O Quarto Secreto
Era domingo, dia 10 de maio de 1942, exatamente dois anos após a rendição da Holanda. Nem o ensolarado céu de primavera, nem as flores em seus caixilhos dos postes, eram a verdadeira expressão da atmosfera da cidade. Soldados alemães vagavam pelas ruas, alguns parecendo não ter superado ainda os excessos de uma noite de sábado, outros já em busca de garotas, e alguns (poucos), à procura de uma igreja.
A cada mês que passava, a ocupação parecia mais severa,
com as restrições aumentando sempre. O último suplício imposto aos holandeses
fora o decreto que declarava ser crime cantar o nosso hino nacional, o Wilhelmus.
Eu, papai e Betsie estávamos a caminho de Velsen, uma
cidadezinha não muito distante de Haarlem, de cuja igreja reformada Peter era
organista. Ele conseguira o cargo vencendo uma competição entre quarenta
candidatos, sendo que os outros eram todos mais velhos e mais experimentados
que ele. O órgão de Velsen era um dos melhores do país, e nós íamos lá muitas
vezes, embora o trem parecesse cada vez mais vagaroso.
Quando nos sentamos, apertados naquele banco lotado,
Peter já estava tocando totalmente invisível para nós, em seu posto na galeria
do órgão. Uma vantagem da ocupação, para a Holanda, fora isto: as igrejas
estavam constantemente cheias.
Depois do cântico dos hinos e das orações, vinha o
sermão, que nesse dia, aliás, foi muito bom. Gostaria que Peter prestasse mais
atenção a ele. Peter achava que os sermões serviam apenas para gente velha,
como eu e sua mãe. Eu completara cinqüenta anos, e, para Peter, nessa idade, a
vida já passara definitivamente.
Às vezes, eu instava com ele para que se lembrasse de que
a morte e as questões decisivas da vida podiam ocorrer em qualquer idade, para
qualquer um de nós - principalmente nos tempos em que vivíamos. Ele retrucava,
galantemente, que era um músico bom demais para morrer jovem.
A oração final terminou. Foi aí que, como tocada por uma
corrente elétrica, toda a congregação se pôs subitamente atenta. Sem preâmbulo
algum, com todos os registros abertos em seu volume máximo, Peter começara a
tocar o Wilhelmus.
Apesar de seus oitenta e dois anos, papai foi o primeiro
a se levantar. Agora, todos se levantavam. Atrás de nós, alguém começou a
cantar. Outro juntou-se a este, depois outro. Daí a pouco todos cantávamos. Era
a voz da Holanda cantando o hino proibido. Cantamos a toda força dos pulmões.
Cantamos nossa unidade, nossa esperança, nosso amor ao país e à rainha. Até
parecia que no dia do aniversário de nossa derrota, por um instante,
sentíamo-nos vitoriosos.
Após o culto, ficamos à porta lateral da igreja, aguardando
que Peter saísse. Passou-se bastante tempo antes que ele viesse juntar-se a
nós, tal o número de pessoas que queriam abraçá-lo, apertar sua mão, bater-lhe
nas costas. Ele estava visivelmente satisfeito consigo mesmo.
Entretanto, agora que o momento de glória havia passado,
eu estava, como sempre, zangada com ele. A Gestapo iria saber daquilo com toda
a certeza. Talvez já soubesse: havia espiões seus por toda a parte. Pensei em
Nollie, preparando o almoço para nós. Pensei nos outros filhos e em Flip. E se
ele perdesse sua posição na escola? E para que Peter se arriscara tanto? Não
fora pela vida de outrem, mas simplesmente pela beleza de um gesto ousado, por
um momento de desafio, sem nenhum significado real.
Já em casa, Peter transformou-se num herói, quando tivemos
de relatar o acontecido várias vezes. As únicas pessoas que pensavam como eu eram
duas judias que estavam morando com Nollie.
Uma era uma velhinha austríaca que Willem enviara para
lá, a fim de se esconder. "Katrien", como eles a haviam rebatizado,
passava por empregada da família, embora Nollie houvesse me segredado que nem
mesmo a própria cama ela arrumava. Provavelmente, ela nem sabia fazer a cama,
já que era de uma família aristocrática e rica.
A outra era uma jovem holandesa, loura de olhos azuis,
que possuía cartão de identificação falso - um trabalho perfeito -que lhe havia
sido fornecido pela organização de resistência clandestina da Holanda.
Os documentos eram tão perfeitos, e Annaliese era tão
diferente de uma judia típica, na concepção dos nazistas que ela saía de casa
livremente, fazia compras, auxiliava na escola. Passava por uma amiga da
família que perdera o marido no bombardeio de Rotterdam. Katrien e Annaliese,
como eu, não compreendiam a atitude de Peter, ao praticar um ato deliberado que
atrairia a atenção das autoridades.
Passei toda a tarde aflita, vivendo momentos de tensão
cada vez que ouvia o barulho de um carro, pois somente a polícia, os alemães e
os membros do Partido Socialista tinham carros então. Chegou a hora de
retornarmos ao Beje, e nada acontecera.
Durante os dois dias seguintes eu ainda me preocupei, mas
depois concluí que, ou Peter não havia sido delatado, ou a Gestapo estava
ocupada com coisas mais importantes. Na manhã de quarta-feira, quando estávamos
abrindo nossa banca de trabalho, Cocky, a irmãzinha de Peter, entrou correndo
pela loja.
- Vovô! Tia Corrie! Prenderam Peter. Eles o levaram!
- Quem? Para onde?
Ela não sabia. Somente três dias mais tarde foi que a
família recebeu a informação de que ele havia sido levado para a prisão
federal de Amsterdam.
Faltavam cinco minutos para o novo toque de recolher, 8:00h. Peter já estava preso há duas semanas.
Eu, papai e Betsie estávamos assentados à mesa da sala de
jantar. Papai recolocava os relógios em seus bolsinhos. Betsie costurava, e,
como sempre, nosso grande gato preto se aninhara em seu colo.
Uma batida à porta da ruela, e eu olhei para o espelho
junto à janela. À pouca claridade daquele crepúsculo de primavera, vi uma
mulher. Carregava uma maleta de viagem e vestia um casaco de peles, o que era
estranho, para essa estação do ano, e usava um grosso véu.
Desci correndo e abri a porta.
- Posso entrar? perguntou. Sua voz soou aguda pelo medo.
- Naturalmente, respondi, dando um passo atrás.
Ela deu uma espiadela por sobre os ombros, e depois entrou
no hall.
- Meu nome é Kleermaker, e sou judia.
- Muito prazer.
Estendi a mão para pegar a valise, mas ela manteve-a segura.
- Quer subir?
Papai e Betsie levantaram-se quando entramos.
- Sra. Kleermaker, meu pai, minha irmã.
- Eu já ia fazer chá, disse Betsie. Chegou bem a tempo de
tomar chá conosco.
Papai afastou uma cadeira da mesa para a Sra. Kleermaker.
Ela sentou-se ainda segurando a maleta. O "chá" era, na realidade,
uma infusão feita com folhas já muitas vezes usadas, que amassáramos mais, e
que mal coloriam a água.
A Sra. Kleermaker aceitou-o alegremente, e passou a nos
contar que o seu marido fora preso e seu filho fugira para esconder-se. No dia
anterior, a S.D. - a polícia que operava sob as ordens da Gestapo - tinha lhe
ordenado que fechasse sua loja de roupas. Ela temera voltar ao apartamento que
ocupava na sobreloja. Ouvira que éramos amigos de um senhor desta mesma rua...
- Nesta casa, disse papai, o povo de Deus é sempre
bem-vindo.
- Há quatro camas vazias lá em cima, disse Betsie. Seu
único trabalho será escolher em qual delas quer dormir.
Então, para meu espanto, ela acrescentou:
- Mas primeiro, quer me dar uma mão na cozinha? Quase não
acreditei no que ouvia. Betsie nunca permitia que alguém a ajudasse na sua
tarefa.
"Sou uma solteirona enjoada", dizia.
A Sra. Kleermaker ergueu-se com uma ânsia quase patética,
e começou a ajuntar os pratos e xícaras.
Dois dias depois, a mesma cena se repetiu. A hora era a mesma, pouco antes de 8:00h, de uma noitinha de sábado. Outra vez a batida furtiva na entrada lateral. Dessa vez era um casal idoso.
- Entrem!
A mesma história, o mesmo apego às poucas possessões que
lhes restavam, o mesmo olhar assustado por sobre os ombros, o mesmo passo
indeciso. Os vizinhos tinham sido presos, e receavam que amanhã talvez fosse a
vez deles.
Naquela noite, após o devocional, nós seis resolvemos examinar
o problema.
- Este lugar é perigoso, disse aos nossos hóspedes. A
chefatura de polícia fica a meia quadra daqui. No entanto, não temos outro
lugar para lhes indicar.
Percebi que estava na hora de eu fazer outra visita a
Willem. Assim, no dia seguinte, repeti a incômoda viagem a Hilversum.
- Willem, disse-lhe, estamos com três judeus lá em casa.
Será que você poderia arranjar esconderijos para eles?
Ele levou a mão aos olhos, e foi aí que notei como sua
barba estava grisalha.
- Está ficando muito difícil, respondeu. A cada dia que
passa está mais difícil. Está começando a faltar alimento até nas fazendas. Eu
ainda tenho uns locais, mas poucos. Entretanto eles não aceitam ninguém sem
cartão de racionamento.
- Sem cartão? Mas os judeus não recebem cartões!
- Eu sei.
Willem virou-se e olhou pela janela. Pela primeira vez eu
me indaguei como é que ele e Tine estavam se arranjando para alimentar os
velhinhos que se encontravam sob seus cuidados.
- Eu sei, repetiu. E não podemos fabricar cartões falsos.
Eles mudam muito depressa e percebe-se logo a falsificação. Já com cartões de
identidade a coisa é diferente. Conheço vários gráficos que os fazem. Mas para
isso precisa-se de um fotógrafo, naturalmente.
Um fotógrafo? Gráficos? De que é que Willem estava falando?
- Willem, se uma pessoa precisa de cartões de racionamento
- já que não há cartões falsos - o que é que se faz?
Ele voltou-se da janela vagarosamente. Parecera haver se
esquecido de mim e do meu problema.
- Cartões de racionamento? Fez um gesto vago. A gente
rouba.
Olhei para aquele ministro da Igreja Reformada Holandesa.
- Então, Willem, será que você pode roubar - quero dizer...
pode arranjar três cartões para mim?
- Não, Corrie. Estou sendo muito vigiado. Você não compreende
isto? Cada passo que dou está sendo observado.
Ele passou o braço pelo meu ombro e prosseguiu num tom
carinhoso.
- Mesmo que eu ainda possa trabalhar mais algum tempo, é
melhor você ter seus próprios recursos. Quanto menos ligação você tiver comigo
ou qualquer outra pessoa, melhor será.
Sacolejando no trem, de volta para casa, pensei muito nas
palavras de Willem: "Seus próprios recursos." Isso me parecia tão
sério... Como iria encontrar um fornecedor de cartões roubados? Quem é que eu
conhecia que poderia...?
Naquele momento, um nome me veio à mente: Fred Koornstra.
Ele fora funcionário da companhia de eletricidade, e tinha vindo ao Beje muitas
vezes para ler o relógio da luz. Tinha uma filha retardada, agora adulta, que
freqüentara os cultos que eu realizava todos os domingos, especialmente para
excepcionais. Agora, ele trabalhava no Departamento de Alimentação. Não era lá
que os cartões de racionamento eram emitidos?
Naquela noite, após o jantar, saí pedalando pelas nossas
ruas calçadas de paralelepípedos. Os pneus da minha velha e fiel bicicleta
haviam se acabado, e eu me unira às centenas de ciclistas que iam rodando
ruidosamente com apenas o aro de metal. Cada saliência da rua me lembrava
dolorosamente que eu já estava com cinqüenta anos de idade.
Fred, um homem calvo, de porte militar, recebeu-me à
porta e olhou-me inquisitivamente, quando lhe disse que desejava falar-lhe
sobre o culto de domingo. Convidou-me a entrar, fechou a porta e disse:
- Bem, Corrie, o que é que você quer realmente?
"Senhor", orei em silêncio, "se não for seguro para mim confiar
em Fred, interrompe esta conversa, antes que seja tarde demais."
- Primeiro, preciso dizer-lhe que temos hóspedes inesperados
no Beje. Alguns dias atrás veio uma senhora sozinha, depois um casal, e
quando voltei à tarde, encontrei outro casal. Fiz uma pequena pausa e
continuei. São todos judeus.
O rosto de Fred continuou impassível.
- Nós podemos arranjar-lhes esconderijos, mas precisamos
de uma coisa: cartões de racionamento.
Fred sorriu.
- Agora já sei por que você veio aqui.
- Há algum jeito de você nos conseguir alguns cartões
dentre os que você registra?
- Não, Corrie; não há. Eles são autenticados de vários
modos. São verificados e reverificados.
A esperança que começara a surgir dentro de mim ruiu por
terra. Fred, porém, estava franzindo a sobrancelha.
- A menos que... começou.
- A menos que o quê?
- A menos que seja em forma de assalto. O Departamento de
Alimentação de Utrecht foi assaltado no mês passado, e a polícia só pegou os
homens; os cartões não foram recuperados.
Ele ficou em silêncio por uns instantes.
- Se fosse ao meio-dia, quando apenas eu e o outro atendente
estamos lá... e se eles nos encontrassem amordaçados... Ele estalou os dedos. E
eu conheço um sujeito que poderia fazer isso. Lembra-se do...
- Não! interrompi-o, recordando-me do aviso de Willem.
Não me diga quem e nem como. Arranje os cartões para mim, se puder.
Fred fitou-me por uns instantes.
- De quantos precisa?
Abri a boca para dizer cinco, mas, para meu assombro, o
número que falei foi "cem".
Uma semana mais tarde, quando Fred me abriu a porta,
levei um susto ao vê-lo. Seus olhos estavam arroxeados e o lábio inferior
inchado e tinha um corte.
- Meu amigo fez o papel dele muito bem, foi tudo que
disse.
Mas ele conseguira os cartões. Sobre a mesa, em um envelope
de papel manilha, estavam os cem "passaportes" para a segurança. Fred
já tinha cortado deles o canhoto de continuação. Esse era apresentado ao
Departamento de Alimentação, no último dia do mês, e, em troca, a pessoa
recebia o cartão para o mês seguinte. Com aqueles cupons, Fred poderia
continuar emitindo os cartões para nós "legalmente".
Concordamos em que seria muito arriscado para mim, vir à
sua casa todo mês. Que tal se ele fosse ao Beje, com seu velho macacão
da companhia de eletricidade?
Nosso medidor ficava no hall, ao pé da escada. Quando cheguei
em casa, examinei o primeiro degrau, levantando a tábua de cima, como Peter
havia feito para esconder o rádio, e encontrei um vão no interior dele. Peter
ficaria orgulhoso de me ver, pensei enquanto preparava o esconderijo, e
senti-me invadida por uma onda de saudade daquele rapaz corajoso e confiante.
Até ele teria que reconhecer que os olhos e dedos de um relojoeiro serviam para
alguma coisa, pensei dando um passo para trás, para admirar o trabalho
concluído. A dobradiça estava fora de vista, bem afundada na madeira, e a
parede vertical do degrau estava intata. Senti-me ridiculamente satisfeita.
Nosso primeiro teste foi no dia primeiro de julho. Fred
entraria pela loja como sempre fizera, transportando os cartões sob a camisa.
Ele viria às 5:30h, e Betsie tinha instruções para não deixar nenhum dos seus
"fregueses" por ali. Às 5:25h, para meu horror, a porta da loja se abriu,
e um policial entrou.
Era um homem alto, de cabelo vermelho, cortado rente, e
seu nome era Rolf van Vliet, e isto era tudo o que eu sabia. Ele comparecera à
nossa festa do centenário da loja, mas quase toda a força policial viera. Ele
não era dos que passavam aqui nas manhãs de inverno para tomar café.
Ele trouxera um relógio para limpeza, e parecia com disposição
para um bom bate-papo. Minha boca ficou seca, mas papai palestrava alegremente,
enquanto retirava a capinha de trás e examinava o relógio. Que íamos fazer? Não
havia jeito de avisar Fred Koornstra.
Precisamente às 5:30h, ele abriu a porta da loja e
entrou, vestido com seu macacão azul de trabalho. Pareceu-me que seu estômago
estava bem alto, pelo menos uns trinta centímetros mais alto.
Com maravilhosa tranqüilidade, ele cumprimentou papai, o
policial e a mim.
- Boa tarde! disse cortês, mas levemente irritado.
Atravessou a porta ao fundo da loja e cerrou-a atrás de si.
Agucei os ouvidos para escutar o ruído da portinhola
secreta. Agora! Rolf deve ter ouvido também.
A porta abriu-se de novo. Tão grande era o autocontrole
de Fred que não escapou pela porta lateral, mas regressou pela loja.
- Boa tarde, disse novamente.
- Boa tarde.
Cruzou a porta da rua e saiu. Dessa vez conseguíramos,
mas eu sabia que teríamos de arranjar um modo de avisá-lo.
Enquanto isso, nas semanas que decorreram após a inesperada
visita da Sra. Kleermaker, muita coisa aconteceu no Beje. Tendo recebido
os cartões de racionamento, ela e o casal idoso que aparecera depois dela, e os
outros que os seguiram, todos haviam encontrado refúgio em lugares seguros.
Todavia aquele povo perseguido continuava chegando, e seus problemas eram, às
vezes, mais complicados que providenciar cartões e esconderijos. Se uma judia
estava grávida, onde iria para ter o bebê? Se um judeu escondido morria, como
fazer para enterrá-lo?
- Arrume seus próprios recursos, dissera Willem.
Desde que o nome de Fred me ocorrera, começara a compreender
um fato estranho: metade da população de Haarlem era de amigos nossos.
Conhecíamos enfermeiras de maternidades e funcionários do cartório de
registros. Tínhamos conhecidos em todos os tipos de negócios e repartições
públicas da cidade.
Naturalmente, não sabíamos qual era o ponto de vista
político dessas pessoas, mas - e ao pensar nisso senti meu coração saltar -
Deus sabia. Minha tarefa era só seguir as instruções dele, passo a passo,
levando a ele, em oração, toda e qualquer decisão. Eu sabia que não era
esperta, nem astuciosa, nem sagaz. Se o Beje estava se tornando um ponto
de encontro e de fornecimento de suprimentos, isso se devia a uma estratégia
muito melhor que a minha.
Alguns dias após a primeira "visita" de Fred, a
campainha soou bem depois do toque de recolher. Corri escada abaixo esperando
encontrar outro triste e inseguro refugiado. Eu e Betsie já tínhamos acomodado
os quatro novos hóspedes daquela noite: uma senhora judia e seus três filhos.
Para minha surpresa, vi Kik encostado à parede da ruela
em sombras.
- Pegue a bicicleta, ordenou-me com seu modo brusco. E
ponha uma blusa de frio. Quero apresentá-la a algumas pessoas.
- Agora? Depois do toque de recolher?
Eu sabia, porém, que seria inútil fazer perguntas. A bicicleta
dele também estava sem pneus, e os aros estavam envoltos em tiras de pano. Ele
fez o mesmo com a minha, a fim de silenciar o barulho do metal, e daí a pouco
estávamos pedalando pelas ruas escuras de Haarlem, a uma velocidade que me
assustaria mesmo à luz do dia.
- Ponha a mão no meu ombro, sussurrou Kik. Eu conheço bem
o caminho.
Passamos por ruas mais desertas, atravessamos pontes e
contornamos esquinas que mal enxergávamos. Por fim, cruzamos um largo canal e
percebi que chegáramos a um bairro elegante da cidade: Aerdenhout.
Rodamos por uma entrada de carros, cercada de árvores
frondosas. Para meu espanto, Kik pegou minha bicicleta e carregou as duas, a
dele e a minha, escada acima. Uma criada de uniforme branco engomado e
chapeuzinho pregueado abriu-nos a porta. O vestíbulo estava entulhado de
bicicletas.
Foi então que eu o vi: um olho em mim e outro na porta,
seu vasto estômago chegando antes dele. Pickwick.
Ele conduziu a mim e a Kik para a sala, onde se achavam
algumas das pessoas de aparência mais distinta que eu já vira, distribuídas em
pequenos grupos, tomando café e conversando. Logo de momento, minha atenção
ficou presa ao aroma que enchia o ambiente. Seria possível? Estariam servindo
café de verdade?
Pickwick pegou-me uma xícara e encheu-a de café, de uma
cafeteira que estava sobre um armário baixo. Depois de dois anos sem café, era
a primeira vez que eu via nosso café holandês, escuro, saboroso, de cheiro
forte. Ele serviu-se também, adoçando com os seus infalíveis cinco torrões,
como se o racionamento nem existisse. Outra criada de uniforme engomado estava
passando uma bandeja de bolo.
Segui Pickwick pela sala, comendo o bolo e engolindo o
café, apertando a mão das pessoas que ele me apresentava. Essa apresentação era
muito estranha. Não se mencionavam nomes; apenas ocasionalmente, um endereço
com a informação: "Pergunte pelo Sr. Smit." Quando eu já fora
apresentada ao quarto Smit, Kik explicou:
- É o único sobrenome que conhecemos no nosso mundo
subterrâneo.
Então aquele era mesmo o grupo da resistência clandestina!
Mas de onde seriam estas pessoas? Nunca as tinha visto antes. Compreendi tudo
no minuto seguinte: aquele grupo era de âmbito nacional.
Sua principal tarefa consistia em manter ligação com a
Inglaterra e com as forças holandesas livres, que estavam lutando em algum
lugar do continente. Também mantinham uma rota secreta que os tripulantes de
aviões aliados abatidos poderiam seguir para chegar à costa, no mar do Norte.
Eles se interessaram pelo meu esforço de auxiliar os judeus
de Haarlem. Corei até a raiz dos cabelos, ao ouvir Pickwick apresentar-me como
"a cabeça de uma grande organização que opera nesta cidade". Um espaço vazio sob um degrau e os
poucos amigos que auxiliávamos aqui e ali não faziam uma organização. Aquelas
pessoas, sim, é que pareciam competentes e disciplinadas, verdadeiros
profissionais. Contudo eles me apertaram a mão, saudando-me com uma cortesia
solene, cada um revelando o setor em que poderia me ser útil. Documentos de
identidade falsos. Um carro de chapa oficial. Falsificação de assinaturas...
Em um canto da sala, Pickwick apresentou-me a um homenzinho
franzino, de barbicha espetada.
- Nosso anfitrião informou-me, disse ele formalmente, que
seu centro de operações não tem um quarto secreto. Isso constitui um grande
perigo tanto para aqueles que você ajuda como para você e seus companheiros de
trabalho. Com sua permissão eu lhe farei uma visita na semana que vem...
Só muitos anos mais tarde foi que vim a saber que ele era
um dos mais famosos arquitetos da Europa. Eu o conhecia apenas como Sr. Smit.
Pouco antes de eu e Kik iniciarmos nossa corrida de volta
ao Beje, Pickwick pegou-me pelo braço.
- Tenho uma boa notícia para você, minha cara. Soube que
Peter vai ser solto.
E foi mesmo, três dias depois. Estava magro e pálido, mas nem um pouco intimidado pelos dois meses que passara naquela cela de concreto. Nollie, Tine e Betsie gastaram a ração de açúcar de um mês inteiro, com os bolos que fizeram para a festa de comemoração de sua volta.
Certa manhã, o primeiro freguês a aparecer na loja foi um
homem de barba rala, chamado Smit. Papai retirou do olho seu óculo de
joalheiro. Se havia uma coisa de que ele gostava mais do que fazer um novo
amigo, era descobrir alguma ligação deste com um outro amigo seu.
- Smit, repetiu alegremente. Conheço vários Smits em
Amsterdam. Será que você é parente do...
- Papai, interrompi, este é o homem de quem lhe falei.
Ele está aqui para... é... para inspecionar a casa.
- Ah! É fiscal de construções? Então deve ser o Smit que
trabalha naquela repartição da Rua Grote Hout. Será que eu não...
- Papai, insisti, ele não é fiscal nenhum, e o nome dele
não é Smit.
- Não é Smit?
Eu e o Sr. Smit tentamos explicar a papai, mas ele
simplesmente não compreendia como uma pessoa podia usar outro nome que não o seu.
Enquanto eu conduzia o Sr. Smit para dentro, nós o ouvíamos murmurar para si
mesmo:
- Eu conheci um Smit que morava na Rua Koning...
O Sr. Smit examinou e aprovou o esconderijo de cartões
sob o degrau. Também deu como aceitável o sistema de alarme que tínhamos
inventado: uma placa triangular de madeira, com um reclame dos "Relógios
Alpina", que eu pendurara à janela da sala de jantar. Se a placa estivesse
ali, Fred podia entrar.
Quando, porém, lhe mostrei o cubículo que ficava por trás
do armário do canto, ele balançou a cabeça. Alguém, ao reformar a casa,
deixara ali um nicho, e nós estávamos guardando jóias, moedas de prata e
outros objetos de valor nele, desde o início da ocupação. Não somente o rabi
trouxera sua coleção de livros para nós, mas também outras famílias de judeus
nos tinham entregado seus objetos de valor, para que os guardássemos. O vão era
espaçoso bastante para uma pessoa se ocultar ali, se necessário, mas o Sr.
Smit refutou a idéia sem hesitação.
- Seria o primeiro lugar em que eles procurariam. Mas não
se dê ao trabalho de tirar estas coisas daí. Isto é somente prata mesmo.
Estamos mais interessados em salvar vidas humanas, não objetos.
Começou a subir a nossa escada espiralada e, quanto mais
subia, mais entusiasmado ficava. Ele parava aqui e ali, deliciado com os
patamares em posições singulares; bateu nas paredes tortas, e riu alto ao ver
os pisos desnivelados das duas velhas casas.
- Que coisa mais impossível! exclamou, admirado. Que
coisa mais improvável, inacreditável e difícil de se imaginar.
Se todas as casas fossem como esta, você teria diante de
si um homem menos preocupado.
Afinal, chegamos ao topo da escada, entramos no meu
quarto e ele soltou uma exclamação de prazer.
- Aqui está! disse. O esconderijo tem que ser o mais alto
possível, continuou, todo animado. Assim a pessoa tem tempo de alcançá-lo
enquanto a busca é feita embaixo.
Ele debruçou-se na janela, e girou a cabeça para um lado
e para outro, seu cavanhaque apontando para uma e outra direção.
- Mas aqui é meu quarto...
O Sr. Smit nem me deu atenção. Já estava tirando as medidas.
Afastou da parede nosso velho e oscilante guarda-roupa, e, com surpreendente
facilidade, puxou minha cama para o centro do quarto.
- A parede falsa ficará aqui.
Ainda empolgado, pegou um lápis e riscou uma linha no
assoalho, a quase um metro da parede. Depois ergueu-se e ficou a olhá-la
pensativamente.
- Essa é a largura máxima que eu posso marcar, disse. Dá
para um colchão estreito. É; dá sim.
Tentei protestar, mas o Sr. Smit simplesmente tinha se esquecido
de que eu existia.
Nos dias que se seguiram, ele e seus auxiliares entraram
e saíram da casa várias vezes. Nunca batiam. Cada vez que vinham, traziam
alguma coisa. Ferramentas num jornal dobrado. Alguns tijolos dentro de uma
valise, etc.
- Madeira?! exclamou ele quando lhe perguntei se uma
parede de madeira não seria mais fácil. Madeira ressoa muito. Ouve-se logo.
Não, não. Tijolo é o único material que se pode usar numa parede falsa.
Depois que a parede foi erguida, vieram os pedreiros para
rebocar; depois o carpinteiro e finalmente o pintor. Seis dias após iniciado o
trabalho, o Sr. Smit chamou papai, Betsie e a mim para vermos como ficara.
Paramos à entrada do quarto e abrimos a boca de espanto.
O cheiro de tinta fresca estava no ar, mas nada naquele quarto parecia pintado
de novo. Todas as quatro paredes tinham a mesma aparência manchada e
encardida, que a fuligem do carvão, nosso principal combustível, emprestava às
paredes velhas.
A velhíssima cornija ao redor do teto parecia intata,
lascada aqui e ali, e soltando a tinta em alguns pontos; era a mesma que ali
estava há um século e meio. A parede do fundo tinha marcas de umidade, e eu
que vivia naquele quarto há cinqüenta anos, quase não acreditava que esta não
era a original, e, sim, uma nova, construída a noventa centímetros da
verdadeira parede.
Estantes embutidas cobriam toda a face dela, velhas estantes
abauladas, cuja madeira empolada exibia as mesmas manchas que a parede. No
canto inferior esquerdo, abaixo da última prateleira de baixo, havia uma
abertura quadrada de 60 cm por 60 cm, fechada por uma porta corrediça, que dava
acesso ao quartinho secreto.
O Sr. Smit inclinou-se e abriu a portinhola.
Ajoelhamo-nos e entramos rastejando. Dentro podia-se ficar de pé, sentar, ou
até deitar, um de cada vez, no pequeno colchão. Um respiradouro, feito na
parede verdadeira, arejava o aposento.
- Deixe sempre um jarro de água aqui, instruiu-nos o Sr.
Smit, entrando também. Troque a água uma vez por semana. Vitaminas e biscoito
de marinheiro são coisas que duram muito. Toda vez que houver alguém na casa
que não seja residente oficial, todas as suas coisas devem ser guardadas aqui.
Saímos de um em um, voltando ao meu quarto.
- Pode voltar a dormir aqui, disse-me o homem. Tudo deve continuar exatamente como antes. Bateu com o punho na parede. Esta aqui a Gestapo pode procurar um ano, declarou. Eles nunca vão encontrar.