Pior que o aglomerado dos corpos, porém, foi a obsessão
que gradualmente tomou conta de nós: à sede. Nas duas ou três vezes que o trem
parou, a porta foi parcialmene aberta, e um balde de água introduzido. Contudo
nós nos tornáramos como animais, destituídas de qualquer senso de organização e
raciocínio. As que se encontravam junto à entrada, ficavam com tudo.
Por fim, na manhã do quarto dia, o comboio parou e a
porta foi totalmente aberta. Como criancinhas de colo, engatinhamos até a
saída e descemos. À nossa frente, um lindo lago azul parecia sorrir para nós. A
distância, em meio a um bosque de sicômoros, erguia-se a torre aguda de uma
igrejinha branca.
As prisioneiras mais fortes começaram a buscar vasilhas
de água do lago. Bebemos avidamente, aliviando lábios inchados e ressequidos. O trem estava bem menor; os carros dos
homens haviam sido desligados. Havia apenas alguns soldados - e alguns
pareciam não ter mais que uns quinze anos - para a guarda das mil mulheres. E
não eram necessários mais que aqueles. Mal podíamos caminhar, quanto mais
resistir.
Depois de algum tempo, formaram-nos em colunas desordenadas,
e partimos. A estrada rodeava o lago por cerca de um quilômetro e meio, depois,
desviava-se em direção a uma colina. Eu receava que Betsie não agüentasse
subi-la, mas parecia que a vista das árvores e do céu a havia reanimado, e,
afinal, ela me amparava tanto quanto eu a ela. Encontramos
várias pessoas da região pelo caminho, alguns a pé, outros em carroças.
Extasiei-me olhando para as crianças que pareciam todas
lindas, de rosto rosado e saudáveis. Elas retribuíam meus olhares com grande
interesse. Notei, porém, que os adultos não nos fitavam. Quando nos
aproximávamos, viravam o rosto.
Do topo da colina avistamos o campo. Era como uma imensa
cicatriz escura em meio à verdura da paisagem: um conjunto de alojamentos
baixos, de cor cinzenta, cercado de muros de concreto, nos quais havia torres
de vigia, a intervalos regulares. Bem no centro, uma chaminé quadrada deitava
uma fumaça fina e pardacenta.
- Ravensbruck!
O nome foi passando de boca em boca até o fim da fila
como uma maldição murmurada entre dentes. Este era, então, o famigerado campo
de extermínio de mulheres, do qual até mesmo em Haarlem ouvíramos falar. Aquela
construção atarracada, aquela fumaça que se dissolvia à luz do sol - não! Eu não
queria olhar para aquilo! Enquanto descíamos estrada abaixo, tropegamente,
senti a Bíblia sacolejar às minhas costas. A boa nova de Deus! Será que ele a
enviara para este nosso mundo atual também?
Agora já estávamos bem próximos, e víamos o emblema da caveira
encimando os ossos cruzados, colocado em alguns pontos do muro, para indicar a
existência dos fios eletrificados que corriam por toda a extensão dele. Os
portões foram abertos, e nós passamos.
Um grande número de alojamentos surgiu aos nossos olhos.
Junto ao muro, via-se uma fileira de torneiras. Corremos para elas, estendendo
mãos, braços e pernas e até a cabeça sob a torrente de água, procurando
livrar-nos do mau cheiro dos vagões. Um grupo de guardas, fardados de
azul-escuro, arremeteram-se contra nós, gritando e empurrando, brandindo
cassetetes curtos.
Afinal, conseguiram nos afastar dali, e nos conduziram
por um caminho que corria pelo meio dos alojamentos. Este campo era muito mais
sujo que Vught. Ali, pelo menos, quando passeávamos pela área, podíamos ver os
bosques e campos. Aqui, a vista sempre esbarrava na mesma muralha de concreto.
O campo fora construído em um grande vale artificial, cujos lados se viam por
trás dos muros eletrificados.
Por fim, paramos. Uma vasta tenda de lona - sem paredes
laterais - estendia-se por cerca de um acre de terreno, o chão recoberto de
palha. Eu e Betsie procuramos um espaço próximo à beirada e deixamo-nos cair
nele. No mesmo instante, pusemo-nos de pé. Piolhos! A palha estava infestada de
piolhos. Ficamos de pé durante alguns minutos, abraçando cobertores e fronhas
para não tocarem a palha infestada. Por fim, tivemos que estender o cobertor
sobre a palha e sentar nele.
Algumas prisioneiras haviam trazido tesouras de Vught:
estavam todas se apressando em cortar o cabelo umas das outras. Uma tesoura
chegou até nós. Tínhamos que fazer o mesmo, lógico; seria uma loucura deixar o
cabelo longo neste lugar. Quando, porém, cortei as ondas do cabelo castanho de
Betsie, chorei.
À tardinha, houve uma movimentação em um dos lados da
tenda. Um grupo de guardas estava afastando as mulheres de sob a lona.. Erguemo-nos rapidamente e agarramos
nossos cobertores. Acerca de cem metros da tenda a corrida parou. Ficamos por
ali, sem saber o que fazer. Não sabíamos se um novo grupo de prisioneiros
chegara, ou qual era a causa de nos terem mandado sair da tenda. Algumas
mulheres começaram a estender o cobertor no chão duro, e cascalhado.
Lentamente, chegamos à conclusão de que teríamos que passar a noite ali mesmo.
Estendemos meu cobertor no chão; deitamos sobre ele lado a lado, e cobrimo-nos
com o de Betsie.
- A noite é escura, e longe do lar estou... começou
Betsie a cantar com sua voz suave de soprano, e outras uniram-se à dela.
Guia-me, Senhor...
No meio da noite, fomos despertados pelo ronco de um
trovão e uma chuva forte. As cobertas ficaram logo empapadas; poças se formavam
debaixo de nós. Pela manhã, todo o campo era um imenso pântano alagado: mãos,
rostos e roupas, tudo estava coberto de lama negra.
Ainda estávamos torcendo os cobertores, quando veio a
ordem de nos enfileirarmos para o café. Não era realmente café, mas um líquido
ralo, aproximadamente da mesma cor; contudo estávamos satisfeitas de poder
tomá-lo. Seguíamos em fila dupla, passando junto à cozinha improvisada do campo.
Deram também uma fatia de pão preto a cada prisioneira. Somente à tarde foi
que houve outra refeição - uma tigelinha de sopa de nabo, e uma batata cozida.
Nesse meio tempo, tivemos que ficar de pé em posição de
sentido sobre a mesma terra molhada onde passáramos a noite. Nosso grupo estava
na extremidade do campo, perto da muralha externa, e víamos bem os fios
eletrificados que corriam sobre ela. Dois dias se passaram assim; à noite,
deitávamo-nos no mesmo lugar de antes. Não choveu novamente, mas a terra e os
cobertores ainda estavam úmidos.
Betsie começou a tossir. Retirei a blusa azul de Nollie
de minha fronha e envolvi-a nela. Dei-lhe algumas gotas de óleo vitaminado. Na
manhã seguinte, ela estava sofrendo terríveis cólicas intestinais. Naquele
segundo dia, ela teve muitas vezes que pedir permissão à nossa impaciente
monitora, à frente da fila, para ir até a vala que nos servia de banheiro.
No terceiro dia, quando já nos preparávamos para deitar
ao ar livre, foi-nos dito que nos apresentássemos ao centro de triagem de
recém-chegados. Uma caminhada de dez minutos, e chegamos ao centro. Entramos
vagarosamente por um longo corredor, e depois numa sala ampla. Ali, sob a luz
forte da lâmpada do teto, vimos algo que nos fez desesperar.
Cada mulher, assim que passava por uma mesa onde havia
vários oficiais, colocava seu cobertor, fronha e o que mais tivesse a um canto,
onde já havia uma pilha de outros desses objetos. Em outra mesa mais adiante,
ela tinha que tirar toda a roupa, atirá-la em outro canto, e passar diante de
uns doze oficiais, para dirigir-se ao chuveiro. Ao sair, estaria vestindo
apenas uma camisola fina da prisão e teria um par de sapatos. Mais nada!
Mas Betsie precisava daquela blusa de malha. Precisava
das vitaminas! Mais que tudo, precisávamos de nossa Bíblia. Como poderíamos
viver naquele lugar sem ela? Entretanto como eu poderia passar por entre
aqueles olhos observadores sem o macacão para cobri-la?
Já estávamos chegando à primeira mesa. Desesperadamente,
enfiei a mão na fronha, tirei o vidro de vitaminas e segurei-o firme na mão
bem fechada. Com relutância, arriei as outras coisas no monte que estava
aumentando rapidamente.
"Senhor", orei, "tu nos deste este livro
precioso; tu o conservaste a salvo em outras inspeções; tu o usaste tantas vezes..."
Betsie vacilou e cambaleou contra mim. Olhei para ela,
alarmada. Seu rosto estava lívido, os lábios apertados. Um guarda passava por
nós; roguei-lhe que me mostrasse onde ficava o toalete. Sem nem mesmo olhar
para nós, inclinou a cabeça na direção dos chuveiros.
Timidamente, eu e Betsie saímos da fila e fomos até a
porta do grande aposento, que recendia a umidade. Estava vazio, aguardando o
próximo grupo de cinqüenta mulheres que devia ali entrar.
Dirigi-me ao guarda que estava na porta.
- Por favor, onde é o banheiro? Ele nem me olhou.
- Use o ralo do chuveiro, respondeu rispidamente.
Logo que pusemos os pés para dentro, ele bateu a porta às
nossas costas. Ficamos a sós naquele lugar, aonde voltaríamos instantes depois,
sem roupa alguma. Junto à entrada, estavam as roupas da prisão que iríamos
vestir. Na frente e nas costas de cada uma fora aplicado um enorme X de outro
tecido.
Então, vi mais uma coisa: num dos cantos estavam alguns
bancos de madeira. Estavam mofados, cobertos de lodo e infestados de baratas,
mas, para mim, eram como a mobília do próprio céu.
- A blusa! Tire a blusa! murmurei apressadamente, ao
mesmo tempo que procurava tirar o barbante do meu pescoço.
Betsie entregou-me a blusa, e, num minuto, enrolei nela a
Bíblia e o vidro de vitaminas, e escondi nosso precioso embrulho atrás dos
bancos.
Assim, quando fomos introduzidas naquele aposento, dez
minutos depois, não estávamos pobres, mas ricas. Ricas por esta nova evidência
do cuidado divino por nós, revelando-nos que ele era o Deus de Ravensbruck
também.
Ficamos debaixo dos jatos gelados enquanto durou a água,
sentindo-a suavizar nossa pele picada de insetos. Depois, molhadas e pingando,
agrupamo-nos ao redor da pilha de roupas, pegando-as, passando-as adiante, à
procura de alguma que nos servisse.
Encontrei um vestido bem largo para Betsie, que cobriria
bem a blusa azul quando ela a vestisse. Enfiei-me num também, e depois estiquei
a mão por detrás dos bancos, e, rapidamente, escorreguei o pequeno embrulho
para dentro do decote.
O volume ficou muito visível sob a roupa. Amassei-o o
mais que pude, empurrei-o para a cintura, mas não havia jeito de disfarçá-lo
muito com aquele vestido fino. Enquanto o fazia, porém, estava incrivelmente
tranqüila, segura de que aquilo não era de minha responsabilidade, mas de Deus,
e que tudo o que eu tinha a fazer era seguir em frente.
Ao deixarmos a sala dos chuveiros, os guardas estavam
revistando cada prisioneira, apalpando frente, costas e lados. A mulher que se
encontrava à minha frente foi examinada três vezes. Betsie, atrás de mim, foi
revistada também; mas ninguém me tocou.
Junto à porta da saída, novo teste: algumas guardas davam
uma segunda busca. Diminuí o passo quando me aproximei delas, mas a Aufseherin
(supervisora) deu-me um empurrão pelo ombro.
- Ande! Está atrasando a fila!
Assim, eu e Betsie chegamos ao alojamento 8, nas primeiras
horas da manhã, trazendo não somente a Bíblia, mas uma nova experiência do
poder daquele cuja história ela narra. Já havia três mulheres dormindo na cama
que nos fora designada.
Elas se ajeitaram para abrir espaço para nós, mas o colchão
cedia na beirada, e eu escorreguei para o chão várias vezes. Por fim, decidimos
nos deitar de lado, atravessadas, e conseguimos ajustar ombros e cotovelos. O
cobertor já estava bem acabado, em comparação com o que devolvêramos naquela
manhã, mas naquele ajuntamento, pelo menos, acabamos por nos aquecer umas às
outras.
Betsie vestira a blusa azul sob o vestido, e colocou-se
entre mim e as outras. Gradualmente, o seu tremor cessou e ela pôde dormir.
Fiquei acordada por muito tempo, vendo o facho de luz da lanterna da ronda
varrer a parede dos fundos numa linha circular, e ouvindo, à distância, os
gritos dos guardas que patrulhavam a muralha.
Em Ravensbruck, a chamada era feita meia hora mais cedo que em Vught. Às 4:30h tínhamos que estar de pé do lado de fora, ao frio da madrugada escura, em posição de sentido, em grupos de cem - dez colunas de dez. Às vezes, depois de haver estado horas e horas nesta posição, entrávamos no alojamento apenas para ouvir o apito de novo.
- Todos para fora! Em fila para a chamada!
O alojamento 8 era a seção de quarentena. Próximo a ele -
talvez situado ali deliberadamente, para servir de advertência às
recém-chegadas - erguia-se o edifício onde eram dadas as punições. Durante o
dia todo, e, às vezes, parte da noite, partiam dali sons que pareciam vir do
próprio inferno.
Não eram expressões de raiva, nem de qualquer outra emoção
humana, mas de uma crueldade fria: golpes aplicados a intervalos regulares, e
gritos de dor que os seguiam no mesmo ritmo. E nós ficávamos ali, formadas em
coluna por dez, mãos ao lado, tremendo, desejando ardentemente poder apertar
os ouvidos para impedir aqueles sons de chegarem até eles.
No momento em que éramos dispensadas, voltávamos correndo
para dentro, pisando nos calcanhares umas das outras, na ânsia de reduzir nosso
mundo a proporções mais compreensíveis.
A situação foi ficando cada vez mais difícil. Mesmo entre
aquelas quatro paredes havia miséria demais, muito sofrimento sem propósito. A
cada dia, alguma coisa se tornava insuportável, tornava-se pesada demais.
- Quer carregar isto também para mim, Senhor Jesus?
Todavia, enquanto tudo o mais ficava confuso, uma realidade
se tornava mais clara para nós: a razão de nos acharmos ali. Não sabíamos por
que os outros tinham de sofrer também. Quanto a nós, sempre que não estávamos
na fila para a chamada, fazíamos da Bíblia o centro de um crescente círculo de
socorro e esperança. Como mendigos aconchegados ao redor de uma fogueira, nós
nos reuníamos ali, aquecendo o coração ao lume e ao calor da Palavra. Quanto
mais negra era a noite que nos circundava, mais bela, verdadeira e brilhante era
a luz da mensagem divina.
"Quem nos separará do amor de Cristo? Será
tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?...
Em todas estas cousas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que
nos amou."
Eu corria os olhos ao redor, enquanto Betsie lia, vendo a
luz tremular de rosto em rosto. Mais que vencedores... Não era um pedido, era
um fato. Nós sabíamos disso; nós o experimentávamos a cada minuto - pobres,
odiadas, famintas. Somos mais que vencedores! Paulo não diz:
"Seremos", mas, "Somos".
A vida em Ravensbruck decorria em dois níveis totalmente
diversos. Um era o da vida exterior, visível, que a cada momento era mais
terrível. O outro, o da vivência que tínhamos com Deus, melhorando dia a dia,
verdade após verdade, glória após glória.
Houve vezes em que, ao retirar a Bíblia de sua sacola, eu
sentia as mãos trêmulas, pelo mistério de tudo aquilo. Ela parecia totalmente
nova, parecia ter sido escrita recentemente. Às vezes eu me espantava de a
tinta não estar molhada...
Eu sempre crera na Bíblia, mas sua leitura agora não
tinha nada a ver com aquela crença. Era uma descrição do modo como a nossa vida
era na atualidade - era o céu, o inferno, a maneira de os homens agirem e de
Deus operar. Eu lera o relato da prisão de Jesus milhares de vezes, como os
soldados o haviam espancado, rido dele, e o chicoteado. Tais acontecimentos,
agora, tinham corpo.
Sexta-feira, era repetida a humilhação da inspeção médica.
O corredor do hospital, onde esperávamos nossa vez, não tinha aquecimento, e as
paredes guardavam o frio do outono. Apesar disso, não podíamos nem mesmo
envolver-nos com os braços. Tínhamos que ficar eretas, em posição de sentido,
enquanto caminhávamos lentamente por entre duas fileiras de guardas que sorriam
zombeteiramente.
Eu não entendia como eles podiam encontrar prazer em
olhar aquelas pernas finas e aqueles estômagos afundados pela fome. Estou certa
de que não há visão mais patética do que a de um corpo humano carente de
cuidados e de amor. Eu não compreendia, tampouco, a necessidade de se tirar
toda a roupa, pois, quando afinal chegávamos no consultório, um médico
examinava a garganta, e outro - provavelmente dentista - olhava nossos dentes,
e ainda outro fazia um exame das mãos, por entre os dedos. Nada mais.
Descíamos outra vez pelo longo corredor e recolhíamos nossos vestidos à porta.
Foi num desses dias, enquanto esperávamos, tremendo de
frio, que outra página da Bíblia adquiriu vida para mim.
Ele foi crucificado nu.
Eu não sabia. Nunca pensara nisso. Os quadros e crucifixos
o mostravam envolto num pedaço de pano. Isto, porém -compreendi num relance -
era o respeito e a reverência do artista. Naquele dia, naquela outra
sexta-feira, não houvera reverência; não mais que a que eu via nos rostos que
nos rodeavam.
Inclinei-me para Betsie à minha frente. Suas espáduas se
salientavam sob a pele arroxeada.
- Betsie, tiraram a roupa dele também. Ouvi seu suspiro
curto.
- Ah, Corrie, e eu nunca agradeci a ele por isto...
A cada dia o sol despontava mais tarde; o ar demorava
mais a se aquecer. Vai ser melhor, muito melhor, diziam todos, quando formos
para o alojamento definitivo. Cada prisioneira vai ter seu próprio cobertor e
a própria cama. E cada uma adicionava ao quadro aquilo que desejava ter. Para
mim, era uma enfermaria, onde Betsie receberia remédio para aquela tosse.
- Vai haver uma enfermeira para cada alojamento. Disse
isto tantas vezes, que eu própria fiquei convencida.
Eu estava lhe dispensando uma gota de óleo vitaminado no
pão preto diariamente, mas, quanto ele ainda duraria? eu me indagava.
- E principalmente, se você o ficar passando às outras
toda vez que alguém espirra, disse a Betsie.
Na segunda semana de outubro, recebemos a ordem para nos
mudarmos. Marchamos em coluna por dez, descendo por uma larga alameda coberta
de cascalho, e depois uma rua estreita, alinhada de alojamentos.
Paramos várias vezes, enquanto números eram cantados -
em Ravensbruck nunca se mencionavam nomes. Por fim, o meu e o de Betsie foram
chamados: "Prisioneira 66729; prisioneira 66730." Saímos em fila com
mais dez mulheres, e nos achamos diante do longo e escuro alojamento 28.
Metade das vidraças estava quebrada, e estas haviam sido
substituídas por pedaços de pano. A porta, no centro, dava entrada para um
grande cômodo, onde duzentas ou mais prisioneiras se inclinavam sobre suas
agulhas de tricô. Sobre mesas, no centro do saguão, viam-se pilhas e pilhas das
meias de lã de cor cinza, usadas pelo exército.
Em cada lado havia duas portas que davam para dois
quartos maiores - os maiores dormitórios que já víramos. Eu e Betsie seguimos
uma prisioneira-guia e entramos na porta à direita. Por causa das inúmeras
janelas quebradas e tapadas com pano, o quarto estava meio escuro. Nosso nariz
logo captou a idéia geral do quarto: estava imundo.
O encanamento devia estar entupido; a roupa de cama
estava suja e cheirava mal. Quando nos acostumamos à obscuridade, vimos que as
camas não eram individuais; na realidade, eram imensos beliches, formados por
três quadrados superpostos, e enfileirados bem juntos uns dos outros, com
estreitos corredores entre eles, para locomoção.
Seguimos em fila por um - a passagem não comportava mais
que uma pessoa - lutando contra a sensação de claustrofobia, que nos causavam
aquelas camas-plataforma. Não havia ninguém naquele enorme quarto; suas
ocupantes deviam estar em seus setores de trabalho.
Afinal, a mulher nos indicou uma plataforma central, no
meio de um bloco delas. Para chegar até lá, tínhamos que nos elevar ao segundo
nível, e depois, atravessar de gatinhas, três dessas plataformas cobertas de
palha, chegando por fim à nossa, a qual deveríamos compartilhar com - quantas
mais? A "cama" superior era muito próxima, e não podíamos nos sentar.
Deitamo-nos, tentando superar o enjôo que nos sobreveio devido ao cheiro
nauseante da palha. Ouvimos as outras prisioneiras que tinham vindo conosco
procurando seus lugares.
De súbito, eu meu sentei, batendo a cabeça contra a ripa
da cama de cima. Algo havia picado minha perna.
- Pulga! gritei. Betsie, isto aqui está fervilhando de
pulgas!
Arrastamo-nos pelas plataformas vizinhas, com a cabeça
abaixada para evitar outra pancada. Pulamos para a passagem e dirigimo-nos
para um lugar mais iluminado.
- Aqui uma! E outra aqui! queixei-me. Betsie, como vamos
viver num lugar desses?
- Ensina-nos; ensina-nos, Senhor.
Ela o dissera tão tranqüilamente que precisei de algum
tempo para perceber que estava orando. Parecia que, para ela, não havia
separação entre oração e vida.
- Corrie, exclamou ela repentinamente. Ele já respondeu.
Antes de pedirmos, como ele sempre faz. Na Bíblia, hoje de manhã. Onde foi?
Leia de novo aquele trecho.
Dei uma rápida olhada ao redor, para ver se havia algum
guarda à vista, depois retirei a Bíblia da sacola.
- Foi em 1 Tessalonicenses, respondi.
Já estávamos em nossa terceira leitura do Novo Testamento
desde que deixáramos Scheveningen.
- Aqui está: "... consoleis os desanimados, ampareis
os fracos e sejais longânimos para com todos. Evitai que alguém retribua a
outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre vós e para com
todos."
Parecia ter sido escrito especialmente para a situação de
Ravensbruck.
- Continue, disse Betsie. Não foi só isso.
- Bom... "Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em
tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para
convosco."
- É isso, Corrie. Aí está a resposta. "Em tudo, dai
graças..." Isto é tudo que podemos fazer. Podemos começar a dar graças a
Deus agora mesmo por todas as coisas deste novo alojamento.
Olhei-a espantada, e depois corri os olhos por aquele
quarto malcheiroso.
- Que coisas? perguntei.
- Por termos sido mandadas para aqui juntas. Mordi os
lábios.
- Obrigada, Senhor Jesus!
- E pelo que você tem nas mãos agora! Olhei para a
Bíblia.
- Ah, sim. Damos-te graças, Senhor, por não ter havido
inspeção quando chegamos aqui. Obrigada por estas mulheres, aqui neste
dormitório, que irão encontrar-te através destas páginas.
- Isso! ajuntou Betsie. Obrigada pelo excesso de gente.
Já que somos tantas, muitas vão ter a chance de ouvir a tua Palavra.
Ela olhou-me esperando minha aquiescência.
- Corrie! insistiu.
- Ah, está bem. Obrigada pelo acúmulo de gente, que é tão
incômodo, sufocante, importuno.
- Damos-te graças, continuou Betsie serenamente, pelas
pulgas, e por...
Pelas pulgas? Isso já era demais!
- Betsie, nem Deus pode me fazer dar graças pelas pulgas.
- "Em tudo dai graças", recitou ela. Aí
não diz "Dai graças nas situações agradáveis". As pulgas fazem parte
deste lugar em que Deus nos colocou.
E foi assim que, apertadas entre montes de
camas-plataforma, demos graças pelas pulgas. Desta vez, porém, eu estava
segura de que Betsie estava enganada.
Pouco depois das 6:00h, chegaram as outras mulheres do alojamento 28. Vinham cansadas, suarentas e sujas, pelo longo horário de trabalho forçado. Uma vizinha de plataforma nos informou que o prédio fora construído para abrigar quatrocentas pessoas. Havia ali agora mil e quatrocentas, e, a cada semana, novas residentes eram acrescentadas, à medida que os campos de concentração da Polônia, França, Bélgica e Áustria eram fechados, como haviam sido os da Holanda, e as prisioneiras eram enviadas para o interior da Alemanha.
Havia nove mulheres no nosso quadrado, que fora construído
para quatro, e quando as outras descobriram que tinham de dar lugar para mim e
Betsie, começaram a resmungar. Havia oito sanitários, fétidos e
transbordantes, para todo o grupo; para se chegar a um deles, tínhamos primeiro
que passar por sobre nossas companheiras, e depois sobre as ocupantes das
outras plataformas que se encontravam entre a nossa e a passagem mais próxima,
sempre com o risco de se adicionar mais peso aos já vergados suportes, e cair
sobre as que nos ficavam embaixo. Isso aconteceu várias vezes naquela primeira
noite. Ouvíamos o ruído do suporte se quebrando, um berro e gritos abafados.
Quando não era o suporte que se quebrava, era a chuva de
palha que nos vinha da plataforma superior, ao menor movimento, e que era
seguida de palavrões. No alojamento 8, quase todas éramos holandesas. Aqui, nem
mesmo a bênção de uma língua comum havia, e entre pessoas cansadas e mal alimentadas,
as brigas surgiam constantemente.
Naquele momento havia uma disputa em andamento porque as
que dormiam junto às janelas as haviam fechado por causa do frio. Logo, várias
vozes foram ouvidas, exigindo que fossem reabertas. De vários pontos daquele
lado do quarto, elevava-se o clamor de brados e gritos, discussões, tapas, lágrimas.
Senti Betsie agarrar minha mão no escuro.
- Senhor Jesus, orou em voz alta, envia tua paz para este
quarto. Tem-se orado muito pouco neste lugar, mas onde quer que tu estejas,
Senhor, o espírito de luta cessa...
A mudança foi gradual, mas sensível. Uma a uma as explosões
de raiva foram passando.
- Vamos fazer um trato, era uma voz falando em alemão com
sotaque escandinavo. Você vem dormir aqui que está quente, e eu fico com seu
lugar perto da janela.
- E misturar seus piolhos com os meus? a voz desta tinha
um tom irônico. Não, obrigada.
- Já sei! essa tinha um cicio francês. Vamos abrir só a
metade. Assim, nós ficamos meio geladas e vocês meio sufocadas.
Uma onda de gargalhadas correu pelo quarto. Deitei novamente
naquela palha malcheirosa, e pensei em mais uma circunstância pela qual eu
podia estar grata a Deus: Betsie estava no alojamento 28.
Ali, como no setor de quarentena, a chamada era feita às 4:30h. Éramos despertadas às 4:00h por um apito, e sem nem mesmo parar para limpar do cabelo e roupas os pedaços de palha, começávamos a corrida para a fila da ração de café e pão, no cômodo central. Quem chegasse por último nada encontrava.
A contagem era feita na ampla alameda que ia para o hospital,
chamada Lagerstrasse. Ali nos reuníamos aos ocupantes dos outros
alojamentos - cerca de 35.000 pessoas ao todo - um grupo enorme que se
espalhava á perder de vista, à luz fraca das lâmpadas, os pés entorpecidos pelo
contato com o chão frio.
Após as chamadas, as turmas de trabalhadores eram distribuídas.
Betsie e eu fomos designadas para a fábrica da Siemens. O imenso complexo da
Siemens, um aglomerado de centros de produção e terminais ferroviários, ficava
a mais de dois quilômetros do acampamento.
A "Brigada da Siemens", composta de milhares de
pessoas, atravessava os portões de ferro encimados por fios eletrificados, e penetrava
num mundo de árvores, relva e horizonte. O sol surgia quando estávamos perto da
lagoa; o ouro dos campos, naquele fim de outono, dava-nos grande soerguimento
moral.
O trabalho, entretanto, era um tormento. Eu e Betsie tínhamos
que levar um carrinho pesado até um desvio, onde o enchíamos com enormes chapas
de metal, que retirávamos de um vagão, e depois empurrávamos para o portão de
recepção da fábrica. Nosso dia de trabalho era de onze horas. Uma vantagem era
que, ao almoço, recebíamos uma batata cozida e um prato de sopa rala. Os que
trabalhavam no acampamento não tinham refeição ao meio-dia.
No regresso ao campo, mal agüentávamos mover as pernas
inchadas e doloridas. Os soldados que nos escoltavam, berravam imprecações, mas
nós não conseguíamos andar depressa: só arrastando os pés, às polegadas. Notei,
novamente, que o povo da região sempre virava o rosto ao passar por nós.
De volta ao alojamento, entrávamos em outra fila, na
saleta central - será que nunca teriam fim estas filas e esperas? - (para
receber nossa concha de sopa de nabo. Depois, o mais rápido que podíamos, e a
despeito do aperto de gente, eu e Betsie nos dirigíamos para um canto de nosso
quarto, onde realizávamos um culto. Na nossa plataforma a iluminação não
chegava para a leitura, mas ao fundo havia uma lâmpada que projetava na parede
um pálido círculo de luz. Era ali que nos reuníamos com um número sempre
crescente de mulheres.
Aqueles cultos do alojamento 28 foram inesquecíveis. Numa
mesma reunião, teríamos um recitativo do Magnificat - o cântico de Maria
- em latim, feito por um grupo de católicas, um hino cantado à meia voz, pelas
luteranas, e um cantochão, pelas ortodoxas. A cada momento, o grupo aumentava,
espalhando-se pelas plataformas próximas, assentando-se nas beiradas e fazendo
com que aquelas altas estruturas gemessem e vergassem, ameaçando quebrar-se ao
peso delas.
No fim, eu ou Betsie abriríamos a Bíblia. Já que só as holandesas
entendiam nosso texto, fazíamos a interpretação para o alemão. Depois, ouvíamos
aquelas palavras vivas sendo passadas adiante em francês, polonês, russo,
tcheco e holandês de novo. Aquelas noites, ali sob a lâmpada, eram pequenos
prelúdios do céu. Às vezes, eu pensava em Haarlem, nas igrejas lá, separadas
por uma cerca de ferro e uma barreira de doutrinas. Nesses momentos, eu via
como, nas trevas, a luz de Deus brilhava mais intensamente.
A princípio, realizávamos aqueles cultos com certo
receio. Contudo, como com o passar do tempo nenhum guarda aparecesse, ficamos
um pouco mais ousadas. Havia tantas mulheres que queriam se reunir conosco, que
decidimos realizar outro culto após a chamada noturna. Lá fora, na Lagerstrasse,
estávamos sob observação rígida; os guardas, com suas confortáveis capas
de lã, andavam de um lado para outro. O mesmo se dava na saleta central: havia
sempre meia dúzia de guardas ou policiais do campo. Entretanto, no amplo
dormitório, não havia quase supervisão alguma. Não compreendíamos aquilo.
Havia ainda outro fato estranho. O vidrinho de óleo vitaminado continuava entregando suas gotas. Parecia impossível que um frasco tão pequeno pudesse render tanto, com tantas gotas sendo tiradas diariamente.
Era meu intuito poupá-las - Betsie estava cada vez mais
fraca. Mas outras estavam doentes também. Era difícil dizer não a olhos
que ardiam em febre, a mãos que tremiam com calafrios. Tentei dá-las apenas às
que estivessem muito fracas - mas estas eram em grande número também: quinze,
vinte, vinte e cinco... Mesmo assim, cada vez que eu virava o vidrinho, uma
gota surgia. Como podia ser aquilo? Olhei-o contra a luz, tentando ver quanto
ainda restava, mas ele era marrom-escuro e eu não conseguia enxergar bem.
- Na Bíblia, há a história de uma mulher cuja botija de
azeite nunca se esvaziou, disse Betsie.
Ela abriu a Bíblia no livro de 1 Reis, na história da
viúva de Sarepta, em cuja casa o profeta Elias se hospedou, e leu:
"Da panela a farinha não se acabou, e da botija o
azeite não faltou, segundo a palavra do Senhor, por intermédio de Elias."
Bom, mas na Bíblia há muitas ocorrências maravilhosas.
Uma coisa era crer que esses milagres podiam acontecer há milhares de anos;
outra muito diferente, era vê-los ocorrerem hoje em dia, conosco mesmos. E, no
entanto, acontecia, num dia, no outro dia, e no outro, e até um pequeno grupo
de espectadores se formou ao redor para ver as gotas caírem nas fatias de pão.
Muitas vezes, eu ficava acordada à noite, recebendo a
chuva de capim do colchão de cima, tentando entender a maravilha daquela
bênção, que nos era concedida.
- Talvez saiam somente uma ou duas moléculas, disse eu a
Betsie uma noite, e quando entram em contato com o ar elas se expandem.
Ouvi-a rir suavemente no escuro.
- Não tente explicar o fato, Corrie. Aceite-o como sendo
um grande presente de um Pai amoroso.
Certo dia, Mien aproximou-se de nós, acotovelando-se por
entre o grupo, na fila do jantar.
- Veja o que eu trouxe para vocês.
Mien era uma jovem holandesa muito bonita que ficáramos
conhecendo em Vught. Ela trabalhava no hospital, e, muitas vezes, conseguia
roubar algumas preciosidades da sala dos funcionários e trazer para nós, no
alojamento 28. Ora era uma folha de jornal para tapar uma vidraça quebrada, ora
uma fatia de pão que fora deixada no prato de uma enfermeira. Desta vez, ela
nos presenteou com uma sacolinha de pano; espiei para dentro dela.
- Vitaminas! gritei. Depois, lançando um olhar apreensivo
ao guarda que estava próximo, sussurrei: Levedura!
- É! ela sussurrou também. Havia três vidros enormes.
Tirei a mesma quantia de cada um.
Engolimos aquele caldo de nabo, maravilhadas com nosso
súbito enriquecimento. De volta ao quarto, peguei o vidrinho de entre a palha.
- Vamos terminar com as gotas primeiro, decidi. Naquela
noite, porém, apesar de eu deixar o frasco virado muito tempo e o sacudir com
força, nem uma só gota saiu.
No princípio de novembro, cada prisioneiro teve direito a um casaco. Tanto o de Betsie como o meu eram de fabricação russa, e, aparentemente, tinham sido guarnecidos de peles: havia marcas de costura e fiapos de linha na gola e nos punhos, de onde haviam sido arrancadas.
Os destacamentos para o trabalho da Siemens foram suspensos,
e nós começamos a calcular que o lugar fora atingido num dos bombardeios que
agora eram ouvidos todas as noites. Eu e Betsie fôramos designadas para
trabalhar no próprio campo, no nivelamento de uma parte do terreno. Este
serviço também era pesado, penoso para as costas. Muitas vezes, quando eu me inclinava
para pegar algum peso, sentia uma pontada no coração; à noite, a dor nas pernas
era insuportável.
Entretanto o maior problema para mim era a saúde de
Betsie. Certa manhã, a terra estava molhada e bem pesada, após uma noite de
chuva. Ela nunca conseguia mesmo carregar muita terra; nesse dia, o pouquinho
que apanhava com a pá, fazia-a tropeçar, ao levá-lo para as depressões que
estávamos aplainando.
- Schneller! (Mais rápido!) gritou uma guarda. Não
dá para ir mais depressa?
Por que elas tinham que gritar? eu me perguntava, ao enterrar
minha pá na lama negra. Por que não podiam simplesmente falar, como qualquer
ser humano? Ergui-me vagarosamente, o suor secando-se em minhas costas.
Lembrava-me de onde ouvira aquele som louco pela primeira vez. No Beje. No
quarto de Tia Jans. A voz que nos vinha pelo alto-falante do rádio, um som
estridente que permaneceu no ar, mesmo depois que Betsie se levantara
abruptamente e o desligara...
- Moleza! Preguiçosa!
A guarda arrancou a pá das mãos de Betsie, e foi pelo
grupo todo exibindo o pouquinho de terra que fora tudo que ela conseguira
pegar.
- Vejam o que a "senhora baronesa" está
carregando! Ela vai ficar exausta!
Os outros guardas, e mesmo algumas das prisioneiras riram.
Sentindo-se aprovada, ela se lançou numa imitação zombeteira do andar trôpego
de Betsie. Havia um guarda conosco, nesse dia, e quando havia um homem por
perto, as guardas ficavam muito animadas.
Como as risadas aumentassem, senti uma raiva assassina. A
guarda era jovem e bem nutrida - não era culpa de Betsie se ela era velha, e
passava fome! Para meu espanto, porém, Betsie também estava rindo.
- É! Eu ando assim mesmo! disse ela. Mas é melhor você me
deixar carregar minhas "colheradas", senão tenho que parar de todo.
O rosto gordo da mulher ficou rubro.
- Sou eu quem resolve quem pára e quem não pára.
E retirando o chicotinho do cinto, golpeou Betsie no pescoço
e no peito.
Fiquei fora de mim. Agarrei minha pá, e fiz menção de
correr para ela. Betsie colocou-se na minha frente, antes que alguém pudesse
ter visto meu gesto.
- Corrie, pediu-me ela tomando meu braço e abaixando-o.
Corrie, continue a trabalhar!
Ela tomou minha pá e enterrou-a na lama. A guarda atirou
a pá de Betsie em nossa direção desdenhosamente. Peguei-a meio estonteada. Uma
mancha vermelha apareceu na gola de seu vestido; no pescoço, via-se um vergão.
Betsie notou a direção de meu olhar e levou a mão - sua
mão magra e ossuda - onde o chicote a atingira.
- Não olhe para isso, Corrie. Olhe só para Jesus. Ela retirou
a mão: estava tinta de sangue.
Nos meados de novembro as chuvas começaram. Eram chuvaradas frias, que duravam o dia todo, e alagavam tudo, deixando gotas de umidade nas paredes internas. A Lagerstrasse agora nunca estava seca; mesmo quando a chuva parava, havia poças imensas pela estrada. Nós não tínhamos permissão de evitá-las, ao fazermos as fila, e, às vezes, ficávamos com água até o tornozelo. À noite, o alojamento recendia a sapato molhado.
Pouco tempo depois, Betsie começou a escarrar sangue. Fomos
à enfermaria, mas o termômetro registrou apenas 38,5°C, o que não era bastante
para que ela fosse admitida no hospital. E eu com as minhas fantasias de uma
enfermeira e um dispensário em cada alojamento! Tudo que havia era uma imensa
sala vazia, onde todos os doentes se reuniam, tendo muitas vezes que esperar
do lado de fora durante horas e horas, na chuva.
Eu passei a odiar aquele aposento sombrio, cheio de mulheres
doentes, a sofrer, mas tínhamos que ir lá várias vezes, pois a saúde de Betsie
estava piorando sempre. Ela não o detestava como eu; para ela, aquilo ali era
simplesmente um ambiente onde podia falar de Jesus - assim como em qualquer
outro lugar. Onde quer que ela estivesse, no trabalho, na fila de alimentação,
no dormitório, Betsie falava aos que a rodeavam, acerca da presença de Cristo e
do desejo dele de possuir cada vida. À medida que seu corpo enfraquecia, sua fé
parecia aumentar.
E a enfermaria era "um local muito importante,
Corrie. Algumas destas pessoas estão no limiar da eternidade".
Finalmente, certo dia, a temperatura dela chegou a 40°C,
que era a exigida para internamento no hospital. Tivemos que esperar muito,
antes que uma enfermeira aparecesse para conduzir Betsie e mais umas cinco ou
seis doentes ao hospital propriamente dito. Acompanhei-as até a porta que dava
acesso à ala, e depois, lentamente, voltei ao alojamento.
Como de costume, parei à porta do dormitório. Ele me
lembrava um formigueiro. Algumas mulheres já estavam dormindo, após o longo
período de trabalho, mas a maioria ainda se movia, algumas esperando vagar-se
um dos banheiros, outras retirando piolhos de si mesmas ou de outras.
Voltei-me e me enfiei por entre as alas cheias, e dirigi-me ao fundo, onde o
culto já estava se encerrando. Quando eu e Betsie íamos para a enfermaria,
deixávamos a Bíblia com a Sra. Wielmaker, uma boa católica, de Haia, que conhecia
alemão, francês, latim e grego, e traduzia os textos para estas línguas.
Algumas se acercaram de mim e perguntaram por Betsie.
Como estava ela? Quanto tempo teria que ficar? As luzes
se apagaram e começou a escalada das camas. Icei-me para o andar do meio, e
dirigi-me ao meu lugar, arrastando-me por sobre as que já estavam deitadas. Que
diferença ocorrera nesse lugar depois que Betsie viera para aqui! Quando antes
este era o momento das brigas e palavrões, agora, o imenso dormitório se enchia
de murmúrios de "Ah, perdão!" "Desculpe-me!" "Não foi
nada!"
Cheguei à minha plataforma, e deitei-me num lugarzinho no meio. Um facho de lanterna varreu o quarto, detendo-se onde se percebia algum movimento. Alguém fincou um cotovelo em minhas costas; o pé de outra encontrava-se a poucos centímetros de meu rosto. Estranho como alguém ainda podia se sentir tão sozinho num lugar tão superlotado como aquele!