segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 12


 Vught, o Campo de Concentração

             - Peguem suas coisas! Preparem-se para partir! Coloquem os objetos pessoais numa fronha!

            Os gritos das guardas ecoavam pelos corredores. Pus-me de pé no centro da cela, sentindo grande agitação. Partir! Então - então alguma coisa estava acontecendo! Íamos dei­xar a prisão! A contra-invasão devia ter-se iniciado! Arran­quei da fronha a bucha de palha que enfiara nela.

            Que mara­vilha aquele pedaço de pano grosseiro havia sido para mim, nessas duas semanas; uma excelente proteção contra a irrita­ção da palha e o mau cheiro da roupa de cama. Quase não me importava que os prometidos lençóis nunca tivessem sido entregues.

            Com as mãos tremendo, joguei na fronha meus poucos pertences: a blusa azul, meu pijama - ostentando bordados na frente e nas costas - a escova de dentes, o pente e o resto de meus biscoitos, que eu enrolara em papel sanitário. A Bí­blia continuava no embornal de pano, pendurada às minhas costas, de onde eu só a retirava para ler.

            Vesti o casaco e o chapéu e fiquei junto à porta, segurando minha fronha firmemente com ambas as mãos. Era bem cedo; o pratinho de desjejum ainda não fora recolhido. Eu não de­morara nada para me aprontar.

            Passou-se uma hora. Sentei-me no catre. Duas horas. Três. Fazia calor naquela tarde de junho. Tirei o casaco e o chapéu e coloquei-os sobre a cama, perto de mim.

            Passou-se mais algum tempo. Olhei para o orifício de en­trada das formigas, esperando uma visita de despedida de minhas pequenas amigas, mas elas não apareceram. Prova­velmente, eu as assustara com o movimento desusado da manhã. Enfiei a mão na fronha, peguei uma das bolachas e esmigalhei-a, colocando os pedacinhos ao redor da rachadura. Nada. Estavam bem escondidas.

            De repente, compreendi que aquilo era uma mensagem para mim, um recado mudo de um vizinho para outro. Eu também tinha meu esconderijo para as horas difíceis. Era Jesus, o meu refúgio perfeito. Apertei o dedo contra a peque­nina fenda.

            A luz do sol claro da tarde apareceu na parede, e moveu-se vagarosamente pela cela. De súbito, recomeçou o clangor do lado de fora. Portas se abriam; ferrolhos eram soltos.

            - Saiam! Schnell! (Rápido!) Todas para fora, e nada de conversa.

            Agarrei o chapéu e o casaco. Minha porta rangeu e se abriu.

            - Formar fileiras de cinco... e a guarda já estava na cela seguinte.

            Saí para o hall. Cheio de uma parede à outra. Nunca pen­sara que havia tantas mulheres naquele corredor.

            "In-va-são", dizíamos umas às outras apenas com um mo­vimento de lábios. A mensagem silenciosa varreu aquele gru­po de mulheres como uma corrente elétrica. Certamente, a invasão da Holanda começara. Por que outra razão estariam evacuando a prisão?

            Para onde seríamos levados? Qual seria nosso destino? Para a Alemanha? Não! Ó Jesus querido, para a Alemanha, não!

            Afinal veio a ordem de sairmos e marchamos por aqueles corredores frios, cada uma carregando o pequeno volume de seus pertences dentro da fronha. Emergimos no vasto pátio fronteiriço, para outra longa espera. Esta, porém, foi mais agradável, com o sol da tardinha dando-nos às costas. Um pouco distante, à nossa direita, viam-se as colunas de ho­mens. Girei a cabeça até onde pude, mas não vi Betsie.

            Por fim, o imenso portão foi aberto e vários ônibus cinzen­tos penetraram ali. Subi ao terceiro deles. Os assentos haviam sido retirados; as janelas, foscadas. O ônibus deu um arranco forte ao partir, mas estávamos apertadas demais para cair. Quando parou, descobrimos que nos encontrávamos em uma estação de trem de carga nos arredores da cidade.

            Outra vez a ordem de formação em fileiras.

            A voz dos guar­das estava tensa e estridente. Tínhamos que conservar os olhos em frente. Às nossas costas, ouvia-se o ruído dos ônibus que chegavam e depois se afastavam. Ainda estava claro, mas pela dor que sentia no estômago, sabia que já passara muito da hora do jantar.

            Foi então que, à minha frente, à esquerda, no último gru­po de prisioneiras, reconheci aquele coquezinho de cabelo castanho de Betsie. Decidi que, de algum modo, eu daria um jeito de me aproximar dela. Agora, ao invés de ansiar para que o dia acabasse logo, comecei a desejar que ficássemos ali até escurecer.

            Lentamente, a luz daquele longo dia de junho se escoou. Um trovão ribombou e uma chuva fina começou a cair. Por fim, um longo comboio surgiu, com a luz dos vagões apaga­da. Freou com estrépito, e depois rodou à frente mais um pouco; depois, parou novamente. Daí a instantes deu marcha a ré. Durante cerca de uma hora o trem ficou em manobras, para diante e para trás.

            Quando veio a ordem para embarcarmos estava comple­tamente escuro. A massa de prisioneiros moveu-se para dian­te. À nossa retaguarda, os guardas gritavam e praguejavam: era evidente que estavam nervosos por transportarem tantos prisioneiros de uma vez. Insinuei-me por entre o grupo, for­çando passagem em direção à esquerda. Ombros e cotovelos se interpunham em meu caminho, e eu me esquivava por entre eles. Alcancei Betsie quando já nos encontrávamos per­to dos degraus do trem, e agarrei a mão dela.

            Embarcamos juntas, e encontramos lugar em um compar­timento já lotado, e, juntas, choramos de gratidão. Os quatro meses passados em Scheveningen haviam sido os primeiros, em cinqüenta e três anos, que passávamos separadas. Eu sentia que poderia suportar quase qualquer coisa, se tivesse Betsie ao meu lado.

            As horas rolavam, e o trem permanecia parado no desvio. Para nós, no entanto, elas voavam, pois tínhamos muito que nos dizer. Betsie falou-me de cada uma de suas companhei­ras de cela, eu lhe falei das minhas - e da fresta na qual elas se escondiam nos momentos de emergência. Como sempre, Betsie havia dado aos outros tudo que possuía. A Bíblia que Nollie lhe enviara clandestinamente, ela a dividira toda em livros e a distribuíra entre as outras.

            Deviam ser duas ou três da madrugada quando afinal co­meçamos a nos movimentar. Encostamos o rosto à vidraça, mas não vimos luzes e a lua estava encoberta pelas nuvens. O pensamento que pairava em cada mente era: estaríamos indo para a Alemanha? Num certo ponto, conseguimos distinguir uma torre que Betsie estava segura de ser a catedral de Delft.

            Cerca de uma hora depois, o matraquear das rodas sobre o trilho começou a soar diferente: atravessávamos um desvão - e bem longo! Vários minutos se passaram e ainda não che­gáramos ao outro lado. Eu e Betsie nos entreolhamos. Seria a ponte Moerdijk? Então íamos para o sul. Não era para a Ale­manha, mas para o sul, para Brabant. Choramos de alegria, pela segunda vez naquela noite.

            Apoiei a cabeça no encosto de madeira do assento e fechei os olhos, rememorando uma outra viagem para Brabant. A mão de mamãe apertando a de papai cada vez que o trem balançava. Fora em junho, também - aquele junho do pri­meiro sermão de Willem, do jardim ao fundo da casa paro­quial, de Karel...

            Eu devo ter adormecido ainda revivendo aquele outro dia de junho, pois, quando reabri os olhos, o trem parará. Gritos de comando nos ordenavam que marchássemos: Schneller! Aber schnell! (Rápido! Mais rápido!) Uma luz brilhante en­trava pela janela. Eu e Betsie saímos aos trambolhões junto com as outras pela ala central do vagão, e depois pelos de­graus de ferro. Estávamos no meio de um bosque. Holofotes presos às árvores iluminavam um caminho largo, precaria­mente aberto na mata, que estava cheio de soldados empu­nhando armas.

            Fustigados pelos berros dos guardas, nós entramos pela passagem ladeada de canos de rifles.

            - Schneller! Cerrar fileiras! Manter o passo! Fileiras de cin­co!

            Betsie já estava com a respiração difícil, e eles ainda ber­ravam conosco que nos apressássemos mais. Tinha chovido muito, e havia poças fundas no caminho. Uma senhora de cabelos brancos desviou-se para um lado a fim de evitar uma poça; um soldado atingiu-lhe as costas com a coronha de sua arma. Tomei a fronha de Betsie carregando-a juntamente com a minha e passei meu braço pelo dela para ampará-la na ca­minhada.

            Marchamos neste pesadelo por quase dois quilômetros. Por fim chegamos a uma cerca de arame farpado que circun­dava um conjunto de alojamentos de madeira. Não havia camas no que entramos, apenas mesas e bancos sem encosto. Betsie e eu deixamo-nos cair em um deles. Senti no braço as batidas irregulares de seu coração. Com a cabeça apoiada na mesa, dormimos de exaustão.

            Quando despertamos, a luz do sol jorrava pela janela. Está­vamos famintas e com sede. Não tínhamos comido nada, nem bebido água desde a manhã do dia anterior, em Scheveningen.

            Contudo, nem um guarda ou oficial apareceu nos alojamentos durante as primeiras horas do dia. Finalmente, quando o sol já estava se pondo, chegou um grupo de prisioneiros com uma grande tina contendo uma substância grossa, fumegante, que engolimos vorazmente.

            E assim começou nossa estada naquele lugar que desco­brimos chamar-se Vught, nome da cidadezinha próxima. Di­ferentemente de Scheveningen, que era uma prisão mesmo, Vught tinha sido construído pelas tropas de ocupação, para servir de campo de concentração para prisioneiros políticos. Ainda não nos achávamos no campo propriamente dito, mas numa espécie de alojamento de quarentena, nos arredores do campo.

            O maior problema, para nós ali, reunidas ao redor daquelas fileiras de mesas, sem nada para fazer, era a ociosi­dade. Nossas guardas eram as mesmas de Scheveningen. Elas serviram bem enquanto estávamos fechadas dentro das ce­las, mas aqui, pareciam completamente desnorteadas. Seu único recurso para manter a disciplina era berrar palavrões e distribuir castigos indistintamente. Meia ração para o grupo todo! Outra chamada em posição de sentido. Proibição de conversas durante vinte e quatro horas!

            Havia apenas uma supervisora que nunca ameaçava nem le­vantava a voz. Era a matrona alta e silenciosa de Scheveningen. Ela surgiu em Vught no terceiro dia que estávamos lá, durante a chamada geral da madrugada, e, logo, um espírito de ordem tomou conta de nossas desarrumadas e rebeldes fileiras. As filas saíam retas agora; as mãos colavam-se bem ao lado, e os sussur­ros cessaram por completo quando aqueles olhos azuis de gelo varreram o grupo.

            Nós a apelidáramos entre nós de "General". Durante uma das longas chamadas, uma mulher grávida derreou-se ao chão, sua cabeça chocando-se surdamente contra a ponta de um banco. A "General" nem ao menos fez uma pausa, em sua monótona leitura de nomes.

            Estávamos neste campo externo de Vught há duas semanas, quando eu e Betsie e mais umas doze pessoas fomos chamadas pelo nome, durante a chamada matinal. Depois que as outras foram dispensadas, a "General" distribuiu uns formulários datilografados para nós, e disse que deveríamos apresentar-nos no alojamento da administração às 9:00h.

            Um homem da turma de alimentação - que já estava em Vught há muito tempo, e era do campo central - sorriu para nós alegremente, ao servir-nos nossa concha de desjejum.

            - Vocês estão livres, sussurrou. Esses formulários cor-de-rosa significam liberdade.

            Fitamos o papel em nossa mão incredulamente. Livres? Livres para sair... para ir para casa? As outras se chegaram a nós, abraçando-nos, cumprimentando-nos. As mulheres que haviam sido da mesma cela que Betsie em Scheveningen cho­ravam abertamente. Que crueldade ter que deixá-las ali!

            - A guerra deve acabar logo, dizíamos.

            Esvaziamos nossas fronhas, e distribuímos nossos poucos pertences com aquelas que iriam ficar.

            Bem antes de 9:00h, já nos encontrávamos na grande ante-sala do escritório da administração. Depois, fomos levadas para dentro e nossos formulários foram examinados, carimbados e entregues a um dos guardas. Seguimos o homem por um cor­redor e chegamos a outro escritório.

            O processo se repetiu por horas e horas. Éramos mandadas de uma sala para outra, de um oficial para outro. Fomos interrogadas, tiramos impres­sões digitais e depois fomos levadas para outro lugar. O grupo de prisioneiras foi sendo aumentado, até que já nos contáva­mos em quarenta ou cinqüenta, numa fila ao lado de uma alta cerca de tela, encimada por arame farpado. Fora havia um bosque de vidoeiros brancos, acima, o céu azul de Brabant. Nós também pertencíamos àquele mundo livre.

            No escritório seguinte, havia uma fileira de mesas ocupa­das por mulheres. Chamada a uma delas, recebi um envelope pardo. Derramei seu conteúdo na mão, e vi, espantada, meu relógio de marca Alpina, a aliança de mamãe, e até meu dinheiro. Eu não via aquelas coisas desde o dia que chegára­mos a Scheveningen. Dinheiro... isso pertencia ao mundo das lojas e bondes. Nós poderíamos ir a uma estação de estrada de ferro. "Duas passagens para Haarlem, por favor..."

            Seguimos por uma estrada cercada de arame farpado dos dois lados, e penetramos por um grande portão, chegando finalmente a um conjunto de construções baixas de telhado de zinco. Mais filas e mais esperas, mais idas e vindas de uma mesa para outra. Mas aquilo tudo se tornara irreal para mim.

            Por fim, estávamos diante de um balcão alto, e uma jovem nos disse:

            - Entreguem seus objetos pessoais no guichê C.

            - Mas eu tinha acabado de recebê-los!

            - Relógios, bolsas, jóias...

            Mecanicamente, como uma máquina sem vontade própria, entreguei o relógio, anel e dinheiro por um guichê gradeado. Uma mulher fardada pegou-os e colocou-os numa caixa de metal.

            - Mova-se! A seguinte!

            Então - não íamos ser soltas? Já fora, um oficial de rosto rosado mandou-nos formar em coluna por duas, e depois saí­mos, atravessando uma larga praça de treino. Em uma das extremidades dela, havia um grupo de homens de cabeça raspada, vestidos de macacões listrados, cavando uma vala. O que significava aquilo? O que significava todo aquele dia de filas e esperas? O rosto de Betsie estava pálido de cansaço, e ela tropeçou várias vezes no caminho.

            Atravessamos outra cerca, e entramos num terreno onde havia um edifício de concreto em forma de U. Uma jovem oficial que usava uma capa militar estava à nossa espera.

            - Prisioneiras, alto! gritou o oficial de rosto vermelho. Fraulein, por favor, explique a elas a função da casamata.

            - A casamata, começou a jovem, falando numa voz mo­nótona de guia de museu, é para abrigar aquelas que deixa­rem de obedecer os regulamentos do campo. Os quartos são "confortáveis", embora não muito grandes: mais ou menos do tamanho de um armário. Para acelerar o processo educa­cional, as mãos da pessoa são atadas acima da cabeça...

            Enquanto aquele horrível recitativo ainda se processava, dois guardas saíram do prédio carregando um homem. Esta­va vivo, pois suas pernas estavam se movendo, mas ele não parecia ter controle sobre elas. Seus olhos estavam encovados e giravam nas órbitas.

            - Ninguém parece gostar muito das acomodações ali, con­tinuou a moça, na mesma cadência, destacando bem as pala­vras.

            Agarrei o braço de Betsie, ao ouvir a ordem para nos colo­carmos de novo em marcha, mais para firmar-me do que para auxiliá-la. Era a maleta de viagem de papai, que eu via nova­mente. Essa crueldade era demais para se entender, demais para se suportar. "Pai celeste, carregue-a para mim."

            Seguimos o oficial por uma estrada ampla, com alojamen­tos dos dois lados, e, por fim, paramos junto de uma constru­ção cinzenta. Era o ponto final de uma série de esperas, filas, esperas; tínhamos chegado ao campo de Vught, propriamen­te dito.

            Os alojamentos eram quase idênticos ao que tínhamos deixado naquela manhã, com a diferença que estes tinham camas, além das mesas e bancos. Ainda não recebêramos permissão para nos sentar: houve uma última espera enquanto a supervisora, com uma calma deliberada e exasperante, con­feria nossos documentos, com uma lista que tinha em mãos.

            - Betsie, suspirei, quanto ainda vai demorar?

            - Muito tempo, talvez. Talvez muitos anos. Mas não po­deríamos encontrar melhor forma de passarmos o resto da vida.

            Voltei-me e olhei para ela.

            - De que é que você está falando?

            - Dessas moças. Aquela jovem da casamata. Corrie, se as pessoas podem aprender a odiar, podem aprender a amar.

            Temos que encontrar a maneira de ensinar-lhes isto, eu e você; não importa o tempo que levar...

            E ela prosseguiu falando, quase se esquecendo, no ímpeto do entusiasmo, de falar baixinho, e eu, aos poucos, fui perce­bendo que ela estava se referindo às guardas. Olhei para a policial sentada à mesa, adiante de nós. Eu via apenas um uniforme cinza e um quepe com viseira; Betsie via um ser humano em grande necessidade.

            Então eu me indaguei - e não era a primeira vez - que tipo de pessoa era essa minha irmã, que tipo de caminho ela palmilhava, enquanto eu, ao seu lado, pisava o chão firme desta nossa terra.

            Alguns dias depois, fomos chamados à supervisora para distribuição de serviço. Bastou um olhar dela à figura frágil e ao rosto pálido de Betsie, para que a dispensasse com um aceno de mão, para que voltasse ao alojamento onde as mais idosas e doentes passavam o dia fazendo os uniformes da prisão. A roupa das mulheres em Vught era um macacão azul, com uma estria vermelha na perna. Era prático e confortá­vel, uma boa variante para nossas próprias roupas, as quais usávamos desde o dia em que fôramos presas.

            Aparentemente, eu devia estar forte bastante para traba­lhar, pois ela me disse para me apresentar à fábrica da Phillips. Essa "fábrica" era, na realidade, outra longa construção se­melhante aos tipos de alojamentos, e que pertencia ao agru­pamento do campo. Mesmo de manhã, o piche, sob o telhado fino, estava começando a dar bolhas, ao calor do forte sol de julho.

            Segui a guarda até o amplo salão onde várias centenas de pessoas se encontravam sentadas a mesas de pranchas, so­bre as quais se viam pequeninas peças de rádio. Dois oficiais, um homem e uma mulher, estavam percorrendo o corredor entre os bancos, e os prisioneiros trabalhavam inclinados so­bre sua tarefa.

            Coube-me um lugar num dos bancos da frente. Minha tarefa era medir pequeninas varetas de vidro e empilhá-las de acordo com o comprimento. Era um serviço monótono. O calor do telhado parecia causar uma pressão enorme sobre a cabeça. Eu desejava ao menos poder perguntar o nome e a procedência dos que me ladeavam, mas o único ruído que se ouvia ali era o clique-clique das peças de metal sendo ajusta­das, e o rangido das botas dos oficiais. Eles pararam à porta, perto da qual eu me achava.

            - A produção subiu novamente na semana passada, disse o oficial, em alemão, a um homem alto, de cabeça raspada, e de uniforme listado. Você receberá uma menção por causa disto. Contudo nós ainda estamos recebendo reclamações a respeito de defeitos na fiação. Temos que melhorar o contro­le de qualidade.

            O homem fez um gesto vago como que pedindo descul­pas.

            - Se houvesse mais alimentação, Herr Officier (Senhor Oficial), murmurou ele. Desde que houve o corte na ração, notamos esta diferença. Eles ficam sonolentos, têm dificul­dade de se concentrar...

            A voz dele lembrava-me a de Willem, grave, bem timbrada, e com apenas um leve sotaque holandês, ao falar em alemão.

            - Então, você tem que acordá-los. Relembre-lhes as pena­lidades. Se os soldados do front podem lutar com meia ração, então estes preguiçosos...

            A um olhar terrível da mulher, ele parou e passou a língua nos lábios.

            - Isto é, estou falando como exemplo. Não há confirma­ção de que as rações do front tenham sido reduzidas. Pois bem! Eu o responsabilizo por isso!

            E os dois oficiais retiraram-se juntos.

            Por alguns momentos, o prisioneiro supervisor olhou-os pela porta aberta. Depois, ergueu vagarosamente a mão es­querda e deixou-a cair, com um tapa na perna. O salão explo­diu. De sob as mesas, apareceram blocos, livros, lã, latas de pãezinhos, etc. Alguns saíram do lugar e formaram pequenos núcleos de conversação espalhados por todo o aposento. Uma meia dúzia me rodeou: Quem era eu? De onde viera? Sabia alguma novidade sobre a guerra?

            Depois de uma meia hora de conversa, o supervisor nos relembrou da quota diária, e os trabalhadores começaram a regressar aos seus lugares. Vim a saber que o nome do encar­regado era Moorman, e havia sido diretor de uma escola ca­tólica para meninos. No terceiro dia, ele se aproximou do meu banco. Soubera que eu andara por toda a linha de mon­tagem, para saber o destino da minha pilhazinha de varetas.

            - Você é a primeira operária, disse-me, que demonstra algum interesse pelo que fazemos aqui.

            - Eu estou muito interessada, respondi-lhe. Sou relojoeira. Ele fitou-me com grande atenção.

            - Então aqui há um outro trabalho de que você gostará muito.

            Conduziu-me para o lado oposto daquela imensa coberta onde era feita a montagem final dos relês. Era um trabalho minucioso e que exigia muito, embora não fosse tão difícil quanto o conserto de relógios. E o Sr. Moorman estava certo. Gostei demais da tarefa, e isto ajudou-me a atravessar me­lhor o dia de onze horas de trabalho.

            Não somente para mim, mas para todos os outros operários da Phillips, Moorman agia mais como um paciente irmão mais velho do que como chefe. Eu o via mover-se incessantemente entre seus comandados, aconselhando, encorajando, procu­rando um serviço mais simples para os mais cansados, um mais pesado para os irrequietos. Já estávamos em Vught há um mês, quando vim a saber que seu filho de vinte anos ha­via sido fuzilado ali mesmo em Vught, na semana em que lá chegáramos.

            Nada dessa tragédia pessoal transparecia em seus modos, em seu cuidado conosco. Nas primeiras semanas, ele parou muitas vezes junto ao meu banco, mais para observar meu estado de ânimo, do que meu trabalho. De vez em quando, seus olhos percorriam a fila de relés à minha frente.

            - Minha cara senhora, não se lembra mais para quem está trabalhando? Estes rádios são para os aviões de combate!

            Então, estendia a mão e retirava um fio de seu encaixe, ou uma válvula da montagem.

            - Agora, coloque-os de volta no lugar errado. E mais de­vagar. Você já ultrapassou sua quota diária, e ainda não é nem meio-dia.

            A hora do almoço, se eu pudesse passá-la com Betsie, se­ria a melhor hora do dia. Os operários da Phillips só tinham permissão para deixar a fábrica ao fim do dia de trabalho, às 6:00h. Os prisioneiros que serviam na cozinha entravam tra­zendo grandes caçambas contendo uma espécie de sopa de trigo e ervilhas, sem gosto, mas nutritiva. Aparentemente, tinha havido um corte na ração, mas ainda assim, a alimen­tação era melhor e mais abundante que em Scheveningen, onde não havia uma refeição ao meio-dia.

            Depois de comermos, tínhamos uma deliciosa meia hora para caminharmos pela área da fábrica, gozando do ar fres­co e do maravilhoso sol de Brabant. Na maioria das vezes, eu procurava um canto tranqüilo perto da cerca, e me deita­va sobre a terra quente e dormia (as atividades do dia co­meçavam às 5:00h da manhã). Com a brisa, chegavam até nós os doces aromas de verão das fazendas que ficavam ao redor. Às vezes, eu ficava a sonhar que eu e Karel estávamos passeando de mãos dadas por uma daquelas estradinhas da roça.

            Às 6:00h da tarde, havia outra chamada, e depois seguía­mos de volta para os alojamentos. Betsie sempre me espera­va à porta do nosso, e sempre tínhamos tanto que nos contar que parecia que estiváramos separadas por uma semana.

            - O casal de namorados que trabalha perto de mim, os belgas, resolveram ficar noivos.

            - A Sra. Heerma - aquela cuja avó foi levada para a Ale­manha - hoje ela permitiu que eu orasse por ela.

            Numa destas ocasiões, a notícia que Betsie me deu dizia respeito a nós, diretamente.

            - Uma senhora de Ermelo foi transferida para a secção de costura hoje. Quando eu me apresentei, ela disse: "Mais uma!"

            - O que ela queria dizer com isto?

            - Corrie, você se lembra de que, no dia que nós fomos presas, um homem fora à loja? Você estava doente e eu tive que acordá-la.

            Eu me lembrava bem. Lembrava-me daqueles olhos inquie­tos, da estranha sensação de mal-estar que não era causada só pela febre.

            - Parece que todo mundo de Ermelo o conhecia. Ele co­meçou a trabalhar para a Gestapo desde o primeiro dia de ocupação. Ele delatou os dois irmãos daquela mulher e de­pois, ela e o marido.

            Quando o povo de Ermelo descobriu isso, ele já fora para Haarlem e se unira a Willemse e Kapteyn. Seu nome era Jan Vogel.

            Meu coração pareceu se incendiar ao som daquele nome. Pensei nas horas finais de papai, sozinho e confuso num cor­redor de hospital. Pensei em nosso trabalho tão abruptamen­te interrompido. Pensei em Mary Itallie, presa quando cami­nhava por uma rua. Eu sabia que se Jan Vogel aparecesse diante de mim agora, eu o mataria.

            Betsie puxou a sacolinha de pano de sob o macacão, e es­tendeu-a para mim, mas eu balancei a cabeça. Agora, Betsie ficava com a Bíblia durante o dia, já que ela tinha mais oportu­nidade de lê-la e ensiná-la aqui no alojamento do que eu na fábrica. À noite, realizávamos uma reunião de oração clandes­tina, para quantos pudessem ajuntar-se ao redor de nossa cama.

            - Você dirige hoje, Betsie. Estou com dor de cabeça.

            Era mais do que dor de cabeça. Todo o meu ser doía por causa da violência dos meus sentimentos contra o homem que havia nos prejudicado tanto. Não dormi nada naquela noite e, no dia seguinte, em minha banca de trabalho, eu mal ouvia a conversa ao meu redor. Depois de uma semana, eu havia chegado a um tal estado de desespero que me sentia doente de corpo e espírito. O Sr. Moorman parou perto do meu banco para indagar se havia algo de errado comigo.

            - Errado? Sim; há uma coisa errada comigo.

            E narrei-lhe o que acontecera naquela manhã, no Beje. Eu queria contar ao Sr. Moorman e a toda a Holanda como Jan Vogel atraiçoara seu país.

            O que mais me espantava em tudo, porém, era Betsie. Ela passara por tudo aquilo e parecia não ter a mínima parcela de ódio.

            Uma noite, quando eu sabia que minha inquietação na cama a mantinha acordada, disse-lhe:

            - Betsie, você não sente nada contra este Jan Vogel? Isso não a incomoda?

            - Lógico, Corrie, e muito. Eu sinto muito por ele, desde que soube da verdade - e oro por ele toda vez que seu nome me vem à mente. Como ele deve estar sofrendo!

            Fiquei acordada muito tempo, no imenso alojamento em sombras, invadido apenas pelo ruído do ressonar e dos leves movimentos de centenas de mulheres. Novamente ocorria-me que esta minha irmã, com quem eu convivera toda a mi­nha vida, pertencia a uma ordem diferente de seres. Ela não estava insinuando de maneira suave, que eu era tão culpada quanto Jan Vogel? Não era verdade que ele e eu estávamos diante de um Deus que tudo vê, e éramos culpados do mes­mo pecado de assassinato? Pois eu o havia matado em meu coração e com minha língua.

            - Senhor Jesus, orei, falando para a grosseira fazenda da roupa de cama, eu perdôo Jan Vogel, e peço-te que tu me perdoes também. Eu o prejudiquei grandemente. Abençoa-o e a sua família também...

            Naquela noite, pela primeira vez desde que soubera o nome do nosso delator, eu dormi profundamente, um sono sem sonhos, até ouvir o apito que nos despertava para a chamada matinal.

            Em Vught, alguns dias eram melhores, outros piores. A chamada da manhã, muitas vezes, era cruelmente longa. Se o menor regulamento fosse desobedecido, como por exem­plo, se uma prisioneira chegasse tarde para a verificação no­turna, o grupo inteiro era punido com chamada às 4:00h da madrugada, ou mesmo às 3:30h e tínhamos que ficar em po­sição de sentido até as costas doerem e as pernas terem cãi­bras. Naquele verão, porém, o ar estava cálido e o céu cheio de pássaros ao nascer do dia. Gradualmente, no leste, uma luz rosa-dourada iluminava aquele imenso céu de Brabant, e eu e Betsie nos dávamos as mãos, em admiração.

            Às 5:30h, tomávamos café - um café amargo e muito quen­te - com pão preto, e depois partíamos em fila para os locais de trabalho. Eu sempre apreciava esta caminhada até a fábri­ca. Parte da estrada ladeava um pequeno bosque, e estávamos separados daquele mundo de brilhantes gotas de orvalho ape­nas por uma cerca de arame farpado. Passávamos também por uma parte do acampamento dos homens, e muitas das mulhe­res se esforçavam para tentar identificar maridos e filhos por entre as fileiras de cabeças raspadas e macacões listrados.

            Este era outro dos paradoxos de Vught. Eu me sentia continuamente grata de estar outra vez no meio das outras pes­soas. Uma coisa, porém, que eu não percebera quando me encontrava em confinamento solitário, era que ter compa­nheiros significa ter os seus problemas também. Nós todas sofríamos com as mulheres cujos maridos e filhos estavam no acampamento: os castigos na secção masculina eram muito mais duros que na feminina; havia fuzilamentos freqüentes. Quase que diariamente ouvia-se uma salva de tiros que logo levava todo mundo a indagar: quantos, desta vez? Quem se­riam eles?

            A Sra. Floor, a mulher que se sentava junto a mim na mesa de montagem, era comunista. Ela e o marido haviam conse­guido enviar os dois filhinhos para a guarda de amigos, antes de serem presos, mas ela se preocupava o dia todo com eles e com o Sr. Floor, que era tuberculoso. Ele trabalhava com o grupo da fábrica de cordas, cujo prédio era perto do nosso, e, na hora do almoço, eles trocavam algumas palavras através da cerca de arame que separava os dois recintos.            Embora ela estivesse esperando uma criança para setembro, nunca co­mia o seu pedaço de pão da manhã e o passava para ele. Eu achava que ela estava muito magra, para uma mulher em seu estado, e muitas vezes dei-lhe o meu pedaço, mas ela o dava para o marido.

            Contudo, apesar da tristeza e da ansiedade - e ninguém ali estava livre de sofrer as duas - havia risos também no pavilhão da Phillips. Ora era alguém que fazia uma imitação do nosso pomposo e convencido segundo tenente; ora, uma brincadeira de cabra-cega, uma canção cantada em cânone, de banco em banco, até que...

            - Chuva pesada! Chuva pesada!

            O sinal poderia vir de qualquer dos bancos próximos à janela. A fábrica estava situada no centro do terreno da Phillips; não havia jeito de nenhum oficial aproximar-se sem ser visto. Num instante, cada pessoa estaria no seu lugar, e o único barulho que se ouviria, seria o ruído convencional das peças sendo montadas.

            Um dia, as palavras do código ainda estavam sendo repe­tidas ao fundo do longo pavilhão, quando uma Aufseherin (supervisora) meio gorducha, surgiu à porta. Ela deu uma olhada furiosa por todo o salão, rosto vermelho de raiva, por ter aplicado a si as palavras "chuva pesada". Ela berrou e falou por cerca de quinze minutos, depois tirou-nos nossa meia hora de folga ao meio-dia, ao ar livre. Depois disso, resolvemos adotar um sinal mais neutro: "Quinze".

            - Já montei quinze painéis de controle.

            Durante as longas tardes de verão, as brincadeiras e con­versas diminuíram um pouco, pois cada um permanecia em seu lugar, a sós com os próprios pensamentos. Fiz marcas num dos lados da mesa para corresponder aos dias que falta­vam até primeiro de setembro. Não havia nada de oficial a respeito daquele dia, apenas um comentário feito casualmente pela Sra. Floor de que a pena para os acusados de falsificação ou roubo de cartões de racionamento era de seis meses. Então, se fosse essa a acusação contra nós, e se contassem nos­so tempo de prisão em Scheveningen, deveríamos ser postas em liberdade no dia 1.° de setembro.

            - Corrie, não sabemos nada com certeza, disse-me Betsie, certo dia, quando lhe lembrei que metade de agosto já se fora.

            Fiquei com a impressão de que, para Betsie, aquilo não importava muito. Olhei para ela sentada em nossa cama, naqueles momentos finais do dia, antes que a luz se apagas­se, remendando meu macacão, exatamente como fazia ao clarão da lâmpada de nossa sala de jantar.

            O modo de ela se sentar fazia-me pensar numa cadeira de encosto alto e um tapete a seus pés, em vez da imensa fileira de catres sobre um assoalho de madeira, totalmente desguarnecido. Na pri­meira semana que passáramos ali, ela colocara mais alguns colchetes no seu macacão para melhor ajustar a gola ao pes­coço, e, feito isto, parecera-me que ela estava tão contente de estar em Vught, lendo a Bíblia para pessoas que nunca a ti­nham ouvido, como se estivesse no Beje, distribuindo sua sopa aos pobres e famintos.

            Quanto a mim, eu decidira, firmemente, esperar pelo dia 1.° de setembro.

            Então, de repente, começou a parecer que não íamos ter que esperar tanto. Ouvimos rumores de que a Brigada Prin­cesa Irene estava na França, movendo-se em direção à Bél­gica. Essa brigada era uma guarnição das forças holandesas que haviam fugido para a Inglaterra, durante os cinco dias de guerra; agora, estava em marcha para retomar o que era seu.

            Notava-se claramente que os guardas estavam tensos. A chamada era uma agonia. Os velhos e enfermos que demora­vam a chegar ao seu lugar eram espancados sem misericór­dia. Até mesmo o grupo da "luz vermelha" era chamado à ordem. Aquelas jovens eram, em geral, muito favorecidas.

            Eram prostitutas, a maioria delas de Amsterdam, e estavam presas não por causa de sua profissão - que era considerada um dever patriótico - mas por terem contagiado soldados alemães. Geralmente, elas eram bem desinibidas e desemba­raçadas ao se defrontarem com os guardas; mas agora, até mesmo elas tinham de formar em linha bem reta e ficar ho­ras e horas em rígida posição de sentido.

            O batalhão de fuzilamento era ouvido mais e mais vezes. Certo dia, a Sra. Floor não regressou à banca de trabalho após o almoço. Meus olhos sempre demoravam um pouco a se reajustar à obscuridade da fábrica depois da intensa clari­dade do ar livre. Com minha visão recuperando-se gradual­mente, vi o pedaço de pão preto que ainda estava em seu prato. Ninguém o levara para o Sr. Floor.

            Os dias se passavam, e nossos sentimentos oscilavam en­tre o horror e a esperança. Tudo que possuíamos eram rumo­res. A brigada estava na fronteira da Holanda. A brigada fora destruída. A brigada nunca chegara à costa. Mulheres que não freqüentavam nossa reunião de oração em sussurros, agora se chegavam a nós, querendo obter sinais e predições da Bíblia.

            No dia 1.° de setembro, a Sra. Floor teve uma menina que viveu apenas quatro horas.

            Vários dias depois, nós acordamos à noite, ao som de de­tonações à distância. Bem antes de soar o apito para a cha­mada, o alojamento todo estava de pé, indo e vindo por entre as camas. Seria um bombardeio? Fogo de artilharia? Naturalmente, a brigada tinha chegado a Brabant. Hoje mesmo deveria estar em Vught.

            Os gritos e ameaças dos guardas, quando estes chegaram, não nos assustavam em nada. Todos estavam de cabeça vira­da, pensando em casa e fazendo planos.

            - As plantas já devem estar todas mortas, disse Betsie, mas nós poderemos arranjar umas mudas com Nollie! Vamos lavar todas as janelas para deixar a luz do sol entrar.

            Na fábrica, o Sr. Moorman tentou nos esfriar o ânimo.

            - Isso não é barulho de bomba, disse ele, nem de tiros de rifle. É de demolição. São os alemães. Provavelmente, eles estão demolindo pontes. Isto quer dizer que esperam um ata­que a qualquer momento, mas não quer dizer que já tenha começado. Ainda pode demorar muito.

            Suas palavras nos fizeram arrefecer um pouco, mas, à medida que as explosões se aproximavam mais, nada pode­ria impedir que nossa esperança aumentasse. Elas estavam tão perto que chegavam a nos doer os tímpanos.

            - Abram a boca, gritou o Sr. Moorman para nós. Fiquem de boca aberta; isso ajuda a aliviar a pressão.

            Nossa refeição do meio-dia foi dentro do pavilhão, com as janelas fechadas. Uma hora depois de retomarmos o tra­balho - ou melhor, sentarmos às bancas: ninguém conse­guia se concentrar - veio a ordem de regressarmos aos dor­mitórios. As mulheres que tinham maridos ou namorados trabalhando na fábrica, abraçavam-se a eles com uma súbi­ta ansiedade.

            Betsie estava me aguardando à porta de nosso alojamen­to.

            - Corrie, a brigada chegou? Estamos livres?

            - Não, ainda não. Não sei. Ah, Betsie, estou com tanto medo; por que isto?

            O alto-falante do lado dos homens fez soar o sinal de aten­ção. Nós não recebemos ordem alguma, e ficamos rodando por ali, sem propósito certo, esperando, sem saber o quê.

            Ouvimos a leitura de nomes na secção masculina, mas não conseguíamos distingui-los.

            Um medo insano e repentino tomou conta das mulheres ali. Um silêncio mortal caiu sobre os dois lados do imenso campo. O alto-falante emudecera. Nós nos entreolhávamos caladas, quase temendo até respirar.

            O som dos fuzis feriu o ar. Algumas mulheres começaram a chorar. Mais tiros. Outra vez. As execuções duraram duas horas. Alguém contara: mais de setecentos prisioneiros fo­ram executados naquele dia.

            Dormiu-se pouco no alojamento, naquela noite. Não hou­ve chamada na manhã seguinte. Mais ou menos às 6:00h, recebemos ordem de apanhar nossas coisas. Eu e Betsie colo­camos nossos pertences dentro das fronhas que havíamos tra­zido de Scheveningen: escova de dentes, agulhas, linhas, um vidrinho de remédio que viera num pacote da Cruz Verme­lha, e a blusa azul de Nollie que era a única coisa que trouxéramos da secção de quarentena, quando de lá viéramos há dois meses e meio. Tirei a sacola da Bíblia das costas de Betsie e transferi-a para mim. Ela estava tão magra que o volume era claramente visível entre suas espáduas.

            Fomos levadas a um campo onde alguns soldados esta­vam distribuindo cobertores que tiravam de um caminhão. Quando chegou nossa vez, apanhamos dois cobertores no­vos, macios e bonitos. O meu era branco com listas azuis; o de Betsie, branco e vermelho. Deveriam ter sido confiscados de alguma família abastada.

            O êxodo começou perto do meio-dia. Saímos pela escadi­nha feia, com alojamentos dos dois lados, passamos pela casamata, pelos agrupamentos de prédios cercados de arame farpado, e, por fim, chegamos ao caminho de terra batida que cortava o bosque, e pelo qual marcháramos aos trope­ções naquela noite chuvosa de junho. Betsie agarrou-se ao meu braço; sua respiração era difícil, como sempre acontecia quando ela tinha que caminhar qualquer distância.

            - Marchar em frente! Schnell! Dobrar o passo!

            Passei o braço pelos ombros de Betsie, e quase carreguei-a pelo resto do caminho. Chegamos então ao fim da estrada, e permanecemos em fila, olhando para os trilhos da estrada de ferro, mais de mil mulheres ali, pisando nos calcanhares umas das outras. Um pouco mais afastado, o grupo de homens tam­bém aguardava. Era impossível reconhecer quem quer que fosse entre aquelas cabeças raspadas que brilhavam ao sol de outono.

            A princípio pensei que o trem ainda não chegara; mas de­pois compreendi que aqueles vagões de carga que ali se acha­vam, eram para nós. Os homens já estavam sendo embarcados, cada um erguendo-se como podia a fim de alcançar a alta porta. Não víamos a locomotiva, mas apenas uma longa fileira de vagões pequenos, montados sobre grandes rodas, e que sumia de vista em ambas as direções, com metralhado­ras colocadas no topo deles, de intervalo a intervalo.

            Alguns soldados vinham se aproximando, parando em cada carro para abrir as portas corrediças. À nossa frente, escancarou-se a boca escura do carro. As mulheres começaram a avançar.

            Fomos levadas de roldão, procurando segurar bem os co­bertores e fronhas. Betsie ainda estava respirando com difi­culdade, por causa da rápida caminhada. Tive que empurrá-la para que pudesse subir.

            Logo de princípio, não consegui ver nada no interior do vagão. Num dos cantos enxerguei uma sombra alta, disfor­me. Era uma pilha de pães pretos, dezenas e dezenas de pães empilhados uns sobre os outros. Seria uma viagem longa, então...

            O pequeno vagão estava ficando lotado. Fomos empurra­das até à parede dos fundos. Ali caberiam, quando muito, trinta ou quarenta pessoas, mas os soldados continuavam empurrando mulheres para dentro, praguejando e fazendo ameaças com as armas. Gritos de protesto partiam do centro do grupo, mas ainda assim o aperto continuava. Somente quando já havia oitenta mulheres amontoadas ali, foi que a porta se fechou, e o ferrolho foi colocado.

            Algumas estavam chorando; outras desmaiavam, embora naquele aperto permanecessem de pé. Quando já estávamos pensando que as do meio iriam morrer sufocadas ou pisadas, conseguimos arranjar um modo de nos sentarmos no assoalho do vagão: passando as pernas ao redor umas das outras, como uma equipe de regata.

            - Sabe de que sou grata a Deus?

            A voz suave de Betsie surpreendeu-me no meio daquela confusão toda.

            - Estou alegre de que papai esteja no céu.

            Papai! Ah, papai, por que eu chorara por sua causa?

            O sol começou a aquecer o trem parado; a temperatura ali dentro foi se tornando insuportável; o ar, viciado. Uma mu­lher ao meu lado estava tentando arrancar um prego da ma­deira velha do carro. Afinal ele se soltou; com a ponta, ela começou a alargar o orifício. Outras seguiram seu exemplo, e, em pouco tempo, começaram a circular entre nós, lufadas de ar vindo de fora.

            Passaram-se algumas horas antes que o trem desse um arranco para a frente e partisse. Pouco depois parou; depois arrancou de novo, seguindo bem devagar. O resto do dia e noite adentro, foi a mesma coisa: parava, arrancava; parava subitamente, arrancava.

            Uma vez, quando era meu turno de ficar junto ao respiradouro que abríramos, vi alguns homens carregando um pedaço de trilho retorcido. Os trilhos deviam ter sido destruídos. Passei a notícia para as outras. Talvez eles não conseguissem consertá-los a tempo. Talvez ainda estivéssemos na Holanda quando o momento de libertação chegasse.

            Senti que a testa de Betsie queimava. A moça da "luz ver­melha" que se encontrava atrás de mim, apertou-se mais para que Betsie pudesse deitar em meu colo. Eu também fiquei dormindo e acordando durante algum tempo, descansando a cabeça no ombro da amável moça que estava atrás de mim.

            Numa dessas vezes tive um sonho. Sonhei que estava caindo uma chuva de pedras, e eu ouvia as pedrinhas batendo nas janelas da frente do quarto de Tia Jans. Abri os olhos. Estava chovendo mesmo. As pedrinhas se chocavam contra a parede do carro.

            Todas estavam acordadas e conversando. Outra saraivada de pedras. Foi então que ouvimos o matraquear da metralha­dora no teto do trem.

            - É barulho de balas! gritou alguém. Estão atacando o trem.

            Outra vez o ruído de pedrinhas sendo atiradas contra o vagão, e, em seguida, a resposta da metralhadora. Será que a brigada chegara afinal? Os tiros diminuíram até cessarem completamente. O trem ainda ficou parado mais de uma hora. Depois, começou a avançar vagarosamente de novo. Pela madrugada, alguém gritou um aviso de que estávamos atra­vessando a cidade fronteiriça de Emmerich.

            Chegáramos à Alemanha.