segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 06

O Quarto Secreto

             Era domingo, dia 10 de maio de 1942, exatamente dois anos após a rendição da Holanda. Nem o ensolarado céu de primavera, nem as flores em seus caixilhos dos postes, eram a verdadeira expressão da atmosfera da cidade. Soldados ale­mães vagavam pelas ruas, alguns parecendo não ter supera­do ainda os excessos de uma noite de sábado, outros já em busca de garotas, e alguns (poucos), à procura de uma igreja.

            A cada mês que passava, a ocupação parecia mais severa, com as restrições aumentando sempre. O último suplício im­posto aos holandeses fora o decreto que declarava ser crime cantar o nosso hino nacional, o Wilhelmus.

            Eu, papai e Betsie estávamos a caminho de Velsen, uma cidadezinha não muito distante de Haarlem, de cuja igreja reforma­da Peter era organista. Ele conseguira o cargo vencendo uma competição entre quarenta candidatos, sendo que os outros eram todos mais velhos e mais experimentados que ele. O órgão de Velsen era um dos melhores do país, e nós íamos lá muitas ve­zes, embora o trem parecesse cada vez mais vagaroso.

            Quando nos sentamos, apertados naquele banco lotado, Peter já estava tocando totalmente invisível para nós, em seu posto na galeria do órgão. Uma vantagem da ocupação, para a Holanda, fora isto: as igrejas estavam constantemente cheias.

            Depois do cântico dos hinos e das orações, vinha o sermão, que nesse dia, aliás, foi muito bom. Gostaria que Peter prestasse mais atenção a ele. Peter achava que os sermões serviam apenas para gente velha, como eu e sua mãe. Eu completara cinqüenta anos, e, para Peter, nessa idade, a vida já passara definitivamen­te.

            Às vezes, eu instava com ele para que se lembrasse de que a morte e as questões decisivas da vida podiam ocorrer em qual­quer idade, para qualquer um de nós - principalmente nos tem­pos em que vivíamos. Ele retrucava, galantemente, que era um músico bom demais para morrer jovem.

            A oração final terminou. Foi aí que, como tocada por uma corrente elétrica, toda a congregação se pôs subitamente aten­ta. Sem preâmbulo algum, com todos os registros abertos em seu volume máximo, Peter começara a tocar o Wilhelmus.

            Apesar de seus oitenta e dois anos, papai foi o primeiro a se levantar. Agora, todos se levantavam. Atrás de nós, alguém começou a cantar. Outro juntou-se a este, depois outro. Daí a pouco todos cantávamos. Era a voz da Holanda cantando o hino proibido. Cantamos a toda força dos pulmões. Canta­mos nossa unidade, nossa esperança, nosso amor ao país e à rainha. Até parecia que no dia do aniversário de nossa derro­ta, por um instante, sentíamo-nos vitoriosos.

            Após o culto, ficamos à porta lateral da igreja, aguardan­do que Peter saísse. Passou-se bastante tempo antes que ele viesse juntar-se a nós, tal o número de pessoas que queriam abraçá-lo, apertar sua mão, bater-lhe nas costas. Ele estava visivelmente satisfeito consigo mesmo.

            Entretanto, agora que o momento de glória havia passa­do, eu estava, como sempre, zangada com ele. A Gestapo iria saber daquilo com toda a certeza. Talvez já soubesse: havia espiões seus por toda a parte. Pensei em Nollie, preparando o almoço para nós. Pensei nos outros filhos e em Flip. E se ele perdesse sua posição na escola? E para que Peter se arriscara tanto? Não fora pela vida de outrem, mas simplesmente pela beleza de um gesto ousado, por um momento de desafio, sem nenhum significado real.

            Já em casa, Peter transformou-se num herói, quando tive­mos de relatar o acontecido várias vezes. As únicas pessoas que pensavam como eu eram duas judias que estavam mo­rando com Nollie.  

            Uma era uma velhinha austríaca que Willem enviara para lá, a fim de se esconder. "Katrien", como eles a haviam rebatizado, passava por empregada da família, em­bora Nollie houvesse me segredado que nem mesmo a pró­pria cama ela arrumava. Provavelmente, ela nem sabia fazer a cama, já que era de uma família aristocrática e rica.

            A outra era uma jovem holandesa, loura de olhos azuis, que possuía cartão de identificação falso - um trabalho perfeito -que lhe havia sido fornecido pela organização de resistência clan­destina da Holanda.

            Os documentos eram tão perfeitos, e Annaliese era tão diferente de uma judia típica, na concepção dos nazistas que ela saía de casa livremente, fazia compras, au­xiliava na escola. Passava por uma amiga da família que perde­ra o marido no bombardeio de Rotterdam. Katrien e Annaliese, como eu, não compreendiam a atitude de Peter, ao praticar um ato deliberado que atrairia a atenção das autoridades.

            Passei toda a tarde aflita, vivendo momentos de tensão cada vez que ouvia o barulho de um carro, pois somente a polícia, os alemães e os membros do Partido Socialista ti­nham carros então. Chegou a hora de retornarmos ao Beje, e nada acontecera.

            Durante os dois dias seguintes eu ainda me preocupei, mas depois concluí que, ou Peter não havia sido delatado, ou a Gestapo estava ocupada com coisas mais importantes. Na manhã de quarta-feira, quando estávamos abrindo nossa ban­ca de trabalho, Cocky, a irmãzinha de Peter, entrou correndo pela loja.

            - Vovô! Tia Corrie! Prenderam Peter. Eles o levaram!

            - Quem? Para onde?

            Ela não sabia. Somente três dias mais tarde foi que a famí­lia recebeu a informação de que ele havia sido levado para a prisão federal de Amsterdam.

            Faltavam cinco minutos para o novo toque de recolher, 8:00h. Peter já estava preso há duas semanas.

            Eu, papai e Betsie estávamos assentados à mesa da sala de jantar. Papai recolocava os relógios em seus bolsinhos. Betsie costurava, e, como sempre, nosso grande gato preto se aninhara em seu colo.

            Uma batida à porta da ruela, e eu olhei para o espelho junto à janela. À pouca claridade daquele crepúsculo de pri­mavera, vi uma mulher. Carregava uma maleta de viagem e vestia um casaco de peles, o que era estranho, para essa esta­ção do ano, e usava um grosso véu.

            Desci correndo e abri a porta.

            - Posso entrar? perguntou. Sua voz soou aguda pelo medo.

            - Naturalmente, respondi, dando um passo atrás.

            Ela deu uma espiadela por sobre os ombros, e depois en­trou no hall.

            - Meu nome é Kleermaker, e sou judia.

            - Muito prazer.

            Estendi a mão para pegar a valise, mas ela manteve-a se­gura.

            - Quer subir?  

            Papai e Betsie levantaram-se quando entramos.

            - Sra. Kleermaker, meu pai, minha irmã.

            - Eu já ia fazer chá, disse Betsie. Chegou bem a tempo de tomar chá conosco.

            Papai afastou uma cadeira da mesa para a Sra. Kleermaker. Ela sentou-se ainda segurando a maleta. O "chá" era, na reali­dade, uma infusão feita com folhas já muitas vezes usa­das, que amassáramos mais, e que mal coloriam a água.

            A Sra. Kleermaker aceitou-o alegremente, e passou a nos contar que o seu marido fora preso e seu filho fugira para esconder-se. No dia anterior, a S.D. - a polícia que operava sob as ordens da Gestapo - tinha lhe ordenado que fechasse sua loja de rou­pas. Ela temera voltar ao apartamento que ocupava na sobreloja. Ouvira que éramos amigos de um senhor desta mesma rua...

            - Nesta casa, disse papai, o povo de Deus é sempre bem-vindo.

            - Há quatro camas vazias lá em cima, disse Betsie. Seu único trabalho será escolher em qual delas quer dormir.   

            Então, para meu espanto, ela acrescentou:

            - Mas primeiro, quer me dar uma mão na cozinha? Quase não acreditei no que ouvia. Betsie nunca permitia que alguém a ajudasse na sua tarefa.

            "Sou uma solteirona enjoada", dizia.

            A Sra. Kleermaker ergueu-se com uma ânsia quase patéti­ca, e começou a ajuntar os pratos e xícaras.

            Dois dias depois, a mesma cena se repetiu. A hora era a mesma, pouco antes de 8:00h, de uma noitinha de sábado. Outra vez a batida furtiva na entrada lateral. Dessa vez era um casal idoso.

            - Entrem!

            A mesma história, o mesmo apego às poucas possessões que lhes restavam, o mesmo olhar assustado por sobre os ombros, o mesmo passo indeciso. Os vizinhos tinham sido presos, e receavam que amanhã talvez fosse a vez deles.

            Naquela noite, após o devocional, nós seis resolvemos exa­minar o problema.

            - Este lugar é perigoso, disse aos nossos hóspedes. A chefatura de polícia fica a meia quadra daqui. No entanto, não temos outro lugar para lhes indicar.

            Percebi que estava na hora de eu fazer outra visita a Willem. Assim, no dia seguinte, repeti a incômoda viagem a Hilversum.

            - Willem, disse-lhe, estamos com três judeus lá em casa. Será que você poderia arranjar esconderijos para eles?

            Ele levou a mão aos olhos, e foi aí que notei como sua barba estava grisalha.

            - Está ficando muito difícil, respondeu. A cada dia que pas­sa está mais difícil. Está começando a faltar alimento até nas fazendas. Eu ainda tenho uns locais, mas poucos. Entretanto eles não aceitam ninguém sem cartão de racionamento.

            - Sem cartão? Mas os judeus não recebem cartões!

            - Eu sei.

            Willem virou-se e olhou pela janela. Pela primeira vez eu me indaguei como é que ele e Tine estavam se arranjando para alimentar os velhinhos que se encontravam sob seus cuidados.

            - Eu sei, repetiu. E não podemos fabricar cartões falsos. Eles mudam muito depressa e percebe-se logo a falsificação. Já com cartões de identidade a coisa é diferente. Conheço vários gráficos que os fazem. Mas para isso precisa-se de um fotógrafo, naturalmente.

            Um fotógrafo? Gráficos? De que é que Willem estava fa­lando?

            - Willem, se uma pessoa precisa de cartões de raciona­mento - já que não há cartões falsos - o que é que se faz?

            Ele voltou-se da janela vagarosamente. Parecera haver se esquecido de mim e do meu problema.

            - Cartões de racionamento? Fez um gesto vago. A gente rouba.

            Olhei para aquele ministro da Igreja Reformada Holandesa.

            - Então, Willem, será que você pode roubar - quero di­zer... pode arranjar três cartões para mim?

            - Não, Corrie. Estou sendo muito vigiado. Você não com­preende isto? Cada passo que dou está sendo observado.

            Ele passou o braço pelo meu ombro e prosseguiu num tom carinhoso.

            - Mesmo que eu ainda possa trabalhar mais algum tempo, é melhor você ter seus próprios recursos. Quanto menos liga­ção você tiver comigo ou qualquer outra pessoa, melhor será.

            Sacolejando no trem, de volta para casa, pensei muito nas palavras de Willem: "Seus próprios recursos." Isso me parecia tão sério... Como iria encontrar um fornecedor de cartões roubados? Quem é que eu conhecia que poderia...?

            Naquele momento, um nome me veio à mente: Fred Koornstra. Ele fora funcionário da companhia de eletricida­de, e tinha vindo ao Beje muitas vezes para ler o relógio da luz. Tinha uma filha retardada, agora adulta, que freqüenta­ra os cultos que eu realizava todos os domingos, especial­mente para excepcionais. Agora, ele trabalhava no Departa­mento de Alimentação. Não era lá que os cartões de raciona­mento eram emitidos?

            Naquela noite, após o jantar, saí pedalando pelas nossas ruas calçadas de paralelepípedos. Os pneus da minha velha e fiel bicicleta haviam se acabado, e eu me unira às centenas de ciclistas que iam rodando ruidosamente com apenas o aro de metal. Cada saliência da rua me lembrava dolorosamente que eu já estava com cinqüenta anos de idade.

            Fred, um homem calvo, de porte militar, recebeu-me à porta e olhou-me inquisitivamente, quando lhe disse que desejava falar-lhe sobre o culto de domingo. Convidou-me a entrar, fechou a porta e disse:

            - Bem, Corrie, o que é que você quer realmente? "Senhor", orei em silêncio, "se não for seguro para mim confiar em Fred, interrompe esta conversa, antes que seja tarde demais."

            - Primeiro, preciso dizer-lhe que temos hóspedes inespe­rados no Beje. Alguns dias atrás veio uma senhora sozinha, depois um casal, e quando voltei à tarde, encontrei outro casal. Fiz uma pequena pausa e continuei. São todos judeus.

            O rosto de Fred continuou impassível.

            - Nós podemos arranjar-lhes esconderijos, mas precisa­mos de uma coisa: cartões de racionamento.  

            Fred sorriu.

            - Agora já sei por que você veio aqui.

            - Há algum jeito de você nos conseguir alguns cartões dentre os que você registra?

            - Não, Corrie; não há. Eles são autenticados de vários modos. São verificados e reverificados.

            A esperança que começara a surgir dentro de mim ruiu por terra. Fred, porém, estava franzindo a sobrancelha.

            - A menos que... começou.

            - A menos que o quê?

            - A menos que seja em forma de assalto. O Departamento de Alimentação de Utrecht foi assaltado no mês passado, e a polícia só pegou os homens; os cartões não foram recupera­dos.

            Ele ficou em silêncio por uns instantes.

            - Se fosse ao meio-dia, quando apenas eu e o outro aten­dente estamos lá... e se eles nos encontrassem amordaçados... Ele estalou os dedos. E eu conheço um sujeito que poderia fazer isso. Lembra-se do...

            - Não! interrompi-o, recordando-me do aviso de Willem. Não me diga quem e nem como. Arranje os cartões para mim, se puder.

            Fred fitou-me por uns instantes.

            - De quantos precisa?

            Abri a boca para dizer cinco, mas, para meu assombro, o número que falei foi "cem".

            Uma semana mais tarde, quando Fred me abriu a porta, levei um susto ao vê-lo. Seus olhos estavam arroxeados e o lábio inferior inchado e tinha um corte.

            - Meu amigo fez o papel dele muito bem, foi tudo que disse.

            Mas ele conseguira os cartões. Sobre a mesa, em um enve­lope de papel manilha, estavam os cem "passaportes" para a segurança. Fred já tinha cortado deles o canhoto de continu­ação. Esse era apresentado ao Departamento de Alimenta­ção, no último dia do mês, e, em troca, a pessoa recebia o cartão para o mês seguinte. Com aqueles cupons, Fred pode­ria continuar emitindo os cartões para nós "legalmente".

            Concordamos em que seria muito arriscado para mim, vir à sua casa todo mês. Que tal se ele fosse ao Beje, com seu velho macacão da companhia de eletricidade?

            Nosso medidor ficava no hall, ao pé da escada. Quando che­guei em casa, examinei o primeiro degrau, levantando a tábua de cima, como Peter havia feito para esconder o rádio, e encon­trei um vão no interior dele. Peter ficaria orgulhoso de me ver, pensei enquanto preparava o esconderijo, e senti-me invadida por uma onda de saudade daquele rapaz corajoso e confiante. Até ele teria que reconhecer que os olhos e dedos de um relojoeiro serviam para alguma coisa, pensei dando um passo para trás, para admirar o trabalho concluído. A dobradiça estava fora de vista, bem afundada na madeira, e a parede vertical do de­grau estava intata. Senti-me ridiculamente satisfeita.

            Nosso primeiro teste foi no dia primeiro de julho. Fred entraria pela loja como sempre fizera, transportando os car­tões sob a camisa. Ele viria às 5:30h, e Betsie tinha instru­ções para não deixar nenhum dos seus "fregueses" por ali. Às 5:25h, para meu horror, a porta da loja se abriu, e um policial entrou.

            Era um homem alto, de cabelo vermelho, cortado rente, e seu nome era Rolf van Vliet, e isto era tudo o que eu sabia. Ele comparecera à nossa festa do centenário da loja, mas quase toda a força policial viera. Ele não era dos que passavam aqui nas manhãs de inverno para tomar café.

            Ele trouxera um relógio para limpeza, e parecia com dis­posição para um bom bate-papo. Minha boca ficou seca, mas papai palestrava alegremente, enquanto retirava a capinha de trás e examinava o relógio. Que íamos fazer? Não havia jeito de avisar Fred Koornstra.

            Precisamente às 5:30h, ele abriu a porta da loja e entrou, vestido com seu macacão azul de trabalho. Pareceu-me que seu estômago estava bem alto, pelo menos uns trinta centí­metros mais alto.

            Com maravilhosa tranqüilidade, ele cumprimentou papai, o policial e a mim.

            - Boa tarde! disse cortês, mas levemente irritado. Atravessou a porta ao fundo da loja e cerrou-a atrás de si.

            Agucei os ouvidos para escutar o ruído da portinhola secreta. Agora! Rolf deve ter ouvido também.

            A porta abriu-se de novo. Tão grande era o autocontrole de Fred que não escapou pela porta lateral, mas regressou pela loja.

            - Boa tarde, disse novamente.

            - Boa tarde.

            Cruzou a porta da rua e saiu. Dessa vez conseguíramos, mas eu sabia que teríamos de arranjar um modo de avisá-lo.

            Enquanto isso, nas semanas que decorreram após a inespe­rada visita da Sra. Kleermaker, muita coisa aconteceu no Beje. Tendo recebido os cartões de racionamento, ela e o casal idoso que aparecera depois dela, e os outros que os seguiram, todos haviam encontrado refúgio em lugares seguros. Todavia aquele povo perseguido continuava chegando, e seus problemas eram, às vezes, mais complicados que providenciar cartões e esconde­rijos. Se uma judia estava grávida, onde iria para ter o bebê? Se um judeu escondido morria, como fazer para enterrá-lo?

            - Arrume seus próprios recursos, dissera Willem.

            Desde que o nome de Fred me ocorrera, começara a com­preender um fato estranho: metade da população de Haarlem era de amigos nossos. Conhecíamos enfermeiras de maternidades e funcionários do cartório de registros. Tínhamos co­nhecidos em todos os tipos de negócios e repartições públi­cas da cidade.

            Naturalmente, não sabíamos qual era o ponto de vista político dessas pessoas, mas - e ao pensar nisso senti meu coração saltar - Deus sabia. Minha tarefa era só seguir as instruções dele, passo a passo, levando a ele, em oração, toda e qualquer decisão. Eu sabia que não era esperta, nem astuciosa, nem sagaz. Se o Beje estava se tornando um ponto de encontro e de fornecimento de suprimentos, isso se devia a uma estratégia muito melhor que a minha.

            Alguns dias após a primeira "visita" de Fred, a campai­nha soou bem depois do toque de recolher. Corri escada abaixo esperando encontrar outro triste e inseguro refugia­do. Eu e Betsie já tínhamos acomodado os quatro novos hóspedes daquela noite: uma senhora judia e seus três fi­lhos.

            Para minha surpresa, vi Kik encostado à parede da ruela em sombras.

            - Pegue a bicicleta, ordenou-me com seu modo brusco. E ponha uma blusa de frio. Quero apresentá-la a algumas pes­soas.

            - Agora? Depois do toque de recolher?

            Eu sabia, porém, que seria inútil fazer perguntas. A bici­cleta dele também estava sem pneus, e os aros estavam en­voltos em tiras de pano. Ele fez o mesmo com a minha, a fim de silenciar o barulho do metal, e daí a pouco estávamos pedalando pelas ruas escuras de Haarlem, a uma velocidade que me assustaria mesmo à luz do dia.

            - Ponha a mão no meu ombro, sussurrou Kik. Eu conheço bem o caminho.

            Passamos por ruas mais desertas, atravessamos pontes e contornamos esquinas que mal enxergávamos. Por fim, cru­zamos um largo canal e percebi que chegáramos a um bairro elegante da cidade: Aerdenhout.

            Rodamos por uma entrada de carros, cercada de árvo­res frondosas. Para meu espanto, Kik pegou minha bicicle­ta e carregou as duas, a dele e a minha, escada acima. Uma criada de uniforme branco engomado e chapeuzinho pregueado abriu-nos a porta. O vestíbulo estava entulha­do de bicicletas.

            Foi então que eu o vi: um olho em mim e outro na porta, seu vasto estômago chegando antes dele. Pickwick.

            Ele conduziu a mim e a Kik para a sala, onde se achavam algumas das pessoas de aparência mais distinta que eu já vira, distribuídas em pequenos grupos, tomando café e conversando. Logo de momento, minha atenção ficou presa ao aroma que enchia o ambiente. Seria possível? Estariam ser­vindo café de verdade?

            Pickwick pegou-me uma xícara e encheu-a de café, de uma cafeteira que estava sobre um armário baixo. Depois de dois anos sem café, era a primeira vez que eu via nosso café ho­landês, escuro, saboroso, de cheiro forte. Ele serviu-se tam­bém, adoçando com os seus infalíveis cinco torrões, como se o racionamento nem existisse. Outra criada de uniforme en­gomado estava passando uma bandeja de bolo.

            Segui Pickwick pela sala, comendo o bolo e engolindo o café, apertando a mão das pessoas que ele me apresentava. Essa apresentação era muito estranha. Não se mencionavam nomes; apenas ocasionalmente, um endereço com a infor­mação: "Pergunte pelo Sr. Smit." Quando eu já fora apresen­tada ao quarto Smit, Kik explicou:

            - É o único sobrenome que conhecemos no nosso mundo subterrâneo.

            Então aquele era mesmo o grupo da resistência clandesti­na! Mas de onde seriam estas pessoas? Nunca as tinha visto antes. Compreendi tudo no minuto seguinte: aquele grupo era de âmbito nacional.

            Sua principal tarefa consistia em manter ligação com a Inglaterra e com as forças holandesas livres, que estavam lu­tando em algum lugar do continente. Também mantinham uma rota secreta que os tripulantes de aviões aliados abati­dos poderiam seguir para chegar à costa, no mar do Norte.

            Eles se interessaram pelo meu esforço de auxiliar os ju­deus de Haarlem. Corei até a raiz dos cabelos, ao ouvir Pickwick apresentar-me como "a cabeça de uma grande or­ganização que opera nesta cidade".             Um espaço vazio sob um degrau e os poucos amigos que auxiliávamos aqui e ali não faziam uma organização. Aquelas pessoas, sim, é que pareci­am competentes e disciplinadas, verdadeiros profissionais. Contudo eles me apertaram a mão, saudando-me com uma cortesia solene, cada um revelando o setor em que po­deria me ser útil. Documentos de identidade falsos. Um carro de chapa oficial. Falsificação de assinaturas...

            Em um canto da sala, Pickwick apresentou-me a um ho­menzinho franzino, de barbicha espetada.

            - Nosso anfitrião informou-me, disse ele formalmente, que seu centro de operações não tem um quarto secreto. Isso cons­titui um grande perigo tanto para aqueles que você ajuda como para você e seus companheiros de trabalho. Com sua permissão eu lhe farei uma visita na semana que vem...

            Só muitos anos mais tarde foi que vim a saber que ele era um dos mais famosos arquitetos da Europa. Eu o conhecia apenas como Sr. Smit.

            Pouco antes de eu e Kik iniciarmos nossa corrida de volta ao Beje, Pickwick pegou-me pelo braço.

            - Tenho uma boa notícia para você, minha cara. Soube que Peter vai ser solto.

            E foi mesmo, três dias depois. Estava magro e pálido, mas nem um pouco intimidado pelos dois meses que passara na­quela cela de concreto. Nollie, Tine e Betsie gastaram a ração de açúcar de um mês inteiro, com os bolos que fizeram para a festa de comemoração de sua volta.

            Certa manhã, o primeiro freguês a aparecer na loja foi um homem de barba rala, chamado Smit. Papai retirou do olho seu óculo de joalheiro. Se havia uma coisa de que ele gostava mais do que fazer um novo amigo, era descobrir alguma liga­ção deste com um outro amigo seu.      

            - Smit, repetiu alegremente. Conheço vários Smits em Amsterdam. Será que você é parente do...

            - Papai, interrompi, este é o homem de quem lhe falei. Ele está aqui para... é... para inspecionar a casa.

            - Ah! É fiscal de construções? Então deve ser o Smit que trabalha naquela repartição da Rua Grote Hout. Será que eu não...

            - Papai, insisti, ele não é fiscal nenhum, e o nome dele não é Smit.

            - Não é Smit?

            Eu e o Sr. Smit tentamos explicar a papai, mas ele simples­mente não compreendia como uma pessoa podia usar outro nome que não o seu. Enquanto eu conduzia o Sr. Smit para dentro, nós o ouvíamos murmurar para si mesmo:

            - Eu conheci um Smit que morava na Rua Koning...

            O Sr. Smit examinou e aprovou o esconderijo de cartões sob o degrau. Também deu como aceitável o sistema de alar­me que tínhamos inventado: uma placa triangular de madei­ra, com um reclame dos "Relógios Alpina", que eu pendurara à janela da sala de jantar. Se a placa estivesse ali, Fred podia entrar.

            Quando, porém, lhe mostrei o cubículo que ficava por trás do armário do canto, ele balançou a cabeça. Alguém, ao re­formar a casa, deixara ali um nicho, e nós estávamos guar­dando jóias, moedas de prata e outros objetos de valor nele, desde o início da ocupação. Não somente o rabi trouxera sua coleção de livros para nós, mas também outras famílias de judeus nos tinham entregado seus objetos de valor, para que os guardássemos. O vão era espaçoso bastante para uma pes­soa se ocultar ali, se necessário, mas o Sr. Smit refutou a idéia sem hesitação.

            - Seria o primeiro lugar em que eles procurariam. Mas não se dê ao trabalho de tirar estas coisas daí. Isto é somente prata mesmo. Estamos mais interessados em salvar vidas humanas, não objetos.

            Começou a subir a nossa escada espiralada e, quanto mais subia, mais entusiasmado ficava. Ele parava aqui e ali, delicia­do com os patamares em posições singulares; bateu nas pare­des tortas, e riu alto ao ver os pisos desnivelados das duas velhas casas.

            - Que coisa mais impossível! exclamou, admirado. Que coisa mais improvável, inacreditável e difícil de se imaginar.

            Se todas as casas fossem como esta, você teria diante de si um homem menos preocupado.

            Afinal, chegamos ao topo da escada, entramos no meu quarto e ele soltou uma exclamação de prazer.

            - Aqui está! disse. O esconderijo tem que ser o mais alto possível, continuou, todo animado. Assim a pessoa tem tem­po de alcançá-lo enquanto a busca é feita embaixo.

            Ele debruçou-se na janela, e girou a cabeça para um lado e para outro, seu cavanhaque apontando para uma e outra direção.

            - Mas aqui é meu quarto...

            O Sr. Smit nem me deu atenção. Já estava tirando as me­didas. Afastou da parede nosso velho e oscilante guarda-rou­pa, e, com surpreendente facilidade, puxou minha cama para o centro do quarto.

            - A parede falsa ficará aqui.

            Ainda empolgado, pegou um lápis e riscou uma linha no assoalho, a quase um metro da parede. Depois ergueu-se e ficou a olhá-la pensativamente.

            - Essa é a largura máxima que eu posso marcar, disse. Dá para um colchão estreito. É; dá sim.

            Tentei protestar, mas o Sr. Smit simplesmente tinha se es­quecido de que eu existia.

            Nos dias que se seguiram, ele e seus auxiliares entraram e saíram da casa várias vezes. Nunca batiam. Cada vez que vinham, traziam alguma coisa. Ferramentas num jornal do­brado. Alguns tijolos dentro de uma valise, etc.

            - Madeira?! exclamou ele quando lhe perguntei se uma parede de madeira não seria mais fácil. Madeira ressoa mui­to. Ouve-se logo. Não, não. Tijolo é o único material que se pode usar numa parede falsa.

            Depois que a parede foi erguida, vieram os pedreiros para rebocar; depois o carpinteiro e finalmente o pintor. Seis dias após iniciado o trabalho, o Sr. Smit chamou papai, Betsie e a mim para vermos como ficara.

            Paramos à entrada do quarto e abrimos a boca de espan­to. O cheiro de tinta fresca estava no ar, mas nada naquele quarto parecia pintado de novo. Todas as quatro paredes ti­nham a mesma aparência manchada e encardida, que a fuli­gem do carvão, nosso principal combustível, emprestava às paredes velhas.

            A velhíssima cornija ao redor do teto parecia intata, lascada aqui e ali, e soltando a tinta em alguns pon­tos; era a mesma que ali estava há um século e meio. A pare­de do fundo tinha marcas de umidade, e eu que vivia naquele quarto há cinqüenta anos, quase não acreditava que esta não era a original, e, sim, uma nova, construída a noventa centí­metros da verdadeira parede.

            Estantes embutidas cobriam toda a face dela, velhas es­tantes abauladas, cuja madeira empolada exibia as mesmas manchas que a parede. No canto inferior esquerdo, abaixo da última prateleira de baixo, havia uma abertura quadrada de 60 cm por 60 cm, fechada por uma porta corrediça, que dava acesso ao quartinho secreto.

            O Sr. Smit inclinou-se e abriu a portinhola. Ajoelhamo-nos e entramos rastejando. Dentro podia-se ficar de pé, sentar, ou até deitar, um de cada vez, no pequeno colchão. Um respi­radouro, feito na parede verdadeira, arejava o aposento.

            - Deixe sempre um jarro de água aqui, instruiu-nos o Sr. Smit, entrando também. Troque a água uma vez por semana. Vitaminas e biscoito de marinheiro são coisas que duram muito. Toda vez que houver alguém na casa que não seja residente oficial, todas as suas coisas devem ser guardadas aqui.

            Saímos de um em um, voltando ao meu quarto.

            - Pode voltar a dormir aqui, disse-me o homem. Tudo deve continuar exatamente como antes. Bateu com o punho na parede. Esta aqui a Gestapo pode procurar um ano, declarou. Eles nunca vão encontrar.