segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 13


 Ravensbruck, o Campo de Extermínio

             Durante dois dias e duas noites, fomos nos internando mais e mais naquela terra cheia de terrores para nós. Ocasional­mente, os pães eram distribuídos, passando de mão em mão. Entretanto nenhuma providência fora tomada quanto ao cui­dado sanitário, e o ar do vagão estava de tal modo, que quase ninguém conseguia comer.

            Pior que o aglomerado dos corpos, porém, foi a obsessão que gradualmente tomou conta de nós: à sede. Nas duas ou três vezes que o trem parou, a porta foi parcialmene aberta, e um balde de água introduzido. Contudo nós nos tornáramos como animais, destituídas de qualquer senso de organização e raciocínio. As que se encontravam junto à entrada, ficavam com tudo.

            Por fim, na manhã do quarto dia, o comboio parou e a porta foi totalmente aberta. Como criancinhas de colo, enga­tinhamos até a saída e descemos. À nossa frente, um lindo lago azul parecia sorrir para nós. A distância, em meio a um bosque de sicômoros, erguia-se a torre aguda de uma igrejinha branca.

            As prisioneiras mais fortes começaram a buscar vasilhas de água do lago. Bebemos avidamente, aliviando lábios in­chados e ressequidos.     O trem estava bem menor; os carros dos homens haviam sido desligados. Havia apenas alguns sol­dados - e alguns pareciam não ter mais que uns quinze anos - para a guarda das mil mulheres. E não eram necessários mais que aqueles. Mal podíamos caminhar, quanto mais resistir.

            Depois de algum tempo, formaram-nos em colunas desor­denadas, e partimos. A estrada rodeava o lago por cerca de um quilômetro e meio, depois, desviava-se em direção a uma colina. Eu receava que Betsie não agüentasse subi-la, mas parecia que a vista das árvores e do céu a havia reanimado, e, afinal, ela me amparava tanto quanto eu a ela.      Encontramos várias pessoas da região pelo caminho, alguns a pé, outros em carroças.

            Extasiei-me olhando para as crianças que pare­ciam todas lindas, de rosto rosado e saudáveis. Elas retribuíam meus olhares com grande interesse. Notei, porém, que os adultos não nos fitavam. Quando nos aproximávamos, vira­vam o rosto.

            Do topo da colina avistamos o campo. Era como uma imen­sa cicatriz escura em meio à verdura da paisagem: um con­junto de alojamentos baixos, de cor cinzenta, cercado de muros de concreto, nos quais havia torres de vigia, a interva­los regulares. Bem no centro, uma chaminé quadrada deita­va uma fumaça fina e pardacenta.

            - Ravensbruck!

            O nome foi passando de boca em boca até o fim da fila como uma maldição murmurada entre dentes. Este era, en­tão, o famigerado campo de extermínio de mulheres, do qual até mesmo em Haarlem ouvíramos falar. Aquela construção atarracada, aquela fumaça que se dissolvia à luz do sol - não! Eu não queria olhar para aquilo! Enquanto descíamos estrada abaixo, tropegamente, senti a Bíblia sacolejar às minhas costas. A boa nova de Deus! Será que ele a enviara para este nosso mundo atual também?

            Agora já estávamos bem próximos, e víamos o emblema da caveira encimando os ossos cruzados, colocado em alguns pontos do muro, para indicar a existência dos fios eletrifica­dos que corriam por toda a extensão dele. Os portões foram abertos, e nós passamos.

            Um grande número de alojamentos surgiu aos nossos olhos. Junto ao muro, via-se uma fileira de torneiras. Corremos para elas, estendendo mãos, braços e pernas e até a cabeça sob a torrente de água, procurando livrar-nos do mau cheiro dos vagões. Um grupo de guardas, fardados de azul-escuro, arremeteram-se contra nós, gritan­do e empurrando, brandindo cassetetes curtos.

            Afinal, conseguiram nos afastar dali, e nos conduziram por um caminho que corria pelo meio dos alojamentos. Este campo era muito mais sujo que Vught. Ali, pelo menos, quan­do passeávamos pela área, podíamos ver os bosques e cam­pos. Aqui, a vista sempre esbarrava na mesma muralha de concreto. O campo fora construído em um grande vale artifi­cial, cujos lados se viam por trás dos muros eletrificados.

            Por fim, paramos. Uma vasta tenda de lona - sem paredes laterais - estendia-se por cerca de um acre de terreno, o chão recoberto de palha. Eu e Betsie procuramos um espaço próximo à beirada e deixamo-nos cair nele. No mesmo instante, pusemo-nos de pé. Piolhos! A palha estava infestada de piolhos. Fica­mos de pé durante alguns minutos, abraçando cobertores e fronhas para não tocarem a palha infestada. Por fim, tivemos que estender o cobertor sobre a palha e sentar nele.

            Algumas prisioneiras haviam trazido tesouras de Vught: estavam todas se apressando em cortar o cabelo umas das outras. Uma tesoura chegou até nós. Tínhamos que fazer o mesmo, lógico; seria uma loucura deixar o cabelo longo nes­te lugar. Quando, porém, cortei as ondas do cabelo castanho de Betsie, chorei.

            À tardinha, houve uma movimentação em um dos lados da tenda. Um grupo de guardas estava afastando as mulhe­res de sob a lona..         Erguemo-nos rapidamente e agarramos nossos cobertores. Acerca de cem metros da tenda a corrida parou. Ficamos por ali, sem saber o que fazer. Não sabíamos se um novo grupo de prisioneiros chegara, ou qual era a cau­sa de nos terem mandado sair da tenda. Algumas mulheres começaram a estender o cobertor no chão duro, e cascalhado. Lentamente, chegamos à conclusão de que teríamos que pas­sar a noite ali mesmo. Estendemos meu cobertor no chão; deitamos sobre ele lado a lado, e cobrimo-nos com o de Betsie.

            - A noite é escura, e longe do lar estou... começou Betsie a cantar com sua voz suave de soprano, e outras uniram-se à dela. Guia-me, Senhor...

            No meio da noite, fomos despertados pelo ronco de um trovão e uma chuva forte. As cobertas ficaram logo empapadas; poças se formavam debaixo de nós. Pela manhã, todo o campo era um imenso pântano alagado: mãos, rostos e rou­pas, tudo estava coberto de lama negra.

            Ainda estávamos torcendo os cobertores, quando veio a ordem de nos enfileirarmos para o café. Não era realmente café, mas um líquido ralo, aproximadamente da mesma cor; contudo estávamos satisfeitas de poder tomá-lo. Seguíamos em fila dupla, passando junto à cozinha improvisada do cam­po. Deram também uma fatia de pão preto a cada prisionei­ra. Somente à tarde foi que houve outra refeição - uma tigelinha de sopa de nabo, e uma batata cozida.

            Nesse meio tempo, tivemos que ficar de pé em posição de sentido sobre a mesma terra molhada onde passáramos a noite. Nosso grupo estava na extremidade do campo, perto da muralha externa, e víamos bem os fios eletrificados que corriam sobre ela. Dois dias se passaram assim; à noite, deitávamo-nos no mesmo lugar de antes. Não choveu nova­mente, mas a terra e os cobertores ainda estavam úmidos.

            Betsie começou a tossir. Retirei a blusa azul de Nollie de mi­nha fronha e envolvi-a nela. Dei-lhe algumas gotas de óleo vitaminado. Na manhã seguinte, ela estava sofrendo terrí­veis cólicas intestinais. Naquele segundo dia, ela teve muitas vezes que pedir permissão à nossa impaciente monitora, à frente da fila, para ir até a vala que nos servia de banheiro.

            No terceiro dia, quando já nos preparávamos para deitar ao ar livre, foi-nos dito que nos apresentássemos ao centro de triagem de recém-chegados. Uma caminhada de dez mi­nutos, e chegamos ao centro. Entramos vagarosamente por um longo corredor, e depois numa sala ampla. Ali, sob a luz forte da lâmpada do teto, vimos algo que nos fez desesperar.        

            Cada mulher, assim que passava por uma mesa onde havia vários oficiais, colocava seu cobertor, fronha e o que mais tivesse a um canto, onde já havia uma pilha de outros desses objetos. Em outra mesa mais adiante, ela tinha que tirar toda a roupa, atirá-la em outro canto, e passar diante de uns doze oficiais, para dirigir-se ao chuveiro. Ao sair, estaria vestindo apenas uma camisola fina da prisão e teria um par de sapa­tos. Mais nada!

            Mas Betsie precisava daquela blusa de malha. Precisava das vitaminas! Mais que tudo, precisávamos de nossa Bíblia. Como poderíamos viver naquele lugar sem ela? Entretanto como eu poderia passar por entre aqueles olhos observado­res sem o macacão para cobri-la?

            Já estávamos chegando à primeira mesa. Desesperadamen­te, enfiei a mão na fronha, tirei o vidro de vitaminas e segu­rei-o firme na mão bem fechada. Com relutância, arriei as outras coisas no monte que estava aumentando rapidamen­te.

            "Senhor", orei, "tu nos deste este livro precioso; tu o conservaste a salvo em outras inspeções; tu o usaste tantas ve­zes..."

            Betsie vacilou e cambaleou contra mim. Olhei para ela, alarmada. Seu rosto estava lívido, os lábios apertados. Um guarda passava por nós; roguei-lhe que me mostrasse onde ficava o toalete. Sem nem mesmo olhar para nós, inclinou a cabeça na direção dos chuveiros.

            Timidamente, eu e Betsie saímos da fila e fomos até a porta do grande aposento, que recendia a umidade. Estava va­zio, aguardando o próximo grupo de cinqüenta mulheres que devia ali entrar.

            Dirigi-me ao guarda que estava na porta.

            - Por favor, onde é o banheiro? Ele nem me olhou.

            - Use o ralo do chuveiro, respondeu rispidamente.

            Logo que pusemos os pés para dentro, ele bateu a porta às nossas costas. Ficamos a sós naquele lugar, aonde voltaríamos instantes depois, sem roupa alguma. Junto à entrada, estavam as roupas da prisão que iríamos vestir. Na frente e nas costas de cada uma fora aplicado um enorme X de outro tecido.

            Então, vi mais uma coisa: num dos cantos estavam alguns bancos de madeira. Estavam mofados, cobertos de lodo e in­festados de baratas, mas, para mim, eram como a mobília do próprio céu.

            - A blusa! Tire a blusa! murmurei apressadamente, ao mesmo tempo que procurava tirar o barbante do meu pesco­ço.

            Betsie entregou-me a blusa, e, num minuto, enrolei nela a Bíblia e o vidro de vitaminas, e escondi nosso precioso em­brulho atrás dos bancos.

            Assim, quando fomos introduzidas naquele aposento, dez minutos depois, não estávamos pobres, mas ricas. Ricas por esta nova evidência do cuidado divino por nós, revelando-nos que ele era o Deus de Ravensbruck também.

            Ficamos debaixo dos jatos gelados enquanto durou a água, sentindo-a suavizar nossa pele picada de insetos. Depois, molhadas e pingando, agrupamo-nos ao redor da pilha de roupas, pegando-as, passando-as adiante, à procura de algu­ma que nos servisse.

            Encontrei um vestido bem largo para Betsie, que cobriria bem a blusa azul quando ela a vestisse. Enfiei-me num também, e depois estiquei a mão por detrás dos bancos, e, rapidamente, escorreguei o pequeno embru­lho para dentro do decote.

            O volume ficou muito visível sob a roupa. Amassei-o o mais que pude, empurrei-o para a cintura, mas não havia jeito de disfarçá-lo muito com aquele vestido fino. Enquanto o fazia, porém, estava incrivelmente tranqüila, segura de que aquilo não era de minha responsabilidade, mas de Deus, e que tudo o que eu tinha a fazer era seguir em frente.

            Ao deixarmos a sala dos chuveiros, os guardas estavam revistando cada prisioneira, apalpando frente, costas e lados. A mulher que se encontrava à minha frente foi examinada três vezes. Betsie, atrás de mim, foi revistada também; mas ninguém me tocou.

            Junto à porta da saída, novo teste: algumas guardas da­vam uma segunda busca. Diminuí o passo quando me apro­ximei delas, mas a Aufseherin (supervisora) deu-me um em­purrão pelo ombro.

            - Ande! Está atrasando a fila!

            Assim, eu e Betsie chegamos ao alojamento 8, nas primei­ras horas da manhã, trazendo não somente a Bíblia, mas uma nova experiência do poder daquele cuja história ela narra. Já havia três mulheres dormindo na cama que nos fora designa­da.

            Elas se ajeitaram para abrir espaço para nós, mas o col­chão cedia na beirada, e eu escorreguei para o chão várias vezes. Por fim, decidimos nos deitar de lado, atravessadas, e conseguimos ajustar ombros e cotovelos. O cobertor já esta­va bem acabado, em comparação com o que devolvêramos naquela manhã, mas naquele ajuntamento, pelo menos, aca­bamos por nos aquecer umas às outras.

            Betsie vestira a blusa azul sob o vestido, e colocou-se entre mim e as outras. Gra­dualmente, o seu tremor cessou e ela pôde dormir. Fiquei acordada por muito tempo, vendo o facho de luz da lanterna da ronda varrer a parede dos fundos numa linha circular, e ouvindo, à distância, os gritos dos guardas que patrulhavam a muralha.

            Em Ravensbruck, a chamada era feita meia hora mais cedo que em Vught. Às 4:30h tínhamos que estar de pé do lado de fora, ao frio da madrugada escura, em posição de sentido, em grupos de cem - dez colunas de dez. Às vezes, depois de haver estado horas e horas nesta posição, entrávamos no alo­jamento apenas para ouvir o apito de novo.

            - Todos para fora! Em fila para a chamada!

            O alojamento 8 era a seção de quarentena. Próximo a ele - talvez situado ali deliberadamente, para servir de adver­tência às recém-chegadas - erguia-se o edifício onde eram dadas as punições. Durante o dia todo, e, às vezes, parte da noite, partiam dali sons que pareciam vir do próprio inferno.

            Não eram expressões de raiva, nem de qualquer outra emo­ção humana, mas de uma crueldade fria: golpes aplicados a intervalos regulares, e gritos de dor que os seguiam no mes­mo ritmo. E nós ficávamos ali, formadas em coluna por dez, mãos ao lado, tremendo, desejando ardentemente poder aper­tar os ouvidos para impedir aqueles sons de chegarem até eles.

            No momento em que éramos dispensadas, voltávamos correndo para dentro, pisando nos calcanhares umas das outras, na ânsia de reduzir nosso mundo a proporções mais compreensíveis.

            A situação foi ficando cada vez mais difícil. Mesmo entre aquelas quatro paredes havia miséria demais, muito sofri­mento sem propósito. A cada dia, alguma coisa se tornava insuportável, tornava-se pesada demais.

            - Quer carregar isto também para mim, Senhor Jesus?

            Todavia, enquanto tudo o mais ficava confuso, uma re­alidade se tornava mais clara para nós: a razão de nos acharmos ali. Não sabíamos por que os outros tinham de sofrer também. Quanto a nós, sempre que não estávamos na fila para a chamada, fazíamos da Bíblia o centro de um crescente círculo de socorro e esperança. Como mendigos aconchegados ao redor de uma fogueira, nós nos reunía­mos ali, aquecendo o coração ao lume e ao calor da Palavra. Quanto mais negra era a noite que nos circundava, mais bela, verdadeira e brilhante era a luz da mensagem divina.

            "Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou es­pada?... Em todas estas cousas, porém, somos mais que vence­dores, por meio daquele que nos amou."

            Eu corria os olhos ao redor, enquanto Betsie lia, vendo a luz tremular de rosto em rosto. Mais que vencedores... Não era um pedido, era um fato. Nós sabíamos disso; nós o expe­rimentávamos a cada minuto - pobres, odiadas, famintas. Somos mais que vencedores! Paulo não diz: "Seremos", mas, "Somos".

            A vida em Ravensbruck decorria em dois níveis to­talmente diversos. Um era o da vida exterior, visível, que a cada momento era mais terrível. O outro, o da vivência que tínhamos com Deus, melhorando dia a dia, verdade após ver­dade, glória após glória.

            Houve vezes em que, ao retirar a Bíblia de sua sacola, eu sentia as mãos trêmulas, pelo mistério de tudo aquilo. Ela parecia totalmente nova, parecia ter sido escrita recentemen­te. Às vezes eu me espantava de a tinta não estar molhada...

            Eu sempre crera na Bíblia, mas sua leitura agora não tinha nada a ver com aquela crença. Era uma descrição do modo como a nossa vida era na atualidade - era o céu, o inferno, a maneira de os homens agirem e de Deus operar. Eu lera o relato da prisão de Jesus milhares de vezes, como os solda­dos o haviam espancado, rido dele, e o chicoteado. Tais acon­tecimentos, agora, tinham corpo.

            Sexta-feira, era repetida a humilhação da inspeção mé­dica. O corredor do hospital, onde esperávamos nossa vez, não tinha aquecimento, e as paredes guardavam o frio do outono. Apesar disso, não podíamos nem mesmo envolver-nos com os braços. Tínhamos que ficar eretas, em posição de sentido, enquanto caminhávamos lentamente por entre duas fileiras de guardas que sorriam zombeteiramente.

            Eu não entendia como eles podiam encontrar prazer em olhar aquelas pernas finas e aqueles estômagos afundados pela fome. Estou certa de que não há visão mais patética do que a de um corpo humano carente de cuidados e de amor. Eu não compreendia, tampouco, a necessidade de se tirar toda a roupa, pois, quando afinal chegávamos no consultório, um médico examinava a garganta, e outro - provavelmente dentista - olhava nossos dentes, e ainda outro fazia um exa­me das mãos, por entre os dedos. Nada mais. Descíamos outra vez pelo longo corredor e recolhíamos nossos vesti­dos à porta.

            Foi num desses dias, enquanto esperávamos, tremendo de frio, que outra página da Bíblia adquiriu vida para mim.

            Ele foi crucificado nu.

            Eu não sabia. Nunca pensara nisso. Os quadros e crucifi­xos o mostravam envolto num pedaço de pano. Isto, porém -compreendi num relance - era o respeito e a reverência do artista. Naquele dia, naquela outra sexta-feira, não houvera reverência; não mais que a que eu via nos rostos que nos rodeavam.

            Inclinei-me para Betsie à minha frente. Suas espáduas se salientavam sob a pele arroxeada.

            - Betsie, tiraram a roupa dele também. Ouvi seu suspiro curto.

            - Ah, Corrie, e eu nunca agradeci a ele por isto...

            A cada dia o sol despontava mais tarde; o ar demorava mais a se aquecer. Vai ser melhor, muito melhor, diziam to­dos, quando formos para o alojamento definitivo. Cada prisio­neira vai ter seu próprio cobertor e a própria cama. E cada uma adicionava ao quadro aquilo que desejava ter. Para mim, era uma enfermaria, onde Betsie receberia remédio para aque­la tosse.

            - Vai haver uma enfermeira para cada alojamento. Disse isto tantas vezes, que eu própria fiquei convencida.

            Eu estava lhe dispensando uma gota de óleo vitaminado no pão preto diariamente, mas, quanto ele ainda duraria? eu me indagava.

            - E principalmente, se você o ficar passando às outras toda vez que alguém espirra, disse a Betsie.

            Na segunda semana de outubro, recebemos a ordem para nos mudarmos. Marchamos em coluna por dez, descendo por uma larga alameda coberta de cascalho, e depois uma rua estreita, alinhada de alojamentos.

            Paramos várias vezes, en­quanto números eram cantados - em Ravensbruck nunca se mencionavam nomes. Por fim, o meu e o de Betsie foram chamados: "Prisioneira 66729; prisioneira 66730." Saímos em fila com mais dez mulheres, e nos achamos diante do longo e escuro alojamento 28.

            Metade das vidraças estava quebrada, e estas haviam sido substituídas por pedaços de pano. A porta, no centro, dava entrada para um grande cô­modo, onde duzentas ou mais prisioneiras se inclinavam so­bre suas agulhas de tricô. Sobre mesas, no centro do saguão, viam-se pilhas e pilhas das meias de lã de cor cinza, usadas pelo exército.

            Em cada lado havia duas portas que davam para dois quartos maiores - os maiores dormitórios que já víramos. Eu e Betsie seguimos uma prisioneira-guia e entramos na porta à direita. Por causa das inúmeras janelas quebradas e tapadas com pano, o quarto estava meio escuro. Nosso nariz logo captou a idéia geral do quarto: estava imundo.

            O encanamento devia estar entupido; a roupa de cama estava suja e cheirava mal. Quando nos acostumamos à obscuridade, vimos que as camas não eram individuais; na realidade, eram imensos beliches, formados por três quadrados superpostos, e enfileirados bem juntos uns dos outros, com estreitos corredores entre eles, para locomo­ção.

            Seguimos em fila por um - a passagem não comportava mais que uma pessoa - lutando contra a sensação de claustrofobia, que nos causavam aquelas camas-plataforma. Não havia ninguém naquele enorme quarto; suas ocupantes de­viam estar em seus setores de trabalho.

            Afinal, a mulher nos indicou uma plataforma central, no meio de um bloco delas. Para chegar até lá, tínhamos que nos elevar ao se­gundo nível, e depois, atravessar de gatinhas, três dessas plataformas cobertas de palha, chegando por fim à nossa, a qual deveríamos compartilhar com - quantas mais? A "cama" superior era muito próxima, e não podíamos nos sentar. Deitamo-nos, tentando superar o enjôo que nos sobreveio devido ao cheiro nauseante da palha. Ouvimos as outras prisioneiras que tinham vindo conosco procu­rando seus lugares.

            De súbito, eu meu sentei, batendo a cabeça contra a ripa da cama de cima. Algo havia picado minha perna.

            - Pulga! gritei. Betsie, isto aqui está fervilhando de pulgas!

            Arrastamo-nos pelas plataformas vizinhas, com a cabeça abaixada para evitar outra pancada. Pulamos para a passa­gem e dirigimo-nos para um lugar mais iluminado.

            - Aqui uma! E outra aqui! queixei-me. Betsie, como va­mos viver num lugar desses?

            - Ensina-nos; ensina-nos, Senhor.

            Ela o dissera tão tranqüilamente que precisei de algum tempo para perceber que estava orando. Parecia que, para ela, não havia separação entre oração e vida.

            - Corrie, exclamou ela repentinamente. Ele já respondeu. Antes de pedirmos, como ele sempre faz. Na Bíblia, hoje de manhã. Onde foi? Leia de novo aquele trecho.

            Dei uma rápida olhada ao redor, para ver se havia algum guarda à vista, depois retirei a Bíblia da sacola.

            - Foi em 1 Tessalonicenses, respondi.

            Já estávamos em nossa terceira leitura do Novo Testamento desde que deixáramos Scheveningen.

            - Aqui está: "... consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos. Evitai que alguém retribua a outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre vós e para com todos."

            Parecia ter sido escrito especialmente para a situação de Ravensbruck.

            - Continue, disse Betsie. Não foi só isso.

            - Bom... "Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco."

            - É isso, Corrie. Aí está a resposta. "Em tudo, dai graças..." Isto é tudo que podemos fazer. Podemos começar a dar graças a Deus agora mesmo por todas as coisas deste novo alojamento.

            Olhei-a espantada, e depois corri os olhos por aquele quarto malcheiroso.

            - Que coisas? perguntei.

            - Por termos sido mandadas para aqui juntas. Mordi os lábios.

            - Obrigada, Senhor Jesus!

            - E pelo que você tem nas mãos agora! Olhei para a Bíblia.

            - Ah, sim. Damos-te graças, Senhor, por não ter havido inspeção quando chegamos aqui. Obrigada por estas mulhe­res, aqui neste dormitório, que irão encontrar-te através des­tas páginas.

            - Isso! ajuntou Betsie. Obrigada pelo excesso de gente. Já que somos tantas, muitas vão ter a chance de ouvir a tua Palavra.

            Ela olhou-me esperando minha aquiescência.

            - Corrie! insistiu.

            - Ah, está bem. Obrigada pelo acúmulo de gente, que é tão incômodo, sufocante, importuno.

            - Damos-te graças, continuou Betsie serenamente, pelas pulgas, e por...

            Pelas pulgas? Isso já era demais!

            - Betsie, nem Deus pode me fazer dar graças pelas pul­gas.

            - "Em tudo dai graças", recitou ela. Aí não diz "Dai graças nas situações agradáveis". As pulgas fazem parte deste lugar em que Deus nos colocou.

            E foi assim que, apertadas entre montes de camas-plataforma, demos graças pelas pulgas. Desta vez, porém, eu esta­va segura de que Betsie estava enganada.

            Pouco depois das 6:00h, chegaram as outras mulheres do alojamento 28. Vinham cansadas, suarentas e sujas, pelo lon­go horário de trabalho forçado. Uma vizinha de plataforma nos informou que o prédio fora construído para abrigar qua­trocentas pessoas. Havia ali agora mil e quatrocentas, e, a cada semana, novas residentes eram acrescentadas, à medi­da que os campos de concentração da Polônia, França, Bélgi­ca e Áustria eram fechados, como haviam sido os da Holan­da, e as prisioneiras eram enviadas para o interior da Alema­nha.

            Havia nove mulheres no nosso quadrado, que fora cons­truído para quatro, e quando as outras descobriram que ti­nham de dar lugar para mim e Betsie, começaram a resmun­gar. Havia oito sanitários, fétidos e transbordantes, para todo o grupo; para se chegar a um deles, tínhamos primeiro que passar por sobre nossas companheiras, e depois sobre as ocu­pantes das outras plataformas que se encontravam entre a nossa e a passagem mais próxima, sempre com o risco de se adicionar mais peso aos já vergados suportes, e cair sobre as que nos ficavam embaixo. Isso aconteceu várias vezes naque­la primeira noite. Ouvíamos o ruído do suporte se quebran­do, um berro e gritos abafados.

            Quando não era o suporte que se quebrava, era a chuva de palha que nos vinha da plataforma superior, ao menor movi­mento, e que era seguida de palavrões. No alojamento 8, quase todas éramos holandesas. Aqui, nem mesmo a bênção de uma língua comum havia, e entre pessoas cansadas e mal alimen­tadas, as brigas surgiam constantemente.

            Naquele momento havia uma disputa em andamento por­que as que dormiam junto às janelas as haviam fechado por causa do frio. Logo, várias vozes foram ouvidas, exigindo que fossem reabertas. De vários pontos daquele lado do quarto, elevava-se o clamor de brados e gritos, discussões, tapas, lá­grimas.

            Senti Betsie agarrar minha mão no escuro.

            - Senhor Jesus, orou em voz alta, envia tua paz para este quarto. Tem-se orado muito pouco neste lugar, mas onde quer que tu estejas, Senhor, o espírito de luta cessa...

            A mudança foi gradual, mas sensível. Uma a uma as ex­plosões de raiva foram passando.

            - Vamos fazer um trato, era uma voz falando em alemão com sotaque escandinavo. Você vem dormir aqui que está quente, e eu fico com seu lugar perto da janela.

            - E misturar seus piolhos com os meus? a voz desta tinha um tom irônico. Não, obrigada.

            - Já sei! essa tinha um cicio francês. Vamos abrir só a metade. Assim, nós ficamos meio geladas e vocês meio sufocadas.

            Uma onda de gargalhadas correu pelo quarto. Deitei no­vamente naquela palha malcheirosa, e pensei em mais uma circunstância pela qual eu podia estar grata a Deus: Betsie estava no alojamento 28.

            Ali, como no setor de quarentena, a chamada era feita às 4:30h. Éramos despertadas às 4:00h por um apito, e sem nem mesmo parar para limpar do cabelo e roupas os pedaços de palha, começávamos a corrida para a fila da ração de café e pão, no cômodo central. Quem chegasse por último nada en­contrava.

            A contagem era feita na ampla alameda que ia para o hos­pital, chamada Lagerstrasse. Ali nos reuníamos aos ocupan­tes dos outros alojamentos - cerca de 35.000 pessoas ao todo - um grupo enorme que se espalhava á perder de vista, à luz fraca das lâmpadas, os pés entorpecidos pelo contato com o chão frio.

            Após as chamadas, as turmas de trabalhadores eram dis­tribuídas. Betsie e eu fomos designadas para a fábrica da Siemens. O imenso complexo da Siemens, um aglomerado de centros de produção e terminais ferroviários, ficava a mais de dois quilômetros do acampamento.

            A "Brigada da Siemens", composta de milhares de pessoas, atravessava os portões de ferro encimados por fios eletrificados, e pe­netrava num mundo de árvores, relva e horizonte. O sol surgia quando estávamos perto da lagoa; o ouro dos cam­pos, naquele fim de outono, dava-nos grande soerguimento moral.

            O trabalho, entretanto, era um tormento. Eu e Betsie tí­nhamos que levar um carrinho pesado até um desvio, onde o enchíamos com enormes chapas de metal, que retirávamos de um vagão, e depois empurrávamos para o portão de re­cepção da fábrica. Nosso dia de trabalho era de onze horas. Uma vantagem era que, ao almoço, recebíamos uma batata cozida e um prato de sopa rala. Os que trabalhavam no acam­pamento não tinham refeição ao meio-dia.

            No regresso ao campo, mal agüentávamos mover as per­nas inchadas e doloridas. Os soldados que nos escoltavam, berravam imprecações, mas nós não conseguíamos andar depressa: só arrastando os pés, às polegadas. Notei, nova­mente, que o povo da região sempre virava o rosto ao passar por nós.

            De volta ao alojamento, entrávamos em outra fila, na saleta central - será que nunca teriam fim estas filas e esperas? - (para receber nossa concha de sopa de nabo. Depois, o mais rápido que podíamos, e a despeito do aperto de gente, eu e Betsie nos dirigíamos para um canto de nosso quarto, onde realizávamos um culto. Na nossa plataforma a iluminação não chegava para a leitura, mas ao fundo havia uma lâmpa­da que projetava na parede um pálido círculo de luz. Era ali que nos reuníamos com um número sempre crescente de mu­lheres.

            Aqueles cultos do alojamento 28 foram inesquecíveis. Numa mesma reunião, teríamos um recitativo do Magnificat - o cântico de Maria - em latim, feito por um grupo de católicas, um hino cantado à meia voz, pelas luteranas, e um cantochão, pelas ortodoxas. A cada momento, o grupo aumentava, espalhando-se pelas plataformas próximas, assentando-se nas beiradas e fazendo com que aquelas altas estruturas gemessem e vergas­sem, ameaçando quebrar-se ao peso delas.

            No fim, eu ou Betsie abriríamos a Bíblia. Já que só as ho­landesas entendiam nosso texto, fazíamos a interpretação para o alemão. Depois, ouvíamos aquelas palavras vivas sendo passadas adiante em francês, polonês, russo, tcheco e holan­dês de novo. Aquelas noites, ali sob a lâmpada, eram peque­nos prelúdios do céu. Às vezes, eu pensava em Haarlem, nas igrejas lá, separadas por uma cerca de ferro e uma barreira de doutrinas. Nesses momentos, eu via como, nas trevas, a luz de Deus brilhava mais intensamente.

            A princípio, realizávamos aqueles cultos com certo receio. Contudo, como com o passar do tempo nenhum guarda apare­cesse, ficamos um pouco mais ousadas. Havia tantas mulheres que queriam se reunir conosco, que decidimos realizar outro culto após a chamada noturna. Lá fora, na Lagerstrasse, está­vamos sob observação rígida; os guardas, com suas confortá­veis capas de lã, andavam de um lado para outro. O mesmo se dava na saleta central: havia sempre meia dúzia de guardas ou policiais do campo. Entretanto, no amplo dormitório, não ha­via quase supervisão alguma. Não compreendíamos aquilo.

            Havia ainda outro fato estranho. O vidrinho de óleo vita­minado continuava entregando suas gotas. Parecia impossí­vel que um frasco tão pequeno pudesse render tanto, com tantas gotas sendo tiradas diariamente.

            Era meu intuito poupá-las - Betsie estava cada vez mais fraca. Mas outras estavam doentes também. Era difícil dizer não a olhos que ardiam em febre, a mãos que tremiam com calafrios. Tentei dá-las apenas às que estivessem muito fracas - mas estas eram em grande número também: quinze, vinte, vinte e cinco... Mesmo assim, cada vez que eu virava o vidrinho, uma gota surgia. Como podia ser aquilo? Olhei-o contra a luz, tentan­do ver quanto ainda restava, mas ele era marrom-escuro e eu não conseguia enxergar bem.

            - Na Bíblia, há a história de uma mulher cuja botija de azeite nunca se esvaziou, disse Betsie.

            Ela abriu a Bíblia no livro de 1 Reis, na história da viúva de Sarepta, em cuja casa o profeta Elias se hospedou, e leu:

            "Da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não faltou, segundo a palavra do Senhor, por intermédio de Elias."

            Bom, mas na Bíblia há muitas ocorrências maravilhosas. Uma coisa era crer que esses milagres podiam acontecer há milhares de anos; outra muito diferente, era vê-los ocorrerem hoje em dia, conosco mesmos. E, no entanto, acontecia, num dia, no outro dia, e no outro, e até um pequeno grupo de espectadores se formou ao redor para ver as gotas caírem nas fatias de pão.

            Muitas vezes, eu ficava acordada à noite, recebendo a chuva de capim do colchão de cima, tentando entender a maravilha daquela bênção, que nos era concedida.

            - Talvez saiam somente uma ou duas moléculas, disse eu a Betsie uma noite, e quando entram em contato com o ar elas se expandem.

            Ouvi-a rir suavemente no escuro.

            - Não tente explicar o fato, Corrie. Aceite-o como sendo um grande presente de um Pai amoroso.

            Certo dia, Mien aproximou-se de nós, acotovelando-se por entre o grupo, na fila do jantar.

            - Veja o que eu trouxe para vocês.

            Mien era uma jovem holandesa muito bonita que ficára­mos conhecendo em Vught. Ela trabalhava no hospital, e, muitas vezes, conseguia roubar algumas preciosidades da sala dos funcionários e trazer para nós, no alojamento 28. Ora era uma folha de jornal para tapar uma vidraça quebrada, ora uma fatia de pão que fora deixada no prato de uma en­fermeira. Desta vez, ela nos presenteou com uma sacolinha de pano; espiei para dentro dela.

            - Vitaminas! gritei. Depois, lançando um olhar apreensi­vo ao guarda que estava próximo, sussurrei: Levedura!

            - É! ela sussurrou também. Havia três vidros enormes. Tirei a mesma quantia de cada um.

            Engolimos aquele caldo de nabo, maravilhadas com nosso súbito enriquecimento. De volta ao quarto, peguei o vidrinho de entre a palha.

            - Vamos terminar com as gotas primeiro, decidi. Naquela noite, porém, apesar de eu deixar o frasco virado muito tempo e o sacudir com força, nem uma só gota saiu.

            No princípio de novembro, cada prisioneiro teve direito a um casaco. Tanto o de Betsie como o meu eram de fabricação russa, e, aparentemente, tinham sido guarnecidos de peles: havia marcas de costura e fiapos de linha na gola e nos pu­nhos, de onde haviam sido arrancadas.

            Os destacamentos para o trabalho da Siemens foram suspen­sos, e nós começamos a calcular que o lugar fora atingido num dos bombardeios que agora eram ouvidos todas as noites. Eu e Betsie fôramos designadas para trabalhar no próprio campo, no nivelamento de uma parte do terreno. Este serviço também era pesado, penoso para as costas. Muitas vezes, quando eu me in­clinava para pegar algum peso, sentia uma pontada no coração; à noite, a dor nas pernas era insuportável.

            Entretanto o maior problema para mim era a saúde de Betsie. Certa manhã, a terra estava molhada e bem pesada, após uma noite de chuva. Ela nunca conseguia mesmo carre­gar muita terra; nesse dia, o pouquinho que apanhava com a pá, fazia-a tropeçar, ao levá-lo para as depressões que estáva­mos aplainando.

            - Schneller! (Mais rápido!) gritou uma guarda. Não dá para ir mais depressa?

            Por que elas tinham que gritar? eu me perguntava, ao en­terrar minha pá na lama negra. Por que não podiam simples­mente falar, como qualquer ser humano? Ergui-me vagarosa­mente, o suor secando-se em minhas costas. Lembrava-me de onde ouvira aquele som louco pela primeira vez. No Beje. No quarto de Tia Jans. A voz que nos vinha pelo alto-falante do rádio, um som estridente que permaneceu no ar, mesmo depois que Betsie se levantara abruptamente e o desligara...

            - Moleza! Preguiçosa!

            A guarda arrancou a pá das mãos de Betsie, e foi pelo grupo todo exibindo o pouquinho de terra que fora tudo que ela conseguira pegar.

            - Vejam o que a "senhora baronesa" está carregando! Ela vai ficar exausta!

            Os outros guardas, e mesmo algumas das prisioneiras ri­ram. Sentindo-se aprovada, ela se lançou numa imitação zombeteira do andar trôpego de Betsie. Havia um guarda conosco, nesse dia, e quando havia um homem por perto, as guardas ficavam muito animadas.

            Como as risadas aumentassem, senti uma raiva assassina. A guarda era jovem e bem nutrida - não era culpa de Betsie se ela era velha, e passava fome! Para meu espanto, porém, Betsie também estava rindo.

            - É! Eu ando assim mesmo! disse ela. Mas é melhor você me deixar carregar minhas "colheradas", senão tenho que parar de todo.

            O rosto gordo da mulher ficou rubro.

            - Sou eu quem resolve quem pára e quem não pára.

            E retirando o chicotinho do cinto, golpeou Betsie no pes­coço e no peito.

            Fiquei fora de mim. Agarrei minha pá, e fiz menção de correr para ela. Betsie colocou-se na minha frente, antes que alguém pudesse ter visto meu gesto.

            - Corrie, pediu-me ela tomando meu braço e abaixando-o. Corrie, continue a trabalhar!

            Ela tomou minha pá e enterrou-a na lama. A guarda ati­rou a pá de Betsie em nossa direção desdenhosamente. Pe­guei-a meio estonteada. Uma mancha vermelha apareceu na gola de seu vestido; no pescoço, via-se um vergão.

            Betsie notou a direção de meu olhar e levou a mão - sua mão magra e ossuda - onde o chicote a atingira.

            - Não olhe para isso, Corrie. Olhe só para Jesus. Ela retirou a mão: estava tinta de sangue.

            Nos meados de novembro as chuvas começaram. Eram chuvaradas frias, que duravam o dia todo, e alagavam tudo, deixando gotas de umidade nas paredes internas. A Lagerstrasse agora nunca estava seca; mesmo quando a chuva parava, ha­via poças imensas pela estrada. Nós não tínhamos permissão de evitá-las, ao fazermos as fila, e, às vezes, ficávamos com água até o tornozelo. À noite, o alojamento recendia a sapato molhado.

            Pouco tempo depois, Betsie começou a escarrar sangue. Fo­mos à enfermaria, mas o termômetro registrou apenas 38,5°C, o que não era bastante para que ela fosse admitida no hospital. E eu com as minhas fantasias de uma enfermeira e um dispensário em cada alojamento! Tudo que havia era uma imensa sala va­zia, onde todos os doentes se reuniam, tendo muitas vezes que esperar do lado de fora durante horas e horas, na chuva.

            Eu passei a odiar aquele aposento sombrio, cheio de mulhe­res doentes, a sofrer, mas tínhamos que ir lá várias vezes, pois a saúde de Betsie estava piorando sempre. Ela não o detestava como eu; para ela, aquilo ali era simplesmente um ambiente onde podia falar de Jesus - assim como em qualquer outro lu­gar. Onde quer que ela estivesse, no trabalho, na fila de alimen­tação, no dormitório, Betsie falava aos que a rodeavam, acerca da presença de Cristo e do desejo dele de possuir cada vida. À medida que seu corpo enfraquecia, sua fé parecia aumentar.

            E a enfermaria era "um local muito importante, Corrie. Algumas destas pessoas estão no limiar da eternidade".

            Finalmente, certo dia, a temperatura dela chegou a 40°C, que era a exigida para internamento no hospital. Tivemos que esperar muito, antes que uma enfermeira aparecesse para conduzir Betsie e mais umas cinco ou seis doentes ao hospi­tal propriamente dito. Acompanhei-as até a porta que dava acesso à ala, e depois, lentamente, voltei ao alojamento.

            Como de costume, parei à porta do dormitório. Ele me lembrava um formigueiro. Algumas mulheres já estavam dor­mindo, após o longo período de trabalho, mas a maioria ainda se movia, algumas esperando vagar-se um dos ba­nheiros, outras retirando piolhos de si mesmas ou de ou­tras. Voltei-me e me enfiei por entre as alas cheias, e dirigi-me ao fundo, onde o culto já estava se encerrando. Quando eu e Betsie íamos para a enfermaria, deixávamos a Bíblia com a Sra. Wielmaker, uma boa católica, de Haia, que conhe­cia alemão, francês, latim e grego, e traduzia os textos para estas línguas.

            Algumas se acercaram de mim e perguntaram por Betsie.

            Como estava ela? Quanto tempo teria que ficar? As luzes se apagaram e começou a escalada das camas. Icei-me para o andar do meio, e dirigi-me ao meu lugar, arrastando-me por sobre as que já estavam deitadas. Que dife­rença ocorrera nesse lugar depois que Betsie viera para aqui! Quando antes este era o momento das brigas e palavrões, agora, o imenso dormitório se enchia de murmúrios de "Ah, perdão!" "Desculpe-me!" "Não foi nada!"        

            Cheguei à minha plataforma, e deitei-me num lugarzinho no meio. Um facho de lanterna varreu o quarto, detendo-se onde se percebia algum movimento. Alguém fincou um coto­velo em minhas costas; o pé de outra encontrava-se a poucos centímetros de meu rosto. Estranho como alguém ainda podia se sentir tão sozinho num lugar tão superlotado como aquele!