O Tenente
Eu estava acompanhando uma das guardas - caminhando atrás dela, mas um pouco à direita para não pisar na sagrada passadeira - por um corredor que eu não conhecia. Viramos à direita, demos alguns passos, e, depois, à direita outra vez... que interminável labirinto, essa prisão! Por fim, chegamos a um pequeno pátio interno. Uma chuvinha fina estava caindo. Fazia um frio cortante, naquela manhã do fim de maio: após três meses de prisão, eu comparecia a um interrogatório pela primeira vez.
Em três de seus lados, o pátio era rodeado por uma construção
alta, de janelas fechadas por barras de ferro. No quarto, havia uma parede
alta junto à qual se erguia uma fileira de cômodos. Então estas eram as cabines
onde os famigerados interrogatórios tinham lugar! Senti minha respiração curta
e difícil ao me recordar dos relatos que eu própria passara adiante, no dia do
aniversário de Hitler.
"Senhor Jesus, tu também foste levado a um
interrogatório. Ensina-me o que devo fazer!"
Foi aí que algo chamou minha atenção. A pessoa que utilizava
a quarta cabine fizera um canteirinho de tulipas ao lado.
Agora, elas estavam murchas: não eram mais que algumas
hastes esguias e folhas amareladas, mas... "Senhor, concede que eu vá para
a número quatro."
A guarda havia parado um instante para desatar a sua
longa capa militar, presa ao ombro, e envolver-se nela. Agora, ela seguiu pelo
caminho, triturando o cascalho. Passou pela primeira cabine, pela segunda, pela
terceira. Estacou diante da cabine com o canteirinho, e bateu à porta.
- Ja! Herrein! (Pois não! Entre!) gritou uma voz
masculina.
Ela empurrou a porta, fez a continência de braço estendido,
e saiu de novo. O homem estava fardado e carregava suas condecorações, e trazia
uma arma no coldre. Tirou o chapéu, e eu reconheci o oficial bondoso que fora
me ver na cela.
- Eu sou o Tenente Rahms, disse encaminhando-se à porta
para fechá-la após mim. A senhora está tremendo! Espere, vou acender o fogo.
Achegou-se a uma pequena estufa redonda, e encheu-a de
carvão que retirara de um recipiente ao lado, lembrando em tudo um anfitrião
alemão recebendo uma visita. E se aquilo fosse apenas uma cilada? Estes gestos
bondosos e humanos... talvez ele tivesse descoberto que tais artifícios eram
mais efetivos para arrancar a verdade de gente solitária e faminta de atenção
e afeto, do que a brutalidade.
"Senhor, não deixes que por uma credulidade tola eu
ponha em perigo a vida de outras pessoas."
- Espero que não tenhamos mais dias frios como este,
nesta primavera, disse ele.
Ele puxou uma cadeira para mim, e eu a aceitei cansadamente.
Como era estranho recostar-me numa cadeira, e colocar as mãos nos braços dela
depois de três meses sem ver uma! O calor da estufa estava gradualmente se
espalhando pela saleta. Apesar de minhas prevenções, comecei a relaxar-me.
Aventurei-me a um tímido comentário a respeito das tulipas.
- Cresceram bastante; devem ter sido lindas.
- Ah, foram! ele pareceu-me ridiculamente satisfeito. Foram
as melhores que já consegui. Em casa, sempre planto as batatas holandesas.
Conversamos sobre flores por alguns instantes, e depois
ele disse:
- Gostaria de poder ajudá-la, D. Cornélia, mas a senhora
tem de me dizer tudo. Pode ser que eu consiga fazer alguma coisa pela senhora,
mas só se não ocultar nada de mim.
Então, ali estava a verdade. Aquela cordialidade, o interesse
amistoso de que eu duvidara um pouco - tudo era mesmo um ardil para extrair
informação. E por que pão? Ele era um oficial e tinha uma tarefa a cumprir
Entretanto eu também, de certo modo, tinha minha tarefa.
Ele me interrogou durante uma hora, e fez uso de todos os
truques psicológicos sobre os quais os jovens do nosso grupo clandestino me
haviam alertado. Aliás eu me senti como uma estudante que se prepara muito bem
para um exame difícil e, na hora de fazer a prova, vê-se argüida apenas a
respeito das questões mais elementares.
Descobri que eles criam que o Beje fora o centro
de onde partiam ordens de assalto a vários almoxarifados de racionamento de
alimento do país. De todas as atividades ilegais que me pesavam na consciência,
esta era a de que eu tinha menos conhecimento.
Eu nada sabia dos detalhes da operação, a não ser que
recebia os cartões roubados e os passava adiante. Aparentemente, minha
ignorância no assunto ficou bem patente, e o Tenente Rahms parou de anotar minhas
respostas desanimadoras e incoerentes.
- Das suas outras atividades, o que a senhora gostaria de
contar?
- Outras atividades? Ah! o senhor quer saber a respeito
de minhas reuniões para retardados?
E me lancei animadamente num relato de minha tentativa de
evangelizar pessoas de mente fraca.
O tenente arqueou as sobrancelhas, num espanto cada vez
maior.
- Que desperdício de tempo e energias! exclamou afinal.
Se a senhora quer conseguir adeptos, uma pessoa normal vale por todos os
lunáticos do mundo!
Olhei-o de frente, fitando seus inteligentes olhos
azul-acinzentados: a filosofia nazista, pensei, apesar do canteiro de tulipas.
E para meu assombro, ouvi-me dizer corajosamente:
- Posso dizer-lhe a verdade, Tenente Rahms?
- Minha senhora, esta audiência está baseada na suposição
de que a senhora me concederá esta honra.
- A verdade, senhor, disse engolindo em seco, é que o
ponto de vista de Deus é, às vezes, tão diferente do nosso, que não poderíamos
nem mesmo chegar perto dele, se Deus não nos tivesse dado um Livro no qual ele
nos diz tudo.
Eu sabia ser loucura minha falar daquele jeito a um
oficial nazista, mas ele não disse nada e eu prossegui.
- Na Bíblia, eu aprendi que, aos olhos de Deus, nosso valor
não é medido por nossa força ou inteligência, mas por sermos feitos por ele.
Quem sabe se para ele um lunático tem mais valor que um relojoeiro, ou... do
que um tenente?
O Tenente Rahms levantou-se abruptamente.
- Isto é tudo por hoje.
Caminhou apressadamente até à porta.
- Guarda!
Ouvi passos no cascalho.
- A prisioneira vai voltar à cela.
Enquanto seguia a guarda de volta, compreendi que havia
cometido um erro. Falara demais. Eu tinha destruído qualquer chance de um
possível interesse dele pelo meu caso.
Entretanto no dia seguinte foi o próprio Tenente Rahms
que abriu a porta de minha cela, e escoltou-me para a saleta de audiência. Ele
parecia desconhecer o regulamento que proibia os prisioneiros de pisar na
esteira, pois indicou-me que eu devia andar à sua frente, pelo centro do corredor.
Evitei os olhos dos guardas ao longo do percurso, sentindo-me culpada como um
cachorro treinado que foi encontrado refestelado no sofá da sala. No pátio, o
sol brilhava.
- Vamos ficar aqui fora hoje, disse ele. A senhora está
muito pálida. Não está tomando bastante sol.
Com gratidão, segui-o até o canto mais distante, onde o
ar estava tépido e parado. Encostamo-nos à parede.
- Não dormi nada, a noite passada, disse o tenente. Fiquei
pensando naquele livro, onde a senhora leu a respeito das idéias diferentes.
Que mais diz nele?
Fechei os olhos e percebi o clarão do sol através das
pálpebras.
- Diz, comecei vagarosamente, que a Luz veio ao mundo
para que não tenhamos que andar mais em trevas. Há trevas na vida do senhor,
tenente?
Houve uma longa pausa.
- Grandes trevas, disse por fim. Eu não suporto o trabalho
que faço aqui.
De repente, ele começou a me falar de sua esposa e filhos
que estavam em Bremen, e sobre o jardim de sua casa, seus cães, seus passeios a
pé nas férias de verão.
- Bremen foi bombardeada novamente a semana passada.
Todos os dias eu me pergunto: será que ainda estão vivos?
- Há alguém que está sempre olhando por eles, Tenente
Rahms. Jesus é essa Luz que a Bíblia nos revela, a Luz que pode afastar até
mesmo trevas iguais às suas.
Ele abaixou o visor do quepe, cobrindo os olhos; o emblema
da caveira com os ossos cruzados brilhou ao sol. Quando ele falou novamente,
foi tão baixo que mal o ouvi.
- O que é que a senhora sabe sobre trevas como essas
minhas?
O interrogatório repetiu-se ainda por dois dias. Ele
cessou totalmente de fingir que me questionava sobre minhas atividades
clandestinas, e parecia gostar bastante de escutar fatos de minha infância.
Mamãe, papai, as tias... ele queria ouvir-me falar deles muitas vezes.
Ficou indignado ao saber que papai havia morrido ali em
Scheveningen; os documentos da minha pasta não faziam menção deste fato. Eles
continham, porém, a razão de meu confinamento na solitária.
"A doença da prisioneira é contagiosa."
Olhei para as palavras datilografadas que o tenente apontava.
Pensei nas longas noites de ventania, no deboche dos guardas, na lei do
silêncio.
- Mas se não era por castigo, por que estavam tão irados
comigo? Por que eu não podia falar?
O tenente acertou as pontas dos papéis à sua frente.
- Uma prisão é como qualquer outra instituição, minha
senhora; alguns regulamentos, alguns métodos de ação...
- Eu não tenho mais esta doença contagiosa. Já estou boa
há várias semanas e minha própria irmã está aqui tão perto! Tenente Rahms, se
eu pudesse ver Betsie, se eu pudesse conversar com ela durante alguns minutos!
Ele ergueu os olhos e eu percebi uma grande angústia neles.
- Minha senhora, é possível que eu lhe pareça muito poderoso.
Eu uso uma farda, tenho certa autoridade sobre meus comandados, mas estou numa
prisão, prezada senhora, uma prisão mais forte que esta aqui.
Era a quarta e última sessão de interrogatório, e nós
fôramos para dentro a fim de assinar os papéis. Ele reuniu tudo e saiu,
deixando-me a sós. Eu sentia ter que me despedir desse homem que estava lutando
tanto para chegar à verdade. Parecia que o mais difícil para ele era aceitar o
fato de que o cristão deva sofrer.
- Como é que a senhora ainda consegue acreditar em Deus?
ele me perguntara. Que Deus é este que deixa aquele velhinho morrer aqui em
Scheveningen?
Ergui-me da cadeira, e, aproximando-me da estufa, estendi
as mãos para aquecê-las. Eu também não entendia por que papai morrera em tal
lugar. Eu não entendia muitas coisas.
De repente lembrei-me da resposta que papai me dera a
respeito de questões muito difíceis: "Alguns conhecimentos pesam demais...
você não suportaria... o papai carregará os pesos até que você se torne
capaz." Sim! Eu contaria ao Tenente Rahms o caso da mala de viagem - ele
gostava muito das histórias que eu lhe contava a respeito de papai.
Quando o tenente regressou, porém, vinha acompanhado de
uma guarda da ala feminina.
- A prisioneira ten Boom já encerrou as audiências e pode
retornar à cela, disse.
A jovem pôs-se em posição de sentido. Enquanto eu cruzava
a porta, o Tenente Rahms inclinou-se para diante.
- Ande vagarosamente no corredor F, disse ele.
Andar devagar? O que quisera ele dizer? A guarda entrou
pelo corredor caminhando tão depressa que tive de correr para poder
acompanhá-la. Mais adiante, uma encarregada estava destrancando a porta de uma
cela. Atrasei meus passos o máximo que pude, com o coração batendo
descompassadamente. Era a cela de Betsie - eu sabia que era!
Agora eu já estava bem em frente à porta. Betsie estava
de costas para o corredor. Eu só conseguia ver o seu gracioso coque, seu cabelo
castanho-claro. As outras mulheres da cela olhavam para fora curiosamente;
Betsie inclinara a cabeça e fitava alguma coisa em seu colo. Todavia eu estava
vendo que ela já transformara aquela cela em um lar.
Incrivelmente, contra toda a lógica, aquela cela estava
encantadora. Consegui ver apenas alguns detalhes, ao passar lentamente,
relutando em prosseguir. As esteiras estavam enroladas - não empilhadas num
canto - e pareciam pequenas colunas redondas, ao longo da parede, cada uma
encimada por um chapéu feminino. Um lenço de cabeça fora disposto na parede,
com um efeito decorativo.
Vários tipos de alimento estavam arranjados em uma
pequena prateleira. Eu quase ouvia Betsie dizendo: "A caixa de biscoitos
vermelha no meio." Mesmo os casacos dependurados em seus ganchos pareciam
colaborar para tornar o quarto mais convidativo, cada manga caindo sobre o
ombro do casaco próximo, como se formassem uma fileira de crianças a dançar.
- Schneller! Aber schneller! (Depressa! Mais
depressa!) Apressei-me a seguir a guarda. Tinha sido apenas um olhar de
relance, não mais que dois segundos, mas eu desci o corredor sentindo a
presença do espírito exultante de Betsie a meu lado.
Durante toda aquela manhã, eu ouvira portas se abrindo e fechando. Agora o ruído de chaves à minha porta: apareceu uma guarda bem jovem, vestida com uma farda nova.
- Prisioneira, atenção! falou em tom ríspido.
Olhei-a espantada, piscando sem entender; aquela moça
estava mortalmente assustada, com um medo terrível de alguém ou de alguma
coisa.
Aí um vulto surgiu à porta, e uma mulher entrou na cela.
Seus traços eram bem feitos, clássicos - o rosto e o porte de uma deusa,
esculpidos em mármore. Nem mesmo a mínima parcela de sentimento transparecia em
seus olhos.
- Estou vendo que aqui também não há lençóis, disse à
guarda em alemão. Arranje-lhe dois até sexta-feira. Um deve ser trocado de
quinze em quinze dias.
Seu olhar gelado fez uma apreciação acurada de minha
pessoa como fizera da cama.
- Quantos banhos a prisioneira toma?
A guarda passou a língua nos lábios.
- Um por semana, Wachtmeisterin. {Senhora
oficial!)
Um por semana? Um por mês, é o que era!
- Bem, agora serão dois por semana.
Lençóis! Banho! Será que a situação iria melhorar? A nova
supervisora deu dois passos pela cela. Ela não precisou subir no catre para
alcançar a lâmpada. Lá se foi meu quebra-luz vermelho. Apontou para uma caixa
de biscoitos que viera no segundo pacote que Nollie me enviara.
- Não é permitido ter caixas nas celas! gritou à guarda
jovem em holandês, como se isso fosse um regulamento há muito estabelecido.
Sem saber o que fazer, derramei os biscoitos na cama. Fiz
o mesmo com um vidro de vitaminas e um saquinho de balas de hortelã,
pressentindo a ordem da chefe.
Diferentemente da outra supervisora que berrava e vociferava
sem parar, numa voz estridente, esta fazia tudo em profundo silêncio. Com um
gesto indicou à guarda que deveria dar uma busca debaixo do colchão. Meu
coração subiu para a garganta: o evangelho que me restava estava escondido
ali.
A jovem ajoelhou-se e correu as mãos por todo o
comprimento do catre. Contudo, ou ela estava muito nervosa para fazer um
serviço perfeito, ou então uma coisa misteriosa aconteceu, pois ela ergueu-se
de mãos vazias.
Logo depois elas se retiraram.
Fiquei ali de pé, contemplando a mistura de biscoitos, balas
e vitaminas sobre a cama. Imaginei aquela mulher entrando no quarto de Betsie
e reduzindo-o a uma cela de quatro paredes nuas e um catre. Um vento gelado
soprava em Scheveningen, desbastando, comandando, matando...
E foi esta mulher alta, de maneiras diretas, que veio à minha cela, na segunda quinzena de junho, acompanhada do Tenente Rahms. Ao ver a seriedade com que ele me fitava, cortei a tempo a saudação que quase me escapava.
- Venha ao meu escritório, disse ele secamente. O notário
chegou.
Parecíamos totalmente estranhos.
- Notário? perguntei estupidamente.
- Para a leitura do testamento de seu pai.
Ele teve um gesto de impaciência; parecia que esta tarefa
sem importância havia lhe interrompido um dia cheio.
- É a lei: a família toda tem que estar reunida quando o
testamento é aberto.
Ele já estava deixando a cela em direção ao corredor. Saí
também, desajeitada, meio correndo, meio andando, para acompanhar o passo da
mulher a meu lado. A lei? Que lei? E desde quando o governo alemão da ocupação
se importava com as legalidades da Holanda? Família! A família presente...
Não, Corrie, não se permita pensar nisso.
Na entrada do pátio, a mulher parou, e, sempre ereta e
impassível, voltou pelo corredor. Segui o Tenente Rahms pelo caminho
ensolarado, naquela tarde de verão. Ele abriu-me a porta da quarta cabine.
Antes que meus olhos pudessem se ajustar à semi-escuridão ambiente, eu já
estava envolvida pelo abraço de Willem.
- Corrie! Corrie! Minha irmãzinha!
Há cinqüenta anos ele não me tratava assim.
Agora era um braço de Nollie, o outro ainda agarrado a
Betsie, como se com sua força ela pudesse nos conservar juntas para sempre.
Betsie! Willem! Nollie! Eu não sabia que nome gritar primeiro. Tine também
estava lá, e Flip também, e outro homem. Quando pude olhar para ele, reconheci
o notário de Haarlem, que já fora à nossa loja algumas vezes para alguns
serviços legais. Nós nos examinávamos bem, fazendo uma confusão de perguntas,
todas a um só tempo.
Betsie estava magra e pálida do confinamento, mas foi a
aparência de Willem que me chocou mais. Seu rosto estava encovado, amarelado,
marcado pela dor. Ele saíra assim de Scheveningen, informou-me Tine. Dois dos
oito homens que estavam amontoados na mesma cela que ele haviam morrido de
hepatite.
Willem! Eu não suportava vê-lo tão acabado. Enfiei meu
braço pelo seu, aproximando-me bastante dele para que não tivesse de olhá-lo, e
adorando ouvir sua voz profunda e fluente. Ele não parecia consciente de seu
próprio estado de saúde: sua preocupação estava voltada para Kik. Seu filho,
aquele rapaz louro e simpático, havia sido preso no mês anterior, quando
auxiliava um pára-quedista norte-americano a alcançar a costa do mar do Norte.
Eles criam que ele fora embarcado num trem de prisioneiros para a Alemanha.
Quanto a papai, haviam descoberto mais alguns fatos acerca
de seus últimos dias. Soubemos que ele adoecera na cela e fora levado para o
hospital municipal de Haia. Lá, entretanto, não encontraram leitos vagos, e
ele morrera no corredor mesmo. Como não levara a pasta do seu processo, não
houve possibilidade de ser identificado. Os funcionários do hospital enterraram
aquele velhinho desconhecido no cemitério dos indigentes. Cria-se que seu
túmulo fora localizado.
Dei uma olhada para o Tenente Rahms. Enquanto conversávamos,
ele conservava-se de costas para nós, fitando a estufa, agora apagada e fria.
Abri apressadamente o pacote que Nollie me colocara nas mãos quando me
abraçara. Era o que meu coração já havia adivinhado: uma Bíblia, a Bíblia completa
num pequeno volume, enfiado num embornal de pano, amarrado com um barbante para
ser carregado ao pescoço, como fizéramos com os cartões de identidade. Passei-o
pela cabeça, num movimento rápido, e deixei-o escorregar pelas costas, sob a
blusa. Nem mesmo encontrava palavras para agradecer-lhe. No dia anterior, eu
dispusera de meu último evangelho, na fila do chuveiro.
- Não sabemos todos os detalhes, Willem estava dizendo a
Betsie em voz baixa. Depois de alguns dias, eles afastaram os soldados do Beje,
e puseram guardas da polícia lá.
No quarto dia, ele cria, o chefe de polícia conseguira designar
Rolf e outro homem de nosso grupo para a guarda. Eles encontraram os judeus
passando bem, embora famintos e doloridos; conseguiram arranjar-lhes
esconderijos seguros e os conduziram para lá.
- E agora? perguntei. Estão todos bem?
Willem abaixou para mim seus olhos fundos. Ele nunca
soubera disfarçar bem uma verdade triste.
- Estão todos bem, Corrie; todos, menos Mary.
A pobre Mary Itallie, disse-me, fora presa perto dali,
quando andava por uma rua. Não se sabia para onde ela estava indo, nem por que
se expusera assim em pleno dia.
- Tempo esgotado!
O Tenente Rahms deixou sua contemplação da estufa e fez
um gesto de cabeça para o notário.
- Vamos proceder à leitura do testamento.
Era um documento breve e informal: o Beje ficava
para mim e Betsie enquanto o quiséssemos. Se vendêssemos a casa e a loja, ele
sabia que nós nos lembraríamos de seu amor por todos nós. Ele nos colocava, com
alegria, sob o constante cuidado de Deus.
No silêncio que se seguiu, abaixamos a cabeça.
- Senhor, orou Willem, nós te agradecemos por estes
momentos que passamos juntos aqui, sob a proteção deste homem bondoso. Como
podemos agradecer-lhe? Não temos possibilidades de prestar-lhe nenhum favor.
Senhor, permite-nos partilhar com ele essa herança de nosso pai. Toma-o, Senhor,
e à sua família sob teu cuidado constante.
Do lado de fora, os passos da guarda rangiam no caminho de cascalho.