segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 09


 A Batida

             Alguém entrou em meu quarto, e eu abri os olhos penosa­mente. Era Eusie, trazendo suas roupas de cama e objetos pessoais para guardá-los no quartinho secreto. Depois dele vinham Mary e Thea com suas coisas.

            Fechei os olhos novamente. Era o dia 28 de fevereiro de 1944. Havia dois dias, eu estava de cama com uma forte gri­pe. Minha cabeça latejava, minhas juntas ardiam. Qualquer ruído - o chiado da respiração de Mary, o arranhado da portinhola - dava-me vontade de gritar. Agora, ouvia Henk e Meta entrando, e depois as risadas de Eusie ao entregar aos outros os seus objetos do dia, através da abertura.

            Vão embora todos vocês! Deixem-me em paz! Apertei os lábios para não gritar.

            Finalmente, apanharam roupas e pertences e saíram, fe­chando a porta atrás de si. Onde estava Leendert? Por que não subira? Então lembrei-me de que ele estava fora, instalando um sistema de alarme elétrico, semelhante ao nosso, em ou­tras casas que abrigavam fugitivos. Caí num sono febril.

            O fato seguinte de que tive consciência, foi Betsie, de pé ao lado da cama, com uma xícara de chá quente na mão.

            - Sinto muito ter que acordá-la, Corrie, mas há um ho­mem lá embaixo que insiste em falar com você, e só com você.

            - Quem é?

            - Diz que é de Ermelo. Nunca o vi antes. Assentei-me, sentindo-me bem fraca.

            - Não tem importância. Tenho que levantar mesmo. Ama­nhã é o dia dos cartões de racionamento.

            Tomei o chá escaldante, e depois levantei-me com esfor­ço. Ao lado da cama, estava minha maleta de prisão, arruma­da e pronta, desde o dia em que fora chamada a comparecer perante o chefe de polícia. Eu tinha até adicionado mais al­guns itens a ela. Além da Bíblia, roupas e objetos pessoais, ela agora continha aspirinas, comprimidos de um composto ferroso para Betsie, por causa da anemia, e várias outras coisas. Ela se tornara uma espécie de talismã para mim, um tipo de segurança contra os horrores da prisão.

            Vesti-me vagarosamente e saí. A casa parecia girar. Des­ci lentamente, agarrando-me ao corrimão. Ao passar dian­te do quarto de Tia Jans, ouvi vozes e fiquei surpresa. Olhei para dentro. Ah! Eu havia me esquecido. Era quarta-feira, e aquelas pessoas estavam ali para a reunião de oração semanal que Willem dirigia.

            Vi Nollie servindo o "café da ocupação", que era como designávamos aquela infusão feita com raiz de cereja e figo seco. Peter já se achava sentado ao piano, como sempre fazia, para o acompanhamento musical. Continuei a descer, encontrando outras pessoas que subiam.

            Quando entrei na loja, sentindo os joelhos fracos, um ho­menzinho de cabelos cor-de-areia levantou-se para vir ao meu encontro.

            - D. Corrie!

            - Pois não.

            Há um velho ditado holandês que diz: Conhece-se um homem pelo modo como ele nos encara. Aquele homem nunca me fitava diretamente nos olhos; seu olhar parecia estar num ponto qualquer do meu rosto, entre o queixo e o nariz.

            - É algum relógio? perguntei.

            - Não, minha senhora, é um assunto muito mais sério! Seus olhos circularam pelo meu rosto.

            - Minha esposa foi presa. Estávamos escondendo judeus. Se ela for interrogada, a vida de todos nós estará em perigo.

            - Não vejo como eu poderia ajudá-lo, disse-lhe.

            - Preciso de seiscentos guílderes. Há um policial em Ermelo que poderá ser subornado por esta quantia. Eu sou pobre, mas soube que a senhora conhece algumas pessoas...

            - Que pessoas?

            - Isto é uma questão de vida ou de morte, minha senho­ra. Se eu não conseguir esse dinheiro logo, ela vai ser levada para Amsterdam, e então será muito tarde.

            Havia um quê de estranho naquele homem que me fez vacilar. No entanto, como poderia arriscar-me a deixar de ajudá-lo?

            - Volte daqui a meia hora. Vou arranjar o dinheiro. Pela primeira vez, ele me olhou nos olhos.

            - Nunca me esquecerei disto, disse.

            Não dispúnhamos de toda aquela quantia ali no Beje, por isso mandei Toos ao banco com instruções para entregar o dinheiro a ele, mas não lhe dar nenhuma informação. De­pois, subi as escadas outra vez, com muita dificuldade. Se dez minutos antes eu estivera ardendo em febre, agora tre­mia de frio. Parei no quarto de Tia Jans para pegar uma pasta de documentos de cima da mesa. Depois, com um pedido de desculpas a Willem e aos outros, continuei a subir para o quarto.

            Troquei de roupa, enchi de água o vaporizador, que já se secara, e estava assobiando em seu fogãozinho, e fui para a cama. Tentei estudar os nomes e endereços que se achavam na pasta. Em Zandvoort precisavam de cinco car­tões; em Overveen, nenhum. Dezoito iriam para...         Meus olhos pareciam vencidos pela doença; os papéis dançavam à minha frente. A pasta escorregou de minha mão e eu caí no sono.

            Em meu sonho, uma campainha tocava, tocava, e tocava. Por que aquilo não parava? Ouvi o barulho de pés a correr e vozes assustadas.

            - Depressa! Depressa!

            Sentei-me na cama depressa. Eles passavam correndo perto de minha cama. Voltei-me a tempo de ver os pés de Thea desa­parecendo pela portinhola. Meta seguiu-se a ela; depois Henk.

            Mas, eu não planejara realizar um treino hoje. Quem será que... a não ser que... a não ser que não fosse um treino. Eusie passou correndo, pálido, o cachimbo chocalhando den­tro do cinzeiro que segurava com mãos trêmulas.

            Por fim, meu cérebro embotado percebeu que aquilo era uma situação real de emergência. Uma, duas, três pessoas já se encontravam no quartinho secreto, quatro, quando vi a meia vermelha e o sapato preto de Eusie sumindo de vista. Mas, e Mary? A velhinha surgiu à porta do quarto, boca aber­ta, ofegando. Saltei da cama e puxei-a e depois empurrei-a para ajudá-la a atravessar o quarto.

            Eu estava fechando a portinhola quando um senhor ma­gro de cabelos brancos entrou correndo no quarto. Reconhe­ci-o logo: era do grupo de Pickwick, um alto membro da re­sistência. Não tinha a mínima idéia de que ele estava em casa.

            Ele mergulhou pela portinhola atrás de Mary. Cinco, seis. Com Leendert fora, o grupo estava completo agora.

            Por fim, empurrei o painel e voltei para a cama. Ouvi as portas sendo abertas e fechadas embaixo, e passos pesados na escada. Todavia foi um outro ruído que me fez gelar o sangue nas veias: a respiração sufocada e arquejante de Mary.

            Pus-me a orar.

            - Senhor Jesus, tu tens poder para curar. Cura Mary ago­ra.

            Foi então que meus olhos caíram sobre a pasta com suas listas de nomes e endereços. Agarrei-a. Abri a portinhola com um arranco e atirei a pasta para dentro. No momento em que acabava de me enfiar novamente na cama, a porta do quarto foi aberta abruptamente.

            - Seu nome?

            Sentei-me devagar, procurando parecer sonolenta.

            - O quê?

            - Seu nome?

            - Cornélia ten Boom!

            Era um homem alto, grandalhão, pálido e de feições es­tranhas. Vestia-se à paisana, um terno azul. Virou-se e gritou para baixo.

            - Tem mais uma aqui, Willemse. Depois, voltou-se para mim.

            - Levante-se e vista-se.

            Enquanto eu saía de sob as cobertas, ele tirou um pedaço de papel do bolso e consultou-o.

            - Então, você é a chefe! Olhou-me com renovado interes­se. Diga-me, onde estão escondendo os judeus?

            - Não sei do que é que o senhor está falando. Ele riu.

            - E não sabe nada sobre um círculo de resistência, tam­bém. Nós vamos ver isto.

            Como ele não tirasse os olhos de cima de mim, comecei a vestir a roupa sobre o pijama mesmo, ouvidos atentos para algum barulho que partisse do quartinho.

            - Quero ver seus documentos.

            Peguei o saquinho pendurado ao pescoço. Quando retirei dele minha carteira de identidade, um bolo de notas veio junto e caiu ao chão. O homem simplesmente inclinou-se e apanhou-as, e enfiou-as no bolso. Depois, pegou meus documentos e exa­minou-os. O quarto ficou em silêncio durante alguns minutos. E o chiado do peito de Mary - por que eu não o ouvia?

            Ele atirou-me os documentos de volta.

            - Depressa!

            Mas ele não tinha nem a metade da pressa que eu tinha de deixar aquele quarto. Em minha precipitação, abotoei a blu­sa de frio toda errada, e apenas calcei os sapatos sem me preocupar em amarrá-los.

            Eu já estava pronta para agarrar a maleta de prisão. Espere! Ela ainda estava onde eu a deixara, encostada à portinhola secreta, onde eu a atirara no momen­to de pânico. Se eu tirasse aquela maleta dali, com aquele homem observando todos os meus movimentos, será que não atrairia a atenção dele para o último lugar da terra onde eu a queria? Foi a coisa mais difícil que já fiz: sair daquele quarto deixando a maleta para trás.

            Desci as escadas, meio trôpega, os joelhos tremendo, tan­to pela doença, como pelo medo. Um policial fardado estava diante da entrada dos quartos de Tia Jans. A porta estava fechada. Será que a reunião terminara, e Willem, Nollie e Peter tinham escapado? Ou será que ainda estavam lá? Quantas pessoas inocentes estariam envolvidas?

            O homem empurrou-me de leve, e eu continuei a descer para a sala de jantar. Papai, Betsie e Toos estavam sentados em cadei­ras encostadas à parede. Com eles achavam-se três dos nossos agentes que deviam ter chegado depois que eu subira. No chão, junto à janela, estava a placa do relógio "Alpina", partida em três pedaços. Alguém conseguira derrubá-la da janela.

            Havia outro agente da Gestapo ali, à paisana. Sentado à mesa, deslizava a mão por um monte de rijksdaalders de prata, e jóias, que se achavam sobre a mesa. Tratava-se do material que esti­vera escondido no vão que havia por trás do armário do canto: realmente, fora ali o primeiro lugar que procuraram.

            - Aqui está mais uma que é registrada neste endereço, disse o oficial que me conduzira para baixo. Pela informação que tenho, é a chefe do negócio todo.

            O homem que estava à mesa, a quem ele chamara de Willemse, olhou-me rapidamente, e depois voltou a se con­centrar no material recolhido, que se achava à sua frente.

            - Você sabe o que fazer, Kapteyn.

            Kapteyn agarrou-me pelo cotovelo e empurrou-me escada abaixo, para a parte traseira da loja. Havia outro soldado fardado junto à porta. Kapteyn fez-me atravessar a loja e empurrou-me contra a parede.

            - Onde estão os judeus?

            - Não há nenhum judeu aqui. Ele bateu-me com força no rosto.

            - Onde vocês escondem os cartões de racionamento?

            - Não sei do que você está falando..,

            Kapteyn bateu-me novamente. Perdi o equilíbrio, indo de encontro ao relógio astronômico. Antes que eu pudesse me recobrar, ele me atingiu de novo, uma, duas, três vezes, com tanta força que minha cabeça era atirada para trás.

            Outra bofetada.

            - Onde é o quarto secreto?

            Senti gosto de sangue na boca. Minha cabeça girava; ouvi um zumbido no ouvido. Estava perdendo os sentidos.

            - Senhor Jesus, gritei, protege-me. A mão dele estacou no ar.

            - Se repetir este nome eu a mato.

            Ao contrário da ameaça, porém, deixou cair o braço.

            - Já que você não quer falar, aquela magrinha falará.

            Subi as escadas tropegamente, à sua frente. Ele empur­rou-me para uma das cadeiras encostadas à parede. Olhos ainda embaçados, vi-o conduzir Betsie para fora da sala.

            De cima vinha o barulho de batidas de martelo e de ma­deira se partindo, revelando que um grupo de policiais trei­nados estava à procura do quarto secreto. De repente, ouvi­mos a campainha da porta lateral embaixo. Mas, e a placa? Será que não tinham visto que o quadro do relógio "Alpina" não estava no lugar? Olhei para a janela, e tive um choque. Nosso triângulo de madeira estava de volta ali - alguém ha­via juntado os pedaços cuidadosamente.

            Ergui os olhos mas já era tarde: Willemse fitava-me aten­tamente.

            - Foi o que pensei, disse. Era um sinal, não era?

            Em seguida, levantou-se e correu para baixo. No andar superior, as batidas de martelo e o vaivém das botas haviam cessado. A porta lateral foi aberta e ouviu-se a voz de Willemse, suave e fingidamente insinuante, dizendo:

            - Entre, por favor.

            - Já sabem da notícia? era uma voz de mulher. Prende­ram Tio Herman.

            Pickwick? Não?!

            - Ah! ouvi Willemse exclamar. Quem mais estava com ele?

            Interrogou-a até onde pôde, e depois deu-lhe voz de pri­são. Medo e confusão estampados no rosto, ela veio sentar-se junto à parede. Lembrei-me apenas de que era uma pessoa que às vezes levava recados para nós, dentro da cidade. Olhei com angústia para a placa à janela, que anunciava ao mundo que tudo estava bem no Beje. Nossa casa se tornara uma ar­madilha. Quantos mais cairiam nela antes do dia terminar? E Pickwick? Será que havia mesmo sido preso?

            Kapteyn reapareceu com Betsie, à porta da sala de jantar. Os lábios dela estavam inchados e uma mancha roxa come­çava a se formar em seu rosto. Ela deixou-se cair numa cadei­ra próxima àquela em que eu me achava.

            - Betsie! Ele te machucou!

            Ela limpou o sangue da boca com a ponta dos dedos.

            - Estou com tanta pena dele.

            Kapteyn girou nos calcanhares; seu rosto estava lívido.

            - Os prisioneiros que permaneçam em silêncio, berrou.

            Dois homens desceram ruidosamente as escadas e pene­traram na sala carregando um objeto. Haviam descoberto nosso velho rádio debaixo da escada.

            - Respeitadores da lei vocês, hein? continuou Kapteyn.

            - Ei, você! O velho! Estou vendo que acredita na Bíblia. Apontou para o nosso velho livro na estante. O que é que diz aí sobre prestar obediência ao governo?

            - Temei a Deus, recitou papai, e aquelas palavras, em seus lábios, pareciam trazer bênção e paz ao ambiente. Temei a Deus, honrai a rainha.

            Kapteyn olhou-o fixamente.

            - Não tem isto lá, não. A Bíblia não diz isto.

            - Realmente, admitiu papai. Ali diz: "Temei a Deus, honrai o rei", mas em nosso caso é a rainha.

            - Não é nem o rei nem a rainha, gritou Kapteyn. Nós ago­ra somos o governo constituído, e vocês estão infringindo a lei.

            A campainha tocou de novo. Outra vez o mesmo pro­cesso: perguntas e prisão. O rapaz, um de nossos agentes, mal tinha recebido ordens de sentar-se quando a sineta soou novamente. Parecia-me que nunca recebêramos tan­tas visitas: a sala estava ficando lotada. Eu sentia mais pena dos que tinham vindo ali somente para uma visita de cor­tesia.

            Um idoso missionário aposentado foi introduzido, o queixo tremendo de pavor. Pelo menos uma coisa era cer­ta, eles não haviam descoberto ainda o quartinho secreto, já que se ouviam as passadas e batidas de martelo lá em cima.

            Um novo som pôs-me alerta. Embaixo, no hall, o telefone estava chamando.

            - Isso é um telefone! gritou Willemse.

            Ele correu os olhos pela sala, depois agarrou-me pelo pul­so e puxou-me escada abaixo. Pegou o fone e chegou-o ao meu ouvido, segurando-o ele mesmo.

            - Fale! ordenou-me apenas com uma mímica labial.

            - É da residência e loja ten Boom, disse o mais rigida­mente que ousava. Todavia a pessoa que estava do outro lado da linha não percebeu a diferença.

            - D. Corrie, a senhora está em perigo. Prenderam Herman Sluring! Já sabem de tudo! A senhora deve tomar cuidado!

            E ela continuou falando, falando, e o policial a meu lado ouvindo tudo. Mal o fone fora posto no gancho, tocou de novo. Era voz de homem, e dava a mesma mensagem:

            - Tio Herman foi preso e levado para a delegacia. Isto significa que já sabem de tudo...

            Afinal, quando na terceira vez atendi com as mesmas pa­lavras formais e estranhas, a pessoa do outro lado desligou. Willemse arrebatou o fone de minha mão.

            - Alô! Alô! gritava ele. Mexeu com o gancho na parede. A linha fora mesmo interrompida. Ele me empurrou escada acima, até minha cadeira.

            - Nossos amigos ficaram espertinhos, informou a Kapteyn, mas eu ouvi o bastante.

            Aparentemente, Betsie havia recebido permissão para sair do lugar. Ela se achava de pé junto ao armário de louça, cor­tando fatias de pão. Fiquei surpresa ao constatar que já era hora do almoço. Betsie passou a vasilha de pão, mas eu recu­sei. A febre estava alta de novo. Minha garganta doía; a cabe­ça latejava.

            Um homem surgiu à porta.

            - Já procuramos pela casa toda, Willemse, disse ele. Se existe um quarto secreto aqui, foi construído pelo próprio diabo.

            Willemse olhou para Betsie, dela para papai, e dele para mim.

            - Aqui há um quarto secreto, respondeu calmamente. E há gente nele agora; senão, eles já teriam confessado. Está certo. Vamos colocar uma guarda ao redor da casa até que eles se transformem em múmias.

            Em meio ao sentimento de horror que se seguiu a esta declaração, senti uma leve pressão em meus joelhos. Maher Shalal Hashbaz pulara em meu colo e encostava-se a mim. Corri a mão no seu pelo negro e lustroso. O que seria dele agora? Eu queria evitar pensar naqueles seis lá em cima.

            Já se havia passado meia hora desde que a campainha tocara pela última vez. A pessoa que chamara e entendera a minha mensagem ao telefone, tinha dado o alarme. O aviso fora dado: ninguém mais cairia na armadilha do Beje.

            Parece que Willemse chegara à mesma conclusão, pois, de repente, ele ordenou que todos se levantassem e pusessem casacos e chapéus e descessem. Eu, papai e Betsie fomos reti­dos e saímos por último.

            À nossa frente, desceram as pessoas que estavam no quarto de Tia Jans. Contive a respiração en­quanto examinava o grupo. Ao que parecia, a maioria dos que tinham vindo para a reunião de oração havia se retirado antes da batida, mas infelizmente, nem todos. Ali vinha Nollie e atrás dela, Peter. Por fim, Willem. A família toda. Papai, todos os seus quatro filhos e um neto. Kapteyn deu-me um empurrão.

            - Andando!

            Papai tirou seu chapéu do gancho. Na porta da sala de jantar, ele parou para puxar os pesos do velho relógio frísio.

            - Não podemos deixar o relógio parar, disse.

            Papai... será que ele pensava mesmo que nós voltaríamos antes de os pesos chegarem embaixo?

            A neve das ruas estava derretida. Enquanto seguíamos pela ruela lateral e alcançávamos a rua, vi a água suja empoçada nas valas. A caminhada até a delegacia não to­mou mais que um minuto, mas quando ali entrei estava tremendo de frio. Corri os olhos pelo vestíbulo à procura de Rolf ou de algum outro conhecido, mas não vi ninguém. Uma guarnição de soldados alemães ali estava para refor­çar o batalhão local.

            Fomos levados por um corredor, e chegamos ao portão de ferro onde eu vira Harry de Vries pela última vez. No fim dele, havia um salão amplo que antes fora uma quadra de esportes. As janelas eram altas e tapadas com telas de metal. As tabelas e cestas estavam amarradas ao teto. Havia uma mesa no centro, à qual se sentava um oficial alemão. Havia também algumas esteiras de ginástica no chão, e eu me dei­xei cair em uma delas.

            Durante as duas horas que se seguiram ele anotou nomes e endereços e outros dados. Procurei averiguar quantos haviam sido presos conosco, na batida do Beje: contei trinta e cinco pessoas.

            Outros que haviam sido detidos em batidas anteriores es­tavam por ali deitados nas esteiras, e alguns deles eram co­nhecidos nossos. Procurei Pickwick, mas não o vi. Um dos que estavam ali era um relojoeiro que muitas vezes fora ao Beje a negócios e parecia muito aborrecido com o que nos sucedera. Ele aproximou-se de nós e sentou-se a nosso lado.

            Por fim, o policial saiu. Era a primeira vez que podíamos conversar entre nós livremente depois que a sineta de alarme soara no Beje. Esforcei-me para me sentar.

            - Depressa! falei com voz rouca. Temos que decidir o que vamos dizer. Alguns podem simplesmente dizer a verdade, mas...

            As palavras me morreram na garganta. Pareceu-me, ape­sar do meu cérebro estar embotado pela doença, que Peter dirigia-me a carranca mais feroz que eu já recebera.

            - Se eles descobrirem que o Tio Willem estava falando sobre o Velho Testamento hoje de manhã, isso pode trazer encrenca para ele, Peter completou para mim.

            Com um gesto de cabeça, ele apontou para uma certa di­reção. Ergui-me vacilante.

            - Tia Corrie, disse-me quando nos achávamos do outro lado, aquele homem, o relojoeiro, é informante da Gestapo.

            Bateu de leve em minhas costas como se eu fosse uma criança tola.

            - Deite-se outra vez, Tia Corrie, e, por favor, não fale mais nada.

            Acordei com o barulho da porta sendo escancarada estrepitosamente, e Rolf entrando.

            - Silêncio aqui! berrou.

            Ele aproximou-se de Willem e inclinou-se para ele, dizen­do-lhe algo que não consegui ouvir.

            - Os banheiros ficam nos fundos, continuou em voz alta. Podem ir lá, um de cada vez, e sob escolta.

            Willem veio sentar-se a meu lado.

            - Ele disse que podemos nos desfazer de papéis e docu­mentos comprometedores, picando-os bem pequenos, e de­pois jogando-os no vaso.

            Enfiei as mãos nos bolsos. Havia vários pedaços de pa­pel e uma carteira com algumas notas. Estudei-os um a um, tentando imaginar como os explicaria diante de um tribunal. Ao lado da fileira de sanitários, havia um jarro de água com uma caneca de estanho presa a ele por uma corrente. Alegremente, bebi bastante - era o primeiro lí­quido que tomava, depois do chá que Betsie me levara pela manhã.

            À tardinha, um policial entrou na quadra com uma gran­de cesta de pães frescos. Não consegui comer. Água era a única coisa que me apetecia, apesar de eu já me sentir aca­nhada de estar sempre pedindo para ser levada lá fora.

            Quando entrei de volta, pela última vez, um grupo de pessoas havia se reunido ao redor de papai, para termos um pequeno culto. Todos os dias da minha vida haviam se encerrado assim: ouvindo aquela voz profunda e firme confiando-nos, a todos, com segurança e zelo, aos cuidados de Deus.

            A Bíblia ficara para trás, numa prateleira, mas grande parte dela achava-se em depósito no coração dele. Os olhos azuis de papai pareciam se fixar num ponto que se achava fora daquela prisão, de Haarlem, fora da terra, enquanto ele repetia de cor: "Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra eu espero... Sustenta-me e serei salvo."

            Nenhum de nós dormiu bem naquela noite. Cada vez que alguém queria sair, tinha que saltar pelo menos uns doze. Afinal, a luz do dia começou a penetrar pelas altas janelas teladas. Novamente, trouxeram-nos pãezinhos. Passei a ma­nhã toda cochilando encostada à parede; a dor agora con­centrava-se em meu peito. Era meio-dia quando alguns poli­ciais entraram no salão e nos ordenaram que nos levantássemos. Vestimos os casacos apressadamente e saímos em fila pelos corredores frios.

            Na rua, havia um grande número de pessoas junto às bar­ricadas levantadas pela polícia. Assim que eu e Betsie saímos ladeando papai, um murmúrio de horror foi ouvido, à vista do "bom velho de Haarlem" sendo levado à prisão. À porta, estava estacionado um ônibus verde com vários soldados ao fundo.

            Algumas pessoas subiam a ele enquanto parentes e amigos, no meio da multidão, choravam ou apenas os olha­vam fixamente. Eu e Betsie seguramos o braço de papai e começávamos a descer os degraus que levavam à rua, quan­do algo nos fez parar perplexos. Alguém passou rente a nós, escoltado por dois soldados, um de cada lado, sem casaco e sem chapéu - era Pickwick. O alto de sua calva mostrava inúmeros ferimentos; sua barba estava grudada com sangue coagulado. Ele conservou os olhos baixos ao ser conduzido para o ônibus.

            Eu, papai e Betsie nos ajeitamos em um dos assentos fronteiros. Pela janela, pude ver Tine entre a multidão. Era um desses dias claros de inverno, quando o próprio ar pare­cia luminoso. O ônibus deu um arranco e partiu.

            A polícia abriu caminho por entre o povo, para o carro passar vagarosamente. Espiei pela janela com fome nos olhos, querendo reter a imagem de Haarlem que desaparecia. Atra­vessávamos a Praça Grote Markt, e as paredes da catedral pareciam emitir o reflexo de milhares de tons acinzentados, à luz cristalina. Estranhamente, pensei já ter vivido aquele momento antes.

            Foi então que me lembrei.

            A visão. Na noite da invasão. Eu tinha visto tudo. Willem, Nollie, Pickwick, Peter - todos nós - sendo levados contra a vontade, sendo obrigados a atravessar aquela praça, saindo da cidade. Eu vira tudo aquilo no sonho - todos nós partindo de Haarlem, sem poder voltar.

            Qual seria nosso destino?