A Invasão
Os esguios ponteiros do relógio de parede que ficava junto à escada indicavam 9:25h, quando saímos da sala de jantar, aquele dia. Aquilo em si já era incomum para nós com nossa vida tão metódica. Papai estava com oitenta anos, e todas as noites, precisamente às 8:15h, uma hora mais cedo que anteriormente, ele abria a Bíblia - sinal de que era hora do devocional - lia um capítulo da mesma, pedia a bênção de Deus para nós durante a noite, e mais ou menos às 9:15h, estaria subindo para seu quarto.
Nessa noite, entretanto, o Primeiro-Ministro iria falar à
nação, às 9:30h. Por toda a Holanda, pairava uma interrogação que nos sufocava
a todos, como um suspiro contido: entraríamos na guerra?
Dirigimo-nos ao quarto de Tia Jans, e papai ligou o
rádio, o nosso grande rádio de mesa. Agora quase não passávamos mais as noites
ali, ouvindo música. A Inglaterra, a França e a Alemanha estavam em luta, e as
estações irradiavam quase que somente noticiário da guerra, ou mensagens em
código, e muitas das freqüências estavam sofrendo pesada interferência. Até as
emissoras holandesas estavam falando mais e mais no assunto, e isso a gente
podia ouvir mesmo no radinho portátil - presente de Pickwick no Natal anterior
- que conservávamos na sala de jantar.
Dessa vez, contudo, seria uma transmissão importante, e
achamos que a ocasião merecia que utilizássemos o rádio grande, com seu
alto-falante rebuscado. Como que por uma espécie de pressentimento, fugimos às
confortáveis poltronas estofadas e assentamo-nos, tensos e empertigados, nas
cadeiras de costas altas, esperando dar 9:30h.
Afinal, veio a voz sonora do Primeiro-Ministro,
recomendando-nos calma. Não haveria guerra para nós. Ele tinha garantias de
boas fontes, dos dois lados: a neutralidade da Holanda seria respeitada. Seria
como uma repetição da Grande Guerra. Nada havia a temer. Os holandeses
deveriam permanecer confiantes e...
A fala cessou. Eu e Betsie erguemos a cabeça, espantadas.
Papai havia desligado o rádio, e seus olhos azuis brilhavam de um modo
estranho, que nunca víramos antes.
- É errado dar esperanças ao povo quando não há esperanças,
disse. É errado basear a fé nos próprios desejos. Nós vamos entrar em guerra.
Os alemães vão atacar e nós vamos cair em seu poder.
Ele apagou a ponta do charuto no cinzeiro que havia ao
lado do rádio, e, ao fazê-lo, extinguiu a raiva também, pareceu-me, pois ao
falar novamente, sua voz recobrara a suavidade de sempre.
- Ah, minhas filhas, estou com pena dos holandeses que
não conhecem o poder de Deus. Nós Vamos ser derrotados, mas Deus não.
Beijou-nos desejando-nos boa-noite, e daí a pouco ouvimos
seus passos de ancião subindo para o quarto.
Eu e Betsie estávamos pregadas na cadeira. Papai que sabia
tão bem ver o lado bom de cada situação, que demorava tanto em aceitar o mal,
se papai estava prevendo guerra e derrota, então não haveria outra coisa.
Ergui-me de chofre e sentei-me na cama. Que fora aquilo? Ah! Outra vez! Um clarão de luz seguido imediatamente por uma detonação que sacudiu a cama. Afastei as cobertas, corri à janela e debrucei-me. O céu, acima das chaminés, tinha um brilho alaranjado.
Tateei à procura do roupão; peguei-o e desci as escadas
ao mesmo tempo que enfiava os braços nas mangas. Parei no quarto de papai, e
encostei o ouvido à porta. Desci mais, até o quarto de Tia Jans. Há algum
tempo, Betsie mudara-se para ali, para ficar mais perto da cozinha e ser-lhe
mais fácil atender à porta. Ela estava sentada na cama. Caminhei até ela na escuridão e nos
abraçamos.
- Guerra! dissemos juntas, em voz alta.
E tinham se passado apenas cinco horas da fala do
Primeiro-Ministro.
Não sei quanto tempo ficamos ali, abraçadas, escutando o
barulho das bombas. Os estampidos do bombardeio pareciam vir mais da direção do
aeroporto. Por fim, ainda meio inseguras, fomos para o quarto da frente. A
claridade do céu iluminava o cômodo com um fulgor estranho. As cadeiras, a
estante de livros, o piano - tudo estava coberto por uma luz sinistra.
Ajoelhamo-nos junto à banqueta do piano e, por um espaço
de tempo que nos pareceu durar horas e horas, oramos por nossa pátria, pelos
mortos e feridos daquela noite, pela rainha... Depois, surpreendentemente,
Betsie começou a orar pelos alemães que se encontravam ali nos aviões, seguros
pela gigantesca mão do mal que dominava seu país. Olhei para minha irmã
ajoelhada junto a mim, vendo-a ao clarão da Holanda incendiada, e murmurei:
"Senhor, atende essa oração de Betsie, mas não ouve
a mim; eu não consigo orar por aqueles homens."
Foi então que tive aquele sonho. Contudo não poderia ter
sido um sonho, pois eu não estava dormindo. A cena veio à minha mente de
maneira súbita e inexplicável. Vi a Praça Grote Markt, que ficava a uma quadra
dali. Vi-a claramente, como se estivesse lá; vi a prefeitura, a igreja de São
Bavo e o mercado de peixes com sua escadaria de entrada.
Depois surgiu uma espécie de carroção velho, estranho e
muito antigo, e que parecia totalmente fora de lugar ali. Ele se arrastava
pesadamente, puxado por quatro enormes cavalos pretos. Para minha surpresa,
vi-me assentada nele. Papai também estava lá. E Betsie. E havia ainda outras
pessoas, alguns conhecidos, outros não. Reconheci Pickwick, Toos, Willem e
Peter entre eles. Todos estávamos sendo levados. O pior de tudo é que não
podíamos sair do carro. Ele nos levava para longe. Eu sabia que era para muito
longe, mas nós não queríamos ir.
- Betsie, gritei, levantando-me e tapando os olhos com as
mãos, tive um sonho horrível!
Senti seus braços ao redor de meus ombros.
- Vamos para a cozinha fazer café. Lá poderemos acender a
luz, pois não será vista.
Quando Betsie pôs a água no fogo, o assobio das bombas já
estava diminuindo, e se distanciando. Mais próximo, ouvíamos o gemido da
sirene de alarme, e a buzina dos caminhões de bombeiros. Enquanto tomávamos
café de pé junto ao fogão, contei a Betsie o que havia visto.
- Será que por estar com medo, estou vendo coisas? Mas
não foi imaginação, foi real. Será que foi uma visão, Betsie?
Com a ponta do dedo, Betsie desenhava qualquer coisa
sobre a superfície de madeira da pia, tornada lisa pelo uso de várias gerações
de ten Boom.
- Não sei, respondeu suavemente. Mas se foi Deus que quis
nos mostrar as dificuldades que nos esperam, estou contente de saber que ele
está ciente de tudo. É por isso que às vezes ele nos mostra as coisas. É para
ficarmos sabendo que aquilo também está nas mãos dele.
A Holanda resistiu ao invasor durante cinco dias. Conservamos a loja aberta - não que houvesse alguém interessado em comprar relógios, mas muitos queriam falar com papai. Alguns queriam que ele orasse por seus filhos ou maridos, que estavam servindo na fronteira. Outros, parecia-me, vinham só para vê-lo assentado à sua banca de trabalho, como fazia há sessenta anos, e também para sentir, no tique-taque dos relógios, a segurança da ordem e da razão.
Eu não toquei no meu trabalho aqueles dias.
Ficava só ajudando Betsie a preparar e servir o café. Levamos
nosso rádio portátil para a loja e o colocamos sobre o balcão de vidro. O rádio
era os olhos e ouvidos e até mesmo a pulsação de toda Haarlem, pois, embora
sempre ouvíssemos os aviões passando, o bombardeio nunca mais chegou próximo
de nós como naquela primeira noite.
No primeiro dia, recebemos instruções pelo rádio para
colocar tapumes em todas as janelas do andar térreo. Por toda a rua, viam-se
lojistas na calçada. Sobreveio-nos um desusado sentimento de boa vizinhança,
enquanto se passavam, de um para outro, rolos de fita adesiva juntamente com
instruções, e narravam-se fatos sobre os horrores da noite.
O dono da confeitaria, um anti-semita declarado, estava
ajudando Weil, o peleteiro judeu, a fechar com tábuas uma janela cuja vidraça
havia se soltado. O dono da ótica que ficava ao lado, um homem caladão e
retraído, veio até nós e arrumou a parte superior de nossa janela, que nem eu
nem Betsie alcançávamos.
Alguns dias depois, recebemos pelo rádio a notícia que
todos temíamos: a rainha tinha deixado o país. Eu não havia chorado no dia da
invasão, mas nesse dia chorei, pois sabia que nossa pátria estava perdida. Na
manhã seguinte, ouvimos o aviso de que os tanques já atravessavam a fronteira.
De repente, toda a população estava nas ruas. Até papai,
cujo passeio era tão regular e tão certo como as batidas dos seus próprios
relógios, quebrou a rotina e saiu de casa numa hora em que nunca saíra antes,
às 10:00h da manhã.
Era como se quiséssemos ir ao encontro do mal que se aproximava,
todos juntos, e como se cada holandês pudesse dar e receber força de outro.
Nós três também saímos, acotovelando-nos por entre a multidão. Passamos a ponte
e chegamos à cerejeira brava, cujas flores, todas as primaveras, formavam uma
coroa branca tão esplendorosa, que era chamada de "Noiva de Haarlem".
Agora apenas algumas pétalas desbotadas restavam nos galhos que começavam a
recobrir-se de folhas. A maior parte das flores da "Noiva" estava no
chão, formando um tapete murcho a nossos pés.
Mais adiante, alguém abriu uma janela precipitadamente.
- Rendemo-nos!
A procissão estacou. Cada um repetiu ao outro o que todos
já ouvíramos. Um rapazinho de cerca de quinze anos voltou-se para nós com
lágrimas rolando pelo rosto.
- Eu teria lutado. Não cederia nunca.
Papai abaixou-se e apanhou uma petalazinha esmagada. Com
muito cuidado, enfiou-a na lapela do jovem.
- Muito bem, meu rapaz, disse-lhe. Nossa batalha está
apenas começando.
Nos primeiros meses de ocupação, a situação não foi muito intolerável. O mais difícil era acostumar-se à presença dos uniformes alemães por toda a parte, e dos caminhões e tanques alemães nas ruas, e a ouvir o alemão sendo falado nas lojas.
Os soldados vinham constantemente à relojoaria, pois
tinham ótimos salários, e um dos primeiros objetos que compravam era um
relógio. Dirigindo-se a nós, sempre usavam um certo tom de superioridade, como
se falassem a crianças meio estúpidas.
Ao ouvi-los conversando animadamente entre si, porém, eu
pensava em jovens turistas em férias, jovens de qualquer país. Quase todos
adquiriram relógios de mulher, presentes para a mãe ou a namorada que ficara
na Alemanha.
Nossa loja nunca deu tanto lucro como naquele primeiro
ano de guerra. Como não estávamos recebendo novas remessas, nosso estoque foi
todo vendido. Saíram até mesmo as peças encalhadas que já estavam ali há tanto
tempo, que pareciam fazer parte do cenário. Vendemos também o velho relógio de
mármore verde, enfeitado com dois cupidos de bronze.
O toque de recolher, a princípio, não apresentou problema
para nós, pois era, originalmente, dez da noite, e, àquela hora, nós
estávamos mesmo em casa.
O que não gostávamos era do cartão de identificação que
cada um recebeu, cartõezinhos pequenos, contendo a fotografia e as impressões
digitais, que tínhamos que apresentar sempre que exigido.
Um soldado ou um policial - a polícia achava-se agora sob
o controle direto do Comando Alemão - podia deter qualquer pessoa, a qualquer
hora, e pedir para ver o cartão. Esta pessoa tinha que estar com o documento
pendurado ao pescoço, dentro de um saquinho.
Recebemos também cartões de racionamento, mas, pelo menos
naquele primeiro ano, com os cupons, podíamos adquirir o alimento diretamente
dos armazéns e mercearias. Toda semana, os jornais traziam a lista do que
podíamos comprar no momento.
Outra coisa difícil de aceitar foi o jornal sem notícias.
Havia longos e apoteóticos relatos das vitórias do exército alemão nos seus
diversos fronts; palavras de louvor aos líderes alemães, acusações a
traidores e sabotadores, apelos à unificação dos "povos nórdicos",
mas nenhuma notícia em que se pudesse realmente acreditar.
Por isso, voltamo-nos para o rádio. Nos primeiros dias da
ocupação, veio-nos uma ordem para entregarmos nossos aparelhos. Compreendendo
que seria meio estranho se nossa família não apresentasse pelo menos um rádio,
decidimos entregar o pequeno e esconder o maior - que era de maior alcance
também - em um dos vãos que havia sob a velha escada.
A idéia foi de Peter. Ele tinha dezesseis anos quando da
invasão, e, como outros jovens, tinha a energia inquieta, gerada pela raiva e
pela rebelião refreada. Peter instalou o rádio sob uma das voltas da escada,
logo acima do quarto de papai, e habilmente, recolocou as tábuas no lugar,
enquanto eu levava o menor à loja Vrom en Dreesman, onde o recolhimento estava
sendo efetuado. O atendente do exército alemão que estava por detrás do balcão
olhou-me expressivamente.
- Esse é o único rádio que você possui?
- É.
Ele deu uma olhada na lista à sua frente.
- No mesmo endereço estão registrados Cásper ten Boom e
Elizabeth ten Boom. Algum deles tem um rádio?
Desde criança, eu sabia que a terra se abriria e os céus
cuspiriam fogo e enxofre sobre os mentirosos, mas não abaixei os olhos.
- Não.
Somente depois que saí da loja foi que comecei a tremer.
Não apenas porque pela primeira vez em minha vida dissera uma mentira
deliberada, mas, principalmente, porque ela me saíra dos lábios com tanta
facilidade.
Nosso rádio, porém, estava a salvo. Todas as noites, ou
eu ou Betsie tirávamos o tapume e nos inclinávamos sobre ele, com o volume na
altura mínima necessária para se poder ouvir, e sintonizávamos estações da
Inglaterra, enquanto a outra ficava martelando o piano com o máximo de força.
No princípio, as notícias que ouvíamos pelo rádio se harmonizavam com as que
líamos em nossa imprensa censurada. A ofensiva alemã era vitoriosa por toda a
parte. Mês após mês, as transmissões dos holandeses livres nos animavam a
esperar, a ter coragem e a crer que uma contra-ofensiva seria organizada algum
dia.
Os alemães consertaram os estragos do aeroporto causados
pelo bombardeio, e agora o usavam como base de decolagem para ataques à
Inglaterra. Todas as noites, ficávamos deitados, ouvindo o ronco dos motores,
indo em direção ao oeste. Ocasionalmente, os aviões britânicos
contra-atacavam, e, então, os alemães os interceptavam bem nos céus de Haarlem,
Certa noite, fiquei revirando na cama durante uma hora,
enquanto a luta se travava acima de nossas cabeças. Afinal, ouvi um barulho na
cozinha. Betsie estava lá. Desci e fui vê-la.
Ela estava fazendo chá. Trouxe-o para a sala de jantar,
cujas janelas havíamos recoberto com papel grosso e preto, e pôs na mesa a
nossa melhor louça. Ouviu-se uma explosão a alguma distância dali; os pratos
tremeram no armário. Ficamos uma hora conversando e saboreando o chá, até que
finalmente o zumbido dos aviões cessou, e o céu ficou em silêncio. À porta do
quarto de Tia Jans, dei boa-noite a Betsie, e subi para o meu quarto, tateando
no escuro. A claridade desaparecera.
Pus as mãos na cama; aqui estava o travesseiro. Então,
minha mão se chocou com um objeto duro e cortante. Senti o sangue escorrer de
um dos dedos. Era um pedaço de metal de bordas irregulares: um estilhaço de
bomba, de cerca de trinta centímetros de comprimento.
- Betsie!
Corri escada abaixo com o estilhaço na mão. Fomos para a
sala de jantar, e pusemo-nos a examiná-lo à luz da lâmpada, ao mesmo tempo que
Betsie cuidava do ferimento.
- No seu travesseiro..., murmurou ela várias vezes.
- Betsie, se eu não tivesse ouvido você na cozinha. Ela
colocou um dedo sobre meus lábios.
- Não diga nada, Corrie. No reino de Deus não há
"se". E também não há um lugar que seja mais seguro que outro. O
único lugar seguro é o centro da vontade de Deus. Corrie, vamos orar e
pedir-lhe que possamos sempre saber qual é a sua vontade.
Gradualmente, íamos tomando consciência de todo o horror da ocupação. Durante o primeiro ano do domínio alemão, houve apenas pequenos ataques contra os judeus. Era um palavrão rabiscado no muro de uma sinagoga; uma pedra atirada à vitrina de um semita...
Era como se eles estivessem nos experimentando, testando
a tempera da nação. Quantos holandeses os apoiariam? Para nossa vergonha, a
resposta foi: muitos. A cada mês que passava, o Partido Nacional Socialista, a
organização nazista holandesa, mais crescia e mais ousado se tornava.
Alguns se uniram a ele apenas para receber os benefícios
decorrentes: mais alimento, mais cupons para roupas, melhores empregos,
melhores moradias. Outros, porém, o faziam por convicção. O nazismo era uma
enfermidade contra a qual muitos holandeses não tinham imunidade; os que já
possuíam preconceitos anti-semíticos logo sofreram contágio.
Em nossa caminhada diária, eu e papai víamos os sintomas
da doença se propagarem. Ora era uma placa numa casa de comércio: Não
atendemos judeus, ou na entrada do parque público: Proibida a entrada de
judeus, ou na porta da biblioteca pública, em restaurantes, teatros, e até
no Salão de Concertos, cuja entrada lateral conhecíamos melhor que seus assentos
estofados.
Uma sinagoga foi incendiada e o carro de bombeiros chegou,
mas apenas para ficar alerta e impedir que as chamas se alastrassem aos prédios
vizinhos.
Um dia, quando caminhávamos pela nossa rota costumeira,
notamos que as calçadas pareciam mais alegres e coloridas, e logo vimos por
quê - várias pessoas traziam uma estrela amarela de seis pontas presa à lapela
do casaco ou paletó. Homens, mulheres e crianças, todos usavam uma estrela com
a palavra Jood (judeu) escrita no centro.
Ficamos surpresos ao constatar que muitas das pessoas
pelas quais passávamos diariamente eram judias. O homem que lia o boletim comercial
na praça trazia uma estrela em seu paletó, cuidadosamente passado a ferro.
Também o "Buldogue", com seu rosto mais enrugado que nunca. Sua voz,
ao falar com os cães, soava aguda pela tensão.
O pior de tudo eram os desaparecimentos. Um relógio
consertado ficou na loja muitos meses, prontinho, dependurado na parede, à
espera do dono; uma casa do bairro onde Nollie morava, parecia misteriosamente
abandonada, a grama crescendo junto às roseiras. Em outro dia, foi a loja do
Sr. Kan, perto da nossa, que não se abriu.
Quando por lá passamos em nosso passeio, papai bateu à
porta para perguntar se alguém estava doente. Não houve resposta. A loja ficou
fechada, as janelas às escuras, silenciosas durante várias semanas. Depois,
embora a loja nunca mais fosse reaberta, uma família de adeptos do PNS
mudou-se para o apartamento da sobreloja.
Nunca ficamos sabendo se a família tinha sido levada pela
Gestapo ou se tinha fugido. As detenções em público, sem qualquer tentativa de
disfarce, tornaram-se mais e mais freqüentes. Certo dia, quando regressávamos
de nossa caminhada, vimos que a Praça Grote Markt estava rodeada por uma fila
dupla de soldados e policiais.
Havia um caminhão parado junto ao mercado de peixes, e a
ele subiam homens, mulheres e crianças, todos ostentando no peito a estrela
amarela. Não víamos a razão por que haviam escolhido aquele local e hora.
- Papai, coitado desse povo! exclamei.
O círculo de policiais se desfez em um ponto e por ele o
caminhão deixou a praça. Ficamos a olhá-lo até desaparecer de vista.
- Coitado desse povo! repetiu papai.
Para minha surpresa, porém, ele olhava para os soldados
que agora se formavam em fileiras para irem embora.
- Tenho pena desses alemães, Corrie. Estão tocando na
menina dos olhos de Deus.
Muitas vezes, eu, papai e Betsie conversávamos sobre o que faríamos se tivéssemos uma chance de ajudar alguns de nossos amigos judeus. Sabíamos que, no começo da ocupação, Willem tinha procurado esconderijos para os judeus alemães que estavam morando em sua casa. Ultimamente, também, tinha afastado do abrigo alguns judeus-holandeses mais jovens.
- Os velhinhos ficam, dizia. Certamente eles não vão incomodar
os meus velhinhos.
Willem conhecia muitos lugares para esconderijos. Ele
sabia de fazendas na zona rural, onde as tropas de ocupação eram mais escassas.
Era a ele que eu deveria me dirigir.
Numa nevoenta manhã de novembro de 1941, ano e meio após
a invasão, saí à calçada para levantar as persianas que cobriam a vitrina da
loja. Vi um grupo de quatro soldados alemães descendo a rua. Usavam capacete de
combate, que lhes chegava às orelhas, e traziam fuzis pendurados ao ombro.
Escondi-me no vão da porta, e fiquei observando. Estavam procurando um número.
Pararam exatamente na loja em frente à nossa - a peleteria do Sr. Weil.
Um dos homens bateu à porta violentamente com a coronha
do rifle. Ia bater de novo, mas a porta se abriu, e os quatro se arremeteram
para dentro.
Corri à sala de jantar, onde Betsie estava pondo a mesa.
- Betsie, venha. Está acontecendo uma coisa horrível com
os Weil.
Chegamos à rua em tempo de ver um soldado empurrando o
Sr. Weil que vinha de costas, encostando-lhe uma arma no estômago. Depois de
deixá-lo ali fora, o policial regressou à loja, batendo a porta. Então, não o
estavam prendendo...
Ouvimos o ruído de vidro se quebrando dentro da casa. Os
homens começaram a sair com os braços cheios de peles. Apesar da hora matinal,
uma pequena multidão estava se formando. O Sr. Weil não se movera do lugar onde
o soldado o deixara.
Abriu-se uma janela do segundo andar, e roupas começaram
a chover sobre ele: pijamas, camisas, roupas de baixo. Vagarosa e
mecanicamente, o Sr. Weil inclinou-se e começou
a ajuntar suas coisas.
Eu e Betsie atravessamos a rua correndo para ajudá-lo.
- Onde está sua esposa? perguntou-lhe Betsie nervosamente.
Ele somente olhou-a e pestanejou.
- Venha conosco, disse eu pegando mais alguns lenços e
meias do chão. Depressa!
E empurramos o pobre e atordoado homem para o Beje. Ele
estava aterrado. Quando entramos na sala de jantar, papai se achava ali e
cumprimentou o Sr. Weil sem mostrar surpresa alguma. Sua atitude calma e
natural fez com que o pobre homem relaxasse um pouco a tensão. Sua esposa estava
em Amsterdam, em visita à irmã dela, informou-nos.
- Temos que telefonar-lhe para que não venha aqui.
Nosso telefone havia sido desligado no começo da ocupação,
como aliás a maioria dos telefones particulares. Havia telefones públicos em
várias partes da cidade, mas, certamente, a conexão era feita para um posto
central. Seria certo envolver uma família de Amsterdam em um problema daqui? E
se a Sra. Weil não podia voltar para casa, para onde deveria ir? Onde os Weil
iriam morar? Logicamente não poderia ser com a irmã, onde seriam encontrados
com facilidade. Eu, papai e Betsie nos entreolhamos.
- Willem! dissemos quase que ao mesmo tempo.
Mas isto também não era questão que se pudesse resolver
pelo telefone público. Alguém teria que ir lá, e eu era a pessoa mais
indicada.
Na época da ocupação, os trens estavam sempre superlotados
e muito sujos. A viagem que deveria ter levado menos de meia hora, durou quase
três. Cheguei ao grande prédio do abrigo pouco depois do meio-dia, e Willem
não estava, mas Tine e Kik, seu filho de vinte e dois anos, me receberam.
Contei-lhes o acontecido e dei-lhes o endereço da família de Amsterdam.
- Diga ao Sr. Weil para estar pronto logo que escurecer,
disse Kik.
Já eram quase nove da noite - novo horário do toque de
recolher - quando Kik bateu à porta lateral. Pegou o pequeno pacote de roupas
do Sr. Weil, colocou-o debaixo do braço, e depois afastou-se com o velhinho
para dentro da noite.
Cerca de duas semanas depois, encontrei-me com Kik e
perguntei-lhe o que havia acontecido. Ele olhou para mim, com aquele sorriso
amplo e vagaroso de que eu tanto gostava desde que ele era bem pequenino.
- Se vai trabalhar clandestinamente, Tia Corrie, tem que
aprender a não fazer perguntas.
Trabalho clandestino?! "Se vai trabalhar
clandestinamente..." Será que Kik estava trabalhando com aquele grupo secreto
e ilegal? E será que Willem estava?
Todos nós sabíamos da existência de um grupo clandestino
na Holanda - ou pelo menos suspeitávamos. Os atos de sabotagem, em sua maioria,
não eram mencionados em nossa imprensa censurada, mas havia abundância de
rumores. Uma fábrica explodira. Um trem que levava prisioneiros tinha sido
detido e sete - ou dezessete, ou setenta - deles haviam escapado.
Cada vez que se ouvia o relato, esse parecia mais
extraordinário. Esses rumores, porém, eram sempre a respeito de fatos que
críamos ser contrários à vontade de Deus: roubos, fraudes, mortes. Será que
Deus queria isto para um tempo como este? Como deveria um crente agir, quando o
mal domina?
Um mês depois da batida na loja de peles, dando nossa caminhada habitual, eu e papai notamos algo que nos pareceu tão estranho, que nós paramos. Andando em nossa direção, como tantas vezes, vinha o "Buldogue", com suas pernas curtas e seu jeitão engraçado. Por essa altura, já nos havíamos acostumado à estrela amarela; então, o que estava diferente? Num instante vi o que era: os cães. Ele não estava acompanhado de seus cães.
O "Buldogue" passou por nós, aparentemente sem
nos ver. Como se tivéssemos combinado, eu e papai nos voltamos e começamos a
segui-lo. Ele virou uma porção de esquinas, e nós atrás dele, embora um pouco
acanhados por não termos uma razão plausível para segui-lo. Apesar de que ele e
papai se tinham cumprimentado com um aceno de chapéu muitas vezes, nunca se
tinham falado, e nem ao menos sabíamos o seu nome.
Por fim, ele parou diante de uma lojinha de artigos de
segunda mão, tirou uma penca de chaves, abriu a porta e entrou. Olhamos através
da janela, para o interior da loja atulhada de objetos. Logo à primeira vista,
vimos que não se tratava de um desses ajuntamentos de quinquilharias e cadeiras
sem assento. Aquelas peças haviam sido escolhidas por uma pessoa que amava a
beleza.
- Precisamos trazer Betsie aqui, falei.
Um sininho tiniu por sobre a porta quando entramos. Lá
estava o "Buldogue", sem chapéu, abrindo uma gaveta, ao fundo do
aposento.
- Permita-me apresentar-me, senhor, principiou papai. Meu
nome é Cásper ten Boom, e esta é minha filha Cornélia.
O "Buldogue" apertou-nos as mãos e notei
novamente as profundas rugas de seu rosto.
- Harry de Vries, disse.
- Sr. Vries, nós temos muitas vezes admirado sua... é...
afeição pelos seus cães. Esperamos que estejam bem.
O homenzinho olhou-nos, primeiro um e depois o outro.
Seus olhos empapuçados encheram-se lentamente de lágrimas.
- Se estão bem? repetiu. Creio que estão. Espero que estejam
bem. Estão mortos.
- Mortos?! perguntamos juntos.
- Eu mesmo pus o veneno na tigela de comida, e depois os
pus a dormir; meus queridos animais! Os meus pequenos! Se vocês tivessem podido
vê-los a comer... Eu esperei até ajuntarmos bastante cupons de carne. Eles
estavam acostumados a sempre ter carne.
Olhamos para ele sem compreender ainda.
- Foi por causa do racionamento? sugeri.
Com um aceno, ele convidou-nos a passar para uma saleta
dos fundos e ofereceu-nos assentos.
- Minha senhora, eu sou judeu. Ninguém sabe quando eles
vão aparecer aqui para nos levar, a mim e a minha esposa - embora ela seja
gentia. Ela corre perigo por ter se casado comigo.
O "Buldogue" ergueu o rosto e seu queixo ficou
mais proeminente.
- Nós não nos preocupamos muito conosco. Nós somos
crentes, eu e Cato. Quando morrermos, iremos ficar com Jesus, e isto é tudo
que nos interessa. Mas eu falei com ela: "E os cachorros? Se formos
presos, quem os alimentará? Quem vai dar-lhes água ou levá-los a passear? Eles
vão ficar esperando e não irão entender." Agora, porém, não tenho mais
que me preocupar.
- Prezado amigo, disse papai, agarrando uma das mãos dele
com ambas as suas, agora que seus queridos companheiros não podem mais passear
com você, não quer dar a mim e à minha filha a honra de nos acompanhar?
Ele não queria.
- Isto faria com que corressem perigo, insistiu. Aceitou,
porém, um convite para nos visitar.
- Depois que escurecer, afirmou.
Foi assim que, na semana seguinte, o Sr. Vries bateu à
nossa porta lateral, trazendo consigo sua meiga e tímida esposa, Cato. Dentro
em pouco, ambos eram visitas habituais para nós.
A maior alegria do "Buldogue" em nossa casa,
depois de conversar com papai, eram os volumes de teologia judaica que agora
ocupavam a estante de mogno de Tia Jans. Ele se tornara cristão há quarenta
anos, sem no entanto deixar de ser judeu.
- Um judeu completo, dizia. Seguidor daquele judeu perfeito.
Os livros haviam pertencido ao rabino de Haarlem. Ele os
trouxera para papai "... para o caso de eu não poder continuar cuidando
deles... por tempo indeterminado". Depois acenou para uma fileira de
garotos que vinham atrás dele, e que entraram tropeçando ao peso dos enormes
livros.
- Meu passatempo - colecionar livros. E, sabe, meu velho
amigo, os livros não envelhecem como nós. Depois que nos formos, eles ainda
falarão a gerações futuras, que não veremos. É, os livros têm que ser
preservados.
O rabino fora o primeiro a desaparecer de Haarlem.
Estranho como, às vezes, é um evento insignificante que acaba sendo um marco decisivo. À medida que as prisões de judeus se tornavam mais e mais freqüentes, comecei a buscar e entregar serviços para nossos fregueses judeus, para que não precisassem vir ao centro. Assim foi que uma noite cheguei à casa de um médico. Era de uma tradicional família holandesa: os retratos de seus antepassados, nas paredes, poderiam ter sido tirados de um livro de História da Holanda.
Estávamos conversando sobre assuntos que sempre surgiam
quando gente se reunia naqueles dias - racionamento, notícias da Inglaterra -
quando, do alto da escada, uma vozinha infantil gritou:
- Papai, o senhor não veio nos cobrir.
O Dr. Heemstra levantou-se imediatamente. Pediu licença,
e correu escada acima. Daí a pouco, ouvimo-lo brincar com as crianças, e
escutamos as risadas agudas dos dois pequenos.
Foi só isto, nada mais. A Sra. Heemstra estava me ensinando
a aumentar a ração de chá com folhas de roseira. No entanto tudo havia mudado.
Naquele instante, a realidade dos fatos sacudiu o torpor que parecia
envolver-me desde a invasão. A qualquer momento, haveria uma batida na porta.
Essas crianças, o pai e a mãe subiriam a um caminhão...
O Dr. Heemstra voltou e nossa palestra continuou. Ainda
conversando, elevei uma oração silenciosa a Deus. "Senhor Jesus, eu me
ofereço para ajudar o teu povo. Em qualquer parte. A qualquer hora."
Foi então que se deu um fato extraordinário. Enquanto orava, aquela visão passou diante de meus olhos novamente. Vi aqueles quatro cavalos pretos e a praça. Como fizera na noite da invasão, procurei divisar quem eram os passageiros. Eu, papai, Betsie, Willem, saindo de Haarlem, deixando o lugar que para nós significava segurança e estabilidade, e partindo... para onde?