segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 11

O Tenente

             Eu estava acompanhando uma das guardas - caminhando atrás dela, mas um pouco à direita para não pisar na sagrada passadeira - por um corredor que eu não conhecia. Viramos à direita, demos alguns passos, e, depois, à direita outra vez... que interminável labirinto, essa prisão! Por fim, chegamos a um pequeno pátio interno. Uma chuvinha fina estava caindo. Fazia um frio cortante, naquela manhã do fim de maio: após três meses de prisão, eu comparecia a um interrogatório pela primeira vez.

            Em três de seus lados, o pátio era rodeado por uma cons­trução alta, de janelas fechadas por barras de ferro. No quar­to, havia uma parede alta junto à qual se erguia uma fileira de cômodos. Então estas eram as cabines onde os famigerados interrogatórios tinham lugar! Senti minha respiração curta e difícil ao me recordar dos relatos que eu própria passara adi­ante, no dia do aniversário de Hitler.

            "Senhor Jesus, tu também foste levado a um interrogató­rio. Ensina-me o que devo fazer!"

            Foi aí que algo chamou minha atenção. A pessoa que utili­zava a quarta cabine fizera um canteirinho de tulipas ao lado.

            Agora, elas estavam murchas: não eram mais que algumas hastes esguias e folhas amareladas, mas... "Senhor, concede que eu vá para a número quatro."

            A guarda havia parado um instante para desatar a sua longa capa militar, presa ao ombro, e envolver-se nela. Ago­ra, ela seguiu pelo caminho, triturando o cascalho. Passou pela primeira cabine, pela segunda, pela terceira. Estacou diante da cabine com o canteirinho, e bateu à porta.

            - Ja! Herrein! (Pois não! Entre!) gritou uma voz masculi­na.

            Ela empurrou a porta, fez a continência de braço estendi­do, e saiu de novo. O homem estava fardado e carregava suas condecorações, e trazia uma arma no coldre. Tirou o chapéu, e eu reconheci o oficial bondoso que fora me ver na cela.

            - Eu sou o Tenente Rahms, disse encaminhando-se à por­ta para fechá-la após mim. A senhora está tremendo! Espere, vou acender o fogo.

            Achegou-se a uma pequena estufa redonda, e encheu-a de carvão que retirara de um recipiente ao lado, lembrando em tudo um anfitrião alemão recebendo uma visita. E se aquilo fosse apenas uma cilada? Estes gestos bondosos e humanos... talvez ele tivesse descoberto que tais artifícios eram mais efe­tivos para arrancar a verdade de gente solitária e faminta de atenção e afeto, do que a brutalidade.

            "Senhor, não deixes que por uma credulidade tola eu po­nha em perigo a vida de outras pessoas."

            - Espero que não tenhamos mais dias frios como este, nesta primavera, disse ele.

            Ele puxou uma cadeira para mim, e eu a aceitei cansada­mente. Como era estranho recostar-me numa cadeira, e colo­car as mãos nos braços dela depois de três meses sem ver uma! O calor da estufa estava gradualmente se espalhando pela saleta. Apesar de minhas prevenções, comecei a relaxar-me. Aventurei-me a um tímido comentário a respeito das tu­lipas.

            - Cresceram bastante; devem ter sido lindas.

            - Ah, foram! ele pareceu-me ridiculamente satisfeito. Fo­ram as melhores que já consegui. Em casa, sempre planto as batatas holandesas.

            Conversamos sobre flores por alguns instantes, e depois ele disse:

            - Gostaria de poder ajudá-la, D. Cornélia, mas a senhora tem de me dizer tudo. Pode ser que eu consiga fazer alguma coisa pela senhora, mas só se não ocultar nada de mim.

            Então, ali estava a verdade. Aquela cordialidade, o inte­resse amistoso de que eu duvidara um pouco - tudo era mes­mo um ardil para extrair informação. E por que pão? Ele era um oficial e tinha uma tarefa a cumprir Entretanto eu tam­bém, de certo modo, tinha minha tarefa.

            Ele me interrogou durante uma hora, e fez uso de todos os truques psicológicos sobre os quais os jovens do nosso grupo clandestino me haviam alertado. Aliás eu me senti como uma estudante que se prepara muito bem para um exame difícil e, na hora de fazer a prova, vê-se argüida apenas a respeito das questões mais elementares.

            Descobri que eles criam que o Beje fora o centro de onde partiam ordens de assalto a vários almoxarifados de racionamento de alimento do país. De to­das as atividades ilegais que me pesavam na consciência, esta era a de que eu tinha menos conhecimento.

            Eu nada sabia dos detalhes da operação, a não ser que recebia os cartões roubados e os passava adiante. Aparen­temente, minha ignorância no assunto ficou bem patente, e o Tenente Rahms parou de anotar minhas respostas desanimadoras e incoerentes.   

            - Das suas outras atividades, o que a senhora gostaria de contar?

            - Outras atividades? Ah! o senhor quer saber a respeito de minhas reuniões para retardados?

            E me lancei animadamente num relato de minha tentativa de evangelizar pessoas de mente fraca.

            O tenente arqueou as sobrancelhas, num espanto cada vez maior.

            - Que desperdício de tempo e energias! exclamou afinal. Se a senhora quer conseguir adeptos, uma pessoa normal vale por todos os lunáticos do mundo!

            Olhei-o de frente, fitando seus inteligentes olhos azul-acinzentados: a filosofia nazista, pensei, apesar do canteiro de tulipas. E para meu assombro, ouvi-me dizer corajosamen­te:

            - Posso dizer-lhe a verdade, Tenente Rahms?

            - Minha senhora, esta audiência está baseada na suposi­ção de que a senhora me concederá esta honra.

            - A verdade, senhor, disse engolindo em seco, é que o ponto de vista de Deus é, às vezes, tão diferente do nosso, que não poderíamos nem mesmo chegar perto dele, se Deus não nos tivesse dado um Livro no qual ele nos diz tudo.

            Eu sabia ser loucura minha falar daquele jeito a um oficial nazista, mas ele não disse nada e eu prossegui.

            - Na Bíblia, eu aprendi que, aos olhos de Deus, nosso va­lor não é medido por nossa força ou inteligência, mas por sermos feitos por ele. Quem sabe se para ele um lunático tem mais valor que um relojoeiro, ou... do que um tenente?

            O Tenente Rahms levantou-se abruptamente.

            - Isto é tudo por hoje.

            Caminhou apressadamente até à porta.

            - Guarda!

            Ouvi passos no cascalho.

            - A prisioneira vai voltar à cela.

            Enquanto seguia a guarda de volta, compreendi que havia cometido um erro. Falara demais. Eu tinha destruído qual­quer chance de um possível interesse dele pelo meu caso.

            Entretanto no dia seguinte foi o próprio Tenente Rahms que abriu a porta de minha cela, e escoltou-me para a saleta de audiência. Ele parecia desconhecer o regulamento que proibia os prisioneiros de pisar na esteira, pois indicou-me que eu devia andar à sua frente, pelo centro do corredor. Evitei os olhos dos guardas ao longo do percurso, sentindo-me culpada como um cachorro treinado que foi encontrado refestelado no sofá da sala. No pátio, o sol brilhava.

            - Vamos ficar aqui fora hoje, disse ele. A senhora está muito pálida. Não está tomando bastante sol.

            Com gratidão, segui-o até o canto mais distante, onde o ar estava tépido e parado. Encostamo-nos à parede.

            - Não dormi nada, a noite passada, disse o tenente. Fi­quei pensando naquele livro, onde a senhora leu a respeito das idéias diferentes. Que mais diz nele?

            Fechei os olhos e percebi o clarão do sol através das pálpebras.

            - Diz, comecei vagarosamente, que a Luz veio ao mundo para que não tenhamos que andar mais em trevas. Há trevas na vida do senhor, tenente?

            Houve uma longa pausa.

            - Grandes trevas, disse por fim. Eu não suporto o traba­lho que faço aqui.

            De repente, ele começou a me falar de sua esposa e filhos que estavam em Bremen, e sobre o jardim de sua casa, seus cães, seus passeios a pé nas férias de verão.

            - Bremen foi bombardeada novamente a semana passa­da. Todos os dias eu me pergunto: será que ainda estão vi­vos?

            - Há alguém que está sempre olhando por eles, Tenente Rahms. Jesus é essa Luz que a Bíblia nos revela, a Luz que pode afastar até mesmo trevas iguais às suas.

            Ele abaixou o visor do quepe, cobrindo os olhos; o emble­ma da caveira com os ossos cruzados brilhou ao sol. Quando ele falou novamente, foi tão baixo que mal o ouvi.

            - O que é que a senhora sabe sobre trevas como essas minhas?

            O interrogatório repetiu-se ainda por dois dias. Ele cessou totalmente de fingir que me questionava sobre minhas ativi­dades clandestinas, e parecia gostar bastante de escutar fatos de minha infância. Mamãe, papai, as tias... ele queria ouvir-me falar deles muitas vezes.

            Ficou indignado ao saber que papai havia morrido ali em Scheveningen; os documentos da minha pasta não faziam menção deste fato. Eles continham, porém, a razão de meu confinamento na solitária.

            "A doença da prisioneira é contagiosa."

            Olhei para as palavras datilografadas que o tenente apon­tava. Pensei nas longas noites de ventania, no deboche dos guardas, na lei do silêncio.

            - Mas se não era por castigo, por que estavam tão irados comigo? Por que eu não podia falar?

            O tenente acertou as pontas dos papéis à sua frente.

            - Uma prisão é como qualquer outra instituição, minha senhora; alguns regulamentos, alguns métodos de ação...

            - Eu não tenho mais esta doença contagiosa. Já estou boa há várias semanas e minha própria irmã está aqui tão perto! Tenente Rahms, se eu pudesse ver Betsie, se eu pudesse con­versar com ela durante alguns minutos!

            Ele ergueu os olhos e eu percebi uma grande angústia ne­les.

            - Minha senhora, é possível que eu lhe pareça muito po­deroso. Eu uso uma farda, tenho certa autoridade sobre meus comandados, mas estou numa prisão, prezada senhora, uma prisão mais forte que esta aqui.

            Era a quarta e última sessão de interrogatório, e nós fôramos para dentro a fim de assinar os papéis. Ele reuniu tudo e saiu, deixando-me a sós. Eu sentia ter que me despedir desse homem que estava lutando tanto para chegar à verdade. Pa­recia que o mais difícil para ele era aceitar o fato de que o cristão deva sofrer.

            - Como é que a senhora ainda consegue acreditar em Deus? ele me perguntara. Que Deus é este que deixa aquele velhinho morrer aqui em Scheveningen?

            Ergui-me da cadeira, e, aproximando-me da estufa, es­tendi as mãos para aquecê-las. Eu também não entendia por que papai morrera em tal lugar. Eu não entendia muitas coi­sas.

            De repente lembrei-me da resposta que papai me dera a respeito de questões muito difíceis: "Alguns conhecimentos pesam demais... você não suportaria... o papai carregará os pesos até que você se torne capaz." Sim! Eu contaria ao Te­nente Rahms o caso da mala de viagem - ele gostava muito das histórias que eu lhe contava a respeito de papai.

            Quando o tenente regressou, porém, vinha acompanhado de uma guarda da ala feminina.

            - A prisioneira ten Boom já encerrou as audiências e pode retornar à cela, disse.

            A jovem pôs-se em posição de sentido. Enquanto eu cru­zava a porta, o Tenente Rahms inclinou-se para diante.    

            - Ande vagarosamente no corredor F, disse ele.

            Andar devagar? O que quisera ele dizer? A guarda entrou pelo corredor caminhando tão depressa que tive de correr para poder acompanhá-la. Mais adiante, uma encarregada estava destrancando a porta de uma cela. Atrasei meus pas­sos o máximo que pude, com o coração batendo descompassadamente. Era a cela de Betsie - eu sabia que era!

            Agora eu já estava bem em frente à porta. Betsie estava de costas para o corredor. Eu só conseguia ver o seu gracioso coque, seu cabelo castanho-claro. As outras mulheres da cela olhavam para fora curiosamente; Betsie inclinara a cabeça e fitava alguma coisa em seu colo. Todavia eu estava vendo que ela já transformara aquela cela em um lar.       

            Incrivelmente, contra toda a lógica, aquela cela estava encantadora. Consegui ver apenas alguns detalhes, ao passar lentamente, relutando em prosseguir. As esteiras estavam enroladas - não empilhadas num canto - e pareciam pequenas colunas redondas, ao longo da parede, cada uma encimada por um chapéu feminino. Um lenço de cabeça fora disposto na parede, com um efeito decorativo.

            Vários tipos de alimen­to estavam arranjados em uma pequena prateleira. Eu quase ouvia Betsie dizendo: "A caixa de biscoitos vermelha no meio." Mesmo os casacos dependurados em seus ganchos pareciam colaborar para tornar o quarto mais convidativo, cada man­ga caindo sobre o ombro do casaco próximo, como se for­massem uma fileira de crianças a dançar.

            - Schneller! Aber schneller! (Depressa! Mais depressa!) Apressei-me a seguir a guarda. Tinha sido apenas um olhar de relance, não mais que dois segundos, mas eu desci o cor­redor sentindo a presença do espírito exultante de Betsie a meu lado.

            Durante toda aquela manhã, eu ouvira portas se abrindo e fechando. Agora o ruído de chaves à minha porta: apareceu uma guarda bem jovem, vestida com uma farda nova.

            - Prisioneira, atenção! falou em tom ríspido.

            Olhei-a espantada, piscando sem entender; aquela moça estava mortalmente assustada, com um medo terrível de al­guém ou de alguma coisa.

            Aí um vulto surgiu à porta, e uma mulher entrou na cela. Seus traços eram bem feitos, clássicos - o rosto e o porte de uma deusa, esculpidos em mármore. Nem mesmo a mínima parcela de sentimento transparecia em seus olhos.

            - Estou vendo que aqui também não há lençóis, disse à guarda em alemão. Arranje-lhe dois até sexta-feira. Um deve ser trocado de quinze em quinze dias.

            Seu olhar gelado fez uma apreciação acurada de minha pessoa como fizera da cama.

            - Quantos banhos a prisioneira toma?

            A guarda passou a língua nos lábios.

            - Um por semana, Wachtmeisterin. {Senhora oficial!)

            Um por semana? Um por mês, é o que era!

            - Bem, agora serão dois por semana.

            Lençóis! Banho! Será que a situação iria melhorar? A nova supervisora deu dois passos pela cela. Ela não precisou subir no catre para alcançar a lâmpada. Lá se foi meu quebra-luz vermelho. Apontou para uma caixa de biscoitos que viera no segundo pacote que Nollie me enviara.

            - Não é permitido ter caixas nas celas! gritou à guarda jovem em holandês, como se isso fosse um regulamento há muito estabelecido.

            Sem saber o que fazer, derramei os biscoitos na cama. Fiz o mesmo com um vidro de vitaminas e um saquinho de balas de hortelã, pressentindo a ordem da chefe.

            Diferentemente da outra supervisora que berrava e voci­ferava sem parar, numa voz estridente, esta fazia tudo em profundo silêncio. Com um gesto indicou à guarda que deve­ria dar uma busca debaixo do colchão. Meu coração subiu para a garganta: o evangelho que me restava estava escondi­do ali.

            A jovem ajoelhou-se e correu as mãos por todo o comprimento do catre. Contudo, ou ela estava muito nervosa para fazer um serviço perfeito, ou então uma coisa misteriosa acon­teceu, pois ela ergueu-se de mãos vazias.

            Logo depois elas se retiraram.

            Fiquei ali de pé, contemplando a mistura de biscoitos, ba­las e vitaminas sobre a cama. Imaginei aquela mulher en­trando no quarto de Betsie e reduzindo-o a uma cela de qua­tro paredes nuas e um catre. Um vento gelado soprava em Scheveningen, desbastando, comandando, matando...

            E foi esta mulher alta, de maneiras diretas, que veio à minha cela, na segunda quinzena de junho, acompanhada do Tenente Rahms. Ao ver a seriedade com que ele me fitava, cortei a tempo a saudação que quase me escapava.

            - Venha ao meu escritório, disse ele secamente. O notário chegou.

            Parecíamos totalmente estranhos.

            - Notário? perguntei estupidamente.

            - Para a leitura do testamento de seu pai.

            Ele teve um gesto de impaciência; parecia que esta tarefa sem importância havia lhe interrompido um dia cheio.

            - É a lei: a família toda tem que estar reunida quando o testamento é aberto.

            Ele já estava deixando a cela em direção ao corredor. Saí também, desajeitada, meio correndo, meio andando, para acompanhar o passo da mulher a meu lado. A lei? Que lei? E desde quando o governo alemão da ocupação se importava com as legalidades da Holanda? Família! A família presen­te... Não, Corrie, não se permita pensar nisso.

            Na entrada do pátio, a mulher parou, e, sempre ereta e impassível, voltou pelo corredor. Segui o Tenente Rahms pelo caminho ensolarado, naquela tarde de verão. Ele abriu-me a porta da quarta cabine. Antes que meus olhos pudessem se ajustar à semi-escuridão ambiente, eu já estava envolvida pelo abraço de Willem.

            - Corrie! Corrie! Minha irmãzinha!

            Há cinqüenta anos ele não me tratava assim.

            Agora era um braço de Nollie, o outro ainda agarrado a Betsie, como se com sua força ela pudesse nos conservar jun­tas para sempre. Betsie! Willem! Nollie! Eu não sabia que nome gritar primeiro. Tine também estava lá, e Flip também, e outro homem. Quando pude olhar para ele, reconheci o notário de Haarlem, que já fora à nossa loja algumas vezes para alguns serviços legais. Nós nos examinávamos bem, fa­zendo uma confusão de perguntas, todas a um só tempo.

            Betsie estava magra e pálida do confinamento, mas foi a aparência de Willem que me chocou mais. Seu rosto estava encovado, amarelado, marcado pela dor. Ele saíra assim de Scheveningen, informou-me Tine. Dois dos oito homens que estavam amontoados na mesma cela que ele haviam morrido de hepatite.

            Willem! Eu não suportava vê-lo tão acabado. Enfiei meu braço pelo seu, aproximando-me bastante dele para que não tivesse de olhá-lo, e adorando ouvir sua voz profunda e fluente. Ele não parecia consciente de seu próprio estado de saúde: sua preocupação estava voltada para Kik. Seu filho, aquele rapaz louro e simpático, havia sido preso no mês an­terior, quando auxiliava um pára-quedista norte-americano a alcançar a costa do mar do Norte. Eles criam que ele fora embarcado num trem de prisioneiros para a Alemanha.

            Quanto a papai, haviam descoberto mais alguns fatos acer­ca de seus últimos dias. Soubemos que ele adoecera na cela e fora levado para o hospital municipal de Haia. Lá, entretan­to, não encontraram leitos vagos, e ele morrera no corredor mesmo. Como não levara a pasta do seu processo, não houve possibilidade de ser identificado. Os funcionários do hospital enterraram aquele velhinho desconhecido no cemitério dos indigentes. Cria-se que seu túmulo fora localizado.

            Dei uma olhada para o Tenente Rahms. Enquanto conver­sávamos, ele conservava-se de costas para nós, fitando a es­tufa, agora apagada e fria. Abri apressadamente o pacote que Nollie me colocara nas mãos quando me abraçara. Era o que meu coração já havia adivinhado: uma Bíblia, a Bíblia com­pleta num pequeno volume, enfiado num embornal de pano, amarrado com um barbante para ser carregado ao pescoço, como fizéramos com os cartões de identidade. Passei-o pela cabeça, num movimento rápido, e deixei-o escorregar pelas costas, sob a blusa. Nem mesmo encontrava palavras para agradecer-lhe. No dia anterior, eu dispusera de meu último evangelho, na fila do chuveiro.

            - Não sabemos todos os detalhes, Willem estava dizendo a Betsie em voz baixa. Depois de alguns dias, eles afastaram os soldados do Beje, e puseram guardas da polícia lá.

            No quarto dia, ele cria, o chefe de polícia conseguira de­signar Rolf e outro homem de nosso grupo para a guarda. Eles encontraram os judeus passando bem, embora famintos e doloridos; conseguiram arranjar-lhes esconderijos seguros e os conduziram para lá.

            - E agora? perguntei. Estão todos bem?

            Willem abaixou para mim seus olhos fundos. Ele nunca soubera disfarçar bem uma verdade triste.

            - Estão todos bem, Corrie; todos, menos Mary.

            A pobre Mary Itallie, disse-me, fora presa perto dali, quando andava por uma rua. Não se sabia para onde ela estava indo, nem por que se expusera assim em pleno dia.

            - Tempo esgotado!

            O Tenente Rahms deixou sua contemplação da estufa e fez um gesto de cabeça para o notário.

            - Vamos proceder à leitura do testamento.

            Era um documento breve e informal: o Beje ficava para mim e Betsie enquanto o quiséssemos. Se vendêssemos a casa e a loja, ele sabia que nós nos lembraríamos de seu amor por todos nós. Ele nos colocava, com alegria, sob o constante cuidado de Deus.

            No silêncio que se seguiu, abaixamos a cabeça.

            - Senhor, orou Willem, nós te agradecemos por estes momentos que passamos juntos aqui, sob a proteção deste homem bondoso. Como podemos agradecer-lhe? Não temos possibilidades de prestar-lhe nenhum favor. Senhor, permite-nos partilhar com ele essa herança de nosso pai. Toma-o, Se­nhor, e à sua família sob teu cuidado constante.

Do lado de fora, os passos da guarda rangiam no caminho de cascalho.