocamos sorrisos e palavras silenciosas, até que um policial deu comigo e gritou-me para ir andando. Ao meio-dia, deixei meu tricô e fui ao aposento central.

            - Prisioneira 66730 apresentando-se. Solicito permissão para visitar o hospital.

            Permaneci de pé, tesa como uma vara.

            A "Serpente" olhou-me rapidamente e depois rabiscou num pedaço de papel, um passe para mim. Cheguei à porta da enfermaria, mas a horrível enfermeira não me deixou entrar, nem mesmo com o passe. Voltei à janela junto da qual Betsie se encontrava. Esperei a enfermeira deixar o quarto e bati de leve. Ela abriu os olhos e girou a cabeça lentamente.

            - Você está bem? perguntei só com os lábios. Ela acenou que sim.

            - Você precisa descansar bem, continuei.

            Ela respondeu-me com os lábios mas não consegui com­preender. Ela formou as palavras de novo. Virei a cabeça de lado, ao nível da dela. Seus lábios azulados se moveram:

            - ... tanto trabalho para se fazer...

            A "Serpente" folgou durante a tarde e a noite, e embora eu suplicasse aos guardas várias vezes, não obtive permissão para voltar ao hospital. No dia seguinte, no minuto que fo­mos dispensados, corri para o hospital, sem me preocupar em obter permissão.

            Cheguei à janela e levei as mãos à testa, para fazer som­bra nos olhos, para ver melhor lá dentro. Havia uma enfer­meira entre mim e Betsie. Escondi-me um instante; esperei um minuto, e depois olhei de novo. Outra enfermeira junta­ra-se à primeira, as duas cobrindo-me a visão. Depois, uma postou-se aos pés da cama, enquanto a outra se colocava à cabeceira: olhei ansiosamente para o vulto sobre a cama. Parecia uma estátua esculpida em marfim. Estava sem rou­pa; eu distinguia cada costela, e o contorno dos dentes atra­vés da pele enrugada do rosto.

            Levei alguns instantes para compreender que era Betsie.

            Cada enfermeira pegou um lado do lençol. Carregaram-na do quarto antes que meu coração se recuperasse e voltasse a pulsar.

            Betsie! Ela tinha tanto para fazer! Não podia...

            Onde a estariam levando? Para onde haviam se dirigido? Saí da janela e comecei a correr ao redor do edifício, com o peito ardendo pelo esforço da respiração.

            Lembrei-me do banheiro aos fundos; a janelinha - era ali que... Meus pés me levaram mecanicamente a rodear o prédio. Com a mão no peitoril, parei. E se ela estivesse lá mesmo? E se tivessem posto Betsie naquele assoalho?

            Comecei a caminhar. Vaguei muito tempo, ainda com aque­la dor no peito. Meus pés, porém, sempre me levavam de volta àquela janela. Eu não entrava; eu não olhava. Betsie não podia estar lá.

            Andei mais um pouco, e, estranhamente, embora eu pas­sasse por vários policiais, nenhum deles tentou me deter, nem me interrogar.

            - Corrie!

            Voltei-me e vi Mien correndo para mim.

            - Procurei você por toda a parte. Venha comigo, Corrie! Ela agarrou meu braço e puxou-me para os fundos do hos­pital. Quando vi onde ela me conduzia desvencilhei-me dela.

            - Eu sei, Mien. Eu já sei.

            Ela não pareceu me ouvir. Pegou-me novamente e levou-me até a janela, e empurrou-me por detrás. No fétido quarti­nho estava uma enfermeira. Encolhi-me assustada, mas Mien estava atrás de mim.

            - Esta aqui é a irmã, disse à mulher.

            Virei a cabeça. Não queria olhar para aqueles cadáveres dispostos ao longo da parede. Mien pôs um braço no meu ombro e empurrou-me através do cômodo guiando-me até aquela visão triste.

            - Corrie, você está vendo Betsie?

            Fixei os olhos no rosto de Betsie. Senhor Jesus, o que fi­zeste? Ó Senhor, o que estás me dizendo! O que estás me dando!

            Ali estava Betsie: tinha os olhos fechados, como se dor­misse, o rosto cheio e jovem. As rugas da preocupação, do sofrimento e o encovado da fome e da doença haviam sumi­do. À minha frente, estava a Betsie de Haarlem, feliz e em paz. Forte e livre.

            Esta era a Betsie dos céus, irradiando ale­gria e saúde. Até o cabelo dela estava arrumado graciosa­mente, como se um anjo a tivesse preparado. Por fim, voltei-me para Mien. A enfermeira foi à porta, e, sem dizer palavra, abriu-a para nós.

            - Podem sair pelo corredor, disse suavemente.

            Olhei mais uma vez para o rosto radiante de minha irmã. Depois, eu e Mien saímos juntas. No corredor, havia um monte de roupas. Bem em cima estava a blusa azul de Nollie. Incli­nei-me para apanhá-la. Estava puída e manchada de tinta de jornal, mas era um elo que me ligaria a Betsie. Mien agarrou meu braço.

            - Não toque nisso! Piolho negro! Eles vão queimar tudo.

            E assim deixei para trás o último laço físico que me pren­deria a ela. Não me importei. Era até melhor. Agora, o que me unia a Betsie era a esperança dos céus.