segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 07


 Eusie

             Peter estava de volta, e, no entanto; não estava mais a salvo que qualquer outro rapaz de boas condições físicas. Na Alemanha, as fábricas de munição estavam necessitando de­sesperadamente de operários. Muitas vezes, os soldados cer­cavam uma certa área sem qualquer aviso, e davam uma ba­tida, arrebanhando todos os homens entre 16 e 30 anos, para os transportarem para lá. Este método de busca e recruta­mento relâmpago era denominado razzia, e todas as famílias que tinham filhos rapazes viviam apavoradas, temendo-a.

            Flip e Nollie tinham preparado um esconderijo para casos de emergência, logo que a razzia começou. Havia um peque­no depósito sob o piso da cozinha. Eles alargaram sua aber­tura de acesso, puseram um grande tapete sobre ela e colo­caram a mesa no lugar.

            Depois que vira o Sr. Smit construir o quartinho secreto no Beje, eu percebi logo que aquele abrigo era totalmente inse­guro e inadequado. Uma razão é que estava embaixo, quan­do deveria estar no alto, e, provavelmente, como diria o Sr. Smit: "Era o primeiro lugar em que procurariam." Entre­tanto não se pretendia que ele resistisse a uma busca feita por pessoas treinadas, e, sim, a uma batida rápida realizada por soldados. Devia ser um local para se desaparecer de vista por cerca de meia hora. E para isso, pensei, deve servir...

            Foi no aniversário de Flip que a razzia veio àquela rua tranqüila, de casinhas iguais. Eu, papai e Betsie nos dirigía­mos para lá bem cedo, levando cerca de cem gramas de chá inglês, que Pickwick nos dera.

            Quando chegamos, Nollie, Annaliese e as duas meninas mais velhas ainda não estavam de volta. Uma loja recebera um carregamento de sapatos de homem, e Nollie estava deci­dida a conseguir um par para Flip "mesmo que tenha que ficar na fila o dia todo".

            Estávamos na cozinha, conversando com Cocky e Katrien, quando, de repente, Peter e seu irmão, Bob, entraram corren­do, pálidos de susto.

            - Depressa! Soldados! Estão duas casas abaixo e vêm para cá.

            Afastaram a mesa do lugar, puxaram o tapete e abriram a portinhola. Bob desceu primeiro e deitou-se no chão; depois, Peter tombou por cima dele. Fechamos o buraco, puxamos o tapete sobre ele, e recolocamos a mesa no lugar. Com as mãos tremendo, eu, Betsie e Cocky jogamos uma toalha bem gran­de sobre a mesa, e começamos a dispor os pratos para o chá.

            Ouvimos a porta da frente ser aberta ruidosamente, depois outro barulho junto a nós: Cocky derrubara uma xícara. Dois alemães fardados irromperam pela cozinha, fuzis em riste.

            - Fiquem onde estão! Não se movam!

            Botas pesadas subiam a escada para o andar superior. Os soldados deram uma olhada ao redor com visível desgosto, ao verem só mulheres e um velho. Se tivessem observado Katrien, teriam percebido que ela tinha algo a esconder, pois seu rosto era uma máscara de terror. Todavia eles tinham outras idéias em mente.

            - Onde estão os homens? perguntou a Cocky o soldado menor, em um holandês estropiado, e com forte sotaque.

            - Essas aqui são minhas tias, respondeu ela; este é meu avô; meu pai está na escola, minha mãe saiu, e...

            - Não perguntei pela tribo inteira! explodiu ele em ale­mão. Depois retomou o holandês: Onde estão seus irmãos?

            Cocky olhou-o por um segundo, e abaixou os olhos. Meu coração parou. Eu sabia como Nollie educara os filhos, mas certamente, numa situação destas, era permissível dizer-se uma mentira.

            - Você tem irmãos? o oficial perguntou outra vez.

            - Sim, respondeu ela suavemente. Tenho três.

            - Quantos anos têm eles?

            - Vinte e um, dezenove e dezoito.

            De cima vinha o rumor de portas sendo abertas e fechadas e móveis sendo arrastados.

            - Onde estão?

            Cocky inclinou-se e começou a recolher os pedaços de xí­cara quebrada. O homem puxou-a, fazendo-a erguer-se.

            - Onde estão seus irmãos?

            - O mais velho está na faculdade de teologia. Muitas ve­zes, ele não vem para casa à noite porque...

            - E os outros dois?

            Cocky nem parou para pensar.

            - Ora, estão debaixo da mesa.

            Com um movimento da arma, o soldado indicou-nos que devíamos nos afastar e pegou a ponta da toalha. A um aceno seu, o outro acocorou-se com a arma apontada. Então, o pri­meiro puxou a toalha.

            Afinal, a tensão contida explodiu: Cocky rompeu num riso histérico. Os soldados giraram nos calcanhares. Será que aque­la garota estava rindo deles?

            - Não pense que somos tolos! resmungou o menor.

            E, raivosamente, saiu da sala. Daí a instantes, todo o gru­po se retirou, infelizmente, porém, não antes que o soldado que se mantivera calado, visse e se apoderasse de nosso pre­cioso pacotinho de chá.

            Foi uma festa diferente, a daquela noite. Passamos do alí­vio a uma quase discussão, coisa incomum em nossa família tão unida. Nollie apoiou Cocky, afirmando que teria respon­dido do mesmo modo.

            - Deus protege a quem fala a verdade.       

            Peter e Bob, sendo os mais interessados no caso, não concordavam com ela. Nem eu. Eu nunca tivera a coragem de Nollie - nem a mesma fé. Contudo eu via quando uma coisa era ilógica.

            - Não faz sentido dizer a verdade, e fazer uma mentira! E os documentos falsos de Annaliese? E o falso uniforme de empregada de Katrien?

            - Põe guarda, Senhor, à minha boca, recitou Nollie. Vigia a porta dos meus lábios. Salmo 14! completou com ar de vitória.

            - Certo; mas e o rádio? Eu tive que mentir com os lábios para poder ficar com ele.

            - E estou seguro de que o que saiu de seus lábios foi dito em amor.

            A voz tranqüila de papai repreendeu o rubor de meu rosto.

            Amor. Como era que se mostrava amor? Como Deus pode­ria demonstrar, ao mesmo tempo, amor e verdade, em um mundo como este?

            Morrendo. A resposta me ocorreu da maneira mais vivida e aterradora possível: a forma de uma cruz marcara a História.

            Nos primeiros meses de 1943, tornava-se cada vez mais difícil arranjar casas no interior, para o grande número de judeus que se apresentava no nosso centro clandestino. Mesmo tendo cartões de racionamento e documentos forjados, não conseguíamos lugares para todos. Sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, teríamos que começar a esconder pessoas na cidade mesmo. O triste para nós foi que os primeiros fossem nossos mais queridos amigos. Íamos em meio a um dia cheio na loja, quando Betsie entrou furtivamente na oficina pela porta de trás.

            - Harry e Cato estão aí, disse.

            Ficamos espantados. Harry nunca vinha ao Beje durante o dia, por temer que sua estrela amarela pudesse nos causar proble­mas. Eu e papai seguimos Betsie apressadamente escada acima.

            Ele nos relatou o que acontecera - a mesma história de sempre. Na noite anterior, haviam recebido a visita de um membro do Partido Socialista com uma ordem de confisco da loja. Não importava se ele era cristão ou não. Qualquer judeu podia se converter depressa só para evitar perseguição, dis­sera o socialista. Naquela manhã, aparecera lá um alemão fardado para oficializar o ato: a loja foi fechada "para o bem da segurança nacional".

            - Se eles pensam que eu represento perigo para a segu­rança nacional, disse Harry, não vão se contentar só em to­mar a loja.

            Claro que não iam. No momento, porém, não dispúnhamos de esconderijos no interior. O único lugar disponível em toda a nossa rede clandestina era a casa da Sra. De Boer, que ficava a apenas quatro quadras do Beje.

            Naquela mesma tarde, bati à sua porta. Era uma mulher gorda; trajava uma bata azul, de algodão, e calçava chinelas. Nós fornecíamos cartões de racionamento para ela, e já uma vez conseguíramos, com sua ajuda, uma operação de apêndi­ce para um dos nossos. Ela mostrou-me os aposentos de que dispunha, no sótão. Já havia ali dezoito judeus, a maioria deles entre 20 e 25 anos.

            - Eles já estão fechados aqui há muito tempo, explicou. Eles cantam, dançam, fazem muita algazarra.

            - Se a senhora acha que mais um casal vai ser muito...

            - Não! Não posso rejeitá-los. Traga-os hoje à noite. Nós damos um jeito.

            E assim, Harry e Cato passaram a viver na casa da Sra. De Boer, em um daqueles quartinhos pequenos. Betsie ia lá to­dos os dias para levar-lhes ora um pão feito em casa, ora um pouco de chá, ora fatias de frios. Entretanto sua maior preocupação não era pela alimentação deles, mas pela sua segu­rança pessoal.           

            - Eles estão correndo perigo, disse-nos. Aqueles jovens estão mesmo a ponto de estourar. Estavam fazendo tanto barulho, que escutei da rua.

            Naquele triste e rigoroso inverno, tivemos outros motivos de preocupação também. Apesar de ter nevado pouco, o frio chegou cedo e demorou a acabar, e o combustível estava es­casso. As árvores começaram a desaparecer aqui e ali, nas praças e nas margens do canal, à medida que o povo as cor­tava para o fogão e a lareira.

            Essa situação - casas sem aquecimento e muito úmidas - pesava mais nas crianças e nos velhos.

            Certo dia, Christoffels não apareceu nem na hora da leitura bíblica, nem do traba­lho. A dona do quarto onde morava, encontrou-o morto em seu leito: a água do jarro congelada. Sepultamos nosso velho consertador de relógios com seu maravilhoso terno e colete que usara no dia do centenário da loja, há seis anos (e pare­cia ter sido há tanto tempo!).

            A primavera chegou muito devagar. Fizemos uma festinha para comemorar meu 51.° aniversário, no quartinho de Harry e Cato de Vries.

            Uma semana depois, no dia 22 de abril, Cato apareceu no Beje, sozinha. Logo que entrou, rompeu em lágrimas.

            - Aqueles rapazes ficaram loucos. Ontem à noite, oito deles saíram de casa. Resultado: foram detidos. E eles nem pensa­ram em raspar a costeleta. A Gestapo não teve nenhuma difi­culdade para extrair informações deles.

            A polícia dera uma batida na casa, disse-nos, às quatro da manhã. Eles a soltaram, logo que viram que não era judia.

            - Mas todos os outros... Harry, a Sra. De Boer também... o que vai acontecer com eles?

            Nos três dias que se seguiram, Cato ia ao posto policial, e ficava ali até a hora de recolher, importunando os guardas para que a deixassem ver seu marido. Quando eles a mandavam embora, atravessava a rua e ficava no passeio, esperan­do em silêncio.

            Na sexta-feira, pouco antes de fecharmos para o almoço, a loja ainda cheia, um soldado empurrou a porta da rua e en­trou. Hesitou um instante, e depois seguiu em frente, passan­do à oficina. Era Rolf van Vliet, o mesmo policial que estivera na loja naquele primeiro dia em que Fred viera trazer nossos cartões de racionamento. Ele retirou o quepe, e, outra vez, minha vista foi atraída para aqueles cabelos espantosamente vermelhos.

            - Este relógio continua desregulado, disse Rolf.

            Tirou o relógio de pulso e, colocando-o sobre minha mesa, inclinou-se. Estava dizendo alguma coisa? Mal conseguia ouvi-lo.

            - Harry de Vries será levado para Amsterdam amanhã. Se quiser vê-lo, venha às três em ponto, e continuou: Está ven­do? O ponteiro de segundos pára aqui no alto.

            Às três da tarde, eu e Cato atravessamos a grande porta de duas bandas da chefatura. O oficial de serviço era o próprio Rolf.

            - Venham comigo, disse meio rispidamente. Guiou-nos através de uma porta e um corredor de teto bem alto. Estacou junto a um portão de ferro, trancado.

            - Esperem aqui, disse.

            Do outro lado, alguém abriu o portão e ele entrou. De­morou lá vários minutos. Depois, a passagem se abriu de novo e nos encontramos frente a frente com Harry. Rolf con­servou-se ligeiramente afastado, enquanto Harry abraçava Cato.

            - Apenas alguns instantes, sussurrou Rolf. Eles separaram-se, olhando-se nos olhos.

            - Sinto muito, disse Rolf. Ele tem que voltar agora. Harry beijou a esposa e em seguida apertou minha mão com um gesto solene. Lágrimas nos vieram aos olhos. Então, pela primeira vez, ele falou.

            - Vou fazer desse lugar para onde estão me levando meu posto de testemunho do evangelho de Jesus.

            Rolf pegou-o pelo cotovelo.

            - Nós vamos orar por você várias vezes por dia, Harry, gritei, enquanto o portão se fechava.

            Tive uma forte impressão interior, que não revelei a nin­guém, de que esta seria a última vez que veríamos nosso amigo "Buldogue".

            Naquela noite conversamos a respeito de Rolf: eu, Betsie e os doze ou treze jovens que nos ajudavam nesse trabalho, levando e trazendo mensagens. Se Rolf já pusera em jogo sua segurança para nos falar da transferência de Harry, talvez ele devesse trabalhar conosco.

            - Senhor Jesus, orei em voz alta, isto pode representar perigo para nós e para Rolf.

            Todavia, no momento em que dizia estas palavras, senti-me inundada por uma onda de certeza a respeito. Por quanto tempo, pensei, seríamos orientados por esse dom de Sabedo­ria?

            Designei um de nossos meninos para seguir Rolf, no dia seguinte, quando este deixasse o serviço, para descobrir onde ele morava. Os rapazes mais velhos, os que poderiam ser apanhados para trabalhar nas fábricas de armamentos da Alemanha, só saíam depois do escurecer, e, na maioria das vezes, disfarçados com roupas femininas.

            Na semana seguinte fui à casa de Rolf.

            - Você nem calcula como foi bom poder ver o Harry, disse quando já me encontrava dentro de casa. De que modo pode­remos lhe retribuir este favor?

            Rolf passou os dedos pelos cabelos de cor berrante.

            - Bom, há um modo: A servente da cadeia tem um filho jovem que por duas vezes quase foi pego. Ela está desespera­da para encontrar um lugar para ele se esconder.

            - Talvez eu possa fazer alguma coisa, disse. Será que ela pode "ver" se o relógio dela está precisando de conser­to?

            No dia seguinte, quando eu estava conversando com dois de nossos novos voluntários no quarto de Tia Jans, Toos surgiu à porta. Eu estava deixando todo o serviço da loja nas mãos dela e de papai, por causa do crescimento de nossa "operação clandestina", que exigia mais e mais do meu tempo.

            - Há uma senhora esquisita lá embaixo, disse Toos. Falou que seu nome é Mietje, e que foi Rolf quem a mandou vir aqui.

            Fui encontrá-la na sala de jantar. Ao apertar sua mão, no­tei-a calosa e áspera pelos anos de trabalho lavando assoalhos. Havia um tufo de pêlos bem no seu queixo.

            - Soube que tem um filho do qual muito se orgulha, dis­se-lhe.

            - Oh! Sim!

            O rosto dela se iluminou ao ouvir-me mencionar o rapaz. Peguei o grande despertador que ela trouxera.

            - Venha apanhar seu relógio amanhã à tarde. Eu espero poder lhe dar uma boa notícia.

            Naquela noite, nossos mensageiros nos deram seus relató­rios. Aquele inverno longo e rigoroso estava nos abrindo va­gas em vários lugares. Havia uma em uma granja de cultiva­dores de tulipas, mas o dono agora queria ser pago pelo risco que corria. Tínhamos que providenciar-lhe pagamento - em moedas de prata, não em notas - e mais um cartão de racio­namento. Não era sempre que um dos nossos "anfitriões" exigia pagamento pelos serviços prestados, mas quando um pedia, pagávamos alegremente.

            Quando Mietje apareceu no dia seguinte, tirei da bolsa uma nota de pequeno valor, e rasguei um pedaço do canto.

            - Isto é para seu filho, disse-lhe. Ele deve dirigir-se para Gravenstenenbrug, hoje à noite. Há um toco de árvore perto da ponte - cortaram essa árvore no inverno passado. Ele deve esperar ali, de frente para o canal. Um homem vai aparecer e perguntar se ele tem troco para uma certa quantia. Seu filho deve mostrar-lhe este cantinho cortado, e depois deve seguir o homem sem fazer perguntas.

            Betsie entrou na sala de jantar quando Mietje estava segu­rando entre suas mãos ásperas a minha.

            - Eu vou lhe pagar este favor. Algum dia eu vou encontrar um jeito de lhes retribuir por isto.

            Eu e Betsie nos entreolhamos sorrindo. Como é que esta mulher simples poderia nos dar o tipo de auxílio de que pre­cisávamos?

            Nosso trabalho se expandiu bastante. Cada vez que surgia um novo problema, uma nova solução era encontrada tam­bém. Por intermédio de Pickwick, por exemplo, ficamos co­nhecendo o chefe do departamento da telefônica que cuida­va de ligações e desligações de aparelhos. Com muita perícia, modificando a instalação e os números, ele conseguiu, em pouco tempo, recolocar nosso telefone em funcionamento.   Que dia aquele, quando nosso velho telefone de parede tocou estrepitosamente, pela primeira vez, depois de três anos. E como precisávamos dele! A esta altura, já contávamos com oitenta pessoas - entre senhoras, velhos e jovens - formando fileiras com os "contraventores de Deus", como às vezes nos apelidávamos jocosamente.

            Muitos deles nunca se viam uns aos outros. Conserváva­mos os encontros pessoais em número menor possível. O Beje, contudo, era conhecido de todos. Era o nosso "quartel-gene­ral", o centro de uma teia que se estendia em muitas dire­ções, o ponto onde as linhas se reuniam em um nó.

            Mas se o telefone foi um sucesso, representava também um novo risco - assim como qualquer novo agente ou escon­derijo que era agregado ao movimento.

            Regulamos a campainha do telefone para soar o mais sua­vemente possível; mas quem poderia estar passando no hall quando ele chamasse?

            Do mesmo modo, por quanto tempo os curiosos que tran­sitavam por nossa rua iriam crer que aquela lojinha de relógios era mesmo tão movimentada quanto aparentava? Realmen­te, ainda éramos muito procurados para consertos: inúmeros fregueses entravam e saíam.

            Entretanto havia movimento em demasia, principalmente à tardinha. O toque de recolher, agora, era às 7:00 hs , e, na primavera e no verão, este horário não nos deixava muita margem de tempo para trabalhar de­pois do escurecer, pois anoitecia tarde, e nossos agentes só podiam andar à vontade pelas ruas, aproveitando a escuri­dão da noite.

            Eu estava pensando nisso, meio impaciente, sentada à minha banca de trabalho, no dia 1.° de junho de 1943, hora e meia antes do toque de recolher. Seis de nossos auxiliares ainda não tinham retornado, e por isso, muitos de nossos problemas ainda estavam sem solução, e nós precisávamos resolvê-los antes das 7:00 hs.

            Uma coisa era que, sendo o pri­meiro dia do mês, Fred Koornstra viria trazer os cartões de racionamento. Os cem cartões que há um ano me haviam parecido um pedido extravagante, agora já eram pouquíssimos para a demanda, e Fred era apenas um de nossos fornecedo­res.

            Recebíamos cartões roubados até de cidades distantes, como Delft. Quanto tempo vamos conseguir manter isto? eu me indagava. Por quanto tempo ainda poderemos contar com essa proteção estranha?

            Minha linha de pensamento foi interrompida pela campai­nha lateral. Eu e Betsie chegamos ali ao mesmo tempo. Na ruela, achava-se uma jovem judia, tendo nos braços um pe­queno volume, envolto num cobertor. No homem de pé atrás dela, reconheci um dos médicos da maternidade.

            Já dentro do hall, ele informou-nos que o bebê nascera prematuramente. Ele mantivera mãe e filho no hospital mais do que era permitido, já que ela não tinha lugar para onde ir. Betsie estendeu os braços e tomou o bebê.

            Nesse momen­to, Fred abriu a porta, vindo da loja. Ele piscou, indeciso, ao ver outras pessoas no hall; depois, sem hesitação, virou-se para o relógio da luz. O jovem médico ao ver aquele homem que ele pensava ser um funcionário da companhia de eletrici­dade ficou branco como o colarinho da própria camisa.

            Tive vontade de acalmá-los a ambos, mas quanto menos compo­nentes do nosso grupo se conhecessem uns aos outros, me­lhor para a segurança de todos. O pobre médico se despediu apressadamente, e eu e Betsie subimos com a moça para a sala de jantar, cerrando a porta para deixar Fred entregue ao seu trabalho.

            Betsie serviu uma tigela de sopa de osso - um osso já muitas vezes cozido - que preparara para o jantar. O bebê começou um vagido agudo; balancei-o enquanto a mãe jantava. Aqui estava um novo perigo: um pequeno fugitivo, novo demais para compreender a loucura de se fazer barulho.

            Nós já abri­gáramos muitas crianças judias no Beje para passar uma ou duas noites, e mesmo a mais novinha delas aprendera a guar­dar o silêncio misterioso das criaturas caçadas. Contudo, com duas semanas de idade, este bebê ainda iria descobrir como seu mundo era perigoso e pouco acolhedor. Precisávamos encontrar um esconderijo para eles que fosse distanciado de outras casas.

            No dia seguinte, uma solução perfeita para o problema entrou na loja. Era um pastor conhecido nosso, que dirigia uma igreja numa cidadezinha próxima. Sua casa ficava longe da rua, e era cercada de árvores.

            - Bom-dia, pastor, disse, sentindo as peças do quebra-ca­beças se engrenarem perfeitamente. Em que posso servi-lo?

            Olhei o relógio que ele trouxera para consertar. Precisava de uma peça bem rara.

            - Para o senhor, pastor, faremos o melhor que pudermos. Agora quero lhe confessar uma coisa.

            Os olhos do pastor se turbaram.

            - Confessar?

            Afastei-o da porta da oficina, e levei-o até a sala de jantar.

            - Confesso-lhe que eu também estou querendo algo. O rosto dele se fechou numa carranca. O senhor estaria dispos­to a receber em sua casa uma senhora judia e um bebê? Se não o fizer, eles serão presos.

            Ele ficou muito pálido e deu um passo para trás.

            - Minha senhora, espero que não esteja envolvida nessa atividade ilegal, nesse negócio clandestino. Isto não é segu­ro. Pense no seu pai e em sua irmã - ela nunca foi muito forte.

            Num impulso de momento, disse ao pastor que esperasse, e corri escada acima. Betsie instalara os recém-chegados no antigo quarto de Willem, o mais distante da rua. Pedi permis­são à mãe para levar a criancinha; em meus braços não pesa­va quase nada.

            De volta à sala, descobri o rosto do bebê.

            Houve um longo silêncio. O homem curvou-se um pouco e, a despeito de si mesmo, esticou a mão e tocou no punhozinho agarrado ao cobertor. Durante um instante, vi medo e piedade lutarem dentro dele. Depois ele ergueu os ombros.

            - Não. Absolutamente, não. Poderíamos perder a vida por causa dessa criança judia.

            Sem ser percebido, papai chegara à porta.

            - Dê-me essa criança, Corrie, disse.

            Papai segurou o bebê junto ao peito, sua barba branca roçando o rostinho; seus olhos fixos nele eram tão azuis e sem malícia como os do próprio bebê. Afinal, ergueu o rosto para o pastor.

            - Você disse que poderíamos perder a vida por causa des­sa criança. Eu consideraria isto a maior honra que poderia ser conferida à minha família.

            Bruscamente, o pastor girou nos calcanhares e se retirou.

            Assim, tivemos que tomar a pior solução para o problema. Na saída de Haarlem havia uma chácara que aceitava refugi­ados, conquanto que fosse por pouco tempo. Não era um bom lugar, pois a Gestapo já estivera lá uma vez. Contudo não havia nenhum outro refúgio disponível para onde pudés­semos enviá-los sem aviso prévio. Naquela tarde, dois de nossos agentes levaram a mulher e a criança para lá.

            Algumas semanas mais tarde soubemos que o lugar fora revistado pela polícia. Quando os soldados chegaram ao ce­leiro, onde a mulher estava escondida, ela, e não o bebê, começou a gritar histericamente. Ela, o filhinho e seus prote­tores foram todos presos.

            Nunca ficamos sabendo o que lhes sucedeu.

            Embora tivéssemos um amigo na central telefônica, não podíamos estar certos de que nossa linha não fora censura­da, portanto criamos um código em termos de relógio, para passar mensagens clandestinas.

            - Recebemos um relógio de senhora para ser consertado, mas não temos uma das molas. Sabe onde posso encontrar uma? (Uma senhora judia precisa de um esconderijo e não conseguimos vaga com as pessoas que nos ajudam sempre.)

            - Temos um relógio com um problema no mostrador. Um dos números soltou-se e está atrapalhando a passagem do ponteiro. Conhece alguém que faz este tipo de conserto? (Há um judeu aqui cujos traços são definidamente semíticos. Sabe de alguém que esteja disposto a correr um risco maior?)

            - Sentimos muito, mas o relógio de criança que deixaram conosco não tem conserto. Vocês estão com o recibo? (Uma criança judia morreu em um de nossos esconderijos. Precisa­mos de uma licença para sepultamento.)

            Certo dia em meados de junho, o telefone tocou e recebe­mos a seguinte mensagem:

            - Estamos com um relógio de homem que está dando muito trabalho. Não conseguimos encontrar ninguém para consertá-lo. Um dos problemas é que o mostrador é muito antigo...

            Tratava-se de um judeu cujos traços revelavam sua ori­gem, pessoa para quem era difícil se achar um esconderijo.

            .- Mandem p relógio para nós e veremos o que podemos fazer aqui mesmo.

            Exatamente às 7 da noite, a campainha tocou. Olhei para o espelho da janela da sala de jantar, onde nos encontráva­mos tomando chá de folha de rosas e pedículos de cereja. Mesmo vendo apenas um lado do seu rosto percebi que se tratava do nosso "relógio antiquado".      Sua figura, suas rou­pas, seu modo de fiar em pé pareciam saídos de uma comé­dia musical judia. Corri à porta.

            - Entre!

            Era um homem magro de uns trinta e poucos anos, ore­lhas de abano, calva incipiente e óculos pequenos, que se inclinou diante de mim num cumprimento cerimonioso. Gos­tei dele imediatamente.

            Logo que a porta se fechou, ele pegou um cachimbo.

            - A primeira coisa que quero saber, disse, é se eu deveria ter deixado para trás o meu amigo cachimbo. Meyer Mossel e seu cachimbo não se separam facilmente, mas para a senho­ra, bondosa amiga, se o cheiro de fumaça for se apegar às suas cortinas, eu me despedirei alegremente da minha ami­ga, a nicotina.

            Soltei uma risada. De todos os judeus que haviam vindo a nossa casa, ele era o primeiro a fazê-lo com alegria e o pri­meiro a mostrar interesse pelo nosso bem-estar.

            - É lógico que pode conservar o cachimbo! respondi. Meu pai mesmo gosta de fumar seus charutos, isto é, quando en­contra algum, hoje em dia.

            - Ah, esses nossos tempos! Meyer Mossel encolheu os ombros de maneira grandiosa e ergueu os braços. Que é que se pode fazer se o acampamento está infestado de bárbaros?

            Encaminhei-o à sala de jantar. Havia sete pessoas à mesa: um casal de judeus aguardando vaga num esconderijo, três dos nossos operadores clandestinos, papai e Betsie. Meyer Mossel olhou diretamente para papai.

            - Mas o quê! exclamou. Um dos patriarcas!

            Era a coisa mais acertada para se dizer a papai, e ele retor­nou a graça com o mesmo bom humor.

            - Ora essa! Um irmão do povo escolhido!

            Às 8:45h, papai tirou da estante nossa Bíblia com cantoneiras de bronze. Abriu-a em Jeremias, onde havíamos para­do na noite anterior, depois, obedecendo a uma súbita inspi­ração, passou a Bíblia para Meyer.

            - Quer nos dar a honra de ler para nós hoje? pediu-lhe.

            Pegando o livro com carinho, Meyer levantou-se. Extraiu do bolso um pequeno barrete, e, a seguir, com uma voz pro­funda, meio entoando, meio rogando, leu as palavras do ve­lho profeta de maneira tão sentida e tão pungente, que nos pareceu ouvir o próprio clamor do exílio.

            Depois, Meyer Mossel nos revelou que havia sido um "Can­tor" (pessoa que dirige o ofício numa sinagoga) em Amsterdam.

            Apesar de toda a sua jocosidade ele sofrera muito. Quase toda a sua família fora presa; sua esposa e filhos estavam escondidos no norte, em uma fazenda cujos proprietários haviam se recu­sado a aceitá-lo "por motivos óbvios", disse com uma careta dirigida contra seu próprio rosto inconfundível.

            Gradualmente, nós percebemos que esse homem agradá­vel estava no Beje para ficar. Certamente, não era o lugar ideal, mas para Meyer nada poderia ser ideal agora.

            - Mas pelo menos o seu nome não precisa "denunciá-lo" também, disse-lhe certa noite.

            Eu ainda me lembrava de Eusébio, um dos "Pais da Igre­ja", do século XIV sobre o qual ouvira no tempo em que Willem estudava História da Igreja.

            - Acho que devemos chamá-lo de Eusébio, decidi.

            Estávamos num dos aposentos de Tia Jans, com Kik e ou­tros rapazes que tinham vindo nos trazer alguns salvo-con­dutos forjados, e ficaram, pois estavam atrasados e não al­cançariam suas casas antes do toque de recolher.

            Meyer recostou-se na cadeira e olhou o teto pensativa­mente. Tirou o cachimbo da boca.

            - Eusébio Mossel, disse como que degustando as palavras. Não; não está bom. Eusébio Gentio Mossel.

            Nós todos rimos.

            - Não seja teimoso, disse Betsie; tem que trocar os dois nomes.

            Kik olhou de soslaio para papai.

            - Vovô, que tal Smit? Parece que este nome está bem po­pular hoje em dia.

            - É parece mesmo! respondeu papai, sem entender a pia­da. Muitíssimo popular.

            E ele ficou sendo Eusébio Smit.

            Foi fácil trocar o nome de Meyer. Daí a pouco ele já era "Eusie", mas conseguir que comesse nossa comida "impura" era outra coisa. O problema era que tínhamos que estar satis­feitos com qualquer tipo de alimento que obtivéssemos. Nes­te terceiro ano de ocupação, às vezes, precisávamos ficar em fila horas e horas para comprar o que houvesse.

            Certo dia, o jornal anunciou que, com o cupom número quatro, poderíamos adquirir lingüiça de porco. Era a primei­ra vez, em semanas, que íamos ter carne. Betsie preparou o "banquete" com carinho, guardando todo e qualquer restinho de gordura para temperar outros pratos, mais tarde.

            - Eusie, disse Betsie ao carregar para a mesa o fumegante cozinhado de carne de porco e batata, chegou o momento.

            Eusie bateu o cachimbo para esvaziá-lo da cinza, e come­çou a analisar o problema em voz alta. Ele, que nunca tinha comido alimento impuro; ele, o filho mais velho de um filho mais velho, de uma família respeitável, estava sendo solicita­do a comer carne de porco.

            Betsie serviu o prato dele.

            - Bom apetite!

            O cheiro saboroso chegou ao nosso paladar faminto por carne. Eusie passou a língua nos lábios.

            - Estou certo de que no Talmude há uma provisão para uma situação dessas, disse.

            Espetou o garfo no pedaço de carne, mordeu-o avidamente, e girou os olhos para cima em sinal de prazer, e completou: E eu vou começar a procurar, logo que acabar de jantar.

            A chegada de Eusie como que quebrou o restinho de he­sitação que ainda nos continha. Num período de três sema­nas, aceitamos mais três adições à nossa família. Primeiro foi Jop, nosso aprendiz do momento, cujas idas e vindas de sua casa no subúrbio para o trabalho, em duas ocasiões, quase terminaram com sua prisão e conseqüente envio para as fábricas.

            Da segunda vez que isto aconteceu, seus pais nos perguntaram se ele podia ficar no Beje. Concordamos. Os outros dois novos moradores eram Henk, um jovem ad­vogado, e Leendert, professor. Leendert fez uma boa contri­buição para a vida secreta do Beje: instalou nosso sistema de alarme.

            Por esta altura, eu já aprendera a fazer sozinha a viagem noturna à casa de Pickwick, quase tão habilmente quanto Kik. Uma certa noite, depois que peguei minha xícara de café, meu amigo de olhos tortos sentou-me numa cadeira e pas­sou-me uma descompostura.

            - Cornélia, disse-me ajeitando seu corpanzil numa pol­trona forrada de veludo que era pequena demais para ele, ouvi dizer que vocês não têm sistema de alarme. Isto é uma loucura! E também fui informado de que não realizam trei­namentos regulares com os hóspedes.

            Eu sempre me espantava ao ver como Pickwick estava bem informado sobre tudo que acontecia no Beje.

            - Tenho certeza de que vão dar uma batida lá qualquer dia desses, continuou, não há como evitar. Tanta gente en­trando e saindo, e com um membro do Partido Nacional So­cialista morando na casa dos Kan... Seu quartinho secreto não vai adiantar nada, se as pessoas não puderem alcançá-lo a tempo. Eu conheço o Leendert. É um bom homem, e um eletricista passável. Peça-lhe para instalar uma campainha em cada cômodo que tenha uma janela ou porta dando para a rua. Depois, dê treinos regulares para eles, até consegui­rem se abrigar no quartinho, sem deixar traços de sua pre­sença, em menos de um minuto. Vou mandar alguém para orientá-la no início.

            Saí da casa de Pickwick bem preocupada. Talvez ele es­tivesse certo. Talvez todo esse tempo de trabalho clandes­tino sem deslizes nos tivesse levado a nos descuidarmos um pouco. Talvez nos tivéssemos tornado muito autoconfiantes.

            Naquele mesmo dia, pedi a Leendert para instalar o siste­ma de alarme. Ele colocou uma campainha no topo da esca­da, com volume bastante para ser escutada em todos os apo­sentos da casa, mas não do lado de fora. Depois, ele pôs bo­tões para a campainha em todos os pontos de onde se pudes­se perceber bem a aproximação de um possível problema.

             Um era logo abaixo da janela da sala de jantar, perto do espe­lho que dava para a porta lateral. Outro, embaixo, no hall, perto da porta; havia um junto à porta que dava para a Rua Barteljoris. Além desses, outro estava no balcão da loja, um em cada banca de consertos na oficina e um junto à janela do quarto dianteiro de Tia Jans.

            Estávamos prontos para realizar nossa primeira corrida-treino. Os quatro ocupantes extras de nossa casa já es­tavam fazendo duas viagens diárias ao quarto secreto: uma pela manhã, para guardar as roupas de dormir, de cama e artigos de toalete; outra, à noite, para guardar os objetos utilizados durante o dia.

            Pessoas do nosso grupo que tam­bém precisavam passar a noite conosco, deixavam ali ca­pas de chuva, chapéus, e outras coisas que houvessem tra­zido consigo. Tudo isto já resultava numa boa quantidade de passadas pelo meu pequeno quarto - agora ainda dimi­nuído em um metro.

            Muitas vezes, à noite, minha última visão antes de dormir, seria de Eusie, em seu longo camisolão e barrete de dormir, passando suas roupas do dia pela abertura secreta.

            A finalidade dos treinamentos era ver o tempo que eles gastariam para chegar ao quartinho, a qualquer hora do dia ou da noite, sem aviso prévio. Um rapaz alto, de rosto ma­gro, apareceu em casa, certo dia, enviado por Pickwick para me ensinar a realizar os treinos.

            - Smit! exclamou papai, logo que o rapaz se apresentou. É verdadeiramente assombroso! Ultimamente tem chegado aqui um Smit atrás do outro. Mas você se parece muito com...

            O Sr. Smit se desembaraçou gentilmente da conversa genealógica de papai, e seguiu-me escada acima.

            - Uma das ocasiões que eles preferem para batidas é à hora das refeições, disse-me. Outra é bem no meio da noite.

            Ele foi de cômodo em cômodo mostrando várias evidências de que havia mais de três pessoas residindo na casa.

            - Cuidado com cestas de lixo e cinzeiros. Parou à porta de um dos quartos.

            - Se a batida for à noite, eles têm que, além de levar len­çóis e cobertores, virar o colchão. Um dos testes da polícia é justamente procurar o calor do corpo no colchão.

            O Sr. Smit ficou para almoçar conosco. Havia onze pessoas à mesa nesse dia, incluindo uma senhora judia que chegara na noite anterior, e uma outra senhora e sua filhinha que estavam ali para acompanhar a primeira ao esconderijo. Iam para uma fazenda em Brabant, e partiriam logo após o almoço.

            Betsie tinha acabado de trazer um cozinhado que prepa­rara com tanta habilidade que mal se notava a falta da carne, quando, sem nenhum aviso, o Sr. Smit inclinou-se para trás em sua cadeira e apertou o botão da campainha que se en­contrava abaixo da janela.

            O toque soou acima de nossa cabeça. Todos começaram a se erguer rapidamente, agarrando copos e pratos, correndo para a escada, enquanto o gato, assustado e aflito, arranhava a cortina querendo subir por ela. Gritos de "Mais depressa!" e "Silêncio!" e "Está derramando!" chegavam até nós.

            Eu, pa­pai e Betsie arranjávamos mesas e cadeiras para dar a impressão de que um almoço para três se processava normal­mente.

            - Não! Deixe minha cadeira, disse o Sr. Smit. Por que não se poderia ter um convidado para o almoço? Aquela senhora e a garotinha também poderiam ter ficado.

            Afinal, estávamos os quatro de volta à mesa, e reinava um perfeito silêncio no andar de cima. O movimento todo levara quatro minutos.

            Pouco depois reunimo-nos em volta da mesa outra vez. O Sr. Smit expôs as evidências incriminantes que havia encon­trado: duas colheres e um pedaço de cenoura na escada, cin­zas num quarto "desocupado". Todos olharam para Eusie que corou até a ponta de suas grandes orelhas.

            - Aquilo ali também, apontou para os chapéus da senho­ra e sua filha ainda dançando em seus ganchos, na parede da sala de jantar. Se têm que se esconder, parem para pensar em tudo que trouxeram consigo. Além disso, vocês foram muito lentos.

            Na noite seguinte, eu toquei o alarme, e, desta vez, conse­guimos cortar um minuto e trinta e três segundos na corrida. Na quinta tentativa, diminuímos a duração dela para um mi­nuto e trinta e dois segundos.

            Nunca conseguimos, porém, al­cançar a marca ideal sugerida por Pickwick, de menos de um minuto, mas com a prática, aprendemos a largar o que estivés­semos fazendo e ajudar os que tinham de ser escondidos, a chegar ao quartinho em setenta segundos.

            Eu, papai e Toos inventamos algumas técnicas de retardamento que utilizaría­mos para deter a Gestapo, caso entrassem pela loja; Betsie também criou sua própria estratégia para o caso de baterem à porta lateral. Com estas táticas, esperávamos conseguir detê-los pelos preciosos e salvadores setenta tiques do relógio.

            Esses treinos se associavam muito à idéia de medo - sem­pre presente, nunca mencionado - que atormentava nossos amigos, e por isso procurávamos evitar que se tornassem sé­rios demais.

            - Vamos fazer disto um jogo, dizíamos. Vamos tentar ba­ter nosso recorde.

            Um de nossos companheiros possuía uma confeitaria numa rua próxima. No começo do mês eu ia lá e lhe entre­gava um certo número de cupons para açúcar. Mais tarde, quando resolvia realizar um treino, voltava lá e apanhava alguns bolinhos recheados - um prêmio de valor incalcu­lável naqueles dias de falta de doces - e os guardava em minha banca, para dar como presente pelo melhor tempo do treino.

            A cada vez, meu pedido de bolinhos aumentava. Agora, além dos nossos funcionários que queríamos iniciar no siste­ma, tínhamos mais três hóspedes permanentes: Thea Dacosta, Meta Monsanto e Mary Itallie.

            Mary, com 76 anos, era nossa hóspede mais idosa e a que representava o maior problema também. No momento em que ela pisou na soleira da porta, ouvi o chiado da sua respi­ração asmática, que fizera com que outras pessoas se recu­sassem a dar-lhe esconderijo.

            Já que sua enfermidade comprometia a segurança dos outros, levamos a questão ao grupo reunido. Os sete mais implicados - Eusie, Jop, Henk, Leendert, Meta e Mary -jun­taram-se a nós no quarto fronteiro.

            - Não é necessário fingirmos, comecei. Mary tem um pro­blema que, principalmente após a subida de uma escada, poderia colocar-nos a todos em perigo.

            No silêncio que se seguiu, a respiração trabalhosa de Mary parecia ainda mais evidente.

            - Posso falar? perguntou Eusie.

            - Lógico.

            - Parece que todos nós estamos aqui nesta casa por causa de uma ou outra dificuldade. Somos os filhos órfãos que nin­guém aceitou. Qualquer um de nós está pondo os outros em perigo. Proponho que Mary fique.

            - Ótimo! disse Henk, o advogado. Vamos votar.

            Algumas mãos começaram a se erguer, mas Mary estava se esforçando para falar.

            - Voto secreto, conseguiu finalmente dizer. Ninguém deve se sentir constrangido.

            Henk apanhou uma folha de papel da escrivaninha do cômodo adjacente, e rasgou-o em nove pedaços.

            - Vocês também, disse entregando papel para mim, papai e Betsie. Se nós formos encontrados, vocês sofrerão também.

            Em seguida, ele distribuiu alguns lápis.

            - Escrevam "não", se pensam que é muito arriscado, e "sim", se acham que ela deve ficar.      

            Durante alguns momentos só ouvimos o ruído dos lápis sobre o papel; depois, Henk recolheu os votos dobrados. Abriu-os em silêncio, depois, estendendo a mão, deixou-os cair no colo de Mary.

            Nove pedacinhos de papel; nove vezes a palavra "sim".

            E assim nossa "família" ficou completa. Outras pessoas ficavam conosco um dia ou uma semana, mas estes sete per­maneceram - era o núcleo de nosso feliz lar.

            Se fomos felizes, em tal ocasião e em tais circunstâncias, devemos grandemente a Betsie. Já que a atividade física de nossos hóspedes era sempre tão restrita, nossos serões, sob a orientação dela, tornaram-se uma porta aberta para um mun­do novo.

            Às vezes, realizávamos pequenos concertos: Leendert ao violino, e Thea, que por sinal era ótima musicista, ao pia­no. Outras vezes, ela anunciava "uma noite dedicada a Vondel" (o Shakespeare da Holanda), cada um lendo uma parte. Ela convenceu Eusie a nos dar aulas de hebraico, uma vez por semana, e Meta, de italiano.

            Essas atividades tinham que ser curtas porque agora a ci­dade tinha força elétrica apenas durante algumas horas por noite, e as velas tinham que ser poupadas para alguma emer­gência. Quando as lâmpadas começavam a tremer e a dimi­nuir, íamos para a sala de jantar, onde minha bicicleta estava montada num suporte próprio. Um de nós subia a ela, os outros tomavam assento ao redor, e então, enquanto o ciclis­ta pedalava a toda força para fazer o farol funcionar, alguém continuava a ler do capítulo onde havíamos parado na noite anterior. Logo que pernas e gargantas se cansavam, nós nos revezávamos, e, desse modo, lemos várias histórias, roman­ces e peças teatrais.

            Papai sempre subia para seu quarto às 9:15h, após o devo­cional, mas o resto ficava, relutando em desfazer o círculo, com pena de ver o serão se encerrar.

            - Ah, bom! dizia Eusie esperançosamente, quando afinal subíamos para deitar, talvez haja um treino hoje. Já há quase uma semana que não provo um daqueles bolinhos.