Fechei os olhos novamente. Era o dia 28 de fevereiro de
1944. Havia dois dias, eu estava de cama com uma forte gripe. Minha cabeça
latejava, minhas juntas ardiam. Qualquer ruído - o chiado da respiração de
Mary, o arranhado da portinhola - dava-me vontade de gritar. Agora, ouvia Henk
e Meta entrando, e depois as risadas de Eusie ao entregar aos outros os seus
objetos do dia, através da abertura.
Vão embora todos vocês! Deixem-me em paz! Apertei os
lábios para não gritar.
Finalmente, apanharam roupas e pertences e saíram, fechando
a porta atrás de si. Onde estava Leendert? Por que não subira? Então lembrei-me
de que ele estava fora, instalando um sistema de alarme elétrico, semelhante ao
nosso, em outras casas que abrigavam fugitivos. Caí num sono febril.
O fato seguinte de que tive consciência, foi Betsie, de
pé ao lado da cama, com uma xícara de chá quente na mão.
- Sinto muito ter que acordá-la, Corrie, mas há um homem
lá embaixo que insiste em falar com você, e só com você.
- Quem é?
- Diz que é de Ermelo. Nunca o vi antes. Assentei-me,
sentindo-me bem fraca.
- Não tem importância. Tenho que levantar mesmo. Amanhã
é o dia dos cartões de racionamento.
Tomei o chá escaldante, e depois levantei-me com esforço.
Ao lado da cama, estava minha maleta de prisão, arrumada e pronta, desde o dia
em que fora chamada a comparecer perante o chefe de polícia. Eu tinha até
adicionado mais alguns itens a ela. Além da Bíblia, roupas e objetos pessoais,
ela agora continha aspirinas, comprimidos de um composto ferroso para Betsie,
por causa da anemia, e várias outras coisas. Ela se tornara uma espécie de
talismã para mim, um tipo de segurança contra os horrores da prisão.
Vesti-me vagarosamente e saí. A casa parecia girar. Desci
lentamente, agarrando-me ao corrimão. Ao passar diante do quarto de Tia Jans,
ouvi vozes e fiquei surpresa. Olhei para dentro. Ah! Eu havia me esquecido. Era
quarta-feira, e aquelas pessoas estavam ali para a reunião de oração semanal
que Willem dirigia.
Vi Nollie servindo o "café da ocupação", que
era como designávamos aquela infusão feita com raiz de cereja e figo seco.
Peter já se achava sentado ao piano, como sempre fazia, para o acompanhamento
musical. Continuei a descer, encontrando outras pessoas que subiam.
Quando entrei na loja, sentindo os joelhos fracos, um homenzinho
de cabelos cor-de-areia levantou-se para vir ao meu encontro.
- D. Corrie!
- Pois não.
Há um velho ditado holandês que diz: Conhece-se um homem
pelo modo como ele nos encara. Aquele homem nunca me fitava diretamente nos
olhos; seu olhar parecia estar num ponto qualquer do meu rosto, entre o queixo
e o nariz.
- É algum relógio? perguntei.
- Não, minha senhora, é um assunto muito mais sério! Seus
olhos circularam pelo meu rosto.
- Minha esposa foi presa. Estávamos escondendo judeus. Se
ela for interrogada, a vida de todos nós estará em perigo.
- Não vejo como eu poderia ajudá-lo, disse-lhe.
- Preciso de seiscentos guílderes. Há um policial
em Ermelo que poderá ser subornado por esta quantia. Eu sou pobre, mas soube
que a senhora conhece algumas pessoas...
- Que pessoas?
- Isto é uma questão de vida ou de morte, minha senhora.
Se eu não conseguir esse dinheiro logo, ela vai ser levada para Amsterdam, e
então será muito tarde.
Havia um quê de estranho naquele homem que me fez
vacilar. No entanto, como poderia arriscar-me a deixar de ajudá-lo?
- Volte daqui a meia hora. Vou arranjar o dinheiro. Pela
primeira vez, ele me olhou nos olhos.
- Nunca me esquecerei disto, disse.
Não dispúnhamos de toda aquela quantia ali no Beje, por
isso mandei Toos ao banco com instruções para entregar o dinheiro a ele, mas
não lhe dar nenhuma informação. Depois, subi as escadas outra vez, com muita
dificuldade. Se dez minutos antes eu estivera ardendo em febre, agora tremia
de frio. Parei no quarto de Tia Jans para pegar uma pasta de documentos de cima
da mesa. Depois, com um pedido de desculpas a Willem e aos outros, continuei a
subir para o quarto.
Troquei de roupa, enchi de água o vaporizador, que já se
secara, e estava assobiando em seu fogãozinho, e fui para a cama. Tentei
estudar os nomes e endereços que se achavam na pasta. Em Zandvoort precisavam
de cinco cartões; em Overveen, nenhum. Dezoito iriam para... Meus olhos pareciam vencidos pela doença;
os papéis dançavam à minha frente. A pasta escorregou de minha mão e eu caí no
sono.
Em meu sonho, uma campainha tocava, tocava, e tocava. Por que aquilo não parava? Ouvi o barulho de pés a correr e vozes assustadas.
- Depressa! Depressa!
Sentei-me na cama depressa. Eles passavam correndo perto
de minha cama. Voltei-me a tempo de ver os pés de Thea desaparecendo pela
portinhola. Meta seguiu-se a ela; depois Henk.
Mas, eu não planejara realizar um treino hoje. Quem será
que... a não ser que... a não ser que não fosse um treino. Eusie passou
correndo, pálido, o cachimbo chocalhando dentro do cinzeiro que segurava com
mãos trêmulas.
Por fim, meu cérebro embotado percebeu que aquilo era uma
situação real de emergência. Uma, duas, três pessoas já se encontravam no
quartinho secreto, quatro, quando vi a meia vermelha e o sapato preto de Eusie
sumindo de vista. Mas, e Mary? A velhinha surgiu à porta do quarto, boca aberta,
ofegando. Saltei da cama e puxei-a e depois empurrei-a para ajudá-la a atravessar
o quarto.
Eu estava fechando a portinhola quando um senhor magro
de cabelos brancos entrou correndo no quarto. Reconheci-o logo: era do grupo
de Pickwick, um alto membro da resistência. Não tinha a mínima idéia de que
ele estava em casa.
Ele mergulhou pela portinhola atrás de Mary. Cinco, seis.
Com Leendert fora, o grupo estava completo agora.
Por fim, empurrei o painel e voltei para a cama. Ouvi as
portas sendo abertas e fechadas embaixo, e passos pesados na escada. Todavia
foi um outro ruído que me fez gelar o sangue nas veias: a respiração sufocada e
arquejante de Mary.
Pus-me a orar.
- Senhor Jesus, tu tens poder para curar. Cura Mary agora.
Foi então que meus olhos caíram sobre a pasta com suas
listas de nomes e endereços. Agarrei-a. Abri a portinhola com um arranco e
atirei a pasta para dentro. No momento em que acabava de me enfiar novamente na
cama, a porta do quarto foi aberta abruptamente.
- Seu nome?
Sentei-me devagar, procurando parecer sonolenta.
- O quê?
- Seu nome?
- Cornélia ten Boom!
Era um homem alto, grandalhão, pálido e de feições estranhas.
Vestia-se à paisana, um terno azul. Virou-se e gritou para baixo.
- Tem mais uma aqui, Willemse. Depois, voltou-se para
mim.
- Levante-se e vista-se.
Enquanto eu saía de sob as cobertas, ele tirou um pedaço
de papel do bolso e consultou-o.
- Então, você é a chefe! Olhou-me com renovado interesse.
Diga-me, onde estão escondendo os judeus?
- Não sei do que é que o senhor está falando. Ele riu.
- E não sabe nada sobre um círculo de resistência, também.
Nós vamos ver isto.
Como ele não tirasse os olhos de cima de mim, comecei a
vestir a roupa sobre o pijama mesmo, ouvidos atentos para algum barulho que
partisse do quartinho.
- Quero ver seus documentos.
Peguei o saquinho pendurado ao pescoço. Quando retirei
dele minha carteira de identidade, um bolo de notas veio junto e caiu ao chão.
O homem simplesmente inclinou-se e apanhou-as, e enfiou-as no bolso. Depois,
pegou meus documentos e examinou-os. O quarto ficou em silêncio durante alguns
minutos. E o chiado do peito de Mary - por que eu não o ouvia?
Ele atirou-me os documentos de volta.
- Depressa!
Mas ele não tinha nem a metade da pressa que eu tinha de
deixar aquele quarto. Em minha precipitação, abotoei a blusa de frio toda
errada, e apenas calcei os sapatos sem me preocupar em amarrá-los.
Eu já estava pronta para agarrar a maleta de prisão.
Espere! Ela ainda estava onde eu a deixara, encostada à portinhola secreta,
onde eu a atirara no momento de pânico. Se eu tirasse aquela maleta dali, com
aquele homem observando todos os meus movimentos, será que não atrairia a
atenção dele para o último lugar da terra onde eu a queria? Foi a coisa mais
difícil que já fiz: sair daquele quarto deixando a maleta para trás.
Desci as escadas, meio trôpega, os joelhos tremendo, tanto
pela doença, como pelo medo. Um policial fardado estava diante da entrada dos
quartos de Tia Jans. A porta estava fechada. Será que a reunião terminara, e
Willem, Nollie e Peter tinham escapado? Ou será que ainda estavam lá? Quantas
pessoas inocentes estariam envolvidas?
O homem empurrou-me de leve, e eu continuei a descer para
a sala de jantar. Papai, Betsie e Toos estavam sentados em cadeiras encostadas
à parede. Com eles achavam-se três dos nossos agentes que deviam ter chegado
depois que eu subira. No chão, junto à janela, estava a placa do relógio
"Alpina", partida em três pedaços. Alguém conseguira derrubá-la da
janela.
Havia outro agente da Gestapo ali, à paisana. Sentado à
mesa, deslizava a mão por um monte de rijksdaalders de prata, e jóias,
que se achavam sobre a mesa. Tratava-se do material que estivera escondido no
vão que havia por trás do armário do canto: realmente, fora ali o primeiro
lugar que procuraram.
- Aqui está mais uma que é registrada neste endereço,
disse o oficial que me conduzira para baixo. Pela informação que tenho, é a
chefe do negócio todo.
O homem que estava à mesa, a quem ele chamara de
Willemse, olhou-me rapidamente, e depois voltou a se concentrar no material
recolhido, que se achava à sua frente.
- Você sabe o que fazer, Kapteyn.
Kapteyn agarrou-me pelo cotovelo e empurrou-me escada
abaixo, para a parte traseira da loja. Havia outro soldado fardado junto à
porta. Kapteyn fez-me atravessar a loja e empurrou-me contra a parede.
- Onde estão os judeus?
- Não há nenhum judeu aqui. Ele bateu-me com força no
rosto.
- Onde vocês escondem os cartões de racionamento?
- Não sei do que você está falando..,
Kapteyn bateu-me novamente. Perdi o equilíbrio, indo de
encontro ao relógio astronômico. Antes que eu pudesse me recobrar, ele me
atingiu de novo, uma, duas, três vezes, com tanta força que minha cabeça era
atirada para trás.
Outra bofetada.
- Onde é o quarto secreto?
Senti gosto de sangue na boca. Minha cabeça girava; ouvi
um zumbido no ouvido. Estava perdendo os sentidos.
- Senhor Jesus, gritei, protege-me. A mão dele estacou no
ar.
- Se repetir este nome eu a mato.
Ao contrário da ameaça, porém, deixou cair o braço.
- Já que você não quer falar, aquela magrinha falará.
Subi as escadas tropegamente, à sua frente. Ele empurrou-me
para uma das cadeiras encostadas à parede. Olhos ainda embaçados, vi-o conduzir
Betsie para fora da sala.
De cima vinha o barulho de batidas de martelo e de madeira
se partindo, revelando que um grupo de policiais treinados estava à procura do
quarto secreto. De repente, ouvimos a campainha da porta lateral embaixo. Mas,
e a placa? Será que não tinham visto que o quadro do relógio "Alpina"
não estava no lugar? Olhei para a janela, e tive um choque. Nosso triângulo de
madeira estava de volta ali - alguém havia juntado os pedaços cuidadosamente.
Ergui os olhos mas já era tarde: Willemse fitava-me atentamente.
- Foi o que pensei, disse. Era um sinal, não era?
Em seguida, levantou-se e correu para baixo. No andar
superior, as batidas de martelo e o vaivém das botas haviam cessado. A porta
lateral foi aberta e ouviu-se a voz de Willemse, suave e fingidamente
insinuante, dizendo:
- Entre, por favor.
- Já sabem da notícia? era uma voz de mulher. Prenderam
Tio Herman.
Pickwick? Não?!
- Ah! ouvi Willemse exclamar. Quem mais estava com ele?
Interrogou-a até onde pôde, e depois deu-lhe voz de prisão.
Medo e confusão estampados no rosto, ela veio sentar-se junto à parede.
Lembrei-me apenas de que era uma pessoa que às vezes levava recados para nós,
dentro da cidade. Olhei com angústia para a placa à janela, que anunciava ao
mundo que tudo estava bem no Beje. Nossa casa se tornara uma armadilha.
Quantos mais cairiam nela antes do dia terminar? E Pickwick? Será que havia
mesmo sido preso?
Kapteyn reapareceu com Betsie, à porta da sala de jantar.
Os lábios dela estavam inchados e uma mancha roxa começava a se formar em seu
rosto. Ela deixou-se cair numa cadeira próxima àquela em que eu me achava.
- Betsie! Ele te machucou!
Ela limpou o sangue da boca com a ponta dos dedos.
- Estou com tanta pena dele.
Kapteyn girou nos calcanhares; seu rosto estava lívido.
- Os prisioneiros que permaneçam em silêncio, berrou.
Dois homens desceram ruidosamente as escadas e penetraram
na sala carregando um objeto. Haviam descoberto nosso velho rádio debaixo da
escada.
- Respeitadores da lei vocês, hein? continuou Kapteyn.
- Ei, você! O velho! Estou vendo que acredita na Bíblia.
Apontou para o nosso velho livro na estante. O que é que diz aí sobre prestar
obediência ao governo?
- Temei a Deus, recitou papai, e aquelas palavras, em
seus lábios, pareciam trazer bênção e paz ao ambiente. Temei a Deus, honrai a
rainha.
Kapteyn olhou-o fixamente.
- Não tem isto lá, não. A Bíblia não diz isto.
- Realmente, admitiu papai. Ali diz: "Temei a Deus,
honrai o rei", mas em nosso caso é a rainha.
- Não é nem o rei nem a rainha, gritou Kapteyn. Nós agora
somos o governo constituído, e vocês estão infringindo a lei.
A campainha tocou de novo. Outra vez o mesmo processo:
perguntas e prisão. O rapaz, um de nossos agentes, mal tinha recebido ordens de
sentar-se quando a sineta soou novamente. Parecia-me que nunca recebêramos tantas
visitas: a sala estava ficando lotada. Eu sentia mais pena dos que tinham vindo
ali somente para uma visita de cortesia.
Um idoso missionário aposentado foi introduzido, o queixo
tremendo de pavor. Pelo menos uma coisa era certa, eles não haviam descoberto
ainda o quartinho secreto, já que se ouviam as passadas e batidas de martelo lá
em cima.
Um novo som pôs-me alerta. Embaixo, no hall, o telefone
estava chamando.
- Isso é um telefone! gritou Willemse.
Ele correu os olhos pela sala, depois agarrou-me pelo pulso
e puxou-me escada abaixo. Pegou o fone e chegou-o ao meu ouvido, segurando-o
ele mesmo.
- Fale! ordenou-me apenas com uma mímica labial.
- É da residência e loja ten Boom, disse o mais rigidamente
que ousava. Todavia a pessoa que estava do outro lado da linha não percebeu a
diferença.
- D. Corrie, a senhora está em perigo. Prenderam Herman
Sluring! Já sabem de tudo! A senhora deve tomar cuidado!
E ela continuou falando, falando, e o policial a meu lado
ouvindo tudo. Mal o fone fora posto no gancho, tocou de novo. Era voz de homem,
e dava a mesma mensagem:
- Tio Herman foi preso e levado para a delegacia. Isto
significa que já sabem de tudo...
Afinal, quando na terceira vez atendi com as mesmas palavras
formais e estranhas, a pessoa do outro lado desligou. Willemse arrebatou o fone
de minha mão.
- Alô! Alô! gritava ele. Mexeu com o gancho na parede. A
linha fora mesmo interrompida. Ele me empurrou escada acima, até minha cadeira.
- Nossos amigos ficaram espertinhos, informou a Kapteyn,
mas eu ouvi o bastante.
Aparentemente, Betsie havia recebido permissão para sair
do lugar. Ela se achava de pé junto ao armário de louça, cortando fatias de
pão. Fiquei surpresa ao constatar que já era hora do almoço. Betsie passou a
vasilha de pão, mas eu recusei. A febre estava alta de novo. Minha garganta
doía; a cabeça latejava.
Um homem surgiu à porta.
- Já procuramos pela casa toda, Willemse, disse ele. Se
existe um quarto secreto aqui, foi construído pelo próprio diabo.
Willemse olhou para Betsie, dela para papai, e dele para
mim.
- Aqui há um quarto secreto, respondeu calmamente. E há
gente nele agora; senão, eles já teriam confessado. Está certo. Vamos colocar
uma guarda ao redor da casa até que eles se transformem em múmias.
Em meio ao sentimento de horror que se seguiu a esta
declaração, senti uma leve pressão em meus joelhos. Maher Shalal Hashbaz pulara
em meu colo e encostava-se a mim. Corri a mão no seu pelo negro e lustroso. O
que seria dele agora? Eu queria evitar pensar naqueles seis lá em cima.
Já se havia passado meia hora desde que a campainha
tocara pela última vez. A pessoa que chamara e entendera a minha mensagem ao
telefone, tinha dado o alarme. O aviso fora dado: ninguém mais cairia na
armadilha do Beje.
Parece que Willemse chegara à mesma conclusão, pois, de
repente, ele ordenou que todos se levantassem e pusessem casacos e chapéus e
descessem. Eu, papai e Betsie fomos retidos e saímos por último.
À nossa frente, desceram as pessoas que estavam no quarto
de Tia Jans. Contive a respiração enquanto examinava o grupo. Ao que parecia,
a maioria dos que tinham vindo para a reunião de oração havia se retirado antes
da batida, mas infelizmente, nem todos. Ali vinha Nollie e atrás dela, Peter.
Por fim, Willem. A família toda. Papai, todos os seus quatro filhos e um neto.
Kapteyn deu-me um empurrão.
- Andando!
Papai tirou seu chapéu do gancho. Na porta da sala de
jantar, ele parou para puxar os pesos do velho relógio frísio.
- Não podemos deixar o relógio parar, disse.
Papai... será que ele pensava mesmo que nós voltaríamos
antes de os pesos chegarem embaixo?
A neve das ruas estava derretida. Enquanto seguíamos pela
ruela lateral e alcançávamos a rua, vi a água suja empoçada nas valas. A
caminhada até a delegacia não tomou mais que um minuto, mas quando ali entrei
estava tremendo de frio. Corri os olhos pelo vestíbulo à procura de Rolf ou de
algum outro conhecido, mas não vi ninguém. Uma guarnição de soldados alemães
ali estava para reforçar o batalhão local.
Fomos levados por um corredor, e chegamos ao portão de
ferro onde eu vira Harry de Vries pela última vez. No fim dele, havia um salão
amplo que antes fora uma quadra de esportes. As janelas eram altas e tapadas
com telas de metal. As tabelas e cestas estavam amarradas ao teto. Havia uma
mesa no centro, à qual se sentava um oficial alemão. Havia também algumas
esteiras de ginástica no chão, e eu me deixei cair em uma delas.
Durante as duas horas que se seguiram ele anotou nomes e
endereços e outros dados. Procurei averiguar quantos haviam sido presos conosco,
na batida do Beje: contei trinta e cinco pessoas.
Outros que haviam sido detidos em batidas anteriores estavam
por ali deitados nas esteiras, e alguns deles eram conhecidos nossos. Procurei
Pickwick, mas não o vi. Um dos que estavam ali era um relojoeiro que muitas
vezes fora ao Beje a negócios e parecia muito aborrecido com o que nos
sucedera. Ele aproximou-se de nós e sentou-se a nosso lado.
Por fim, o policial saiu. Era a primeira vez que podíamos
conversar entre nós livremente depois que a sineta de alarme soara no Beje. Esforcei-me
para me sentar.
- Depressa! falei com voz rouca. Temos que decidir o que
vamos dizer. Alguns podem simplesmente dizer a verdade, mas...
As palavras me morreram na garganta. Pareceu-me, apesar
do meu cérebro estar embotado pela doença, que Peter dirigia-me a carranca mais
feroz que eu já recebera.
- Se eles descobrirem que o Tio Willem estava falando
sobre o Velho Testamento hoje de manhã, isso pode trazer encrenca para ele,
Peter completou para mim.
Com um gesto de cabeça, ele apontou para uma certa direção.
Ergui-me vacilante.
- Tia Corrie, disse-me quando nos achávamos do outro
lado, aquele homem, o relojoeiro, é informante da Gestapo.
Bateu de leve em minhas costas como se eu fosse uma
criança tola.
- Deite-se outra vez, Tia Corrie, e, por favor, não fale
mais nada.
Acordei com o barulho da porta sendo escancarada
estrepitosamente, e Rolf entrando.
- Silêncio aqui! berrou.
Ele aproximou-se de Willem e inclinou-se para ele, dizendo-lhe
algo que não consegui ouvir.
- Os banheiros ficam nos fundos, continuou em voz alta.
Podem ir lá, um de cada vez, e sob escolta.
Willem veio sentar-se a meu lado.
- Ele disse que podemos nos desfazer de papéis e documentos
comprometedores, picando-os bem pequenos, e depois jogando-os no vaso.
Enfiei as mãos nos bolsos. Havia vários pedaços de papel
e uma carteira com algumas notas. Estudei-os um a um, tentando imaginar como os
explicaria diante de um tribunal. Ao lado da fileira de sanitários, havia um
jarro de água com uma caneca de estanho presa a ele por uma corrente.
Alegremente, bebi bastante - era o primeiro líquido que tomava, depois do chá
que Betsie me levara pela manhã.
À tardinha, um policial entrou na quadra com uma grande
cesta de pães frescos. Não consegui comer. Água era a única coisa que me
apetecia, apesar de eu já me sentir acanhada de estar sempre pedindo para ser
levada lá fora.
Quando entrei de volta, pela última vez, um grupo de
pessoas havia se reunido ao redor de papai, para termos um pequeno culto. Todos
os dias da minha vida haviam se encerrado assim: ouvindo aquela voz profunda e
firme confiando-nos, a todos, com segurança e zelo, aos cuidados de Deus.
A Bíblia ficara para trás, numa prateleira, mas grande
parte dela achava-se em depósito no coração dele. Os olhos azuis de papai
pareciam se fixar num ponto que se achava fora daquela prisão, de Haarlem, fora
da terra, enquanto ele repetia de cor: "Tu és o meu refúgio e o meu
escudo; na tua palavra eu espero... Sustenta-me e serei salvo."
Nenhum de nós dormiu bem naquela noite. Cada vez que
alguém queria sair, tinha que saltar pelo menos uns doze. Afinal, a luz do dia
começou a penetrar pelas altas janelas teladas. Novamente, trouxeram-nos
pãezinhos. Passei a manhã toda cochilando encostada à parede; a dor agora concentrava-se
em meu peito. Era meio-dia quando alguns policiais entraram no salão e nos
ordenaram que nos levantássemos. Vestimos os casacos apressadamente e saímos em
fila pelos corredores frios.
Na rua, havia um grande número de pessoas junto às barricadas
levantadas pela polícia. Assim que eu e Betsie saímos ladeando papai, um
murmúrio de horror foi ouvido, à vista do "bom velho de Haarlem"
sendo levado à prisão. À porta, estava estacionado um ônibus verde com vários
soldados ao fundo.
Algumas pessoas subiam a ele enquanto parentes e amigos,
no meio da multidão, choravam ou apenas os olhavam fixamente. Eu e Betsie
seguramos o braço de papai e começávamos a descer os degraus que levavam à rua,
quando algo nos fez parar perplexos. Alguém passou rente a nós, escoltado por
dois soldados, um de cada lado, sem casaco e sem chapéu - era Pickwick. O alto
de sua calva mostrava inúmeros ferimentos; sua barba estava grudada com sangue
coagulado. Ele conservou os olhos baixos ao ser conduzido para o ônibus.
Eu, papai e Betsie nos ajeitamos em um dos assentos
fronteiros. Pela janela, pude ver Tine entre a multidão. Era um desses dias
claros de inverno, quando o próprio ar parecia luminoso. O ônibus deu um
arranco e partiu.
A polícia abriu caminho por entre o povo, para o carro
passar vagarosamente. Espiei pela janela com fome nos olhos, querendo reter a
imagem de Haarlem que desaparecia. Atravessávamos a Praça Grote Markt, e as
paredes da catedral pareciam emitir o reflexo de milhares de tons acinzentados,
à luz cristalina. Estranhamente, pensei já ter vivido aquele momento antes.
Foi então que me lembrei.
A visão. Na noite da invasão. Eu tinha visto tudo.
Willem, Nollie, Pickwick, Peter - todos nós - sendo levados contra a vontade,
sendo obrigados a atravessar aquela praça, saindo da cidade. Eu vira tudo
aquilo no sonho - todos nós partindo de Haarlem, sem poder voltar.
Qual seria nosso destino?