segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 10


 Scheveningen, a Penitenciária

                       Deixando Haarlem, o ônibus tomou a estrada do sul, pa­ralela à linha costeira. À direita, víamos as colinas arenosas da região das dunas e as silhuetas dos soldados recortadas contra as orlas. Percebemos claramente que não estávamos sendo levados para Amsterdam.

            A viagem de duas horas terminou em Haia. O veículo deteve-se em frente a um edifício novo e funcional. Até nós chegou a informação de que se tratava do quartel general da Gestapo, na Holanda. Todos nós - menos Pickwick que pare­cia incapaz de erguer-se de seu lugar - fomos levados para um salão amplo, onde se repetiu o mesmo processo cansati­vo de se recitar nome, endereço e ocupação.

            Um longo balcão cortava o aposento em seu comprimen­to, e, por trás dele, vi, com espanto, Willemse e Kapteyn. À medida que cada um dos prisioneiros de Haarlem se aproxi­mava, um ou outro se inclinava e falava alguma coisa com o homem que estava assentado à máquina de escrever, e daí a pouco, ouvia-se o matraquear das teclas.

            De repente, os olhos do interrogador caíram sobre papai.

            - E aquele velho? perguntou. Tinha que ser preso tam­bém? Ei, você!

            Willem encaminhou papai à mesa. O chefe da Gestapo inclinou-se para diante.

            - Gostaria de mandá-lo de volta para casa, disse. Dê-me apenas sua palavra de que não causará mais problemas.

            De onde eu estava, não conseguia ver o rosto de papai; só via suas costas eretas e a cabeça branca encimando os om­bros, mas ouvi bem sua resposta.

            - Se eu voltar para casa hoje, disse ele clara e firmemen­te, amanhã abro minhas portas para qualquer pessoa que precisar de mim.

Toda a amabilidade desapareceu do rosto do homem.

            - Volte para a fila, berrou. Schnell! (Rápido.) Não vamos tolerar mais atrasos!

            Mas atraso era o que mais havia naquele lugar. À propor­ção que nos adiantávamos pelo balcão, vinham mais pergun­tas, mais exames de documentos, mais idas e vindas dos po­liciais. Lá fora, a luz do sol ia desmaiando para encerrar aquele curto dia de inverno. Não tínhamos comido nada a não ser os pãezinhos e nem bebido água, a não ser a que tomáramos pela manhã.

            À minha frente, na fila, Betsie respondeu "solteira", pela vigésima vez naquele dia.

            - Quantos filhos? perguntou o interrogador.

            - Sou solteira, repetiu Betsie. Ele nem levantou os olhos.

            - Quantos filhos? perguntou rispidamente.  

            - Nenhum, respondeu ela resignadamente.

            À noitinha, um homenzinho gorducho, com uma estrela amarela ao peito, foi levado ao fundo da sala, passando por nós. Uma agitação súbita vindo dali, atraiu os olhares de to­dos. O pobre homem tentava impedir que lhe tirassem algo que segurava firmemente.

            - É minha, gritava ele. Não podem tomar de mim! Não podem tomar minha carteira!

            Será que ele perdera a razão? Para que pensava ele que o dinheiro lhe valeria agora? E continuou a lutar, para evidente divertimento dos homens que o cercavam.

            - Aqui, judeu! ouvi um deles dizer. Em seguida, ergueu o pé e chutou o homenzinho por trás do joelho. É assim que tiramos as coisas de um judeu.

            Fazia tanto barulho! era a única coisa que eu conseguia pensar enquanto os via continuar a chutá-lo. Agarrei-me ao balcão, para não desmaiar, escutando aqueles ruídos sur­dos. Incompreensivelmente, comecei a sentir um ódio de­sesperado daquele judeu; ódio, por ser tão indefeso e por achar-se tão à mercê deles. Afinal, ouvi que o arrastavam para fora.

            De repente, achei-me diante do interrogador.

            Ergui a cabeça e encontrei o olhar de Kapteyn, de pé atrás dele.

            - Esta mulher é a cabeça do grupo, disse.

            Apesar do estado de confusão em que me encontrava, sa­bia que era muito importante que o outro homem cresse nele.

            - É verdade o que o Sr. Kapteyn está dizendo, disse eu. Esses outros... eles não sabem nada. A culpa é toda...

            Meu inquisidor não se deixou perturbar.

            - Nome?

            - Cornélia ten Boom, e eu sou...

            - Idade?

            - Cinqüenta e dois. Essas outras pessoas aqui não tem nada a ver...

            - Ocupação?

            - Mas eu já disse vinte vezes! explodi em desespero.

            - Ocupação? repetiu ele.

            Já estava escuro quando afinal deixamos aquele lugar. O ônibus verde não se achava mais à vista. No lugar dele, divi­samos um caminhão do exército com toldo de lona. Dois sol­dados tiveram que ajudar papai a subir pela traseira do veí­culo. Não havia sinal de Pickwick. Eu, papai e Betsie toma­mos assento em um dos bancos laterais.

            O caminhão não tinha molas e sacolejava fortemente naque­las ruas esburacadas pelas bombas. Colocando o braço ao redor dos ombros de papai, procurei proteger-lhe as costas de se cho­carem contra a parede lateral do caminhão. De pé, ao fundo da carroceria, Willem nos informava o que ia vendo na cidade às escuras.

            Saíramos do centro e, ao que parecia, estávamos nos dirigindo para o oeste, em direção a Scheveningen. Nosso des­tino seria, então, a penitenciária federal de mesmo nome.

            O veículo parou abruptamente; ouviu-se um ranger de gonzos. Avançou mais um pouco, e parou de novo. De trás, veio o ruído dos pesados portões sendo fechados.

            Descemos e descobrimos que nos achávamos num pátio rodeado de altos muros. O Caminhão estava sendo levado para um hangar longo. Alguns soldados nos conduziram para dentro do prédio. Pisquei ao brilho intenso das luzes.

            - Nasen gegen Maver! (De frente para a parede!) Recebi um empurrão por trás, e vi-me encarando uma su­perfície de reboco rachado. Olhei para os lados, até onde minha vista alcançava, primeiro à esquerda e depois à direi­ta. Junto a mim estava Willem. Mais duas pessoas abaixo, estava Betsie. Do outro lado, vi Toos. Como eu, todos esta­vam de rosto voltado para a parede. Onde estava papai?

            Foi um longo período de espera, e as marcas da parede que se achavam diante de meus olhos viraram silhuetas de pessoas, paisagens e animais. Uma porta abriu-se à direita.

            - As prisioneiras sigam-me!

            A voz da mulher era metálica como o próprio rangido da porta. Ao afastar-me da parede, corri os olhos pela sala à procura de papai. Lá estava ele - a alguns passos da parede, sentado em uma cadeira de encosto. Um dos guardas deve tê-la trazido para ele.

            A policial já se encaminhava pelo corredor que se divisava através da porta aberta. Eu, porém, deixei-me ficar fitando desesperadamente a meu pai, Willem, Peter, e todos os nos­sos bravos agentes da resistência.

            - Papai, gritei de súbito, fique com Deus!

            Ele voltou a cabeça em minha direção. A luz da lâmpada do teto refletiu em seus óculos.

            - E vocês também, minhas filhas, disse ele.

            Virei-me e segui as outras. A porta bateu logo que passei.

            E vocês também! E vocês também! Ah, pai, quando nos veríamos de novo?

            A mão de Betsie segurou a minha. Ao longo do corredor havia uma passadeira de palha. Pisamos nela, fugindo à umi­dade do piso de concreto.

            - As prisioneiras têm que andar fora da esteira, anunciou a voz monótona da guarda às nossas costas.

            Afastamo-nos imediatamente da passagem privilegiada.

            Mais adiante, alcançamos uma mesa à qual se assentava uma mulher fardada. À medida que cada prisioneira chegava junto a ela, declinava o nome, pela milésima vez naquele dia, e depunha os objetos de valor.

            Eu, Nollie e Betsie desprende­mos nossos belos relógios de pulso. Ao entregar o meu à mu­lher, ela apontou para a aliança de ouro que pertencera a mamãe. Retirei-a do dedo e coloquei-a sobre a mesa juntamente com a carteira contendo algumas notas em dinheiro.

            Prosseguimos em nossa caminhada corredor abaixo. Nos dois lados, víamos portas e mais portas - portinhas estreitas, de metal. Agora, a fila de mulheres parou: a guarda estava enfiando a chave numa fechadura. Ouvimos o ruído da lingüeta girando, o rangido das dobradiças. A mulher examinou um papel, depois chamou o nome de uma mulher que eu nem conhecia, mas que estivera na reunião de oração de Willem.

            Será possível que tudo acontecera ontem? Hoje era quinta-feira? Os acontecimentos do Beje pareciam pertencer a uma outra existência. A porta foi fechada com uma batida seca. A coluna reiniciou a marcha. Outra porta foi destrancada, outro ser hu­mano foi encerrado ali dentro.

            Notei que não estavam colocan­do duas mulheres de Haarlem juntas numa mesma cela. Um dos primeiros nomes a ser chamado foi o de Betsie.

            Ela mal atravessara o umbral da porta, antes mesmo que pudesse virar-se para um aceno de despedida, e a porta cer­rou-se. Duas portas abaixo foi a vez de Nollie deixar-me. O barulho daquelas duas portas permaneceu em meus ouvidos enquanto prosseguíamos.

            Num certo ponto o corredor se bifurcava; entramos à es­querda. Depois, dobramos à direita, e à esquerda de novo, um mundo interminável de concreto e aço.

            - Cornélia ten Boom.

            Outra porta rangiu. A cela era longa e estreita, pouco mais larga que a porta mesmo. Uma mulher ocupava o único catre existente; havia mais três deitadas em esteiras de palha, no chão.

            - Deixe esta aqui ficar com o catre, disse a guarda. Ela está doente.

            E parece que para confirmar suas palavras, mal a porta se fechara sobre mim, fui tomada por um forte acesso de tosse.

            - Não queremos gente doente aqui, gritou alguém.

            Elas puseram-se de pé, afastando-se de mim o quanto lhes permitia o estreito cubículo.

            - Eu... sinto muito..., principiei, mas uma voz me inter­rompeu.

            - Não se preocupe. Não é culpa sua. Vamos, Frau Mikes, deixe-a ficar com o catre. A jovem virou-se para mim. Eu penduro seu casaco e o chapéu.

            Sentindo-me muito agradecida, entreguei-lhe o chapéu, o qual ela ajuntou a uma coleção de roupas que se achavam penduradas em ganchos, ao longo da parede. Conservei o casaco, porém, apertando-o bem contra mim.

            O catre já es­tava desocupado e para ele me dirigi, tremendo muito, esforçando-me para não espirrar e nem ao menos respirar, ao passar junto às outras. Tombei na cama, e, imediatamente, veio-me novo acesso de tosse, provocado pela escura nu­vem de pó que se desprendera do imundo colchão. Afinal, a tosse acalmou e eu me deitei.

            O cheiro acre da palha me chegava às narinas. Através do colchão fino, eu sentia as ripas de madeira.

            "Nunca vou ser capaz de dormir numa cama destas", pen­sei, mas o fato de que tive consciência a seguir, foi que já era de manhã, e alguém batia ruidosamente à porta.

            - Comida! anunciaram minhas colegas de cela. Levantei-me com esforço. O visor da porta foi abaixado horizontalmente, formando uma bandeja, e uma pessoa, do lado de fora, colocava sobre ela uns pratos de folha, conten­do um mingau fumegante.

            - Tem mais uma aqui! gritou pela abertura a mulher que se chamava Frau Mikes. Precisamos de cinco pratos.

            Outro prato foi posto na portinhola-prateleira.

            - Se você não estiver com fome eu a ajudo, disse-me Frau Mikes.

            Peguei um prato, olhei para aquele mingau cinzento e agua­do, e estendi-o para ela sem dizer palavra. Daí a pouco os pratos foram recolhidos e o visor foi fechado com uma bati­da.

            Um pouco mais tarde, a chave girou na fechadura de novo, o ferrolho correu e a porta foi aberta apenas o tempo neces­sário para que o balde sanitário fosse entregue. A bacia tam­bém foi passada e logo depois devolvida com água limpa. As mulheres recolheram as esteiras e as colocaram num dos can­tos, e, enquanto o faziam, ergueram uma nova nuvem de poeira, que novamente me lançou num acesso de tosse.

            Foi então que nos sobreveio o tédio da prisão - que muito breve eu iria aprender a temer mais que tudo. A princípio, tentei superá-lo conversando com as outras. Entretanto, ape­sar de elas serem corteses até demais para pessoas que esta­vam vivendo praticamente amontoadas, elas ignoraram mi­nhas perguntas e nunca fiquei sabendo muita coisa a seu res­peito.

            Vim a descobrir que a jovem que tinha me tratado com bondade na noite anterior era baronesa, e tinha apenas dezessete anos. Ela caminhava constantemente pela cela, de manhã até a hora em que a lâmpada era desligada à noite: seis passadas da parede à porta, mais seis da porta à parede, desviando-se das que estavam assentadas no chão, de um lado para outro, como um animal enjaulado.

            Frau Mikes era austríaca, e havia trabalhado na faxina de um grande edifício em sua cidade. Estava muito saudosa de seu canário, e chorava muito.

            - Coitadinho! dizia ela. O que vai ser dele agora? Nin­guém vai lembrar-se de dar-lhe comida.

            Isto me fez recordar de nosso gato. Será que ele consegui­ra escapar para a rua, ou estaria morrendo de fome dentro da casa lacrada? Eu o visualizava rondando por entre as per­nas das cadeiras da sala de jantar, sentindo a falta dos om­bros sobre os quais ele gostava de caminhar.

            Eu procurava não deixar minha mente se esgueirar para a parte superior da casa, não a deixava subir as escadas para saber se Thea, Mary, Eusie... Não! Eu não poderia fazer nada por eles aqui desta cela. Deus sabia que eles estavam lá.

            Uma das prisioneiras estava em Scheveningen há três anos. Ela ouvia o barulho do carrinho de refeições muito antes de nós, e, pelos ruídos dos passos, sabia quem estava passando no corredor.

            - É a encarregada da enfermaria; há alguém doente. Essa é a quarta vez que uma pessoa da cela 316 sai para uma audiência.

            O mundo dela se resumia naquele cubículo e no corre­dor. Pouco depois descobri a vantagem de se ter esta visão estreitada, e por que as prisioneiras, instintivamente, se esquivavam de perguntas acerca de outras áreas da vida. Nos primeiros dias que passei na prisão, eu vivia em ver­dadeira angústia, preocupada com papai, Betsie, Willem e Pickwick. Será que papai estava conseguindo se alimen­tar? Será que o cobertor de Betsie era tão fino quanto o meu?

            Esses pensamentos, porém, levaram-me a um tal desespe­ro, que logo me esforcei para não ceder a eles. Numa tentati­va de fixar minha mente em outra coisa, pedi a Frau Mikes para me ensinar o jogo de cartas que ela estava constante­mente jogando. Ela havia feito as cartas com pedaços de pa­pel higiênico - cada prisioneira recebia dois por dia. Ela fica­va o dia inteiro sentada na beira do catre, deitando as cartas à sua frente, e depois recolhendo-as de novo.

            Demorei bastante para aprender, já que o jogo de baralho nunca fora permitido no Beje. Agora, ao começar a entender o jogo de "paciência", eu me perguntava o porquê da intole­rância de papai aos jogos de cartas - nada poderia ser mais inocente que aquela sucessão de desenhos denominados paus, espadas, ouros...

            Com o passar dos dias, porém, comecei a ver um perigo sutil naquilo. Quando as cartas iam bem, meu moral subia. Era um bom augúrio: alguém de Haarlem fora solto. Contu­do, se eu perdia... talvez alguém estivesse doente; talvez nos­sos amigos tivessem sido encontrados.

            Por fim, tive que parar. Afinal, eu já estava mesmo me cansando de ficar tanto tempo sentada. Comecei, mais e mais, a passar os dias como passava as noites: revirando-me na­quele colchão fino, procurando em vão uma posição cômoda que me aliviasse todas as dores. Minha cabeça latejava conti­nuamente; agulhadas percorriam meu braço, e, ao tossir, cus­pia sangue.

            Certa manhã, eu me contorcia no catre quando a porta de metal se abriu, dando entrada à guarda de voz metálica que eu vira na primeira noite, quando chegara ali, quinze dias atrás.

            - Cornélia ten Boom! Pus-me de pé penosamente.

            - Pegue o chapéu e o casaco e venha comigo.

            Olhei ao redor, esperando uma indicação do que iria acon­tecer comigo.

            - Você vai ser levada para fora da prisão, informou-me nossa especialista. Quando mandam pegar o chapéu é por­que vai para fora.

            Eu já estava com o casaco e então tirei do gancho o cha­péu, e saí para o corredor. A mulher trancou a porta e saiu andando tão vigorosamente que, ao segui-la, cuidando para não pisar na esteira, senti meu coração martelar. Olhei ansio­samente para as portas fechadas em ambos os lados do corre­dor; não conseguia me lembrar mais em quais delas minhas irmãs haviam entrado.

            Afinal, chegamos ao pátio amplo, cercado de muros altos. O céu! Era a primeira vez que o via naquelas duas últimas semanas, o céu azul! Como as nuvens passavam tão altas! Como eram brancas e limpas! Lembrei-me de repente de como mamãe gostava do céu.

            - Depressa! falou rispidamente a mulher. Apressei-me em direção ao automóvel preto e brilhante ao lado do qual ela se achava. Abriu a porta traseira e eu entrei. Havia mais duas pessoas ali: um soldado e uma mu­lher de rosto cinzento, encovado. Na frente, junto ao moto­rista, estava derreado um homem de aspecto doentio, cuja cabeça rolava descontroladamente, de um lado para outro, no encosto do assento. Assim que o carro deu partida, a mu­lher ao meu lado tossiu, levando à boca uma toalha suja de sangue. Logo compreendi tudo: nós três estávamos doentes. Talvez estivéssemos sendo levados para um hospital.

            O grosso portão da prisão se abriu e nos encontramos no mundo exterior, rodando pelas ruas largas da cidade. Eu con­templava tudo extasiada. Via pessoas andando, olhando as vitrinas, parando para conversar com amigos. Seria mesmo verdade que havia duas semanas eu era livre assim?

            O carro estacou diante de um grande edifício. Foi preciso que tanto o policial como o motorista ajudassem o homem a subir os três lances da escada. Chegamos a uma sala de espe­ra cheia de pacientes, e nos sentamos sob o olhar vigilante do soldado. Quando já havia decorrido aproximadamente uma hora, pedi permissão para ir ao banheiro. O soldado falou com a enfermeira de uniforme imaculadamente branco que se achava à mesa da recepção.

            - Venha por aqui, disse secamente.

            Guiou-me por um pequeno corredor, entrou no banheiro comigo e fechou a porta.

            - Depressa! Há alguma coisa que eu possa fazer? Pisquei sem compreender.

            - Sim, pode. Uma Bíblia. Poderia me conseguir uma Bí­blia? E... uma agulha e linha, uma escova de dentes, sabone­te!

            Ela mordeu os lábios em dúvida.

            - Há muitos doentes hoje, e ainda com o soldado... mas verei o que posso fazer.

            E saiu. A bondade dela parecia encher aquele quartinho de uma claridade tão brilhante como a dos azulejos brancos e as torneiras luzentes. Meu coração jubilou enquanto lavava o rosto e o pescoço.

            Uma voz masculina gritou à porta:

            - Vamos! Você já está aí há bastante tempo.

            Enxagüei-me apressadamente e segui o soldado de volta à saleta. A enfermeira estava de volta ao seu lugar, tão fria e eficiente quanto antes, mas não ergueu os olhos. Depois de outro longo período de espera, meu nome foi chamado. O médico pediu-me para tossir; tirou minha temperatura e pres­são arterial; auscultou-me com o estetoscópio e anunciou que eu estava com pleurisia e ameaça de tuberculose.

            Ele anotou qualquer coisa em um pedaço de papel. Depois colocou uma das mãos na maçaneta e a outra, por um instan­te, em meu ombro.

            - Espero estar-lhe fazendo um favor, dando este diagnós­tico, disse em voz baixa.

            Na sala de espera, o soldado já estava de pé, aguardando minha saída. Quando atravessei o aposento a enfermeira levantou-se subitamente e passou por mim de maneira brusca. Senti um pequeno volume tocar na minha mão.

            Escorreguei-o para o bolso do casaco, e segui o soldado escada abaixo. A outra mulher já se encontrava no carro. O homem doente não voltara. Durante todo o percurso de vol­ta, minha mão era atraída para o objeto que estava em meu bolso, alisando-o, acompanhando seu contorno com a ponta dos dedos.

            "O Senhor, é tão pequeno, mas mesmo assim pode ser... concede, Senhor, que isto seja uma Bíblia."

            Os muros altos surgiram à nossa frente; o portão fechou-se rangendo às nossas costas. Afinal, no fim do longo corredor vazio, alcancei a cela e tirei o pacote do bolso. Minhas compa­nheiras agruparam-se ao meu redor, enquanto eu desembru­lhava o jornal com dedos trêmulos. Até mesmo a baronesa interrompeu sua incessante caminhada para me observar.

            À vista de dois sabonetes - do tipo usado antes da guerra - Frau Mikes levou a mão à boca para suprimir um grito de triunfo. Nem escova de dentes, nem agulha, mas - que rique­za! - uma caixa de alfinetes de mola. Melhor que tudo, po­rém, era, não uma Bíblia completa, mas os quatro evange­lhos, em quatro volumes.

            Dividi os sabonetes e alfinetes entre nós cinco mas, embo­ra eu oferecesse os livros também, elas os recusaram.

            - Se a pegarem com isto, explicou a nossa "autoridade" em prisão, dobram sua sentença, e dão-lhe kalte kost tam­bém.

            Kalte kost - a alimentação constituída apenas de pão, sem a ração diária de pratos quentes, era a ameaça que pairava sobre nossa cabeça. Se fizéssemos muito barulho: kalte kost; se fôssemos vagarosas ao passar o balde: kalte kost, Para mim, porém, o kalte kost era um preço baixo a pagar pela posse dos preciosos livrinhos que agora segurava entre as mãos.

            Dois dias depois, já perto da hora em que as luzes deve riam ser desligadas, a porta da cela se abriu e uma policial entrou.

            - Cornélia ten Boom, pegue suas coisas, disse secamente. Olhei-a com uma esperança louca crescendo dentro de mim.

            - Você quer dizer que...

            - Silêncio! Sem conversa!

            Não demorei muito a recolher minhas coisas: o chapéu e uma camisa de baixo que eu tentara lavar na já muito usada água da bacia, e que estava secando. Estava sempre vestida com o casaco, com seu valioso conteúdo nos bolsos. Por que essa exigência de silêncio? eu me indagava. Por que não me permitem nem mesmo uma palavrinha de despedida com minhas colegas de cela? Será que era tão errado assim que a guarda sorrisse de vez em quando, ou que desse uma explica­ção simples?

            Despedi-me das outras com um olhar, e saí com aquela mulher aprumada para o corredor. Ela parou para trancar a porta e depois seguiu, mas na direção contrária. Não estáva­mos indo para a saída, mas sim aprofundando-nos mais e mais pelas intrincadas passagens da prisão.

            Ainda sem dizer palavra, ela deteve-se diante de uma por­ta e destrancou-a. Entrei. A porta cerrou-se atrás de mim. O ferrolho foi colocado e a chave girou.

            Esta cela era semelhante à outra - seis passos de compri­mento, dois de largura, um catre ao fundo. Esta, porém, esta­va vazia. Ouvindo os passos da mulher morrendo na distân­cia, encostei-me à fria porta de metal. Só! Sozinha entre aque­las quatro paredes...

            Não devo deixar o pensamento vagar; tenho que agir com calma e ser prática. Seis passos. Assento-me no catre. Este tinha cheiro pior que o outro: a palha parecia podre. Estiquei a mão e peguei o cobertor. Alguém vomitara nele. Afastei-o de mim, mas já era tarde. Corri para o balde junto à porta, e inclinei-me sobre ele sentindo-me muito fraca.

            Naquele momento a luz se apagou. Tateei de volta à cama e deitei-me no escuro, trancando os dentes para não me dei­xar vencer pelo mau cheiro dos lençóis, aconchegando meu casaco mais contra mim. O frio era penetrante ali. O vento açoitava a parede. Aquela cela devia ser bem perto da parte externa da prisão: nunca ouvira o silvo do vento assim na outra.

            O que fizera eu para ser separada do convívio dos outros? Será que haviam ficado sabendo de minha conversa com a enfermeira naquele consultório médico? Ou talvez alguma das pessoas das que foram presas em Haarlem tivesse sido interrogada e revelara toda a verdade sobre o nosso grupo. Talvez minha sentença fosse anos e anos de confinamento solitário.

            De manhã, a febre estava pior. Eu não conseguia nem pôr-me de pé para pegar o prato de alimento na porta, e uma hora mais tarde foi recolhido sem ter sido tocado.

            À tardinha, a portinhola de comunicação foi aberta de novo e o pão grosseiro da prisão foi colocado ali. A esta altura, eu já estava desesperada de fome, mas também mais fraca, e, por isso, incapaz de andar. A pessoa que estava de fora percebeu a situação. Pegou o pão e atirou-o para mim. Ele caiu no chão, próximo da cama. Agarrei-o e comecei a comê-lo avidamente.

            Durante vários dias o jantar me foi entregue desse modo. De manhã, a porta se abria e uma mulher de guarda-pó azul trazia o prato até o catre. Eu estava tão faminta pela presen­ça de um ser humano quanto por alimento, e tentava, com a voz rouca, iniciar uma palestra. A mulher, obviamente uma prisioneira como eu, apenas limitava-se a balançar a cabeça, com um olhar assustado para o hall.

            A porta se abria diariamente também, para dar passagem ao encarregado da enfermaria que me trazia uma injeção muito dolorosa, de um líquido amarelo, numa ampola imun­da. Da primeira vez que ele veio, segurei-o pela manga do casaco.

            - Por favor, sussurrei com voz áspera, você não viu um velho de oitenta e quatro anos, de cabelos brancos, barba? Cásper ten Boom? Você deve ter lhe levado remédio!

            O homem puxou o braço.

            - Não sei de nada.

            A porta da cela foi escancarada, até bater contra a parede. No umbral estava a guarda.

            - Prisioneiros em solitária não têm permissão para con­versar! Se disser mais uma palavra a qualquer um de nossos servidores, vai receber kalte kost até o fim de sua pena.   

            E a porta se fechou sobre nós dois.

            O mesmo encarregado tirava minha temperatura toda vez que vinha me ver. Eu tinha que tirar a blusa e colocar o ter­mômetro debaixo do braço. Este sistema não me parecia muito preciso. E não era: no fim da semana, uma voz me gritou pela abertura:

            - Levante-se e pegue a comida você mesma. Sua febre acabou. Não vamos mais servi-la.

            Eu tinha certeza de que a febre não abaixara, mas nada podia fazer senão me arrastar, tremendo, até a porta, para pegar o prato. Depois que o recolocava, eu me deitava de novo na palha fétida, preparando-me para o palavrório mal­doso que viria a seguir.

            - Veja só a grande dama; voltou para a cama! Vai ficar deitada o dia todo?

            Nunca compreendi por que deitar era um crime tão gran­de, nem qual era a vantagem de se levantar...

            Agora que eu estava sozinha, meus pensamentos torna­ram-se um problema ainda maior. Eu não podia orar pelos meus familiares e amigos, tal era o temor e a saudade que me assaltavam ao lembrar cada um deles.

            "Senhor, os meus entes queridos", eu orava. "Tu os vês. Tu os conheces. Abençoa-os a todos!"

            Os pensamentos eram inimigos. Aquela maleta de prisão... quantas e quantas vezes eu a abri, e apalpei mentalmente aqueles objetos que haviam ficado para trás. Uma blusa lim­pa. Um vidro cheio de aspirina. Pasta de dentes com sabor de hortelã, e...

            Aí eu me apercebia do que estava fazendo. Que coisa mais ridícula, tais pensamentos! Se eu tivesse a chance de viver novamente aquela situação, será que daria mais importância àqueles pequenos confortos do que a vidas humanas? É lógi­co que não. Todavia, na escuridão da noite, com o vento sil­vando, e a febre latejando, eu retirava a maleta de um canto escondido de minha mente, e a esquadrinhava mais uma vez. Uma toalha para colocar sobre esta palha que irritava a pele. Uma aspirina...

            Esta cela só era melhor que a outra numa coisa: tinha uma janela. Sete barras de ferro numa direção, quatro na outra. Era alta; alta demais para se olhar por ela, mas por aqueles vinte e oito quadrinhos eu via o céu.

            Eu ficava o dia todo com os olhos naquele pedaço de céu. Às vezes, algumas nuvens se moviam por ali. Umas eram brancas; outras, cor-de-rosa com orlas douradas. Quando o vento soprava do oeste, eu ouvia o barulho do mar. O me­lhor de tudo, porém, era que, durante quase uma hora dia­riamente, um recorte xadrez de luz solar penetrava naquela cela escura.

            E esse período de uma hora estava se alongan­do gradualmente, à medida que os dias se passavam, e o sol mudava seu trajeto um pouco mais para o norte. Com o tempo se aquecendo, eu melhorei, fiquei mais forte e já me levantava para deixar o sol dar em cheio no meu rosto e peito, movendo-me ao longo da parede para acompanhá-lo, e, por fim, subindo ao catre para gozar os últimos raios, na ponta dos pés.

            Com a recuperação de minha saúde, eu conseguia firmar os olhos por mais tempo. Eu estivera me alimentando das Escrituras, com um verso de cada vez. Agora, como se fosse um homem faminto, eu ingeria grandes porções dos evangelhos de uma assentada, testemunhando o magnificente dra­ma do Calvário em seu todo.

            À medida que isto se dava, um pensamento incrível come­çou a beliscar-me a mente. Será que nada disto - desse sofri­mento todo que me parecia uma perda tão desnecessária: esta guerra, esta prisão, a cela - nada disto fora acidental, nem imprevisto? Seria tudo isto parte de um plano, que fora revelado pela primeira vez no Calvário? Não fora Jesus - e aqui minha leitura, tomou um profundo interesse - não fora Jesus aparentemente derrotado, tão completa e decisivamente como foram nosso grupinho e nossos humildes projetos?

            Entretanto, se os evangelhos continham mesmo a mostra de como Deus agia, então a derrota era apenas o começo. Eu passeava os olhos pela celazinha vazia e desprovida de tudo e me indagava que vitória poderia advir de um lugar assim.

            Nossa colega "sabe-tudo" da outra cela havia me ensinado a fazer uma faquinha com uma barbatana de espartilho, afiando-a contra o piso cimentado. Estranhamente, parecia-me de grande importância não perder a noção do tempo. Assim, com minha barbatana afiada risquei um calendário na parede, per­to da cama. Ao fim de cada dia, aqueles dias iguais, desinteres­santes, eu colocava um x no quadrinho correspondente.         Fiz também um registro de datas importantes, abaixo do calendá­rio.

            Detenção: 28 de fevereiro de 1944

            Transferência para Scheveningen: 29 de fevereiro de 1944

            Início do confinamento solitário: 16 de março de 1944

            Agora, uma nova data era adicionada: Aniversário na prisão: 15 de abril de 1944

            Aniversário significava festa, mas foi em vão que procurei um objeto de aparência festiva. Na outra cela, pelo menos, havia duas peças de roupas coloridas: o chapéu vermelho da baronesa, a blusa amarela de Frau Mikes. Como eu me arre­pendia de meu mau gosto em roupas!

            Bom, mas ao menos música eu poderia ter em minha festa de aniversário. Decidi-me pela canção que falava sobre a "Noi­va de Haarlem"; ela devia estar toda florida agora. Aquela cançãozinha infantil recordou-me tudo de novo: os galhos brotando, as pétalas caindo como neve na calçada de tijo­los...

            - Silêncio aí!

            Uma rajada de batidas caiu sobre a porta de ferro.

            - Os prisioneiros em solitária têm que ficar em silêncio.

            Sentei-me na cama, abri o Evangelho de João e li até a profunda tristeza do meu coração se desfazer.

            Dois dias depois do meu aniversário, fui levada pela pri­meira vez ao enorme e barulhento quarto de banho. Uma guarda de expressão austera caminhava a meu lado, sua car­ranca proibindo-me de sentir prazer naquela excursão. Toda­via nada podia diminuir o gozo de pisar naquele corredor amplo depois de semanas seguidas de reclusão.

            À entrada do banheiro, várias mulheres aguardavam a vez. Apesar do silêncio obrigatório que se observava, esta proxi­midade de outros seres humanos me dava alegria e forças. Examinei bem o rosto das que saíam, mas nem Betsie, nem Nollie estava entre elas, nem ninguém de Haarlem. No en­tanto, pensei, estas aqui são minhas irmãs, todas elas. Que riqueza imensa, a de simplesmente poder ver outros seres humanos.

            O banho também foi maravilhoso: a água limpa e tépida caindo em minha pele irritada, escorrendo por entre meus cabelos emaranhados. Voltei à cela com uma resolução: da próxima vez que tivesse permissão para ir ao chuveiro, leva­ria comigo três dos evangelhos. A solitária estava me ensi­nando que não se podia ser rico sozinho.

            Mas não fiquei sozinha muito tempo. Apareceu na cela uma pequena formiga preta, muito ativa. Eu estava para pi­sar no lugar onde ela se achava, ao levar o balde para a por­ta, certa manhã, quando compreendi a imensa honra que me era conferida. Ajoelhei-me e fiquei a contemplar o maravi­lhoso desenho de suas patinhas e de seu corpo.

            Pedi-lhe des­culpas por ser tão grande, e prometi-lhe que nunca mais iria caminhar tão descuidadamente.

            Depois de alguns instantes, ela desapareceu por uma rachadura do chão. Quando meu pão da tarde me foi entregue, espalhei algumas migalhas por ali, e, para meu encanto, ela surgiu quase que imediatamente. Era o começo de uma boa amizade.

            Agora, além da visita diária do sol, eu gozava da compa­nhia desta corajosa e simpática hóspede - e pouco depois, de toda uma pequena comitiva. Se eu estivesse lavando roupas na bacia, ou amolando a ponta de minha faquinha, eu para­va imediatamente, para dedicar-lhes minha atenção integral. Seria imperdoável esbanjar duas atividades diversas, fazen­do-as no mesmo período de tempo.

            Uma noite, quando eu riscava no meu calendário entalha­do na parede o fim de outro longo dia, ouvi gritos no fim do corredor, que foram respondidos por alguém que se achava mais próximo. Depois, o barulho começou a vir de todas as direções. Que estranho os prisioneiros estarem fazendo tanto alarido! Onde estariam os guardas?

            A portinhola não havia sido fechada depois que o pão me fora entregue, há duas horas. Encostei o ouvido a ela, mas não consegui entender nada do tumulto lá fora. Ouvi nomes sendo mencionados de uma cela para outra. Algu­mas cantavam; outras batiam na porta. As guardas deviam ter saído.

            - Por favor, calma! pediu alguém. Vamos aproveitar bem este tempo antes que eles voltem!

            - O que está acontecendo? gritei pelo orifício. Onde estão os guardas?

            - Foram para a festa, informou-me a mesma pessoa. Hoje é aniversário de Hitler.

            Então os nomes que estavam dizendo eram os seus próprios. Aqui estava nossa chance de nos identificarmos e pedirmos no­tícias dos outros.

            - Meu nome é Corrie ten Boom! gritei pela abertura. Mi­nha família está toda aqui. Será que alguém sabe alguma coisa sobre Cásper ten Boom, Betsie ten Boom, Nollie van Woerden e Willem ten Boom?

            Repeti os nomes aos gritos até quase ficar rouca, e ouvi-os sendo repetidos corredor abaixo, de boca em boca. Eu tam­bém passei nomes à direita e à esquerda, fazendo funcionar nosso sistema de comunicação.

            Logo, as respostas começaram a gotejar de volta.

            - A Sra. van der Elst está na cela 228...

            - O braço de Pietje está bem melhor...

            Algumas informações eu quase não desejava passar:

            - A audiência foi péssima: ele fica na cela sem falar nada.

            - Ao meu marido Joost: nosso filhinho morreu na sema­na passada...

            Além dos recados particulares, havia também rumores acerca da situação do mundo lá fora, cada um mais otimista do que o outro.

            - Está havendo uma revolução na Alemanha!

            - Os aliados invadiram a Europa!

            - A guerra não dura mais que três semanas. Afinal os nomes que eu gritara começaram a voltar.

            - Betsie ten Boom está na cela 312. Pediu para dizer a você que Deus é bom.

            Ah! Era Betsie; era Betsie mesmo!

            Depois:

            - Nollie van Woerden estava na cela 318, mas foi solta há mais de um mês.

            Liberta! Graças a Deus!

            Toos também fora liberta.

            As notícias da ala masculina demoraram mais a chegar, mas quando chegaram, meu coração pulou de alegria.

            - Peter van Woerden: liberto! Herman Sluring: liberto! Willem ten Boom: liberto!

            Até onde eu sabia, todos os que haviam sido detidos na batida do Beje - à exceção de Betsie e eu - haviam sido liber­tos. Somente de papai não ouvi nada, embora lançasse seu nome repetidas vezes ao murmúrio do hall. Ninguém parecia tê-lo visto. Ninguém parecia saber nada.

            Cerca de uma semana mais tarde, a porta da cela se abriu e uma das encarregadas atirou no chão um pacote embrulha­do em papel marrom. Apanhei-o, senti-lhe o peso, e girei-o entre os dedos. O papel do embrulho havia sido rasgado, e depois recolocado sem qualquer cuidado, mas mesmo assim reconheci o desvelo amoroso de Nollie. Sentei-me no catre e abri-o.

            Ali estava - tão minha conhecida! - como se fosse a visita de um ente querido, a blusa de frio azul. Ao vesti-la, foi como se sentisse os braços de Nollie em meu ombro. No pacote também havia biscoitos, vitaminas, agulha e linha, e uma toalha de cor vermelho-brilhante. Como Nollie conhecia bem a fome de cor que se sente numa prisão! Ela até enrolara os biscoitos num alegre papel celofane vermelho.

            Quando mordia o primeiro biscoito, tive uma inspiração. Afastei o catre da parede, colocando-o sob a lâmpada. Subi à cama, ajeitei o papel ao redor da lâmpada à guisa de quebra-luz. Imediatamente, um alegre reflexo avermelhado encheu o desolado quartinho.

            Eu estava embrulhando os biscoitos no papel marrom quan­do meus olhos deram com o sobrescrito feito pelos capricho­sos dedos de Nollie: a letra inclinando-se ligeiramente para a direção do selo. Mas... a letra de Nollie não era inclinada...

            O selo! Não recebêramos, certa vez, uma mensagem escrita debaixo do pequeno quadrado do selo? Rindo de minha pró­pria capacidade de imaginação, umedeci o papel na água da bacia e procurei retirar o selo.

            Palavras! Havia uma coisa escrita ali - mas era tão miúdo que tive de subir ao catre e chegar o papel à luz. "Todos os relógios do armário estão a salvo." Salvos! Então - então Eusie, Henk, Mary - todos haviam escapado do quartinho secreto! Fugiram! Estavam livres!

            Rompi num choro convulsivo, e ouvi passos pesados des­cendo o corredor. Apressadamente, saltei da cama, e empur­rei-a de volta à parede. A portinhola foi aberta.

            - O que está havendo aqui?

            - Nada, nada. Eu... eu não vou fazer isso mais.

            A portinhola foi fechada de novo. Como será que eles conseguiram? Como será que passaram pelos guardas? Ah, não im­porta, Senhor. Tu estavas lá, e isso é o que realmente importa.

            A porta se abriu um dia para deixar entrar um oficial ale­mão, seguido da guardiã chefe da prisão. Meus olhos famin­tos correram pela sua farda bem passada e pelas suas conde­corações de cores brilhantes.

            - Cornélia ten Boom, começou ele em excelente holan­dês, tenho algumas perguntas a fazer-lhe, e creio que poderá ajudar-me.

            A mulher carregava um pequeno tamborete que se apres­sou em colocar no chão para ele. Olhei em sua direção. Seria esta obsequiosa criatura a mesma mulher de voz temível, o terror da ala feminina?

            O alemão sentou-se, indicando-me que devia tomar as­sento no catre. Havia alguma coisa naquele gesto que me fez lembrar do mundo lá fora. Ele tirou uma caderneta, e, quan­do começou a ler uma série de nomes, eu me senti subita­mente cônscia de minhas roupas amarfanhadas e de minhas unhas compridas e quebradiças.

            Para meu alívio, eu não conhecia mesmo nenhum daque­les nomes, e agora eu compreendia a vantagem de se ser um anônimo "Sr. Smit". O homem levantou-se.

            - Acha que já está se sentindo bem para comparecer a um interrogatório breve?

            Novamente constatei suas maneiras bondosas.

            - Acho que sim.

            O oficial saiu, a guardiã seguindo-lhe nos calcanhares, cheia de mesuras, carregando o tamborete.

            Era o dia 3 de maio. Eu estava sentada no catre costuran­do. Depois que recebera o pacote de Nollie, eu arranjara uma nova e maravilhosa ocupação. Desfiara cuidadosamente a toalha vermelha, e, com seus fios, eu bordara lindas figuras no pijama, o qual apenas recentemente deixara de usar sob o vestido.

            Bordara uma janela com cortina de babados, uma flor com um incontável número de pétalas e folhas. Estava começando uma cabeça de gato no bolso direito, quando o visor se abriu e fechou com um único movimento.

            No chão da cela estava uma carta.

            Larguei o pijama e saltei do catre. Era a letra de Nollie. Por que será que minha mão tremia ao apanhá-la?

            A carta fora aberta, e retida, também: o carimbo postal tinha a data de uma semana atrás. Mas era uma carta de casa - minha primeira carta! Por que este medo súbito?

            Desdobrei o papel.

            "Corrie, você precisa ter coragem!"

            Não! Não! Eu não tinha coragem. Forcei-me a ler mais.

            "Tenho que dar-lhe uma notícia muito triste. Papai sobre­viveu à prisão apenas dez dias. Ele está com o Senhor agora."

            Fiquei com o papel entre os dedos tanto tempo que o fa­cho de sol entrou na cela e brilhou sobre ele. Pai... pai... a carta brilhava pela claridade axadrezada enquanto eu lia o resto. Nollie não sabia dos detalhes, nem como nem onde morrera, nem mesmo onde fora sepultado.

            Passos soaram sobre a passadeira de palha de coqueiro. Corri à porta e encostei-me à abertura.

            - Por favor! Por favor!

            A pessoa parou e a portinhola se abriu.

            - O que há?

            - Por favor, recebi uma notícia muito ruim... por favor, não se vá!

            - Espere um pouco.

            Os passos se afastaram, regressando pouco depois com uma penca de chaves. A porta da cela foi aberta.

            - Aqui está.

            A moça entregou-me um comprimido e um copo de água.

            - É um sedativo.

            - Esta carta chegou agora e diz que meu pai... diz que meu pai morreu, expliquei.

            Ela me olhou espantada.

            - Seu pai? exclamou num tom de assombro.

            Compreendi que eu deveria parecer velha e decrépita para aquela jovem. Ela permaneceu à porta por alguns instantes, visivelmente embaraçada com minhas lágrimas.

            - O que quer que lhe aconteça, disse por fim, foi você mesma quem o atraiu para si, quando transgrediu a lei.

            - Senhor Jesus, comecei a murmurar enquanto ouvia seus passos morrendo no corredor, após haver batido a porta, que tolice a minha pedir auxílio humano, quando tu estás aqui. E pensar que papai está contemplando a tua face agora! que ele e mamãe estão juntos novamente, caminhando pelas ruas brilhantes...

            Afastei o catre da parede, e escrevi outra data embaixo do meu calendário:

            9 de março de 1944: Papai foi liberto!