Os gritos das guardas ecoavam pelos corredores. Pus-me de
pé no centro da cela, sentindo grande agitação. Partir! Então - então alguma
coisa estava acontecendo! Íamos deixar a prisão! A contra-invasão devia ter-se
iniciado! Arranquei da fronha a bucha de palha que enfiara nela.
Que maravilha aquele pedaço de pano grosseiro havia sido
para mim, nessas duas semanas; uma excelente proteção contra a irritação da
palha e o mau cheiro da roupa de cama. Quase não me importava que os prometidos
lençóis nunca tivessem sido entregues.
Com as mãos tremendo, joguei na fronha meus poucos
pertences: a blusa azul, meu pijama - ostentando bordados na frente e nas
costas - a escova de dentes, o pente e o resto de meus biscoitos, que eu
enrolara em papel sanitário. A Bíblia continuava no embornal de pano,
pendurada às minhas costas, de onde eu só a retirava para ler.
Vesti o casaco e o chapéu e fiquei junto à porta,
segurando minha fronha firmemente com ambas as mãos. Era bem cedo; o pratinho
de desjejum ainda não fora recolhido. Eu não demorara nada para me aprontar.
Passou-se uma hora. Sentei-me no catre. Duas horas. Três.
Fazia calor naquela tarde de junho. Tirei o casaco e o chapéu e coloquei-os
sobre a cama, perto de mim.
Passou-se mais algum tempo. Olhei para o orifício de entrada
das formigas, esperando uma visita de despedida de minhas pequenas amigas, mas
elas não apareceram. Provavelmente, eu as assustara com o movimento desusado
da manhã. Enfiei a mão na fronha, peguei uma das bolachas e esmigalhei-a,
colocando os pedacinhos ao redor da rachadura. Nada. Estavam bem escondidas.
De repente, compreendi que aquilo era uma mensagem para
mim, um recado mudo de um vizinho para outro. Eu também tinha meu esconderijo
para as horas difíceis. Era Jesus, o meu refúgio perfeito. Apertei o dedo
contra a pequenina fenda.
A luz do sol claro da tarde apareceu na parede, e
moveu-se vagarosamente pela cela. De súbito, recomeçou o clangor do lado de
fora. Portas se abriam; ferrolhos eram soltos.
- Saiam! Schnell! (Rápido!) Todas para fora, e
nada de conversa.
Agarrei o chapéu e o casaco. Minha porta rangeu e se
abriu.
- Formar fileiras de cinco... e a guarda já estava na
cela seguinte.
Saí para o hall. Cheio de uma parede à outra. Nunca pensara
que havia tantas mulheres naquele corredor.
"In-va-são", dizíamos umas às outras apenas com
um movimento de lábios. A mensagem silenciosa varreu aquele grupo de mulheres
como uma corrente elétrica. Certamente, a invasão da Holanda começara. Por que
outra razão estariam evacuando a prisão?
Para onde seríamos levados? Qual seria nosso destino?
Para a Alemanha? Não! Ó Jesus querido, para a Alemanha, não!
Afinal veio a ordem de sairmos e marchamos por aqueles
corredores frios, cada uma carregando o pequeno volume de seus pertences dentro
da fronha. Emergimos no vasto pátio fronteiriço, para outra longa espera. Esta,
porém, foi mais agradável, com o sol da tardinha dando-nos às costas. Um pouco
distante, à nossa direita, viam-se as colunas de homens. Girei a cabeça até
onde pude, mas não vi Betsie.
Por fim, o imenso portão foi aberto e vários ônibus
cinzentos penetraram ali. Subi ao terceiro deles. Os assentos haviam sido
retirados; as janelas, foscadas. O ônibus deu um arranco forte ao partir, mas
estávamos apertadas demais para cair. Quando parou, descobrimos que nos
encontrávamos em uma estação de trem de carga nos arredores da cidade.
Outra vez a ordem de formação em fileiras.
A voz dos guardas estava tensa e estridente. Tínhamos
que conservar os olhos em frente. Às nossas costas, ouvia-se o ruído dos ônibus
que chegavam e depois se afastavam. Ainda estava claro, mas pela dor que sentia
no estômago, sabia que já passara muito da hora do jantar.
Foi então que, à minha frente, à esquerda, no último grupo
de prisioneiras, reconheci aquele coquezinho de cabelo castanho de Betsie.
Decidi que, de algum modo, eu daria um jeito de me aproximar dela. Agora, ao
invés de ansiar para que o dia acabasse logo, comecei a desejar que ficássemos
ali até escurecer.
Lentamente, a luz daquele longo dia de junho se escoou.
Um trovão ribombou e uma chuva fina começou a cair. Por fim, um longo comboio
surgiu, com a luz dos vagões apagada. Freou com estrépito, e depois rodou à
frente mais um pouco; depois, parou novamente. Daí a instantes deu marcha a ré.
Durante cerca de uma hora o trem ficou em manobras, para diante e para trás.
Quando veio a ordem para embarcarmos estava completamente
escuro. A massa de prisioneiros moveu-se para diante. À nossa retaguarda, os
guardas gritavam e praguejavam: era evidente que estavam nervosos por
transportarem tantos prisioneiros de uma vez. Insinuei-me por entre o grupo,
forçando passagem em direção à esquerda. Ombros e cotovelos se interpunham em
meu caminho, e eu me esquivava por entre eles. Alcancei Betsie quando já nos
encontrávamos perto dos degraus do trem, e agarrei a mão dela.
Embarcamos juntas, e encontramos lugar em um compartimento
já lotado, e, juntas, choramos de gratidão. Os quatro meses passados em
Scheveningen haviam sido os primeiros, em cinqüenta e três anos, que passávamos
separadas. Eu sentia que poderia suportar quase qualquer coisa, se tivesse
Betsie ao meu lado.
As horas rolavam, e o trem permanecia parado no desvio.
Para nós, no entanto, elas voavam, pois tínhamos muito que nos dizer. Betsie
falou-me de cada uma de suas companheiras de cela, eu lhe falei das minhas - e
da fresta na qual elas se escondiam nos momentos de emergência. Como sempre,
Betsie havia dado aos outros tudo que possuía. A Bíblia que Nollie lhe enviara
clandestinamente, ela a dividira toda em livros e a distribuíra entre as
outras.
Deviam ser duas ou três da madrugada quando afinal começamos
a nos movimentar. Encostamos o rosto à vidraça, mas não vimos luzes e a lua
estava encoberta pelas nuvens. O pensamento que pairava em cada mente era:
estaríamos indo para a Alemanha? Num certo ponto, conseguimos distinguir uma
torre que Betsie estava segura de ser a catedral de Delft.
Cerca de uma hora depois, o matraquear das rodas sobre o
trilho começou a soar diferente: atravessávamos um desvão - e bem longo! Vários
minutos se passaram e ainda não chegáramos ao outro lado. Eu e Betsie nos
entreolhamos. Seria a ponte Moerdijk? Então íamos para o sul. Não era para a
Alemanha, mas para o sul, para Brabant. Choramos de alegria, pela segunda vez
naquela noite.
Apoiei a cabeça no encosto de madeira do assento e fechei
os olhos, rememorando uma outra viagem para Brabant. A mão de mamãe apertando a
de papai cada vez que o trem balançava. Fora em junho, também - aquele junho do
primeiro sermão de Willem, do jardim ao fundo da casa paroquial, de Karel...
Eu devo ter adormecido ainda revivendo aquele outro dia
de junho, pois, quando reabri os olhos, o trem parará. Gritos de comando nos
ordenavam que marchássemos: Schneller! Aber schnell! (Rápido! Mais
rápido!) Uma luz brilhante entrava pela janela. Eu e Betsie saímos aos
trambolhões junto com as outras pela ala central do vagão, e depois pelos degraus
de ferro. Estávamos no meio de um bosque. Holofotes presos às árvores iluminavam
um caminho largo, precariamente aberto na mata, que estava cheio de soldados
empunhando armas.
Fustigados pelos berros dos guardas, nós entramos pela
passagem ladeada de canos de rifles.
- Schneller! Cerrar fileiras! Manter o passo!
Fileiras de cinco!
Betsie já estava com a respiração difícil, e eles ainda
berravam conosco que nos apressássemos mais. Tinha chovido muito, e havia
poças fundas no caminho. Uma senhora de cabelos brancos desviou-se para um lado
a fim de evitar uma poça; um soldado atingiu-lhe as costas com a coronha de sua
arma. Tomei a fronha de Betsie carregando-a juntamente com a minha e passei meu
braço pelo dela para ampará-la na caminhada.
Marchamos neste pesadelo por quase dois quilômetros. Por
fim chegamos a uma cerca de arame farpado que circundava um conjunto de
alojamentos de madeira. Não havia camas no que entramos, apenas mesas e bancos
sem encosto. Betsie e eu deixamo-nos cair em um deles. Senti no braço as
batidas irregulares de seu coração. Com a cabeça apoiada na mesa, dormimos de
exaustão.
Quando despertamos, a luz do sol jorrava pela janela.
Estávamos famintas e com sede. Não tínhamos comido nada, nem bebido água desde
a manhã do dia anterior, em Scheveningen.
Contudo, nem um guarda ou oficial apareceu nos alojamentos
durante as primeiras horas do dia. Finalmente, quando o sol já estava se pondo,
chegou um grupo de prisioneiros com uma grande tina contendo uma substância
grossa, fumegante, que engolimos vorazmente.
E assim começou nossa estada naquele lugar que descobrimos
chamar-se Vught, nome da cidadezinha próxima. Diferentemente de Scheveningen,
que era uma prisão mesmo, Vught tinha sido construído pelas tropas de ocupação,
para servir de campo de concentração para prisioneiros políticos. Ainda não nos
achávamos no campo propriamente dito, mas numa espécie de alojamento de
quarentena, nos arredores do campo.
O maior problema, para nós ali, reunidas ao redor
daquelas fileiras de mesas, sem nada para fazer, era a ociosidade. Nossas
guardas eram as mesmas de Scheveningen. Elas serviram bem enquanto estávamos
fechadas dentro das celas, mas aqui, pareciam completamente desnorteadas. Seu
único recurso para manter a disciplina era berrar palavrões e distribuir
castigos indistintamente. Meia ração para o grupo todo! Outra chamada em
posição de sentido. Proibição de conversas durante vinte e quatro horas!
Havia apenas uma supervisora que nunca ameaçava nem levantava
a voz. Era a matrona alta e silenciosa de Scheveningen. Ela surgiu em Vught no
terceiro dia que estávamos lá, durante a chamada geral da madrugada, e, logo,
um espírito de ordem tomou conta de nossas desarrumadas e rebeldes fileiras. As
filas saíam retas agora; as mãos colavam-se bem ao lado, e os sussurros
cessaram por completo quando aqueles olhos azuis de gelo varreram o grupo.
Nós a apelidáramos entre nós de "General".
Durante uma das longas chamadas, uma mulher grávida derreou-se ao chão, sua
cabeça chocando-se surdamente contra a ponta de um banco. A "General"
nem ao menos fez uma pausa, em sua monótona leitura de nomes.
Estávamos neste campo externo de Vught há duas semanas,
quando eu e Betsie e mais umas doze pessoas fomos chamadas pelo nome, durante a
chamada matinal. Depois que as outras foram dispensadas, a "General"
distribuiu uns formulários datilografados para nós, e disse que deveríamos
apresentar-nos no alojamento da administração às 9:00h.
Um homem da turma de alimentação - que já estava em Vught
há muito tempo, e era do campo central - sorriu para nós alegremente, ao
servir-nos nossa concha de desjejum.
- Vocês estão livres, sussurrou. Esses formulários
cor-de-rosa significam liberdade.
Fitamos o papel em nossa mão incredulamente. Livres?
Livres para sair... para ir para casa? As outras se chegaram a nós,
abraçando-nos, cumprimentando-nos. As mulheres que haviam sido da mesma cela
que Betsie em Scheveningen choravam abertamente. Que crueldade ter que
deixá-las ali!
- A guerra deve acabar logo, dizíamos.
Esvaziamos nossas fronhas, e distribuímos nossos poucos
pertences com aquelas que iriam ficar.
Bem antes de 9:00h, já nos encontrávamos na grande
ante-sala do escritório da administração. Depois, fomos levadas para dentro e
nossos formulários foram examinados, carimbados e entregues a um dos guardas.
Seguimos o homem por um corredor e chegamos a outro escritório.
O processo se repetiu por horas e horas. Éramos mandadas
de uma sala para outra, de um oficial para outro. Fomos interrogadas, tiramos
impressões digitais e depois fomos levadas para outro lugar. O grupo de
prisioneiras foi sendo aumentado, até que já nos contávamos em quarenta ou
cinqüenta, numa fila ao lado de uma alta cerca de tela, encimada por arame
farpado. Fora havia um bosque de vidoeiros brancos, acima, o céu azul de
Brabant. Nós também pertencíamos àquele mundo livre.
No escritório seguinte, havia uma fileira de mesas ocupadas
por mulheres. Chamada a uma delas, recebi um envelope pardo. Derramei seu
conteúdo na mão, e vi, espantada, meu relógio de marca Alpina, a aliança de
mamãe, e até meu dinheiro. Eu não via aquelas coisas desde o dia que chegáramos
a Scheveningen. Dinheiro... isso pertencia ao mundo das lojas e bondes. Nós
poderíamos ir a uma estação de estrada de ferro. "Duas passagens para
Haarlem, por favor..."
Seguimos por uma estrada cercada de arame farpado dos
dois lados, e penetramos por um grande portão, chegando finalmente a um
conjunto de construções baixas de telhado de zinco. Mais filas e mais esperas,
mais idas e vindas de uma mesa para outra. Mas aquilo tudo se tornara irreal
para mim.
Por fim, estávamos diante de um balcão alto, e uma jovem
nos disse:
- Entreguem seus objetos pessoais no guichê C.
- Mas eu tinha acabado de recebê-los!
- Relógios, bolsas, jóias...
Mecanicamente, como uma máquina sem vontade própria,
entreguei o relógio, anel e dinheiro por um guichê gradeado. Uma mulher fardada
pegou-os e colocou-os numa caixa de metal.
- Mova-se! A seguinte!
Então - não íamos ser soltas? Já fora, um oficial de
rosto rosado mandou-nos formar em coluna por duas, e depois saímos, atravessando
uma larga praça de treino. Em uma das extremidades dela, havia um grupo de
homens de cabeça raspada, vestidos de macacões listrados, cavando uma vala. O
que significava aquilo? O que significava todo aquele dia de filas e esperas? O
rosto de Betsie estava pálido de cansaço, e ela tropeçou várias vezes no
caminho.
Atravessamos outra cerca, e entramos num terreno onde
havia um edifício de concreto em forma de U. Uma jovem oficial que usava uma
capa militar estava à nossa espera.
- Prisioneiras, alto! gritou o oficial de rosto vermelho.
Fraulein, por favor, explique a elas a função da casamata.
- A casamata, começou a jovem, falando numa voz monótona
de guia de museu, é para abrigar aquelas que deixarem de obedecer os
regulamentos do campo. Os quartos são "confortáveis", embora não
muito grandes: mais ou menos do tamanho de um armário. Para acelerar o processo
educacional, as mãos da pessoa são atadas acima da cabeça...
Enquanto aquele horrível recitativo ainda se processava,
dois guardas saíram do prédio carregando um homem. Estava vivo, pois suas
pernas estavam se movendo, mas ele não parecia ter controle sobre elas. Seus
olhos estavam encovados e giravam nas órbitas.
- Ninguém parece gostar muito das acomodações ali, continuou
a moça, na mesma cadência, destacando bem as palavras.
Agarrei o braço de Betsie, ao ouvir a ordem para nos colocarmos
de novo em marcha, mais para firmar-me do que para auxiliá-la. Era a maleta de
viagem de papai, que eu via novamente. Essa crueldade era demais para se
entender, demais para se suportar. "Pai celeste, carregue-a para
mim."
Seguimos o oficial por uma estrada ampla, com alojamentos
dos dois lados, e, por fim, paramos junto de uma construção cinzenta. Era o
ponto final de uma série de esperas, filas, esperas; tínhamos chegado ao campo
de Vught, propriamente dito.
Os alojamentos eram quase idênticos ao que tínhamos
deixado naquela manhã, com a diferença que estes tinham camas, além das mesas e
bancos. Ainda não recebêramos permissão para nos sentar: houve uma última
espera enquanto a supervisora, com uma calma deliberada e exasperante, conferia
nossos documentos, com uma lista que tinha em mãos.
- Betsie, suspirei, quanto ainda vai demorar?
- Muito tempo, talvez. Talvez muitos anos. Mas não poderíamos
encontrar melhor forma de passarmos o resto da vida.
Voltei-me e olhei para ela.
- De que é que você está falando?
- Dessas moças. Aquela jovem da casamata. Corrie, se as
pessoas podem aprender a odiar, podem aprender a amar.
Temos que encontrar a maneira de ensinar-lhes isto, eu e
você; não importa o tempo que levar...
E ela prosseguiu falando, quase se esquecendo, no ímpeto
do entusiasmo, de falar baixinho, e eu, aos poucos, fui percebendo que ela
estava se referindo às guardas. Olhei para a policial sentada à mesa, adiante
de nós. Eu via apenas um uniforme cinza e um quepe com viseira; Betsie via um
ser humano em grande necessidade.
Então eu me indaguei - e não era a primeira vez - que
tipo de pessoa era essa minha irmã, que tipo de caminho ela palmilhava,
enquanto eu, ao seu lado, pisava o chão firme desta nossa terra.
Alguns dias depois, fomos chamados à supervisora para distribuição de serviço. Bastou um olhar dela à figura frágil e ao rosto pálido de Betsie, para que a dispensasse com um aceno de mão, para que voltasse ao alojamento onde as mais idosas e doentes passavam o dia fazendo os uniformes da prisão. A roupa das mulheres em Vught era um macacão azul, com uma estria vermelha na perna. Era prático e confortável, uma boa variante para nossas próprias roupas, as quais usávamos desde o dia em que fôramos presas.
Aparentemente, eu devia estar forte bastante para trabalhar,
pois ela me disse para me apresentar à fábrica da Phillips. Essa
"fábrica" era, na realidade, outra longa construção semelhante aos
tipos de alojamentos, e que pertencia ao agrupamento do campo. Mesmo de manhã,
o piche, sob o telhado fino, estava começando a dar bolhas, ao calor do forte
sol de julho.
Segui a guarda até o amplo salão onde várias centenas de
pessoas se encontravam sentadas a mesas de pranchas, sobre as quais se viam
pequeninas peças de rádio. Dois oficiais, um homem e uma mulher, estavam
percorrendo o corredor entre os bancos, e os prisioneiros trabalhavam
inclinados sobre sua tarefa.
Coube-me um lugar num dos bancos da frente. Minha tarefa
era medir pequeninas varetas de vidro e empilhá-las de acordo com o
comprimento. Era um serviço monótono. O calor do telhado parecia causar uma
pressão enorme sobre a cabeça. Eu desejava ao menos poder perguntar o nome e a
procedência dos que me ladeavam, mas o único ruído que se ouvia ali era o
clique-clique das peças de metal sendo ajustadas, e o rangido das botas dos
oficiais. Eles pararam à porta, perto da qual eu me achava.
- A produção subiu novamente na semana passada, disse o
oficial, em alemão, a um homem alto, de cabeça raspada, e de uniforme listado.
Você receberá uma menção por causa disto. Contudo nós ainda estamos recebendo
reclamações a respeito de defeitos na fiação. Temos que melhorar o controle de
qualidade.
O homem fez um gesto vago como que pedindo desculpas.
- Se houvesse mais alimentação, Herr Officier (Senhor
Oficial), murmurou ele. Desde que houve o corte na ração, notamos esta
diferença. Eles ficam sonolentos, têm dificuldade de se concentrar...
A voz dele lembrava-me a de Willem, grave, bem timbrada,
e com apenas um leve sotaque holandês, ao falar em alemão.
- Então, você tem que acordá-los. Relembre-lhes as penalidades.
Se os soldados do front podem lutar com meia ração, então estes
preguiçosos...
A um olhar terrível da mulher, ele parou e passou a
língua nos lábios.
- Isto é, estou falando como exemplo. Não há confirmação
de que as rações do front tenham sido reduzidas. Pois bem! Eu o
responsabilizo por isso!
E os dois oficiais retiraram-se juntos.
Por alguns momentos, o prisioneiro supervisor olhou-os
pela porta aberta. Depois, ergueu vagarosamente a mão esquerda e deixou-a
cair, com um tapa na perna. O salão explodiu. De sob as mesas, apareceram
blocos, livros, lã, latas de pãezinhos, etc. Alguns saíram do lugar e formaram
pequenos núcleos de conversação espalhados por todo o aposento. Uma meia dúzia
me rodeou: Quem era eu? De onde viera? Sabia alguma novidade sobre a guerra?
Depois de uma meia hora de conversa, o supervisor nos
relembrou da quota diária, e os trabalhadores começaram a regressar aos seus
lugares. Vim a saber que o nome do encarregado era Moorman, e havia sido
diretor de uma escola católica para meninos. No terceiro dia, ele se aproximou
do meu banco. Soubera que eu andara por toda a linha de montagem, para saber o
destino da minha pilhazinha de varetas.
- Você é a primeira operária, disse-me, que demonstra
algum interesse pelo que fazemos aqui.
- Eu estou muito interessada, respondi-lhe. Sou relojoeira.
Ele fitou-me com grande atenção.
- Então aqui há um outro trabalho de que você gostará
muito.
Conduziu-me para o lado oposto daquela imensa coberta
onde era feita a montagem final dos relês. Era um trabalho minucioso e que
exigia muito, embora não fosse tão difícil quanto o conserto de relógios. E o
Sr. Moorman estava certo. Gostei demais da tarefa, e isto ajudou-me a
atravessar melhor o dia de onze horas de trabalho.
Não somente para mim, mas para todos os outros operários
da Phillips, Moorman agia mais como um paciente irmão mais velho do que como
chefe. Eu o via mover-se incessantemente entre seus comandados, aconselhando,
encorajando, procurando um serviço mais simples para os mais cansados, um mais
pesado para os irrequietos. Já estávamos em Vught há um mês, quando vim a saber
que seu filho de vinte anos havia sido fuzilado ali mesmo em Vught, na semana
em que lá chegáramos.
Nada dessa tragédia pessoal transparecia em seus modos,
em seu cuidado conosco. Nas primeiras semanas, ele parou muitas vezes junto ao
meu banco, mais para observar meu estado de ânimo, do que meu trabalho. De vez
em quando, seus olhos percorriam a fila de relés à minha frente.
- Minha cara senhora, não se lembra mais para quem está
trabalhando? Estes rádios são para os aviões de combate!
Então, estendia a mão e retirava um fio de seu encaixe,
ou uma válvula da montagem.
- Agora, coloque-os de volta no lugar errado. E mais devagar.
Você já ultrapassou sua quota diária, e ainda não é nem meio-dia.
A hora do almoço, se eu pudesse passá-la com Betsie, seria a melhor hora do dia. Os operários da Phillips só tinham permissão para deixar a fábrica ao fim do dia de trabalho, às 6:00h. Os prisioneiros que serviam na cozinha entravam trazendo grandes caçambas contendo uma espécie de sopa de trigo e ervilhas, sem gosto, mas nutritiva. Aparentemente, tinha havido um corte na ração, mas ainda assim, a alimentação era melhor e mais abundante que em Scheveningen, onde não havia uma refeição ao meio-dia.
Depois de comermos, tínhamos uma deliciosa meia hora para
caminharmos pela área da fábrica, gozando do ar fresco e do maravilhoso sol de
Brabant. Na maioria das vezes, eu procurava um canto tranqüilo perto da cerca,
e me deitava sobre a terra quente e dormia (as atividades do dia começavam às
5:00h da manhã). Com a brisa, chegavam até nós os doces aromas de verão das
fazendas que ficavam ao redor. Às vezes, eu ficava a sonhar que eu e Karel
estávamos passeando de mãos dadas por uma daquelas estradinhas da roça.
Às 6:00h da tarde, havia outra chamada, e depois seguíamos
de volta para os alojamentos. Betsie sempre me esperava à porta do nosso, e
sempre tínhamos tanto que nos contar que parecia que estiváramos separadas por
uma semana.
- O casal de namorados que trabalha perto de mim, os
belgas, resolveram ficar noivos.
- A Sra. Heerma - aquela cuja avó foi levada para a Alemanha
- hoje ela permitiu que eu orasse por ela.
Numa destas ocasiões, a notícia que Betsie me deu dizia
respeito a nós, diretamente.
- Uma senhora de Ermelo foi transferida para a secção de
costura hoje. Quando eu me apresentei, ela disse: "Mais uma!"
- O que ela queria dizer com isto?
- Corrie, você se lembra de que, no dia que nós fomos
presas, um homem fora à loja? Você estava doente e eu tive que acordá-la.
Eu me lembrava bem. Lembrava-me daqueles olhos inquietos,
da estranha sensação de mal-estar que não era causada só pela febre.
- Parece que todo mundo de Ermelo o conhecia. Ele começou
a trabalhar para a Gestapo desde o primeiro dia de ocupação. Ele delatou os
dois irmãos daquela mulher e depois, ela e o marido.
Quando o povo de Ermelo descobriu isso, ele já fora para
Haarlem e se unira a Willemse e Kapteyn. Seu nome era Jan Vogel.
Meu coração pareceu se incendiar ao som daquele nome.
Pensei nas horas finais de papai, sozinho e confuso num corredor de hospital.
Pensei em nosso trabalho tão abruptamente interrompido. Pensei em Mary
Itallie, presa quando caminhava por uma rua. Eu sabia que se Jan Vogel
aparecesse diante de mim agora, eu o mataria.
Betsie puxou a sacolinha de pano de sob o macacão, e estendeu-a
para mim, mas eu balancei a cabeça. Agora, Betsie ficava com a Bíblia durante o
dia, já que ela tinha mais oportunidade de lê-la e ensiná-la aqui no
alojamento do que eu na fábrica. À noite, realizávamos uma reunião de oração
clandestina, para quantos pudessem ajuntar-se ao redor de nossa cama.
- Você dirige hoje, Betsie. Estou com dor de cabeça.
Era mais do que dor de cabeça. Todo o meu ser doía por
causa da violência dos meus sentimentos contra o homem que havia nos
prejudicado tanto. Não dormi nada naquela noite e, no dia seguinte, em minha
banca de trabalho, eu mal ouvia a conversa ao meu redor. Depois de uma semana,
eu havia chegado a um tal estado de desespero que me sentia doente de corpo e
espírito. O Sr. Moorman parou perto do meu banco para indagar se havia algo de
errado comigo.
- Errado? Sim; há uma coisa errada comigo.
E narrei-lhe o que acontecera naquela manhã, no Beje. Eu
queria contar ao Sr. Moorman e a toda a Holanda como Jan Vogel atraiçoara seu
país.
O que mais me espantava em tudo, porém, era Betsie. Ela
passara por tudo aquilo e parecia não ter a mínima parcela de ódio.
Uma noite, quando eu sabia que minha inquietação na cama
a mantinha acordada, disse-lhe:
- Betsie, você não sente nada contra este Jan Vogel? Isso
não a incomoda?
- Lógico, Corrie, e muito. Eu sinto muito por ele, desde
que soube da verdade - e oro por ele toda vez que seu nome me vem à mente. Como
ele deve estar sofrendo!
Fiquei acordada muito tempo, no imenso alojamento em
sombras, invadido apenas pelo ruído do ressonar e dos leves movimentos de
centenas de mulheres. Novamente ocorria-me que esta minha irmã, com quem eu
convivera toda a minha vida, pertencia a uma ordem diferente de seres. Ela não
estava insinuando de maneira suave, que eu era tão culpada quanto Jan Vogel?
Não era verdade que ele e eu estávamos diante de um Deus que tudo vê, e éramos
culpados do mesmo pecado de assassinato? Pois eu o havia matado em meu coração
e com minha língua.
- Senhor Jesus, orei, falando para a grosseira fazenda da
roupa de cama, eu perdôo Jan Vogel, e peço-te que tu me perdoes também. Eu o
prejudiquei grandemente. Abençoa-o e a sua família também...
Naquela noite, pela primeira vez desde que soubera o nome
do nosso delator, eu dormi profundamente, um sono sem sonhos, até ouvir o apito
que nos despertava para a chamada matinal.
Em Vught, alguns dias eram melhores, outros piores. A chamada da manhã, muitas vezes, era cruelmente longa. Se o menor regulamento fosse desobedecido, como por exemplo, se uma prisioneira chegasse tarde para a verificação noturna, o grupo inteiro era punido com chamada às 4:00h da madrugada, ou mesmo às 3:30h e tínhamos que ficar em posição de sentido até as costas doerem e as pernas terem cãibras. Naquele verão, porém, o ar estava cálido e o céu cheio de pássaros ao nascer do dia. Gradualmente, no leste, uma luz rosa-dourada iluminava aquele imenso céu de Brabant, e eu e Betsie nos dávamos as mãos, em admiração.
Às 5:30h, tomávamos café - um café amargo e muito quente
- com pão preto, e depois partíamos em fila para os locais de trabalho. Eu
sempre apreciava esta caminhada até a fábrica. Parte da estrada ladeava um
pequeno bosque, e estávamos separados daquele mundo de brilhantes gotas de
orvalho apenas por uma cerca de arame farpado. Passávamos também por uma parte
do acampamento dos homens, e muitas das mulheres se esforçavam para tentar
identificar maridos e filhos por entre as fileiras de cabeças raspadas e macacões
listrados.
Este era outro dos paradoxos de Vught. Eu me sentia
continuamente grata de estar outra vez no meio das outras pessoas. Uma coisa,
porém, que eu não percebera quando me encontrava em confinamento solitário, era
que ter companheiros significa ter os seus problemas também. Nós todas
sofríamos com as mulheres cujos maridos e filhos estavam no acampamento: os
castigos na secção masculina eram muito mais duros que na feminina; havia
fuzilamentos freqüentes. Quase que diariamente ouvia-se uma salva de tiros que
logo levava todo mundo a indagar: quantos, desta vez? Quem seriam eles?
A Sra. Floor, a mulher que se sentava junto a mim na mesa
de montagem, era comunista. Ela e o marido haviam conseguido enviar os dois
filhinhos para a guarda de amigos, antes de serem presos, mas ela se preocupava
o dia todo com eles e com o Sr. Floor, que era tuberculoso. Ele trabalhava com
o grupo da fábrica de cordas, cujo prédio era perto do nosso, e, na hora do
almoço, eles trocavam algumas palavras através da cerca de arame que separava
os dois recintos. Embora ela
estivesse esperando uma criança para setembro, nunca comia o seu pedaço de pão
da manhã e o passava para ele. Eu achava que ela estava muito magra, para uma
mulher em seu estado, e muitas vezes dei-lhe o meu pedaço, mas ela o dava para
o marido.
Contudo, apesar da tristeza e da ansiedade - e ninguém
ali estava livre de sofrer as duas - havia risos também no pavilhão da
Phillips. Ora era alguém que fazia uma imitação do nosso pomposo e convencido
segundo tenente; ora, uma brincadeira de cabra-cega, uma canção cantada em
cânone, de banco em banco, até que...
- Chuva pesada! Chuva pesada!
O sinal poderia vir de qualquer dos bancos próximos à
janela. A fábrica estava situada no centro do terreno da Phillips; não havia
jeito de nenhum oficial aproximar-se sem ser visto. Num instante, cada pessoa
estaria no seu lugar, e o único barulho que se ouviria, seria o ruído
convencional das peças sendo montadas.
Um dia, as palavras do código ainda estavam sendo repetidas
ao fundo do longo pavilhão, quando uma Aufseherin (supervisora) meio
gorducha, surgiu à porta. Ela deu uma olhada furiosa por todo o salão, rosto
vermelho de raiva, por ter aplicado a si as palavras "chuva pesada".
Ela berrou e falou por cerca de quinze minutos, depois tirou-nos nossa meia
hora de folga ao meio-dia, ao ar livre. Depois disso, resolvemos adotar um
sinal mais neutro: "Quinze".
- Já montei quinze painéis de controle.
Durante as longas tardes de verão, as brincadeiras e conversas
diminuíram um pouco, pois cada um permanecia em seu lugar, a sós com os
próprios pensamentos. Fiz marcas num dos lados da mesa para corresponder aos
dias que faltavam até primeiro de setembro. Não havia nada de oficial a
respeito daquele dia, apenas um comentário feito casualmente pela Sra. Floor de
que a pena para os acusados de falsificação ou roubo de cartões de racionamento
era de seis meses. Então, se fosse essa a acusação contra nós, e se contassem
nosso tempo de prisão em Scheveningen, deveríamos ser postas em liberdade no
dia 1.° de setembro.
- Corrie, não sabemos nada com certeza, disse-me Betsie,
certo dia, quando lhe lembrei que metade de agosto já se fora.
Fiquei com a impressão de que, para Betsie, aquilo não
importava muito. Olhei para ela sentada em nossa cama, naqueles momentos finais
do dia, antes que a luz se apagasse, remendando meu macacão, exatamente como
fazia ao clarão da lâmpada de nossa sala de jantar.
O modo de ela se sentar fazia-me pensar numa cadeira de
encosto alto e um tapete a seus pés, em vez da imensa fileira de catres sobre
um assoalho de madeira, totalmente desguarnecido. Na primeira semana que
passáramos ali, ela colocara mais alguns colchetes no seu macacão para melhor
ajustar a gola ao pescoço, e, feito isto, parecera-me que ela estava tão
contente de estar em Vught, lendo a Bíblia para pessoas que nunca a tinham
ouvido, como se estivesse no Beje, distribuindo sua sopa aos pobres e
famintos.
Quanto a mim, eu decidira, firmemente, esperar pelo dia
1.° de setembro.
Então, de repente, começou a parecer que não íamos ter que esperar tanto. Ouvimos rumores de que a Brigada Princesa Irene estava na França, movendo-se em direção à Bélgica. Essa brigada era uma guarnição das forças holandesas que haviam fugido para a Inglaterra, durante os cinco dias de guerra; agora, estava em marcha para retomar o que era seu.
Notava-se claramente que os guardas estavam tensos. A
chamada era uma agonia. Os velhos e enfermos que demoravam a chegar ao seu
lugar eram espancados sem misericórdia. Até mesmo o grupo da "luz
vermelha" era chamado à ordem. Aquelas jovens eram, em geral, muito
favorecidas.
Eram prostitutas, a maioria delas de Amsterdam, e estavam
presas não por causa de sua profissão - que era considerada um dever patriótico
- mas por terem contagiado soldados alemães. Geralmente, elas eram bem
desinibidas e desembaraçadas ao se defrontarem com os guardas; mas agora, até
mesmo elas tinham de formar em linha bem reta e ficar horas e horas em rígida
posição de sentido.
O batalhão de fuzilamento era ouvido mais e mais vezes.
Certo dia, a Sra. Floor não regressou à banca de trabalho após o almoço. Meus
olhos sempre demoravam um pouco a se reajustar à obscuridade da fábrica depois
da intensa claridade do ar livre. Com minha visão recuperando-se gradualmente,
vi o pedaço de pão preto que ainda estava em seu prato. Ninguém o levara para o
Sr. Floor.
Os dias se passavam, e nossos sentimentos oscilavam entre
o horror e a esperança. Tudo que possuíamos eram rumores. A brigada estava na
fronteira da Holanda. A brigada fora destruída. A brigada nunca chegara à
costa. Mulheres que não freqüentavam nossa reunião de oração em sussurros,
agora se chegavam a nós, querendo obter sinais e predições da Bíblia.
No dia 1.° de setembro, a Sra. Floor teve uma menina que
viveu apenas quatro horas.
Vários dias depois, nós acordamos à noite, ao som de detonações
à distância. Bem antes de soar o apito para a chamada, o alojamento todo
estava de pé, indo e vindo por entre as camas. Seria um bombardeio? Fogo de
artilharia? Naturalmente, a brigada tinha chegado a Brabant. Hoje mesmo deveria
estar em Vught.
Os gritos e ameaças dos guardas, quando estes chegaram,
não nos assustavam em nada. Todos estavam de cabeça virada, pensando em casa e
fazendo planos.
- As plantas já devem estar todas mortas, disse Betsie,
mas nós poderemos arranjar umas mudas com Nollie! Vamos lavar todas as janelas
para deixar a luz do sol entrar.
Na fábrica, o Sr. Moorman tentou nos esfriar o ânimo.
- Isso não é barulho de bomba, disse ele, nem de tiros de
rifle. É de demolição. São os alemães. Provavelmente, eles estão demolindo
pontes. Isto quer dizer que esperam um ataque a qualquer momento, mas não quer
dizer que já tenha começado. Ainda pode demorar muito.
Suas palavras nos fizeram arrefecer um pouco, mas, à
medida que as explosões se aproximavam mais, nada poderia impedir que nossa
esperança aumentasse. Elas estavam tão perto que chegavam a nos doer os
tímpanos.
- Abram a boca, gritou o Sr. Moorman para nós. Fiquem de
boca aberta; isso ajuda a aliviar a pressão.
Nossa refeição do meio-dia foi dentro do pavilhão, com as
janelas fechadas. Uma hora depois de retomarmos o trabalho - ou melhor,
sentarmos às bancas: ninguém conseguia se concentrar - veio a ordem de
regressarmos aos dormitórios. As mulheres que tinham maridos ou namorados
trabalhando na fábrica, abraçavam-se a eles com uma súbita ansiedade.
Betsie estava me aguardando à porta de nosso alojamento.
- Corrie, a brigada chegou? Estamos livres?
- Não, ainda não. Não sei. Ah, Betsie, estou com tanto
medo; por que isto?
O alto-falante do lado dos homens fez soar o sinal de
atenção. Nós não recebemos ordem alguma, e ficamos rodando por ali, sem
propósito certo, esperando, sem saber o quê.
Ouvimos a leitura de nomes na secção masculina, mas não
conseguíamos distingui-los.
Um medo insano e repentino tomou conta das mulheres ali.
Um silêncio mortal caiu sobre os dois lados do imenso campo. O alto-falante
emudecera. Nós nos entreolhávamos caladas, quase temendo até respirar.
O som dos fuzis feriu o ar. Algumas mulheres começaram a
chorar. Mais tiros. Outra vez. As execuções duraram duas horas. Alguém contara:
mais de setecentos prisioneiros foram executados naquele dia.
Dormiu-se pouco no alojamento, naquela noite. Não houve
chamada na manhã seguinte. Mais ou menos às 6:00h, recebemos ordem de apanhar
nossas coisas. Eu e Betsie colocamos nossos pertences dentro das fronhas que
havíamos trazido de Scheveningen: escova de dentes, agulhas, linhas, um
vidrinho de remédio que viera num pacote da Cruz Vermelha, e a blusa azul de
Nollie que era a única coisa que trouxéramos da secção de quarentena, quando de
lá viéramos há dois meses e meio. Tirei a sacola da Bíblia das costas de Betsie
e transferi-a para mim. Ela estava tão magra que o volume era claramente
visível entre suas espáduas.
Fomos levadas a um campo onde alguns soldados estavam
distribuindo cobertores que tiravam de um caminhão. Quando chegou nossa vez,
apanhamos dois cobertores novos, macios e bonitos. O meu era branco com listas
azuis; o de Betsie, branco e vermelho. Deveriam ter sido confiscados de alguma
família abastada.
O êxodo começou perto do meio-dia. Saímos pela escadinha
feia, com alojamentos dos dois lados, passamos pela casamata, pelos
agrupamentos de prédios cercados de arame farpado, e, por fim, chegamos ao
caminho de terra batida que cortava o bosque, e pelo qual marcháramos aos tropeções
naquela noite chuvosa de junho. Betsie agarrou-se ao meu braço; sua respiração
era difícil, como sempre acontecia quando ela tinha que caminhar qualquer
distância.
- Marchar em frente! Schnell! Dobrar o passo!
Passei o braço pelos ombros de Betsie, e quase
carreguei-a pelo resto do caminho. Chegamos então ao fim da estrada, e permanecemos
em fila, olhando para os trilhos da estrada de ferro, mais de mil mulheres ali,
pisando nos calcanhares umas das outras. Um pouco mais afastado, o grupo de
homens também aguardava. Era impossível reconhecer quem quer que fosse entre
aquelas cabeças raspadas que brilhavam ao sol de outono.
A princípio pensei que o trem ainda não chegara; mas depois
compreendi que aqueles vagões de carga que ali se achavam, eram para nós. Os
homens já estavam sendo embarcados, cada um erguendo-se como podia a fim de
alcançar a alta porta. Não víamos a locomotiva, mas apenas uma longa fileira de
vagões pequenos, montados sobre grandes rodas, e que sumia de vista em ambas as
direções, com metralhadoras colocadas no topo deles, de intervalo a intervalo.
Alguns soldados vinham se aproximando, parando em cada
carro para abrir as portas corrediças. À nossa frente, escancarou-se a boca
escura do carro. As mulheres começaram a avançar.
Fomos levadas de roldão, procurando segurar bem os cobertores
e fronhas. Betsie ainda estava respirando com dificuldade, por causa da rápida
caminhada. Tive que empurrá-la para que pudesse subir.
Logo de princípio, não consegui ver nada no interior do
vagão. Num dos cantos enxerguei uma sombra alta, disforme. Era uma pilha de
pães pretos, dezenas e dezenas de pães empilhados uns sobre os outros. Seria
uma viagem longa, então...
O pequeno vagão estava ficando lotado. Fomos empurradas
até à parede dos fundos. Ali caberiam, quando muito, trinta ou quarenta
pessoas, mas os soldados continuavam empurrando mulheres para dentro,
praguejando e fazendo ameaças com as armas. Gritos de protesto partiam do
centro do grupo, mas ainda assim o aperto continuava. Somente quando já havia
oitenta mulheres amontoadas ali, foi que a porta se fechou, e o ferrolho foi
colocado.
Algumas estavam chorando; outras desmaiavam, embora
naquele aperto permanecessem de pé. Quando já estávamos pensando que as do meio
iriam morrer sufocadas ou pisadas, conseguimos arranjar um modo de nos
sentarmos no assoalho do vagão: passando as pernas ao redor umas das outras,
como uma equipe de regata.
- Sabe de que sou grata a Deus?
A voz suave de Betsie surpreendeu-me no meio daquela
confusão toda.
- Estou alegre de que papai esteja no céu.
Papai! Ah, papai, por que eu chorara por sua causa?
O sol começou a aquecer o trem parado; a temperatura ali
dentro foi se tornando insuportável; o ar, viciado. Uma mulher ao meu lado
estava tentando arrancar um prego da madeira velha do carro. Afinal ele se
soltou; com a ponta, ela começou a alargar o orifício. Outras seguiram seu
exemplo, e, em pouco tempo, começaram a circular entre nós, lufadas de ar vindo
de fora.
Passaram-se algumas horas antes que o trem desse um
arranco para a frente e partisse. Pouco depois parou; depois arrancou de novo,
seguindo bem devagar. O resto do dia e noite adentro, foi a mesma coisa:
parava, arrancava; parava subitamente, arrancava.
Uma vez, quando era meu turno de ficar junto ao
respiradouro que abríramos, vi alguns homens carregando um pedaço de trilho
retorcido. Os trilhos deviam ter sido destruídos. Passei a notícia para as
outras. Talvez eles não conseguissem consertá-los a tempo. Talvez ainda
estivéssemos na Holanda quando o momento de libertação chegasse.
Senti que a testa de Betsie queimava. A moça da "luz
vermelha" que se encontrava atrás de mim, apertou-se mais para que Betsie
pudesse deitar em meu colo. Eu também fiquei dormindo e acordando durante algum
tempo, descansando a cabeça no ombro da amável moça que estava atrás de mim.
Numa dessas vezes tive um sonho. Sonhei que estava caindo
uma chuva de pedras, e eu ouvia as pedrinhas batendo nas janelas da frente do
quarto de Tia Jans. Abri os olhos. Estava chovendo mesmo. As pedrinhas se
chocavam contra a parede do carro.
Todas estavam acordadas e conversando. Outra saraivada de
pedras. Foi então que ouvimos o matraquear da metralhadora no teto do trem.
- É barulho de balas! gritou alguém. Estão atacando o
trem.
Outra vez o ruído de pedrinhas sendo atiradas contra o
vagão, e, em seguida, a resposta da metralhadora. Será que a brigada chegara
afinal? Os tiros diminuíram até cessarem completamente. O trem ainda ficou
parado mais de uma hora. Depois, começou a avançar vagarosamente de novo. Pela
madrugada, alguém gritou um aviso de que estávamos atravessando a cidade
fronteiriça de Emmerich.
Chegáramos à Alemanha.