Deixando Haarlem, o ônibus tomou a estrada do sul, paralela à linha costeira. À direita, víamos as colinas arenosas da região das dunas e as silhuetas dos soldados recortadas contra as orlas. Percebemos claramente que não estávamos sendo levados para Amsterdam.
A viagem de duas horas terminou em Haia. O veículo
deteve-se em frente a um edifício novo e funcional. Até nós chegou a informação
de que se tratava do quartel general da Gestapo, na Holanda. Todos nós - menos
Pickwick que parecia incapaz de erguer-se de seu lugar - fomos levados para um
salão amplo, onde se repetiu o mesmo processo cansativo de se recitar nome,
endereço e ocupação.
Um longo balcão cortava o aposento em seu comprimento,
e, por trás dele, vi, com espanto, Willemse e Kapteyn. À medida que cada um dos
prisioneiros de Haarlem se aproximava, um ou outro se inclinava e falava
alguma coisa com o homem que estava assentado à máquina de escrever, e daí a
pouco, ouvia-se o matraquear das teclas.
De repente, os olhos do interrogador caíram sobre papai.
- E aquele velho? perguntou. Tinha que ser preso também?
Ei, você!
Willem encaminhou papai à mesa. O chefe da Gestapo
inclinou-se para diante.
- Gostaria de mandá-lo de volta para casa, disse. Dê-me
apenas sua palavra de que não causará mais problemas.
De onde eu estava, não conseguia ver o rosto de papai; só
via suas costas eretas e a cabeça branca encimando os ombros, mas ouvi bem sua
resposta.
- Se eu voltar para casa hoje, disse ele clara e firmemente,
amanhã abro minhas portas para qualquer pessoa que precisar de mim.
Toda a amabilidade
desapareceu do rosto do homem.
- Volte para a fila, berrou. Schnell! (Rápido.)
Não vamos tolerar mais atrasos!
Mas atraso era o que mais havia naquele lugar. À proporção
que nos adiantávamos pelo balcão, vinham mais perguntas, mais exames de
documentos, mais idas e vindas dos policiais. Lá fora, a luz do sol ia
desmaiando para encerrar aquele curto dia de inverno. Não tínhamos comido nada
a não ser os pãezinhos e nem bebido água, a não ser a que tomáramos pela manhã.
À minha frente, na fila, Betsie respondeu
"solteira", pela vigésima vez naquele dia.
- Quantos filhos? perguntou o interrogador.
- Sou solteira, repetiu Betsie. Ele nem levantou os
olhos.
- Quantos filhos? perguntou rispidamente.
- Nenhum, respondeu ela resignadamente.
À noitinha, um homenzinho gorducho, com uma estrela
amarela ao peito, foi levado ao fundo da sala, passando por nós. Uma agitação
súbita vindo dali, atraiu os olhares de todos. O pobre homem tentava impedir
que lhe tirassem algo que segurava firmemente.
- É minha, gritava ele. Não podem tomar de mim! Não podem
tomar minha carteira!
Será que ele perdera a razão? Para que pensava ele que o
dinheiro lhe valeria agora? E continuou a lutar, para evidente divertimento dos
homens que o cercavam.
- Aqui, judeu! ouvi um deles dizer. Em seguida, ergueu o
pé e chutou o homenzinho por trás do joelho. É assim que tiramos as coisas de
um judeu.
Fazia tanto barulho! era a única coisa que eu conseguia
pensar enquanto os via continuar a chutá-lo. Agarrei-me ao balcão, para não
desmaiar, escutando aqueles ruídos surdos. Incompreensivelmente, comecei a
sentir um ódio desesperado daquele judeu; ódio, por ser tão indefeso e por
achar-se tão à mercê deles. Afinal, ouvi que o arrastavam para fora.
De repente, achei-me diante do interrogador.
Ergui a cabeça e encontrei o olhar de Kapteyn, de pé
atrás dele.
- Esta mulher é a cabeça do grupo, disse.
Apesar do estado de confusão em que me encontrava, sabia
que era muito importante que o outro homem cresse nele.
- É verdade o que o Sr. Kapteyn está dizendo, disse eu.
Esses outros... eles não sabem nada. A culpa é toda...
Meu inquisidor não se deixou perturbar.
- Nome?
- Cornélia ten Boom, e eu sou...
- Idade?
- Cinqüenta e dois. Essas outras pessoas aqui não tem nada
a ver...
- Ocupação?
- Mas eu já disse vinte vezes! explodi em desespero.
- Ocupação? repetiu ele.
Já estava escuro quando afinal deixamos aquele lugar. O
ônibus verde não se achava mais à vista. No lugar dele, divisamos um caminhão
do exército com toldo de lona. Dois soldados tiveram que ajudar papai a subir
pela traseira do veículo. Não havia sinal de Pickwick. Eu, papai e Betsie tomamos
assento em um dos bancos laterais.
O caminhão não tinha molas e sacolejava fortemente naquelas
ruas esburacadas pelas bombas. Colocando o braço ao redor dos ombros de papai,
procurei proteger-lhe as costas de se chocarem contra a parede lateral do
caminhão. De pé, ao fundo da carroceria, Willem nos informava o que ia vendo na
cidade às escuras.
Saíramos do centro e, ao que parecia, estávamos nos
dirigindo para o oeste, em direção a Scheveningen. Nosso destino seria, então,
a penitenciária federal de mesmo nome.
O veículo parou abruptamente; ouviu-se um ranger de
gonzos. Avançou mais um pouco, e parou de novo. De trás, veio o ruído dos
pesados portões sendo fechados.
Descemos e descobrimos que nos achávamos num pátio
rodeado de altos muros. O Caminhão estava sendo levado para um hangar longo.
Alguns soldados nos conduziram para dentro do prédio. Pisquei ao brilho intenso
das luzes.
- Nasen gegen Maver! (De frente para a parede!)
Recebi um empurrão por trás, e vi-me encarando uma superfície de reboco
rachado. Olhei para os lados, até onde minha vista alcançava, primeiro à
esquerda e depois à direita. Junto a mim estava Willem. Mais duas pessoas
abaixo, estava Betsie. Do outro lado, vi Toos. Como eu, todos estavam de rosto
voltado para a parede. Onde estava papai?
Foi um longo período de espera, e as marcas da parede que
se achavam diante de meus olhos viraram silhuetas de pessoas, paisagens e
animais. Uma porta abriu-se à direita.
- As prisioneiras sigam-me!
A voz da mulher era metálica como o próprio rangido da
porta. Ao afastar-me da parede, corri os olhos pela sala à procura de papai. Lá
estava ele - a alguns passos da parede, sentado em uma cadeira de encosto. Um
dos guardas deve tê-la trazido para ele.
A policial já se encaminhava pelo corredor que se
divisava através da porta aberta. Eu, porém, deixei-me ficar fitando
desesperadamente a meu pai, Willem, Peter, e todos os nossos bravos agentes da
resistência.
- Papai, gritei de súbito, fique com Deus!
Ele voltou a cabeça em minha direção. A luz da lâmpada do
teto refletiu em seus óculos.
- E vocês também, minhas filhas, disse ele.
Virei-me e segui as outras. A porta bateu logo que
passei.
E vocês também! E vocês também! Ah, pai, quando nos
veríamos de novo?
A mão de Betsie segurou a minha. Ao longo do corredor
havia uma passadeira de palha. Pisamos nela, fugindo à umidade do piso de
concreto.
- As prisioneiras têm que andar fora da esteira, anunciou
a voz monótona da guarda às nossas costas.
Afastamo-nos imediatamente da passagem privilegiada.
Mais adiante, alcançamos uma mesa à qual se assentava uma
mulher fardada. À medida que cada prisioneira chegava junto a ela, declinava o
nome, pela milésima vez naquele dia, e depunha os objetos de valor.
Eu, Nollie e Betsie desprendemos nossos belos relógios
de pulso. Ao entregar o meu à mulher, ela apontou para a aliança de ouro que
pertencera a mamãe. Retirei-a do dedo e coloquei-a sobre a mesa juntamente com
a carteira contendo algumas notas em dinheiro.
Prosseguimos em nossa caminhada corredor abaixo. Nos dois
lados, víamos portas e mais portas - portinhas estreitas, de metal. Agora, a
fila de mulheres parou: a guarda estava enfiando a chave numa fechadura.
Ouvimos o ruído da lingüeta girando, o rangido das dobradiças. A mulher
examinou um papel, depois chamou o nome de uma mulher que eu nem conhecia, mas
que estivera na reunião de oração de Willem.
Será possível que tudo acontecera ontem? Hoje era
quinta-feira? Os acontecimentos do Beje pareciam pertencer a uma outra
existência. A porta foi fechada com uma batida seca. A coluna reiniciou a
marcha. Outra porta foi destrancada, outro ser humano foi encerrado ali
dentro.
Notei que não estavam colocando duas mulheres de Haarlem
juntas numa mesma cela. Um dos primeiros nomes a ser chamado foi o de Betsie.
Ela mal atravessara o umbral da porta, antes mesmo que
pudesse virar-se para um aceno de despedida, e a porta cerrou-se. Duas portas
abaixo foi a vez de Nollie deixar-me. O barulho daquelas duas portas permaneceu
em meus ouvidos enquanto prosseguíamos.
Num certo ponto o corredor se bifurcava; entramos à esquerda.
Depois, dobramos à direita, e à esquerda de novo, um mundo interminável de
concreto e aço.
- Cornélia ten Boom.
Outra porta rangiu. A cela era longa e estreita, pouco
mais larga que a porta mesmo. Uma mulher ocupava o único catre existente; havia
mais três deitadas em esteiras de palha, no chão.
- Deixe esta aqui ficar com o catre, disse a guarda. Ela
está doente.
E parece que para confirmar suas palavras, mal a porta se
fechara sobre mim, fui tomada por um forte acesso de tosse.
- Não queremos gente doente aqui, gritou alguém.
Elas puseram-se de pé, afastando-se de mim o quanto lhes
permitia o estreito cubículo.
- Eu... sinto muito..., principiei, mas uma voz me interrompeu.
- Não se preocupe. Não é culpa sua. Vamos, Frau Mikes,
deixe-a ficar com o catre. A jovem virou-se para mim. Eu penduro seu casaco e o
chapéu.
Sentindo-me muito agradecida, entreguei-lhe o chapéu, o
qual ela ajuntou a uma coleção de roupas que se achavam penduradas em ganchos,
ao longo da parede. Conservei o casaco, porém, apertando-o bem contra mim.
O catre já estava desocupado e para ele me dirigi,
tremendo muito, esforçando-me para não espirrar e nem ao menos respirar, ao
passar junto às outras. Tombei na cama, e, imediatamente, veio-me novo acesso
de tosse, provocado pela escura nuvem de pó que se desprendera do imundo
colchão. Afinal, a tosse acalmou e eu me deitei.
O cheiro acre da palha me chegava às narinas. Através do
colchão fino, eu sentia as ripas de madeira.
"Nunca vou ser capaz de dormir numa cama
destas", pensei, mas o fato de que tive consciência a seguir, foi que já
era de manhã, e alguém batia ruidosamente à porta.
- Comida! anunciaram minhas colegas de cela. Levantei-me
com esforço. O visor da porta foi abaixado horizontalmente, formando uma
bandeja, e uma pessoa, do lado de fora, colocava sobre ela uns pratos de folha,
contendo um mingau fumegante.
- Tem mais uma aqui! gritou pela abertura a mulher que se
chamava Frau Mikes. Precisamos de cinco pratos.
Outro prato foi posto na portinhola-prateleira.
- Se você não estiver com fome eu a ajudo, disse-me Frau
Mikes.
Peguei um prato, olhei para aquele mingau cinzento e aguado,
e estendi-o para ela sem dizer palavra. Daí a pouco os pratos foram recolhidos
e o visor foi fechado com uma batida.
Um pouco mais tarde, a chave girou na fechadura de novo,
o ferrolho correu e a porta foi aberta apenas o tempo necessário para que o
balde sanitário fosse entregue. A bacia também foi passada e logo depois
devolvida com água limpa. As mulheres recolheram as esteiras e as colocaram num
dos cantos, e, enquanto o faziam, ergueram uma nova nuvem de poeira, que
novamente me lançou num acesso de tosse.
Foi então que nos sobreveio o tédio da prisão - que muito
breve eu iria aprender a temer mais que tudo. A princípio, tentei superá-lo
conversando com as outras. Entretanto, apesar de elas serem corteses até
demais para pessoas que estavam vivendo praticamente amontoadas, elas
ignoraram minhas perguntas e nunca fiquei sabendo muita coisa a seu respeito.
Vim a descobrir que a jovem que tinha me tratado com
bondade na noite anterior era baronesa, e tinha apenas dezessete anos. Ela
caminhava constantemente pela cela, de manhã até a hora em que a lâmpada era
desligada à noite: seis passadas da parede à porta, mais seis da porta à
parede, desviando-se das que estavam assentadas no chão, de um lado para outro,
como um animal enjaulado.
Frau Mikes era austríaca, e havia trabalhado na faxina de
um grande edifício em sua cidade. Estava muito saudosa de seu canário, e
chorava muito.
- Coitadinho! dizia ela. O que vai ser dele agora? Ninguém
vai lembrar-se de dar-lhe comida.
Isto me fez recordar de nosso gato. Será que ele conseguira
escapar para a rua, ou estaria morrendo de fome dentro da casa lacrada? Eu o
visualizava rondando por entre as pernas das cadeiras da sala de jantar,
sentindo a falta dos ombros sobre os quais ele gostava de caminhar.
Eu procurava não deixar minha mente se esgueirar para a
parte superior da casa, não a deixava subir as escadas para saber se Thea,
Mary, Eusie... Não! Eu não poderia fazer nada por eles aqui desta cela. Deus
sabia que eles estavam lá.
Uma das prisioneiras estava em Scheveningen há três anos.
Ela ouvia o barulho do carrinho de refeições muito antes de nós, e, pelos
ruídos dos passos, sabia quem estava passando no corredor.
- É a encarregada da enfermaria; há alguém doente. Essa é
a quarta vez que uma pessoa da cela 316 sai para uma audiência.
O mundo dela se resumia naquele cubículo e no corredor.
Pouco depois descobri a vantagem de se ter esta visão estreitada, e por que as
prisioneiras, instintivamente, se esquivavam de perguntas acerca de outras
áreas da vida. Nos primeiros dias que passei na prisão, eu vivia em verdadeira
angústia, preocupada com papai, Betsie, Willem e Pickwick. Será que papai
estava conseguindo se alimentar? Será que o cobertor de Betsie era tão fino
quanto o meu?
Esses pensamentos, porém, levaram-me a um tal desespero,
que logo me esforcei para não ceder a eles. Numa tentativa de fixar minha
mente em outra coisa, pedi a Frau Mikes para me ensinar o jogo de cartas que
ela estava constantemente jogando. Ela havia feito as cartas com pedaços de papel
higiênico - cada prisioneira recebia dois por dia. Ela ficava o dia inteiro
sentada na beira do catre, deitando as cartas à sua frente, e depois
recolhendo-as de novo.
Demorei bastante para aprender, já que o jogo de baralho
nunca fora permitido no Beje. Agora, ao começar a entender o jogo de
"paciência", eu me perguntava o porquê da intolerância de papai aos
jogos de cartas - nada poderia ser mais inocente que aquela sucessão de
desenhos denominados paus, espadas, ouros...
Com o passar dos dias, porém, comecei a ver um perigo
sutil naquilo. Quando as cartas iam bem, meu moral subia. Era um bom augúrio:
alguém de Haarlem fora solto. Contudo, se eu perdia... talvez alguém estivesse
doente; talvez nossos amigos tivessem sido encontrados.
Por fim, tive que parar. Afinal, eu já estava mesmo me
cansando de ficar tanto tempo sentada. Comecei, mais e mais, a passar os dias
como passava as noites: revirando-me naquele colchão fino, procurando em vão
uma posição cômoda que me aliviasse todas as dores. Minha cabeça latejava continuamente;
agulhadas percorriam meu braço, e, ao tossir, cuspia sangue.
Certa manhã, eu me contorcia no catre quando a porta de
metal se abriu, dando entrada à guarda de voz metálica que eu vira na primeira
noite, quando chegara ali, quinze dias atrás.
- Cornélia ten Boom! Pus-me de pé penosamente.
- Pegue o chapéu e o casaco e venha comigo.
Olhei ao redor, esperando uma indicação do que iria acontecer
comigo.
- Você vai ser levada para fora da prisão, informou-me
nossa especialista. Quando mandam pegar o chapéu é porque vai para fora.
Eu já estava com o casaco e então tirei do gancho o chapéu,
e saí para o corredor. A mulher trancou a porta e saiu andando tão
vigorosamente que, ao segui-la, cuidando para não pisar na esteira, senti meu
coração martelar. Olhei ansiosamente para as portas fechadas em ambos os lados
do corredor; não conseguia me lembrar mais em quais delas minhas irmãs haviam
entrado.
Afinal, chegamos ao pátio amplo, cercado de muros altos.
O céu! Era a primeira vez que o via naquelas duas últimas semanas, o céu azul!
Como as nuvens passavam tão altas! Como eram brancas e limpas! Lembrei-me de
repente de como mamãe gostava do céu.
- Depressa! falou rispidamente a mulher. Apressei-me em
direção ao automóvel preto e brilhante ao lado do qual ela se achava. Abriu a
porta traseira e eu entrei. Havia mais duas pessoas ali: um soldado e uma mulher
de rosto cinzento, encovado. Na frente, junto ao motorista, estava derreado um
homem de aspecto doentio, cuja cabeça rolava descontroladamente, de um lado
para outro, no encosto do assento. Assim que o carro deu partida, a mulher ao
meu lado tossiu, levando à boca uma toalha suja de sangue. Logo compreendi
tudo: nós três estávamos doentes. Talvez estivéssemos sendo levados para um
hospital.
O grosso portão da prisão se abriu e nos encontramos no
mundo exterior, rodando pelas ruas largas da cidade. Eu contemplava tudo
extasiada. Via pessoas andando, olhando as vitrinas, parando para conversar com
amigos. Seria mesmo verdade que havia duas semanas eu era livre assim?
O carro estacou diante de um grande edifício. Foi preciso
que tanto o policial como o motorista ajudassem o homem a subir os três lances
da escada. Chegamos a uma sala de espera cheia de pacientes, e nos sentamos
sob o olhar vigilante do soldado. Quando já havia decorrido aproximadamente uma
hora, pedi permissão para ir ao banheiro. O soldado falou com a enfermeira de
uniforme imaculadamente branco que se achava à mesa da recepção.
- Venha por aqui, disse secamente.
Guiou-me por um pequeno corredor, entrou no banheiro
comigo e fechou a porta.
- Depressa! Há alguma coisa que eu possa fazer? Pisquei
sem compreender.
- Sim, pode. Uma Bíblia. Poderia me conseguir uma Bíblia?
E... uma agulha e linha, uma escova de dentes, sabonete!
Ela mordeu os lábios em dúvida.
- Há muitos doentes hoje, e ainda com o soldado... mas
verei o que posso fazer.
E saiu. A bondade dela parecia encher aquele quartinho de
uma claridade tão brilhante como a dos azulejos brancos e as torneiras
luzentes. Meu coração jubilou enquanto lavava o rosto e o pescoço.
Uma voz masculina gritou à porta:
- Vamos! Você já está aí há bastante tempo.
Enxagüei-me apressadamente e segui o soldado de volta à
saleta. A enfermeira estava de volta ao seu lugar, tão fria e eficiente quanto
antes, mas não ergueu os olhos. Depois de outro longo período de espera, meu
nome foi chamado. O médico pediu-me para tossir; tirou minha temperatura e pressão
arterial; auscultou-me com o estetoscópio e anunciou que eu estava com
pleurisia e ameaça de tuberculose.
Ele anotou qualquer coisa em um pedaço de papel. Depois
colocou uma das mãos na maçaneta e a outra, por um instante, em meu ombro.
- Espero estar-lhe fazendo um favor, dando este diagnóstico,
disse em voz baixa.
Na sala de espera, o soldado já estava de pé, aguardando
minha saída. Quando atravessei o aposento a enfermeira levantou-se subitamente
e passou por mim de maneira brusca. Senti um pequeno volume tocar na minha mão.
Escorreguei-o para o bolso do casaco, e segui o soldado
escada abaixo. A outra mulher já se encontrava no carro. O homem doente não
voltara. Durante todo o percurso de volta, minha mão era atraída para o objeto
que estava em meu bolso, alisando-o, acompanhando seu contorno com a ponta dos
dedos.
"O Senhor, é tão pequeno, mas mesmo assim pode
ser... concede, Senhor, que isto seja uma Bíblia."
Os muros altos surgiram à nossa frente; o portão
fechou-se rangendo às nossas costas. Afinal, no fim do longo corredor vazio,
alcancei a cela e tirei o pacote do bolso. Minhas companheiras agruparam-se ao
meu redor, enquanto eu desembrulhava o jornal com dedos trêmulos. Até mesmo a
baronesa interrompeu sua incessante caminhada para me observar.
À vista de dois sabonetes - do tipo usado antes da guerra
- Frau Mikes levou a mão à boca para suprimir um grito de triunfo. Nem escova
de dentes, nem agulha, mas - que riqueza! - uma caixa de alfinetes de mola.
Melhor que tudo, porém, era, não uma Bíblia completa, mas os quatro evangelhos,
em quatro volumes.
Dividi os sabonetes e alfinetes entre nós cinco mas, embora
eu oferecesse os livros também, elas os recusaram.
- Se a pegarem com isto, explicou a nossa
"autoridade" em prisão, dobram sua sentença, e dão-lhe kalte kost também.
Kalte kost - a alimentação constituída apenas de pão, sem a ração diária
de pratos quentes, era a ameaça que pairava sobre nossa cabeça. Se fizéssemos
muito barulho: kalte kost; se fôssemos vagarosas ao passar o balde: kalte
kost, Para mim, porém, o kalte kost era um preço baixo a pagar pela
posse dos preciosos livrinhos que agora segurava entre as mãos.
Dois dias depois, já perto da hora em que as luzes deve riam ser desligadas, a porta da cela se abriu e uma policial entrou.
- Cornélia ten Boom, pegue suas coisas, disse secamente.
Olhei-a com uma esperança louca crescendo dentro de mim.
- Você quer dizer que...
- Silêncio! Sem conversa!
Não demorei muito a recolher minhas coisas: o chapéu e
uma camisa de baixo que eu tentara lavar na já muito usada água da bacia, e que
estava secando. Estava sempre vestida com o casaco, com seu valioso conteúdo
nos bolsos. Por que essa exigência de silêncio? eu me indagava. Por que não me
permitem nem mesmo uma palavrinha de despedida com minhas colegas de cela? Será
que era tão errado assim que a guarda sorrisse de vez em quando, ou que desse
uma explicação simples?
Despedi-me das outras com um olhar, e saí com aquela
mulher aprumada para o corredor. Ela parou para trancar a porta e depois
seguiu, mas na direção contrária. Não estávamos indo para a saída, mas sim
aprofundando-nos mais e mais pelas intrincadas passagens da prisão.
Ainda sem dizer palavra, ela deteve-se diante de uma porta
e destrancou-a. Entrei. A porta cerrou-se atrás de mim. O ferrolho foi colocado
e a chave girou.
Esta cela era semelhante à outra - seis passos de comprimento,
dois de largura, um catre ao fundo. Esta, porém, estava vazia. Ouvindo os
passos da mulher morrendo na distância, encostei-me à fria porta de metal. Só!
Sozinha entre aquelas quatro paredes...
Não devo deixar o pensamento vagar; tenho que agir com
calma e ser prática. Seis passos. Assento-me no catre. Este tinha cheiro pior
que o outro: a palha parecia podre. Estiquei a mão e peguei o cobertor. Alguém
vomitara nele. Afastei-o de mim, mas já era tarde. Corri para o balde junto à
porta, e inclinei-me sobre ele sentindo-me muito fraca.
Naquele momento a luz se apagou. Tateei de volta à cama e
deitei-me no escuro, trancando os dentes para não me deixar vencer pelo mau
cheiro dos lençóis, aconchegando meu casaco mais contra mim. O frio era
penetrante ali. O vento açoitava a parede. Aquela cela devia ser bem perto da
parte externa da prisão: nunca ouvira o silvo do vento assim na outra.
O que fizera eu para ser separada do convívio dos outros?
Será que haviam ficado sabendo de minha conversa com a enfermeira naquele
consultório médico? Ou talvez alguma das pessoas das que foram presas em
Haarlem tivesse sido interrogada e revelara toda a verdade sobre o nosso grupo.
Talvez minha sentença fosse anos e anos de confinamento solitário.
De manhã, a febre estava pior. Eu não conseguia nem
pôr-me de pé para pegar o prato de alimento na porta, e uma hora mais tarde foi
recolhido sem ter sido tocado.
À tardinha, a portinhola de comunicação foi aberta de
novo e o pão grosseiro da prisão foi colocado ali. A esta altura, eu já estava
desesperada de fome, mas também mais fraca, e, por isso, incapaz de andar. A
pessoa que estava de fora percebeu a situação. Pegou o pão e atirou-o para mim.
Ele caiu no chão, próximo da cama. Agarrei-o e comecei a comê-lo avidamente.
Durante vários dias o jantar me foi entregue desse modo.
De manhã, a porta se abria e uma mulher de guarda-pó azul trazia o prato até o
catre. Eu estava tão faminta pela presença de um ser humano quanto por
alimento, e tentava, com a voz rouca, iniciar uma palestra. A mulher,
obviamente uma prisioneira como eu, apenas limitava-se a balançar a cabeça, com
um olhar assustado para o hall.
A porta se abria diariamente também, para dar passagem ao
encarregado da enfermaria que me trazia uma injeção muito dolorosa, de um
líquido amarelo, numa ampola imunda. Da primeira vez que ele veio, segurei-o
pela manga do casaco.
- Por favor, sussurrei com voz áspera, você não viu um
velho de oitenta e quatro anos, de cabelos brancos, barba? Cásper ten Boom?
Você deve ter lhe levado remédio!
O homem puxou o braço.
- Não sei de nada.
A porta da cela foi escancarada, até bater contra a
parede. No umbral estava a guarda.
- Prisioneiros em solitária não têm permissão para conversar!
Se disser mais uma palavra a qualquer um de nossos servidores, vai receber kalte
kost até o fim de sua pena.
E a porta se fechou sobre nós dois.
O mesmo encarregado tirava minha temperatura toda vez que
vinha me ver. Eu tinha que tirar a blusa e colocar o termômetro debaixo do
braço. Este sistema não me parecia muito preciso. E não era: no fim da semana, uma
voz me gritou pela abertura:
- Levante-se e pegue a comida você mesma. Sua febre
acabou. Não vamos mais servi-la.
Eu tinha certeza de que a febre não abaixara, mas nada
podia fazer senão me arrastar, tremendo, até a porta, para pegar o prato.
Depois que o recolocava, eu me deitava de novo na palha fétida, preparando-me
para o palavrório maldoso que viria a seguir.
- Veja só a grande dama; voltou para a cama! Vai ficar
deitada o dia todo?
Nunca compreendi por que deitar era um crime tão grande,
nem qual era a vantagem de se levantar...
Agora que eu estava sozinha, meus pensamentos tornaram-se
um problema ainda maior. Eu não podia orar pelos meus familiares e amigos, tal
era o temor e a saudade que me assaltavam ao lembrar cada um deles.
"Senhor, os meus entes queridos", eu orava.
"Tu os vês. Tu os conheces. Abençoa-os a todos!"
Os pensamentos eram inimigos. Aquela maleta de prisão...
quantas e quantas vezes eu a abri, e apalpei mentalmente aqueles objetos que
haviam ficado para trás. Uma blusa limpa. Um vidro cheio de aspirina. Pasta de
dentes com sabor de hortelã, e...
Aí eu me apercebia do que estava fazendo. Que coisa mais
ridícula, tais pensamentos! Se eu tivesse a chance de viver novamente aquela
situação, será que daria mais importância àqueles pequenos confortos do que a
vidas humanas? É lógico que não. Todavia, na escuridão da noite, com o vento
silvando, e a febre latejando, eu retirava a maleta de um canto escondido de
minha mente, e a esquadrinhava mais uma vez. Uma toalha para colocar sobre esta
palha que irritava a pele. Uma aspirina...
Esta cela só era melhor que a outra numa coisa: tinha uma janela. Sete barras de ferro numa direção, quatro na outra. Era alta; alta demais para se olhar por ela, mas por aqueles vinte e oito quadrinhos eu via o céu.
Eu ficava o dia todo com os olhos naquele pedaço de céu.
Às vezes, algumas nuvens se moviam por ali. Umas eram brancas; outras,
cor-de-rosa com orlas douradas. Quando o vento soprava do oeste, eu ouvia o
barulho do mar. O melhor de tudo, porém, era que, durante quase uma hora diariamente,
um recorte xadrez de luz solar penetrava naquela cela escura.
E esse período de uma hora estava se alongando
gradualmente, à medida que os dias se passavam, e o sol mudava seu trajeto um
pouco mais para o norte. Com o tempo se aquecendo, eu melhorei, fiquei mais
forte e já me levantava para deixar o sol dar em cheio no meu rosto e peito,
movendo-me ao longo da parede para acompanhá-lo, e, por fim, subindo ao catre
para gozar os últimos raios, na ponta dos pés.
Com a recuperação de minha saúde, eu conseguia firmar os
olhos por mais tempo. Eu estivera me alimentando das Escrituras, com um verso
de cada vez. Agora, como se fosse um homem faminto, eu ingeria grandes porções
dos evangelhos de uma assentada, testemunhando o magnificente drama do
Calvário em seu todo.
À medida que isto se dava, um pensamento incrível começou
a beliscar-me a mente. Será que nada disto - desse sofrimento todo que me
parecia uma perda tão desnecessária: esta guerra, esta prisão, a cela - nada
disto fora acidental, nem imprevisto? Seria tudo isto parte de um plano, que
fora revelado pela primeira vez no Calvário? Não fora Jesus - e aqui minha
leitura, tomou um profundo interesse - não fora Jesus aparentemente derrotado,
tão completa e decisivamente como foram nosso grupinho e nossos humildes
projetos?
Entretanto, se os evangelhos continham mesmo a mostra de
como Deus agia, então a derrota era apenas o começo. Eu passeava os olhos pela
celazinha vazia e desprovida de tudo e me indagava que vitória poderia advir de
um lugar assim.
Nossa colega "sabe-tudo" da outra cela havia me ensinado a fazer uma faquinha com uma barbatana de espartilho, afiando-a contra o piso cimentado. Estranhamente, parecia-me de grande importância não perder a noção do tempo. Assim, com minha barbatana afiada risquei um calendário na parede, perto da cama. Ao fim de cada dia, aqueles dias iguais, desinteressantes, eu colocava um x no quadrinho correspondente. Fiz também um registro de datas importantes, abaixo do calendário.
Detenção: 28 de fevereiro de 1944
Transferência para Scheveningen: 29 de fevereiro de 1944
Início do confinamento solitário: 16 de março de 1944
Agora, uma nova data era adicionada: Aniversário na
prisão: 15 de abril de 1944
Aniversário significava festa, mas foi em vão que
procurei um objeto de aparência festiva. Na outra cela, pelo menos, havia duas
peças de roupas coloridas: o chapéu vermelho da baronesa, a blusa amarela de
Frau Mikes. Como eu me arrependia de meu mau gosto em roupas!
Bom, mas ao menos música eu poderia ter em minha festa de
aniversário. Decidi-me pela canção que falava sobre a "Noiva de
Haarlem"; ela devia estar toda florida agora. Aquela cançãozinha infantil
recordou-me tudo de novo: os galhos brotando, as pétalas caindo como neve na
calçada de tijolos...
- Silêncio aí!
Uma rajada de batidas caiu sobre a porta de ferro.
- Os prisioneiros em solitária têm que ficar em silêncio.
Sentei-me na cama, abri o Evangelho de João e li até a
profunda tristeza do meu coração se desfazer.
Dois dias depois do meu aniversário, fui levada pela primeira vez ao enorme e barulhento quarto de banho. Uma guarda de expressão austera caminhava a meu lado, sua carranca proibindo-me de sentir prazer naquela excursão. Todavia nada podia diminuir o gozo de pisar naquele corredor amplo depois de semanas seguidas de reclusão.
À entrada do banheiro, várias mulheres aguardavam a vez.
Apesar do silêncio obrigatório que se observava, esta proximidade de outros
seres humanos me dava alegria e forças. Examinei bem o rosto das que saíam, mas
nem Betsie, nem Nollie estava entre elas, nem ninguém de Haarlem. No entanto,
pensei, estas aqui são minhas irmãs, todas elas. Que riqueza imensa, a de
simplesmente poder ver outros seres humanos.
O banho também foi maravilhoso: a água limpa e tépida
caindo em minha pele irritada, escorrendo por entre meus cabelos emaranhados.
Voltei à cela com uma resolução: da próxima vez que tivesse permissão para ir
ao chuveiro, levaria comigo três dos evangelhos. A solitária estava me ensinando
que não se podia ser rico sozinho.
Mas não fiquei sozinha muito tempo. Apareceu na cela uma
pequena formiga preta, muito ativa. Eu estava para pisar no lugar onde ela se
achava, ao levar o balde para a porta, certa manhã, quando compreendi a imensa
honra que me era conferida. Ajoelhei-me e fiquei a contemplar o maravilhoso
desenho de suas patinhas e de seu corpo.
Pedi-lhe desculpas por ser tão grande, e prometi-lhe que
nunca mais iria caminhar tão descuidadamente.
Depois de alguns instantes, ela desapareceu por uma
rachadura do chão. Quando meu pão da tarde me foi entregue, espalhei algumas
migalhas por ali, e, para meu encanto, ela surgiu quase que imediatamente. Era
o começo de uma boa amizade.
Agora, além da visita diária do sol, eu gozava da companhia
desta corajosa e simpática hóspede - e pouco depois, de toda uma pequena
comitiva. Se eu estivesse lavando roupas na bacia, ou amolando a ponta de minha
faquinha, eu parava imediatamente, para dedicar-lhes minha atenção integral.
Seria imperdoável esbanjar duas atividades diversas, fazendo-as no mesmo
período de tempo.
Uma noite, quando eu riscava no meu calendário entalhado na parede o fim de outro longo dia, ouvi gritos no fim do corredor, que foram respondidos por alguém que se achava mais próximo. Depois, o barulho começou a vir de todas as direções. Que estranho os prisioneiros estarem fazendo tanto alarido! Onde estariam os guardas?
A portinhola não havia sido fechada depois que o pão me
fora entregue, há duas horas. Encostei o ouvido a ela, mas não consegui
entender nada do tumulto lá fora. Ouvi nomes sendo mencionados de uma cela para
outra. Algumas cantavam; outras batiam na porta. As guardas deviam ter saído.
- Por favor, calma! pediu alguém. Vamos aproveitar bem
este tempo antes que eles voltem!
- O que está acontecendo? gritei pelo orifício. Onde
estão os guardas?
- Foram para a festa, informou-me a mesma pessoa. Hoje é
aniversário de Hitler.
Então os nomes que estavam dizendo eram os seus próprios.
Aqui estava nossa chance de nos identificarmos e pedirmos notícias dos outros.
- Meu nome é Corrie ten Boom! gritei pela abertura. Minha
família está toda aqui. Será que alguém sabe alguma coisa sobre Cásper ten Boom,
Betsie ten Boom, Nollie van Woerden e Willem ten Boom?
Repeti os nomes aos gritos até quase ficar rouca, e
ouvi-os sendo repetidos corredor abaixo, de boca em boca. Eu também passei
nomes à direita e à esquerda, fazendo funcionar nosso sistema de comunicação.
Logo, as respostas começaram a gotejar de volta.
- A Sra. van der Elst está na cela 228...
- O braço de Pietje está bem melhor...
Algumas informações eu quase não desejava passar:
- A audiência foi péssima: ele fica na cela sem falar
nada.
- Ao meu marido Joost: nosso filhinho morreu na semana
passada...
Além dos recados particulares, havia também rumores
acerca da situação do mundo lá fora, cada um mais otimista do que o outro.
- Está havendo uma revolução na Alemanha!
- Os aliados invadiram a Europa!
- A guerra não dura mais que três semanas. Afinal os
nomes que eu gritara começaram a voltar.
- Betsie ten Boom está na cela 312. Pediu para dizer a
você que Deus é bom.
Ah! Era Betsie; era Betsie mesmo!
Depois:
- Nollie van Woerden estava na cela 318, mas foi solta há
mais de um mês.
Liberta! Graças a Deus!
Toos também fora liberta.
As notícias da ala masculina demoraram mais a chegar, mas
quando chegaram, meu coração pulou de alegria.
- Peter van Woerden: liberto! Herman Sluring: liberto!
Willem ten Boom: liberto!
Até onde eu sabia, todos os que haviam sido detidos na
batida do Beje - à exceção de Betsie e eu - haviam sido libertos.
Somente de papai não ouvi nada, embora lançasse seu nome repetidas vezes ao
murmúrio do hall. Ninguém parecia tê-lo visto. Ninguém parecia saber nada.
Cerca de uma semana mais tarde, a porta da cela se abriu e uma das encarregadas atirou no chão um pacote embrulhado em papel marrom. Apanhei-o, senti-lhe o peso, e girei-o entre os dedos. O papel do embrulho havia sido rasgado, e depois recolocado sem qualquer cuidado, mas mesmo assim reconheci o desvelo amoroso de Nollie. Sentei-me no catre e abri-o.
Ali estava - tão minha conhecida! - como se fosse a
visita de um ente querido, a blusa de frio azul. Ao vesti-la, foi como se
sentisse os braços de Nollie em meu ombro. No pacote também havia biscoitos,
vitaminas, agulha e linha, e uma toalha de cor vermelho-brilhante. Como Nollie
conhecia bem a fome de cor que se sente numa prisão! Ela até enrolara os
biscoitos num alegre papel celofane vermelho.
Quando mordia o primeiro biscoito, tive uma inspiração.
Afastei o catre da parede, colocando-o sob a lâmpada. Subi à cama, ajeitei o
papel ao redor da lâmpada à guisa de quebra-luz. Imediatamente, um alegre reflexo
avermelhado encheu o desolado quartinho.
Eu estava embrulhando os biscoitos no papel marrom quando
meus olhos deram com o sobrescrito feito pelos caprichosos dedos de Nollie: a
letra inclinando-se ligeiramente para a direção do selo. Mas... a letra de
Nollie não era inclinada...
O selo! Não recebêramos, certa vez, uma mensagem escrita
debaixo do pequeno quadrado do selo? Rindo de minha própria capacidade de
imaginação, umedeci o papel na água da bacia e procurei retirar o selo.
Palavras! Havia uma coisa escrita ali - mas era tão miúdo
que tive de subir ao catre e chegar o papel à luz. "Todos os relógios do
armário estão a salvo." Salvos! Então - então Eusie, Henk, Mary - todos
haviam escapado do quartinho secreto! Fugiram! Estavam livres!
Rompi num choro convulsivo, e ouvi passos pesados descendo
o corredor. Apressadamente, saltei da cama, e empurrei-a de volta à parede. A
portinhola foi aberta.
- O que está havendo aqui?
- Nada, nada. Eu... eu não vou fazer isso mais.
A portinhola foi fechada de novo. Como será que eles
conseguiram? Como será que passaram pelos guardas? Ah, não importa, Senhor. Tu
estavas lá, e isso é o que realmente importa.
A porta se abriu um dia para deixar entrar um oficial alemão, seguido da guardiã chefe da prisão. Meus olhos famintos correram pela sua farda bem passada e pelas suas condecorações de cores brilhantes.
- Cornélia ten Boom, começou ele em excelente holandês,
tenho algumas perguntas a fazer-lhe, e creio que poderá ajudar-me.
A mulher carregava um pequeno tamborete que se apressou
em colocar no chão para ele. Olhei em sua direção. Seria esta obsequiosa
criatura a mesma mulher de voz temível, o terror da ala feminina?
O alemão sentou-se, indicando-me que devia tomar assento
no catre. Havia alguma coisa naquele gesto que me fez lembrar do mundo lá fora.
Ele tirou uma caderneta, e, quando começou a ler uma série de nomes, eu me
senti subitamente cônscia de minhas roupas amarfanhadas e de minhas unhas
compridas e quebradiças.
Para meu alívio, eu não conhecia mesmo nenhum daqueles
nomes, e agora eu compreendia a vantagem de se ser um anônimo "Sr.
Smit". O homem levantou-se.
- Acha que já está se sentindo bem para comparecer a um
interrogatório breve?
Novamente constatei suas maneiras bondosas.
- Acho que sim.
O oficial saiu, a guardiã seguindo-lhe nos calcanhares,
cheia de mesuras, carregando o tamborete.
Era o dia 3 de maio. Eu estava sentada no catre costurando. Depois que recebera o pacote de Nollie, eu arranjara uma nova e maravilhosa ocupação. Desfiara cuidadosamente a toalha vermelha, e, com seus fios, eu bordara lindas figuras no pijama, o qual apenas recentemente deixara de usar sob o vestido.
Bordara uma janela com cortina de babados, uma flor com
um incontável número de pétalas e folhas. Estava começando uma cabeça de gato
no bolso direito, quando o visor se abriu e fechou com um único movimento.
No chão da cela estava uma carta.
Larguei o pijama e saltei do catre. Era a letra de
Nollie. Por que será que minha mão tremia ao apanhá-la?
A carta fora aberta, e retida, também: o carimbo postal
tinha a data de uma semana atrás. Mas era uma carta de casa - minha primeira
carta! Por que este medo súbito?
Desdobrei o papel.
"Corrie, você precisa ter coragem!"
Não! Não! Eu não tinha coragem. Forcei-me a ler mais.
"Tenho que dar-lhe uma notícia muito triste. Papai
sobreviveu à prisão apenas dez dias. Ele está com o Senhor agora."
Fiquei com o papel entre os dedos tanto tempo que o facho
de sol entrou na cela e brilhou sobre ele. Pai... pai... a carta brilhava pela
claridade axadrezada enquanto eu lia o resto. Nollie não sabia dos detalhes,
nem como nem onde morrera, nem mesmo onde fora sepultado.
Passos soaram sobre a passadeira de palha de coqueiro.
Corri à porta e encostei-me à abertura.
- Por favor! Por favor!
A pessoa parou e a portinhola se abriu.
- O que há?
- Por favor, recebi uma notícia muito ruim... por favor,
não se vá!
- Espere um pouco.
Os passos se afastaram, regressando pouco depois com uma
penca de chaves. A porta da cela foi aberta.
- Aqui está.
A moça entregou-me um comprimido e um copo de água.
- É um sedativo.
- Esta carta chegou agora e diz que meu pai... diz que
meu pai morreu, expliquei.
Ela me olhou espantada.
- Seu pai? exclamou num tom de assombro.
Compreendi que eu deveria parecer velha e decrépita para
aquela jovem. Ela permaneceu à porta por alguns instantes, visivelmente
embaraçada com minhas lágrimas.
- O que quer que lhe aconteça, disse por fim, foi você
mesma quem o atraiu para si, quando transgrediu a lei.
- Senhor Jesus, comecei a murmurar enquanto ouvia seus
passos morrendo no corredor, após haver batido a porta, que tolice a minha
pedir auxílio humano, quando tu estás aqui. E pensar que papai está
contemplando a tua face agora! que ele e mamãe estão juntos novamente,
caminhando pelas ruas brilhantes...
Afastei o catre da parede, e escrevi outra data embaixo
do meu calendário:
9 de março de 1944: Papai foi liberto!