Peter estava de volta, e, no entanto; não estava mais a salvo que qualquer outro rapaz de boas condições físicas. Na Alemanha, as fábricas de munição estavam necessitando desesperadamente de operários. Muitas vezes, os soldados cercavam uma certa área sem qualquer aviso, e davam uma batida, arrebanhando todos os homens entre 16 e 30 anos, para os transportarem para lá. Este método de busca e recrutamento relâmpago era denominado razzia, e todas as famílias que tinham filhos rapazes viviam apavoradas, temendo-a.
Flip e Nollie tinham preparado um esconderijo para casos
de emergência, logo que a razzia começou. Havia um pequeno depósito sob
o piso da cozinha. Eles alargaram sua abertura de acesso, puseram um grande
tapete sobre ela e colocaram a mesa no lugar.
Depois que vira o Sr. Smit construir o quartinho secreto
no Beje, eu percebi logo que aquele abrigo era totalmente inseguro e
inadequado. Uma razão é que estava embaixo, quando deveria estar no alto, e,
provavelmente, como diria o Sr. Smit: "Era o primeiro lugar em que
procurariam." Entretanto não se pretendia que ele resistisse a uma busca
feita por pessoas treinadas, e, sim, a uma batida rápida realizada por
soldados. Devia ser um local para se desaparecer de vista por cerca de meia
hora. E para isso, pensei, deve servir...
Foi no aniversário de Flip que a razzia veio
àquela rua tranqüila, de casinhas iguais. Eu, papai e Betsie nos dirigíamos
para lá bem cedo, levando cerca de cem gramas de chá inglês, que Pickwick nos
dera.
Quando chegamos, Nollie, Annaliese e as duas meninas mais
velhas ainda não estavam de volta. Uma loja recebera um carregamento de sapatos
de homem, e Nollie estava decidida a conseguir um par para Flip "mesmo
que tenha que ficar na fila o dia todo".
Estávamos na cozinha, conversando com Cocky e Katrien,
quando, de repente, Peter e seu irmão, Bob, entraram correndo, pálidos de
susto.
- Depressa! Soldados! Estão duas casas abaixo e vêm para
cá.
Afastaram a mesa do lugar, puxaram o tapete e abriram a
portinhola. Bob desceu primeiro e deitou-se no chão; depois, Peter tombou por
cima dele. Fechamos o buraco, puxamos o tapete sobre ele, e recolocamos a mesa
no lugar. Com as mãos tremendo, eu, Betsie e Cocky jogamos uma toalha bem grande
sobre a mesa, e começamos a dispor os pratos para o chá.
Ouvimos a porta da frente ser aberta ruidosamente, depois
outro barulho junto a nós: Cocky derrubara uma xícara. Dois alemães fardados
irromperam pela cozinha, fuzis em riste.
- Fiquem onde estão! Não se movam!
Botas pesadas subiam a escada para o andar superior. Os
soldados deram uma olhada ao redor com visível desgosto, ao verem só mulheres e
um velho. Se tivessem observado Katrien, teriam percebido que ela tinha algo a
esconder, pois seu rosto era uma máscara de terror. Todavia eles tinham outras
idéias em mente.
- Onde estão os homens? perguntou a Cocky o soldado
menor, em um holandês estropiado, e com forte sotaque.
- Essas aqui são minhas tias, respondeu ela; este é meu
avô; meu pai está na escola, minha mãe saiu, e...
- Não perguntei pela tribo inteira! explodiu ele em alemão.
Depois retomou o holandês: Onde estão seus irmãos?
Cocky olhou-o por um segundo, e abaixou os olhos. Meu
coração parou. Eu sabia como Nollie educara os filhos, mas certamente, numa
situação destas, era permissível dizer-se uma mentira.
- Você tem irmãos? o oficial perguntou outra vez.
- Sim, respondeu ela suavemente. Tenho três.
- Quantos anos têm eles?
- Vinte e um, dezenove e dezoito.
De cima vinha o rumor de portas sendo abertas e fechadas
e móveis sendo arrastados.
- Onde estão?
Cocky inclinou-se e começou a recolher os pedaços de xícara
quebrada. O homem puxou-a, fazendo-a erguer-se.
- Onde estão seus irmãos?
- O mais velho está na faculdade de teologia. Muitas vezes,
ele não vem para casa à noite porque...
- E os outros dois?
Cocky nem parou para pensar.
- Ora, estão debaixo da mesa.
Com um movimento da arma, o soldado indicou-nos que
devíamos nos afastar e pegou a ponta da toalha. A um aceno seu, o outro
acocorou-se com a arma apontada. Então, o primeiro puxou a toalha.
Afinal, a tensão contida explodiu: Cocky rompeu num riso
histérico. Os soldados giraram nos calcanhares. Será que aquela garota estava
rindo deles?
- Não pense que somos tolos! resmungou o menor.
E, raivosamente, saiu da sala. Daí a instantes, todo o
grupo se retirou, infelizmente, porém, não antes que o soldado que se
mantivera calado, visse e se apoderasse de nosso precioso pacotinho de chá.
Foi uma festa diferente, a daquela noite. Passamos do alívio
a uma quase discussão, coisa incomum em nossa família tão unida. Nollie apoiou
Cocky, afirmando que teria respondido do mesmo modo.
- Deus protege a quem fala a verdade.
Peter e Bob, sendo os mais interessados no caso, não
concordavam com ela. Nem eu. Eu nunca tivera a coragem de Nollie - nem a mesma
fé. Contudo eu via quando uma coisa era ilógica.
- Não faz sentido dizer a verdade, e fazer uma
mentira! E os documentos falsos de Annaliese? E o falso uniforme de empregada
de Katrien?
- Põe guarda, Senhor, à minha boca, recitou Nollie. Vigia
a porta dos meus lábios. Salmo 14! completou com ar de vitória.
- Certo; mas e o rádio? Eu tive que mentir com os lábios
para poder ficar com ele.
- E estou seguro de que o que saiu de seus lábios foi
dito em amor.
A voz tranqüila de papai repreendeu o rubor de meu rosto.
Amor. Como era que se mostrava amor? Como Deus poderia
demonstrar, ao mesmo tempo, amor e verdade, em um mundo como este?
Morrendo. A resposta me ocorreu da maneira mais vivida e
aterradora possível: a forma de uma cruz marcara a História.
Nos primeiros meses de 1943, tornava-se cada vez mais difícil arranjar casas no interior, para o grande número de judeus que se apresentava no nosso centro clandestino. Mesmo tendo cartões de racionamento e documentos forjados, não conseguíamos lugares para todos. Sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, teríamos que começar a esconder pessoas na cidade mesmo. O triste para nós foi que os primeiros fossem nossos mais queridos amigos. Íamos em meio a um dia cheio na loja, quando Betsie entrou furtivamente na oficina pela porta de trás.
- Harry e Cato estão aí, disse.
Ficamos espantados. Harry nunca vinha ao Beje durante
o dia, por temer que sua estrela amarela pudesse nos causar problemas. Eu e
papai seguimos Betsie apressadamente escada acima.
Ele nos relatou o que acontecera - a mesma história de
sempre. Na noite anterior, haviam recebido a visita de um membro do Partido
Socialista com uma ordem de confisco da loja. Não importava se ele era cristão
ou não. Qualquer judeu podia se converter depressa só para evitar perseguição,
dissera o socialista. Naquela manhã, aparecera lá um alemão fardado para
oficializar o ato: a loja foi fechada "para o bem da segurança
nacional".
- Se eles pensam que eu represento perigo para a segurança
nacional, disse Harry, não vão se contentar só em tomar a loja.
Claro que não iam. No momento, porém, não dispúnhamos de
esconderijos no interior. O único lugar disponível em toda a nossa rede
clandestina era a casa da Sra. De Boer, que ficava a apenas quatro quadras do Beje.
Naquela mesma tarde, bati à sua porta. Era uma mulher
gorda; trajava uma bata azul, de algodão, e calçava chinelas. Nós fornecíamos
cartões de racionamento para ela, e já uma vez conseguíramos, com sua ajuda,
uma operação de apêndice para um dos nossos. Ela mostrou-me os aposentos de
que dispunha, no sótão. Já havia ali dezoito judeus, a maioria deles entre 20 e
25 anos.
- Eles já estão fechados aqui há muito tempo, explicou.
Eles cantam, dançam, fazem muita algazarra.
- Se a senhora acha que mais um casal vai ser muito...
- Não! Não posso rejeitá-los. Traga-os hoje à noite. Nós
damos um jeito.
E assim, Harry e Cato passaram a viver na casa da Sra. De
Boer, em um daqueles quartinhos pequenos. Betsie ia lá todos os dias para
levar-lhes ora um pão feito em casa, ora um pouco de chá, ora fatias de frios.
Entretanto sua maior preocupação não era pela alimentação deles, mas pela sua
segurança pessoal.
- Eles estão correndo perigo, disse-nos. Aqueles jovens
estão mesmo a ponto de estourar. Estavam fazendo tanto barulho, que escutei da
rua.
Naquele triste e rigoroso inverno, tivemos outros motivos
de preocupação também. Apesar de ter nevado pouco, o frio chegou cedo e demorou
a acabar, e o combustível estava escasso. As árvores começaram a desaparecer
aqui e ali, nas praças e nas margens do canal, à medida que o povo as cortava
para o fogão e a lareira.
Essa situação - casas sem aquecimento e muito úmidas -
pesava mais nas crianças e nos velhos.
Certo dia, Christoffels não apareceu nem na hora da
leitura bíblica, nem do trabalho. A dona do quarto onde morava, encontrou-o
morto em seu leito: a água do jarro congelada. Sepultamos nosso velho
consertador de relógios com seu maravilhoso terno e colete que usara no dia do
centenário da loja, há seis anos (e parecia ter sido há tanto tempo!).
A primavera chegou muito devagar. Fizemos uma festinha
para comemorar meu 51.° aniversário, no quartinho de Harry e Cato de Vries.
Uma semana depois, no dia 22 de abril, Cato apareceu no
Beje, sozinha. Logo que entrou, rompeu em lágrimas.
- Aqueles rapazes ficaram loucos. Ontem à noite, oito
deles saíram de casa. Resultado: foram detidos. E eles nem pensaram em raspar
a costeleta. A Gestapo não teve nenhuma dificuldade para extrair informações
deles.
A polícia dera uma batida na casa, disse-nos, às quatro
da manhã. Eles a soltaram, logo que viram que não era judia.
- Mas todos os outros... Harry, a Sra. De Boer também...
o que vai acontecer com eles?
Nos três dias que se seguiram, Cato ia ao posto policial,
e ficava ali até a hora de recolher, importunando os guardas para que a
deixassem ver seu marido. Quando eles a mandavam embora, atravessava a rua e
ficava no passeio, esperando em silêncio.
Na sexta-feira, pouco antes de fecharmos para o almoço, a
loja ainda cheia, um soldado empurrou a porta da rua e entrou. Hesitou um
instante, e depois seguiu em frente, passando à oficina. Era Rolf van Vliet, o
mesmo policial que estivera na loja naquele primeiro dia em que Fred viera
trazer nossos cartões de racionamento. Ele retirou o quepe, e, outra vez, minha
vista foi atraída para aqueles cabelos espantosamente vermelhos.
- Este relógio continua desregulado, disse Rolf.
Tirou o relógio de pulso e, colocando-o sobre minha mesa,
inclinou-se. Estava dizendo alguma coisa? Mal conseguia ouvi-lo.
- Harry de Vries será levado para Amsterdam amanhã. Se
quiser vê-lo, venha às três em ponto, e continuou: Está vendo? O ponteiro de
segundos pára aqui no alto.
Às três da tarde, eu e Cato atravessamos a grande porta
de duas bandas da chefatura. O oficial de serviço era o próprio Rolf.
- Venham comigo, disse meio rispidamente. Guiou-nos
através de uma porta e um corredor de teto bem alto. Estacou junto a um portão
de ferro, trancado.
- Esperem aqui, disse.
Do outro lado, alguém abriu o portão e ele entrou. Demorou
lá vários minutos. Depois, a passagem se abriu de novo e nos encontramos frente
a frente com Harry. Rolf conservou-se ligeiramente afastado, enquanto Harry
abraçava Cato.
- Apenas alguns instantes, sussurrou Rolf. Eles
separaram-se, olhando-se nos olhos.
- Sinto muito, disse Rolf. Ele tem que voltar agora.
Harry beijou a esposa e em seguida apertou minha mão com um gesto solene.
Lágrimas nos vieram aos olhos. Então, pela primeira vez, ele falou.
- Vou fazer desse lugar para onde estão me levando meu
posto de testemunho do evangelho de Jesus.
Rolf pegou-o pelo cotovelo.
- Nós vamos orar por você várias vezes por dia, Harry,
gritei, enquanto o portão se fechava.
Tive uma forte impressão interior, que não revelei a ninguém,
de que esta seria a última vez que veríamos nosso amigo "Buldogue".
Naquela noite conversamos a respeito de Rolf: eu, Betsie e os doze ou treze jovens que nos ajudavam nesse trabalho, levando e trazendo mensagens. Se Rolf já pusera em jogo sua segurança para nos falar da transferência de Harry, talvez ele devesse trabalhar conosco.
- Senhor Jesus, orei em voz alta, isto pode representar
perigo para nós e para Rolf.
Todavia, no momento em que dizia estas palavras, senti-me
inundada por uma onda de certeza a respeito. Por quanto tempo, pensei, seríamos
orientados por esse dom de Sabedoria?
Designei um de nossos meninos para seguir Rolf, no dia
seguinte, quando este deixasse o serviço, para descobrir onde ele morava. Os
rapazes mais velhos, os que poderiam ser apanhados para trabalhar nas fábricas
de armamentos da Alemanha, só saíam depois do escurecer, e, na maioria das
vezes, disfarçados com roupas femininas.
Na semana seguinte fui à casa de Rolf.
- Você nem calcula como foi bom poder ver o Harry, disse
quando já me encontrava dentro de casa. De que modo poderemos lhe retribuir
este favor?
Rolf passou os dedos pelos cabelos de cor berrante.
- Bom, há um modo: A servente da cadeia tem um filho
jovem que por duas vezes quase foi pego. Ela está desesperada para encontrar
um lugar para ele se esconder.
- Talvez eu possa fazer alguma coisa, disse. Será que ela
pode "ver" se o relógio dela está precisando de conserto?
No dia seguinte, quando eu estava conversando com dois de
nossos novos voluntários no quarto de Tia Jans, Toos surgiu à porta. Eu estava
deixando todo o serviço da loja nas mãos dela e de papai, por causa do
crescimento de nossa "operação clandestina", que exigia mais e mais
do meu tempo.
- Há uma senhora esquisita lá embaixo, disse Toos. Falou
que seu nome é Mietje, e que foi Rolf quem a mandou vir aqui.
Fui encontrá-la na sala de jantar. Ao apertar sua mão, notei-a
calosa e áspera pelos anos de trabalho lavando assoalhos. Havia um tufo de
pêlos bem no seu queixo.
- Soube que tem um filho do qual muito se orgulha, disse-lhe.
- Oh! Sim!
O rosto dela se iluminou ao ouvir-me mencionar o rapaz.
Peguei o grande despertador que ela trouxera.
- Venha apanhar seu relógio amanhã à tarde. Eu espero
poder lhe dar uma boa notícia.
Naquela noite, nossos mensageiros nos deram seus relatórios.
Aquele inverno longo e rigoroso estava nos abrindo vagas em vários lugares.
Havia uma em uma granja de cultivadores de tulipas, mas o dono agora queria
ser pago pelo risco que corria. Tínhamos que providenciar-lhe pagamento - em
moedas de prata, não em notas - e mais um cartão de racionamento. Não era
sempre que um dos nossos "anfitriões" exigia pagamento pelos serviços
prestados, mas quando um pedia, pagávamos alegremente.
Quando Mietje apareceu no dia seguinte, tirei da bolsa
uma nota de pequeno valor, e rasguei um pedaço do canto.
- Isto é para seu filho, disse-lhe. Ele deve dirigir-se
para Gravenstenenbrug, hoje à noite. Há um toco de árvore perto da ponte -
cortaram essa árvore no inverno passado. Ele deve esperar ali, de frente para o
canal. Um homem vai aparecer e perguntar se ele tem troco para uma certa
quantia. Seu filho deve mostrar-lhe este cantinho cortado, e depois deve seguir
o homem sem fazer perguntas.
Betsie entrou na sala de jantar quando Mietje estava segurando
entre suas mãos ásperas a minha.
- Eu vou lhe pagar este favor. Algum dia eu vou encontrar
um jeito de lhes retribuir por isto.
Eu e Betsie nos entreolhamos sorrindo. Como é que esta
mulher simples poderia nos dar o tipo de auxílio de que precisávamos?
Nosso trabalho se expandiu bastante. Cada vez que surgia um novo problema, uma nova solução era encontrada também. Por intermédio de Pickwick, por exemplo, ficamos conhecendo o chefe do departamento da telefônica que cuidava de ligações e desligações de aparelhos. Com muita perícia, modificando a instalação e os números, ele conseguiu, em pouco tempo, recolocar nosso telefone em funcionamento. Que dia aquele, quando nosso velho telefone de parede tocou estrepitosamente, pela primeira vez, depois de três anos. E como precisávamos dele! A esta altura, já contávamos com oitenta pessoas - entre senhoras, velhos e jovens - formando fileiras com os "contraventores de Deus", como às vezes nos apelidávamos jocosamente.
Muitos deles nunca se viam uns aos outros. Conservávamos
os encontros pessoais em número menor possível. O Beje, contudo, era
conhecido de todos. Era o nosso "quartel-general", o centro de uma
teia que se estendia em muitas direções, o ponto onde as linhas se reuniam em
um nó.
Mas se o telefone foi um sucesso, representava também um
novo risco - assim como qualquer novo agente ou esconderijo que era agregado
ao movimento.
Regulamos a campainha do telefone para soar o mais suavemente
possível; mas quem poderia estar passando no hall quando ele chamasse?
Do mesmo modo, por quanto tempo os curiosos que transitavam
por nossa rua iriam crer que aquela lojinha de relógios era mesmo tão
movimentada quanto aparentava? Realmente, ainda éramos muito procurados para
consertos: inúmeros fregueses entravam e saíam.
Entretanto havia movimento em demasia, principalmente à
tardinha. O toque de recolher, agora, era às 7:00 hs , e, na primavera e no
verão, este horário não nos deixava muita margem de tempo para trabalhar depois
do escurecer, pois anoitecia tarde, e nossos agentes só podiam andar à vontade
pelas ruas, aproveitando a escuridão da noite.
Eu estava pensando nisso, meio impaciente, sentada à
minha banca de trabalho, no dia 1.° de junho de 1943, hora e meia antes do
toque de recolher. Seis de nossos auxiliares ainda não tinham retornado, e por
isso, muitos de nossos problemas ainda estavam sem solução, e nós precisávamos
resolvê-los antes das 7:00 hs.
Uma coisa era que, sendo o primeiro dia do mês, Fred
Koornstra viria trazer os cartões de racionamento. Os cem cartões que há um ano
me haviam parecido um pedido extravagante, agora já eram pouquíssimos para a
demanda, e Fred era apenas um de nossos fornecedores.
Recebíamos cartões roubados até de cidades distantes,
como Delft. Quanto tempo vamos conseguir manter isto? eu me indagava. Por
quanto tempo ainda poderemos contar com essa proteção estranha?
Minha linha de pensamento foi interrompida pela campainha
lateral. Eu e Betsie chegamos ali ao mesmo tempo. Na ruela, achava-se uma jovem
judia, tendo nos braços um pequeno volume, envolto num cobertor. No homem de
pé atrás dela, reconheci um dos médicos da maternidade.
Já dentro do hall, ele informou-nos que o bebê nascera
prematuramente. Ele mantivera mãe e filho no hospital mais do que era
permitido, já que ela não tinha lugar para onde ir. Betsie estendeu os braços e
tomou o bebê.
Nesse momento, Fred abriu a porta, vindo da loja. Ele
piscou, indeciso, ao ver outras pessoas no hall; depois, sem hesitação, virou-se
para o relógio da luz. O jovem médico ao ver aquele homem que ele pensava ser
um funcionário da companhia de eletricidade ficou branco como o colarinho da
própria camisa.
Tive vontade de acalmá-los a ambos, mas quanto menos
componentes do nosso grupo se conhecessem uns aos outros, melhor para a
segurança de todos. O pobre médico se despediu apressadamente, e eu e Betsie
subimos com a moça para a sala de jantar, cerrando a porta para deixar Fred
entregue ao seu trabalho.
Betsie serviu uma tigela de sopa de osso - um osso já
muitas vezes cozido - que preparara para o jantar. O bebê começou um vagido
agudo; balancei-o enquanto a mãe jantava. Aqui estava um novo perigo: um
pequeno fugitivo, novo demais para compreender a loucura de se fazer barulho.
Nós já abrigáramos muitas crianças judias no Beje para
passar uma ou duas noites, e mesmo a mais novinha delas aprendera a guardar o
silêncio misterioso das criaturas caçadas. Contudo, com duas semanas de idade,
este bebê ainda iria descobrir como seu mundo era perigoso e pouco acolhedor.
Precisávamos encontrar um esconderijo para eles que fosse distanciado de outras
casas.
No dia seguinte, uma solução perfeita para o problema
entrou na loja. Era um pastor conhecido nosso, que dirigia uma igreja numa cidadezinha
próxima. Sua casa ficava longe da rua, e era cercada de árvores.
- Bom-dia, pastor, disse, sentindo as peças do quebra-cabeças
se engrenarem perfeitamente. Em que posso servi-lo?
Olhei o relógio que ele trouxera para consertar.
Precisava de uma peça bem rara.
- Para o senhor, pastor, faremos o melhor que pudermos.
Agora quero lhe confessar uma coisa.
Os olhos do pastor se turbaram.
- Confessar?
Afastei-o da porta da oficina, e levei-o até a sala de
jantar.
- Confesso-lhe que eu também estou querendo algo. O rosto
dele se fechou numa carranca. O senhor estaria disposto a receber em sua casa
uma senhora judia e um bebê? Se não o fizer, eles serão presos.
Ele ficou muito pálido e deu um passo para trás.
- Minha senhora, espero que não esteja envolvida nessa
atividade ilegal, nesse negócio clandestino. Isto não é seguro. Pense no seu
pai e em sua irmã - ela nunca foi muito forte.
Num impulso de momento, disse ao pastor que esperasse, e
corri escada acima. Betsie instalara os recém-chegados no antigo quarto de
Willem, o mais distante da rua. Pedi permissão à mãe para levar a criancinha;
em meus braços não pesava quase nada.
De volta à sala, descobri o rosto do bebê.
Houve um longo silêncio. O homem curvou-se um pouco e, a
despeito de si mesmo, esticou a mão e tocou no punhozinho agarrado ao cobertor.
Durante um instante, vi medo e piedade lutarem dentro dele. Depois ele ergueu
os ombros.
- Não. Absolutamente, não. Poderíamos perder a vida por
causa dessa criança judia.
Sem ser percebido, papai chegara à porta.
- Dê-me essa criança, Corrie, disse.
Papai segurou o bebê junto ao peito, sua barba branca
roçando o rostinho; seus olhos fixos nele eram tão azuis e sem malícia como os
do próprio bebê. Afinal, ergueu o rosto para o pastor.
- Você disse que poderíamos perder a vida por causa dessa
criança. Eu consideraria isto a maior honra que poderia ser conferida à minha
família.
Bruscamente, o pastor girou nos calcanhares e se retirou.
Assim, tivemos que tomar a pior solução para o problema.
Na saída de Haarlem havia uma chácara que aceitava refugiados, conquanto que
fosse por pouco tempo. Não era um bom lugar, pois a Gestapo já estivera lá uma
vez. Contudo não havia nenhum outro refúgio disponível para onde pudéssemos
enviá-los sem aviso prévio. Naquela tarde, dois de nossos agentes levaram a
mulher e a criança para lá.
Algumas semanas mais tarde soubemos que o lugar fora
revistado pela polícia. Quando os soldados chegaram ao celeiro, onde a mulher
estava escondida, ela, e não o bebê, começou a gritar histericamente. Ela, o
filhinho e seus protetores foram todos presos.
Nunca ficamos sabendo o que lhes sucedeu.
Embora tivéssemos um amigo na central telefônica, não podíamos estar certos de que nossa linha não fora censurada, portanto criamos um código em termos de relógio, para passar mensagens clandestinas.
- Recebemos um relógio de senhora para ser consertado,
mas não temos uma das molas. Sabe onde posso encontrar uma? (Uma senhora judia
precisa de um esconderijo e não conseguimos vaga com as pessoas que nos ajudam
sempre.)
- Temos um relógio com um problema no mostrador. Um dos
números soltou-se e está atrapalhando a passagem do ponteiro. Conhece alguém
que faz este tipo de conserto? (Há um judeu aqui cujos traços são definidamente
semíticos. Sabe de alguém que esteja disposto a correr um risco maior?)
- Sentimos muito, mas o relógio de criança que deixaram
conosco não tem conserto. Vocês estão com o recibo? (Uma criança judia morreu
em um de nossos esconderijos. Precisamos de uma licença para sepultamento.)
Certo dia em meados de junho, o telefone tocou e recebemos
a seguinte mensagem:
- Estamos com um relógio de homem que está dando muito
trabalho. Não conseguimos encontrar ninguém para consertá-lo. Um dos problemas
é que o mostrador é muito antigo...
Tratava-se de um judeu cujos traços revelavam sua origem,
pessoa para quem era difícil se achar um esconderijo.
.- Mandem p relógio para nós e veremos o que podemos
fazer aqui mesmo.
Exatamente às 7 da noite, a campainha tocou. Olhei para o
espelho da janela da sala de jantar, onde nos encontrávamos tomando chá de
folha de rosas e pedículos de cereja. Mesmo vendo apenas um lado do seu rosto
percebi que se tratava do nosso "relógio antiquado". Sua figura, suas roupas, seu modo de fiar
em pé pareciam saídos de uma comédia musical judia. Corri à porta.
- Entre!
Era um homem magro de uns trinta e poucos anos, orelhas
de abano, calva incipiente e óculos pequenos, que se inclinou diante de mim num
cumprimento cerimonioso. Gostei dele imediatamente.
Logo que a porta se fechou, ele pegou um cachimbo.
- A primeira coisa que quero saber, disse, é se eu
deveria ter deixado para trás o meu amigo cachimbo. Meyer Mossel e seu cachimbo
não se separam facilmente, mas para a senhora, bondosa amiga, se o cheiro de
fumaça for se apegar às suas cortinas, eu me despedirei alegremente da minha
amiga, a nicotina.
Soltei uma risada. De todos os judeus que haviam vindo a
nossa casa, ele era o primeiro a fazê-lo com alegria e o primeiro a mostrar
interesse pelo nosso bem-estar.
- É lógico que pode conservar o cachimbo! respondi. Meu
pai mesmo gosta de fumar seus charutos, isto é, quando encontra algum, hoje em
dia.
- Ah, esses nossos tempos! Meyer Mossel encolheu os
ombros de maneira grandiosa e ergueu os braços. Que é que se pode fazer se o
acampamento está infestado de bárbaros?
Encaminhei-o à sala de jantar. Havia sete pessoas à mesa:
um casal de judeus aguardando vaga num esconderijo, três dos nossos operadores
clandestinos, papai e Betsie. Meyer Mossel olhou diretamente para papai.
- Mas o quê! exclamou. Um dos patriarcas!
Era a coisa mais acertada para se dizer a papai, e ele
retornou a graça com o mesmo bom humor.
- Ora essa! Um irmão do povo escolhido!
Às 8:45h, papai tirou da estante nossa Bíblia com
cantoneiras de bronze. Abriu-a em Jeremias, onde havíamos parado na noite
anterior, depois, obedecendo a uma súbita inspiração, passou a Bíblia para
Meyer.
- Quer nos dar a honra de ler para nós hoje? pediu-lhe.
Pegando o livro com carinho, Meyer levantou-se. Extraiu
do bolso um pequeno barrete, e, a seguir, com uma voz profunda, meio entoando,
meio rogando, leu as palavras do velho profeta de maneira tão sentida e tão
pungente, que nos pareceu ouvir o próprio clamor do exílio.
Depois, Meyer Mossel nos revelou que havia sido um
"Cantor" (pessoa que dirige o ofício numa sinagoga) em Amsterdam.
Apesar de toda a sua jocosidade ele sofrera muito. Quase
toda a sua família fora presa; sua esposa e filhos estavam escondidos no norte,
em uma fazenda cujos proprietários haviam se recusado a aceitá-lo "por
motivos óbvios", disse com uma careta dirigida contra seu próprio rosto
inconfundível.
Gradualmente, nós percebemos que esse homem agradável
estava no Beje para ficar. Certamente, não era o lugar ideal, mas para
Meyer nada poderia ser ideal agora.
- Mas pelo menos o seu nome não precisa
"denunciá-lo" também, disse-lhe certa noite.
Eu ainda me lembrava de Eusébio, um dos "Pais da
Igreja", do século XIV sobre o qual ouvira no tempo em que Willem
estudava História da Igreja.
- Acho que devemos chamá-lo de Eusébio, decidi.
Estávamos num dos aposentos de Tia Jans, com Kik e outros
rapazes que tinham vindo nos trazer alguns salvo-condutos forjados, e ficaram,
pois estavam atrasados e não alcançariam suas casas antes do toque de
recolher.
Meyer recostou-se na cadeira e olhou o teto pensativamente.
Tirou o cachimbo da boca.
- Eusébio Mossel, disse como que degustando as palavras.
Não; não está bom. Eusébio Gentio Mossel.
Nós todos rimos.
- Não seja teimoso, disse Betsie; tem que trocar os dois
nomes.
Kik olhou de soslaio para papai.
- Vovô, que tal Smit? Parece que este nome está bem popular
hoje em dia.
- É parece mesmo! respondeu papai, sem entender a piada.
Muitíssimo popular.
E ele ficou sendo Eusébio Smit.
Foi fácil trocar o nome de Meyer. Daí a pouco ele já era
"Eusie", mas conseguir que comesse nossa comida "impura"
era outra coisa. O problema era que tínhamos que estar satisfeitos com
qualquer tipo de alimento que obtivéssemos. Neste terceiro ano de ocupação, às
vezes, precisávamos ficar em fila horas e horas para comprar o que houvesse.
Certo dia, o jornal anunciou que, com o cupom número
quatro, poderíamos adquirir lingüiça de porco. Era a primeira vez, em semanas,
que íamos ter carne. Betsie preparou o "banquete" com carinho,
guardando todo e qualquer restinho de gordura para temperar outros pratos, mais
tarde.
- Eusie, disse Betsie ao carregar para a mesa o fumegante
cozinhado de carne de porco e batata, chegou o momento.
Eusie bateu o cachimbo para esvaziá-lo da cinza, e começou
a analisar o problema em voz alta. Ele, que nunca tinha comido alimento impuro;
ele, o filho mais velho de um filho mais velho, de uma família respeitável,
estava sendo solicitado a comer carne de porco.
Betsie serviu o prato dele.
- Bom apetite!
O cheiro saboroso chegou ao nosso paladar faminto por
carne. Eusie passou a língua nos lábios.
- Estou certo de que no Talmude há uma provisão para uma
situação dessas, disse.
Espetou o garfo no pedaço de carne, mordeu-o avidamente,
e girou os olhos para cima em sinal de prazer, e completou: E eu vou começar a
procurar, logo que acabar de jantar.
A chegada de Eusie como que quebrou o restinho de hesitação
que ainda nos continha. Num período de três semanas, aceitamos mais três
adições à nossa família. Primeiro foi Jop, nosso aprendiz do momento, cujas
idas e vindas de sua casa no subúrbio para o trabalho, em duas ocasiões, quase
terminaram com sua prisão e conseqüente envio para as fábricas.
Da segunda vez que isto aconteceu, seus pais nos
perguntaram se ele podia ficar no Beje. Concordamos. Os outros dois novos
moradores eram Henk, um jovem advogado, e Leendert, professor. Leendert fez
uma boa contribuição para a vida secreta do Beje: instalou nosso sistema de
alarme.
Por esta altura, eu já aprendera a fazer sozinha a viagem
noturna à casa de Pickwick, quase tão habilmente quanto Kik. Uma certa noite,
depois que peguei minha xícara de café, meu amigo de olhos tortos sentou-me
numa cadeira e passou-me uma descompostura.
- Cornélia, disse-me ajeitando seu corpanzil numa poltrona
forrada de veludo que era pequena demais para ele, ouvi dizer que vocês não têm
sistema de alarme. Isto é uma loucura! E também fui informado de que não
realizam treinamentos regulares com os hóspedes.
Eu sempre me espantava ao ver como Pickwick estava bem
informado sobre tudo que acontecia no Beje.
- Tenho certeza de que vão dar uma batida lá qualquer dia
desses, continuou, não há como evitar. Tanta gente entrando e saindo, e com um
membro do Partido Nacional Socialista morando na casa dos Kan... Seu quartinho
secreto não vai adiantar nada, se as pessoas não puderem alcançá-lo a tempo. Eu
conheço o Leendert. É um bom homem, e um eletricista passável. Peça-lhe para
instalar uma campainha em cada cômodo que tenha uma janela ou porta dando para
a rua. Depois, dê treinos regulares para eles, até conseguirem se abrigar no
quartinho, sem deixar traços de sua presença, em menos de um minuto. Vou mandar
alguém para orientá-la no início.
Saí da casa de Pickwick bem preocupada. Talvez ele estivesse
certo. Talvez todo esse tempo de trabalho clandestino sem deslizes nos tivesse
levado a nos descuidarmos um pouco. Talvez nos tivéssemos tornado muito autoconfiantes.
Naquele mesmo dia, pedi a Leendert para instalar o sistema
de alarme. Ele colocou uma campainha no topo da escada, com volume bastante
para ser escutada em todos os aposentos da casa, mas não do lado de fora.
Depois, ele pôs botões para a campainha em todos os pontos de onde se pudesse
perceber bem a aproximação de um possível problema.
Um era logo abaixo
da janela da sala de jantar, perto do espelho que dava para a porta lateral.
Outro, embaixo, no hall, perto da porta; havia um junto à porta que dava para a
Rua Barteljoris. Além desses, outro estava no balcão da loja, um em cada banca
de consertos na oficina e um junto à janela do quarto dianteiro de Tia Jans.
Estávamos prontos para realizar nossa primeira
corrida-treino. Os quatro ocupantes extras de nossa casa já estavam fazendo
duas viagens diárias ao quarto secreto: uma pela manhã, para guardar as roupas
de dormir, de cama e artigos de toalete; outra, à noite, para guardar os
objetos utilizados durante o dia.
Pessoas do nosso grupo que também precisavam passar a
noite conosco, deixavam ali capas de chuva, chapéus, e outras coisas que
houvessem trazido consigo. Tudo isto já resultava numa boa quantidade de
passadas pelo meu pequeno quarto - agora ainda diminuído em um metro.
Muitas vezes, à noite, minha última visão antes de
dormir, seria de Eusie, em seu longo camisolão e barrete de dormir, passando
suas roupas do dia pela abertura secreta.
A finalidade dos treinamentos era ver o tempo que eles
gastariam para chegar ao quartinho, a qualquer hora do dia ou da noite, sem
aviso prévio. Um rapaz alto, de rosto magro, apareceu em casa, certo dia,
enviado por Pickwick para me ensinar a realizar os treinos.
- Smit! exclamou papai, logo que o rapaz se apresentou. É
verdadeiramente assombroso! Ultimamente tem chegado aqui um Smit atrás do
outro. Mas você se parece muito com...
O Sr. Smit se desembaraçou gentilmente da conversa
genealógica de papai, e seguiu-me escada acima.
- Uma das ocasiões que eles preferem para batidas é à hora
das refeições, disse-me. Outra é bem no meio da noite.
Ele foi de cômodo em cômodo mostrando várias evidências
de que havia mais de três pessoas residindo na casa.
- Cuidado com cestas de lixo e cinzeiros. Parou à porta
de um dos quartos.
- Se a batida for à noite, eles têm que, além de levar
lençóis e cobertores, virar o colchão. Um dos testes da polícia é justamente
procurar o calor do corpo no colchão.
O Sr. Smit ficou para almoçar conosco. Havia onze pessoas
à mesa nesse dia, incluindo uma senhora judia que chegara na noite anterior, e
uma outra senhora e sua filhinha que estavam ali para acompanhar a primeira ao
esconderijo. Iam para uma fazenda em Brabant, e partiriam logo após o almoço.
Betsie tinha acabado de trazer um cozinhado que preparara
com tanta habilidade que mal se notava a falta da carne, quando, sem nenhum
aviso, o Sr. Smit inclinou-se para trás em sua cadeira e apertou o botão da
campainha que se encontrava abaixo da janela.
O toque soou acima de nossa cabeça. Todos começaram a se
erguer rapidamente, agarrando copos e pratos, correndo para a escada, enquanto
o gato, assustado e aflito, arranhava a cortina querendo subir por ela. Gritos
de "Mais depressa!" e "Silêncio!" e "Está
derramando!" chegavam até nós.
Eu, papai e Betsie arranjávamos mesas e cadeiras para
dar a impressão de que um almoço para três se processava normalmente.
- Não! Deixe minha cadeira, disse o Sr. Smit. Por que não
se poderia ter um convidado para o almoço? Aquela senhora e a garotinha também
poderiam ter ficado.
Afinal, estávamos os quatro de volta à mesa, e reinava um
perfeito silêncio no andar de cima. O movimento todo levara quatro minutos.
Pouco depois reunimo-nos em volta da mesa outra vez. O
Sr. Smit expôs as evidências incriminantes que havia encontrado: duas colheres
e um pedaço de cenoura na escada, cinzas num quarto "desocupado".
Todos olharam para Eusie que corou até a ponta de suas grandes orelhas.
- Aquilo ali também, apontou para os chapéus da senhora
e sua filha ainda dançando em seus ganchos, na parede da sala de jantar. Se têm
que se esconder, parem para pensar em tudo que trouxeram consigo. Além disso,
vocês foram muito lentos.
Na noite seguinte, eu toquei o alarme, e, desta vez,
conseguimos cortar um minuto e trinta e três segundos na corrida. Na quinta
tentativa, diminuímos a duração dela para um minuto e trinta e dois segundos.
Nunca conseguimos, porém, alcançar a marca ideal
sugerida por Pickwick, de menos de um minuto, mas com a prática, aprendemos a
largar o que estivéssemos fazendo e ajudar os que tinham de ser escondidos, a
chegar ao quartinho em setenta segundos.
Eu, papai e Toos inventamos algumas técnicas de
retardamento que utilizaríamos para deter a Gestapo, caso entrassem pela loja;
Betsie também criou sua própria estratégia para o caso de baterem à porta
lateral. Com estas táticas, esperávamos conseguir detê-los pelos preciosos e
salvadores setenta tiques do relógio.
Esses treinos se associavam muito à idéia de medo - sempre
presente, nunca mencionado - que atormentava nossos amigos, e por isso
procurávamos evitar que se tornassem sérios demais.
- Vamos fazer disto um jogo, dizíamos. Vamos tentar bater
nosso recorde.
Um de nossos companheiros possuía uma confeitaria numa
rua próxima. No começo do mês eu ia lá e lhe entregava um certo número de
cupons para açúcar. Mais tarde, quando resolvia realizar um treino, voltava lá
e apanhava alguns bolinhos recheados - um prêmio de valor incalculável
naqueles dias de falta de doces - e os guardava em minha banca, para dar como
presente pelo melhor tempo do treino.
A cada vez, meu pedido de bolinhos aumentava. Agora, além
dos nossos funcionários que queríamos iniciar no sistema, tínhamos mais três
hóspedes permanentes: Thea Dacosta, Meta Monsanto e Mary Itallie.
Mary, com 76 anos, era nossa hóspede mais idosa e a que
representava o maior problema também. No momento em que ela pisou na soleira da
porta, ouvi o chiado da sua respiração asmática, que fizera com que outras
pessoas se recusassem a dar-lhe esconderijo.
Já que sua enfermidade comprometia a segurança dos
outros, levamos a questão ao grupo reunido. Os sete mais implicados - Eusie,
Jop, Henk, Leendert, Meta e Mary -juntaram-se a nós no quarto fronteiro.
- Não é necessário fingirmos, comecei. Mary tem um problema
que, principalmente após a subida de uma escada, poderia colocar-nos a todos em
perigo.
No silêncio que se seguiu, a respiração trabalhosa de
Mary parecia ainda mais evidente.
- Posso falar? perguntou Eusie.
- Lógico.
- Parece que todos nós estamos aqui nesta casa por causa
de uma ou outra dificuldade. Somos os filhos órfãos que ninguém aceitou.
Qualquer um de nós está pondo os outros em perigo. Proponho que Mary fique.
- Ótimo! disse Henk, o advogado. Vamos votar.
Algumas mãos começaram a se erguer, mas Mary estava se
esforçando para falar.
- Voto secreto, conseguiu finalmente dizer. Ninguém deve
se sentir constrangido.
Henk apanhou uma folha de papel da escrivaninha do cômodo
adjacente, e rasgou-o em nove pedaços.
- Vocês também, disse entregando papel para mim, papai e
Betsie. Se nós formos encontrados, vocês sofrerão também.
Em seguida, ele distribuiu alguns lápis.
- Escrevam "não", se pensam que é muito
arriscado, e "sim", se acham que ela deve ficar.
Durante alguns momentos só ouvimos o ruído dos lápis
sobre o papel; depois, Henk recolheu os votos dobrados. Abriu-os em silêncio,
depois, estendendo a mão, deixou-os cair no colo de Mary.
Nove pedacinhos de papel; nove vezes a palavra
"sim".
E assim nossa "família" ficou completa. Outras pessoas ficavam conosco um dia ou uma semana, mas estes sete permaneceram - era o núcleo de nosso feliz lar.
Se fomos felizes, em tal ocasião e em tais
circunstâncias, devemos grandemente a Betsie. Já que a atividade física de
nossos hóspedes era sempre tão restrita, nossos serões, sob a orientação dela,
tornaram-se uma porta aberta para um mundo novo.
Às vezes, realizávamos pequenos concertos: Leendert ao
violino, e Thea, que por sinal era ótima musicista, ao piano. Outras vezes,
ela anunciava "uma noite dedicada a Vondel" (o Shakespeare da
Holanda), cada um lendo uma parte. Ela convenceu Eusie a nos dar aulas de
hebraico, uma vez por semana, e Meta, de italiano.
Essas atividades tinham que ser curtas porque agora a cidade
tinha força elétrica apenas durante algumas horas por noite, e as velas tinham
que ser poupadas para alguma emergência. Quando as lâmpadas começavam a tremer
e a diminuir, íamos para a sala de jantar, onde minha bicicleta estava montada
num suporte próprio. Um de nós subia a ela, os outros tomavam assento ao redor,
e então, enquanto o ciclista pedalava a toda força para fazer o farol
funcionar, alguém continuava a ler do capítulo onde havíamos parado na noite
anterior. Logo que pernas e gargantas se cansavam, nós nos revezávamos, e,
desse modo, lemos várias histórias, romances e peças teatrais.
Papai sempre subia para seu quarto às 9:15h, após o devocional,
mas o resto ficava, relutando em desfazer o círculo, com pena de ver o serão se
encerrar.
- Ah, bom! dizia Eusie esperançosamente, quando afinal subíamos para deitar, talvez haja um treino hoje. Já há quase uma semana que não provo um daqueles bolinhos.