segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 05

A Invasão

             Os esguios ponteiros do relógio de parede que ficava junto à escada indicavam 9:25h, quando saímos da sala de jantar, aquele dia. Aquilo em si já era incomum para nós com nossa vida tão metódica. Papai estava com oitenta anos, e todas as noites, precisamente às 8:15h, uma hora mais cedo que anteriormente, ele abria a Bíblia - sinal de que era hora do devocional - lia um capítulo da mesma, pedia a bênção de Deus para nós durante a noite, e mais ou menos às 9:15h, estaria subindo para seu quarto.

            Nessa noite, entretanto, o Primeiro-Ministro iria falar à nação, às 9:30h. Por toda a Holanda, pairava uma interrogação que nos sufocava a todos, como um suspiro contido: entraría­mos na guerra?

            Dirigimo-nos ao quarto de Tia Jans, e papai ligou o rádio, o nosso grande rádio de mesa. Agora quase não passávamos mais as noites ali, ouvindo música. A Inglaterra, a França e a Alemanha estavam em luta, e as estações irradiavam quase que somente noticiário da guerra, ou mensagens em código, e muitas das freqüências estavam sofrendo pesada interfe­rência. Até as emissoras holandesas estavam falando mais e mais no assunto, e isso a gente podia ouvir mesmo no radinho portátil - presente de Pickwick no Natal anterior - que con­servávamos na sala de jantar.

            Dessa vez, contudo, seria uma transmissão importante, e achamos que a ocasião merecia que utilizássemos o rádio grande, com seu alto-falante rebuscado. Como que por uma espécie de pressentimento, fugimos às confortáveis poltro­nas estofadas e assentamo-nos, tensos e empertigados, nas cadeiras de costas altas, esperando dar 9:30h.

            Afinal, veio a voz sonora do Primeiro-Ministro, recomendando-nos calma. Não haveria guerra para nós. Ele tinha garantias de boas fontes, dos dois lados: a neutralidade da Holanda seria respeitada. Seria como uma repetição da Gran­de Guerra. Nada havia a temer. Os holandeses deveriam per­manecer confiantes e...

            A fala cessou. Eu e Betsie erguemos a cabeça, espantadas. Papai havia desligado o rádio, e seus olhos azuis brilhavam de um modo estranho, que nunca víramos antes.

            - É errado dar esperanças ao povo quando não há espe­ranças, disse. É errado basear a fé nos próprios desejos. Nós vamos entrar em guerra. Os alemães vão atacar e nós vamos cair em seu poder.

            Ele apagou a ponta do charuto no cinzeiro que havia ao lado do rádio, e, ao fazê-lo, extinguiu a raiva também, pare­ceu-me, pois ao falar novamente, sua voz recobrara a suavi­dade de sempre.

            - Ah, minhas filhas, estou com pena dos holandeses que não conhecem o poder de Deus. Nós Vamos ser derrotados, mas Deus não.

            Beijou-nos desejando-nos boa-noite, e daí a pouco ouvi­mos seus passos de ancião subindo para o quarto.

            Eu e Betsie estávamos pregadas na cadeira. Papai que sa­bia tão bem ver o lado bom de cada situação, que demorava tanto em aceitar o mal, se papai estava prevendo guerra e derrota, então não haveria outra coisa.

            Ergui-me de chofre e sentei-me na cama. Que fora aquilo? Ah! Outra vez! Um clarão de luz seguido imediatamente por uma detonação que sacudiu a cama. Afastei as cobertas, corri à janela e debrucei-me. O céu, acima das chaminés, tinha um brilho alaranjado.

            Tateei à procura do roupão; peguei-o e desci as escadas ao mesmo tempo que enfiava os braços nas mangas. Parei no quarto de papai, e encostei o ouvido à porta. Desci mais, até o quarto de Tia Jans. Há algum tempo, Betsie mudara-se para ali, para ficar mais perto da cozinha e ser-lhe mais fácil aten­der à porta. Ela estava sentada na cama.      Caminhei até ela na escuridão e nos abraçamos.

            - Guerra! dissemos juntas, em voz alta.

            E tinham se passado apenas cinco horas da fala do Primeiro-Ministro.

            Não sei quanto tempo ficamos ali, abraçadas, escutando o barulho das bombas. Os estampidos do bombardeio pareciam vir mais da direção do aeroporto. Por fim, ainda meio insegu­ras, fomos para o quarto da frente. A claridade do céu ilumina­va o cômodo com um fulgor estranho. As cadeiras, a estante de livros, o piano - tudo estava coberto por uma luz sinistra.

            Ajoelhamo-nos junto à banqueta do piano e, por um espa­ço de tempo que nos pareceu durar horas e horas, oramos por nossa pátria, pelos mortos e feridos daquela noite, pela rainha... Depois, surpreendentemente, Betsie começou a orar pelos alemães que se encontravam ali nos aviões, seguros pela gigantesca mão do mal que dominava seu país. Olhei para minha irmã ajoelhada junto a mim, vendo-a ao clarão da Holanda incendiada, e murmurei:

            "Senhor, atende essa oração de Betsie, mas não ouve a mim; eu não consigo orar por aqueles homens."

            Foi então que tive aquele sonho. Contudo não poderia ter sido um sonho, pois eu não estava dormindo. A cena veio à minha mente de maneira súbita e inexplicável. Vi a Praça Grote Markt, que ficava a uma quadra dali. Vi-a claramente, como se estivesse lá; vi a prefeitura, a igreja de São Bavo e o mercado de peixes com sua escadaria de entrada.

            Depois surgiu uma espécie de carroção velho, estranho e muito antigo, e que parecia totalmente fora de lugar ali. Ele se arrastava pesadamente, puxado por quatro enormes cava­los pretos. Para minha surpresa, vi-me assentada nele. Papai também estava lá. E Betsie. E havia ainda outras pessoas, alguns conhecidos, outros não. Reconheci Pickwick, Toos, Willem e Peter entre eles. Todos estávamos sendo levados. O pior de tudo é que não podíamos sair do carro. Ele nos levava para longe. Eu sabia que era para muito longe, mas nós não queríamos ir.

            - Betsie, gritei, levantando-me e tapando os olhos com as mãos, tive um sonho horrível!

            Senti seus braços ao redor de meus ombros.

            - Vamos para a cozinha fazer café. Lá poderemos acender a luz, pois não será vista.

            Quando Betsie pôs a água no fogo, o assobio das bombas já estava diminuindo, e se distanciando. Mais próximo, ouvía­mos o gemido da sirene de alarme, e a buzina dos caminhões de bombeiros. Enquanto tomávamos café de pé junto ao fo­gão, contei a Betsie o que havia visto.

            - Será que por estar com medo, estou vendo coisas? Mas não foi imaginação, foi real. Será que foi uma visão, Betsie?

            Com a ponta do dedo, Betsie desenhava qualquer coisa sobre a superfície de madeira da pia, tornada lisa pelo uso de várias gerações de ten Boom.

            - Não sei, respondeu suavemente. Mas se foi Deus que quis nos mostrar as dificuldades que nos esperam, estou con­tente de saber que ele está ciente de tudo. É por isso que às vezes ele nos mostra as coisas. É para ficarmos sabendo que aquilo também está nas mãos dele.

            A Holanda resistiu ao invasor durante cinco dias. Conservamos a loja aberta - não que houvesse alguém interessado em comprar relógios, mas muitos queriam falar com papai. Alguns queriam que ele orasse por seus filhos ou maridos, que estavam servindo na fronteira. Outros, parecia-me, vi­nham só para vê-lo assentado à sua banca de trabalho, como fazia há sessenta anos, e também para sentir, no tique-taque dos relógios, a segurança da ordem e da razão.

            Eu não toquei no meu trabalho aqueles dias.

            Ficava só ajudando Betsie a preparar e servir o café. Leva­mos nosso rádio portátil para a loja e o colocamos sobre o balcão de vidro. O rádio era os olhos e ouvidos e até mesmo a pulsação de toda Haarlem, pois, embora sempre ouvísse­mos os aviões passando, o bombardeio nunca mais chegou próximo de nós como naquela primeira noite.

            No primeiro dia, recebemos instruções pelo rádio para colocar tapumes em todas as janelas do andar térreo. Por toda a rua, viam-se lojistas na calçada. Sobreveio-nos um desusado sentimento de boa vizinhança, enquanto se passa­vam, de um para outro, rolos de fita adesiva juntamente com instruções, e narravam-se fatos sobre os horrores da noite.

            O dono da confeitaria, um anti-semita declarado, estava aju­dando Weil, o peleteiro judeu, a fechar com tábuas uma jane­la cuja vidraça havia se soltado. O dono da ótica que ficava ao lado, um homem caladão e retraído, veio até nós e arru­mou a parte superior de nossa janela, que nem eu nem Betsie alcançávamos.

            Alguns dias depois, recebemos pelo rádio a notícia que todos temíamos: a rainha tinha deixado o país. Eu não havia chorado no dia da invasão, mas nesse dia chorei, pois sabia que nossa pátria estava perdida. Na manhã seguinte, ouvi­mos o aviso de que os tanques já atravessavam a fronteira.

            De repente, toda a população estava nas ruas. Até papai, cujo passeio era tão regular e tão certo como as batidas dos seus próprios relógios, quebrou a rotina e saiu de casa numa hora em que nunca saíra antes, às 10:00h da manhã.

            Era como se quiséssemos ir ao encontro do mal que se aproxima­va, todos juntos, e como se cada holandês pudesse dar e rece­ber força de outro. Nós três também saímos, acotovelando-nos por entre a multidão. Passamos a ponte e chegamos à cerejeira brava, cujas flores, todas as primaveras, formavam uma coroa branca tão esplendorosa, que era chamada de "Noiva de Haarlem". Agora apenas algumas pétalas desbota­das restavam nos galhos que começavam a recobrir-se de fo­lhas. A maior parte das flores da "Noiva" estava no chão, formando um tapete murcho a nossos pés.

            Mais adiante, alguém abriu uma janela precipitadamente.

            - Rendemo-nos!

            A procissão estacou. Cada um repetiu ao outro o que to­dos já ouvíramos. Um rapazinho de cerca de quinze anos voltou-se para nós com lágrimas rolando pelo rosto.

            - Eu teria lutado. Não cederia nunca.

            Papai abaixou-se e apanhou uma petalazinha esmagada. Com muito cuidado, enfiou-a na lapela do jovem.

            - Muito bem, meu rapaz, disse-lhe. Nossa batalha está apenas começando.

            Nos primeiros meses de ocupação, a situação não foi mui­to intolerável. O mais difícil era acostumar-se à presença dos uniformes alemães por toda a parte, e dos caminhões e tan­ques alemães nas ruas, e a ouvir o alemão sendo falado nas lojas.

            Os soldados vinham constantemente à relojoaria, pois tinham ótimos salários, e um dos primeiros objetos que com­pravam era um relógio. Dirigindo-se a nós, sempre usavam um certo tom de superioridade, como se falassem a crianças meio estúpidas.

            Ao ouvi-los conversando animadamente en­tre si, porém, eu pensava em jovens turistas em férias, jovens de qualquer país. Quase todos adquiriram relógios de mu­lher, presentes para a mãe ou a namorada que ficara na Ale­manha.

            Nossa loja nunca deu tanto lucro como naquele primeiro ano de guerra. Como não estávamos recebendo novas remes­sas, nosso estoque foi todo vendido. Saíram até mesmo as peças encalhadas que já estavam ali há tanto tempo, que pa­reciam fazer parte do cenário. Vendemos também o velho relógio de mármore verde, enfeitado com dois cupidos de bronze.

            O toque de recolher, a princípio, não apresentou problema para nós, pois era, originalmente, dez da noite, e, àquela hora, nós estávamos mesmo em casa.

            O que não gostávamos era do cartão de identificação que cada um recebeu, cartõezinhos pequenos, contendo a fotografia e as impressões digitais, que tínhamos que apresentar sempre que exigido.

            Um soldado ou um policial - a polícia achava-se agora sob o controle direto do Comando Alemão - podia deter qualquer pessoa, a qualquer hora, e pedir para ver o cartão. Esta pessoa tinha que estar com o documento pendurado ao pescoço, dentro de um saqui­nho.

            Recebemos também cartões de racionamento, mas, pelo menos naquele primeiro ano, com os cupons, podíamos ad­quirir o alimento diretamente dos armazéns e mercearias. Toda semana, os jornais traziam a lista do que podíamos comprar no momento.

            Outra coisa difícil de aceitar foi o jornal sem notícias. Ha­via longos e apoteóticos relatos das vitórias do exército ale­mão nos seus diversos fronts; palavras de louvor aos líderes alemães, acusações a traidores e sabotadores, apelos à unifi­cação dos "povos nórdicos", mas nenhuma notícia em que se pudesse realmente acreditar.

            Por isso, voltamo-nos para o rádio. Nos primeiros dias da ocupação, veio-nos uma ordem para entregarmos nossos aparelhos. Compreendendo que seria meio estranho se nossa família não apresentasse pelo menos um rádio, decidimos entregar o pequeno e esconder o maior - que era de maior alcance também - em um dos vãos que havia sob a velha escada.

            A idéia foi de Peter. Ele tinha dezesseis anos quando da inva­são, e, como outros jovens, tinha a energia inquieta, gerada pela raiva e pela rebelião refreada. Peter instalou o rádio sob uma das voltas da escada, logo acima do quarto de papai, e habilmente, recolocou as tábuas no lugar, enquanto eu levava o menor à loja Vrom en Dreesman, onde o recolhimento estava sendo efetuado. O atendente do exército alemão que estava por detrás do balcão olhou-me expressivamente.

            - Esse é o único rádio que você possui?

            - É.

            Ele deu uma olhada na lista à sua frente.

            - No mesmo endereço estão registrados Cásper ten Boom e Elizabeth ten Boom. Algum deles tem um rádio?

            Desde criança, eu sabia que a terra se abriria e os céus cuspiriam fogo e enxofre sobre os mentirosos, mas não abai­xei os olhos.

            - Não.

            Somente depois que saí da loja foi que comecei a tremer. Não apenas porque pela primeira vez em minha vida dissera uma mentira deliberada, mas, principalmente, porque ela me saíra dos lábios com tanta facilidade.

            Nosso rádio, porém, estava a salvo. Todas as noites, ou eu ou Betsie tirávamos o tapume e nos inclinávamos sobre ele, com o volume na altura mínima necessária para se poder ou­vir, e sintonizávamos estações da Inglaterra, enquanto a outra ficava martelando o piano com o máximo de força. No princí­pio, as notícias que ouvíamos pelo rádio se harmonizavam com as que líamos em nossa imprensa censurada. A ofensiva alemã era vitoriosa por toda a parte. Mês após mês, as transmissões dos holandeses livres nos animavam a esperar, a ter coragem e a crer que uma contra-ofensiva seria organizada algum dia.

            Os alemães consertaram os estragos do aeroporto causados pelo bombardeio, e agora o usavam como base de decolagem para ataques à Inglaterra. Todas as noites, ficávamos deitados, ouvindo o ronco dos motores, indo em direção ao oeste. Oca­sionalmente, os aviões britânicos contra-atacavam, e, então, os alemães os interceptavam bem nos céus de Haarlem,

            Certa noite, fiquei revirando na cama durante uma hora, enquanto a luta se travava acima de nossas cabeças. Afi­nal, ouvi um barulho na cozinha. Betsie estava lá. Desci e fui vê-la.

            Ela estava fazendo chá. Trouxe-o para a sala de jantar, cujas janelas havíamos recoberto com papel grosso e pre­to, e pôs na mesa a nossa melhor louça. Ouviu-se uma ex­plosão a alguma distância dali; os pratos tremeram no ar­mário. Ficamos uma hora conversando e saboreando o chá, até que finalmente o zumbido dos aviões cessou, e o céu ficou em silêncio. À porta do quarto de Tia Jans, dei boa-noite a Betsie, e subi para o meu quarto, tateando no escu­ro. A claridade desaparecera.

            Pus as mãos na cama; aqui estava o travesseiro. Então, minha mão se chocou com um objeto duro e cortante. Senti o sangue escorrer de um dos dedos. Era um pedaço de metal de bordas irregulares: um estilhaço de bomba, de cerca de trinta centímetros de com­primento.

            - Betsie!

            Corri escada abaixo com o estilhaço na mão. Fomos para a sala de jantar, e pusemo-nos a examiná-lo à luz da lâmpada, ao mesmo tempo que Betsie cuidava do ferimento.

            - No seu travesseiro..., murmurou ela várias vezes.

            - Betsie, se eu não tivesse ouvido você na cozinha. Ela colocou um dedo sobre meus lábios.

            - Não diga nada, Corrie. No reino de Deus não há "se". E também não há um lugar que seja mais seguro que outro. O único lugar seguro é o centro da vontade de Deus. Corrie, vamos orar e pedir-lhe que possamos sempre saber qual é a sua vontade.

            Gradualmente, íamos tomando consciência de todo o hor­ror da ocupação. Durante o primeiro ano do domínio ale­mão, houve apenas pequenos ataques contra os judeus. Era um palavrão rabiscado no muro de uma sinagoga; uma pedra atirada à vitrina de um semita...

            Era como se eles estives­sem nos experimentando, testando a tempera da nação. Quan­tos holandeses os apoiariam? Para nossa vergonha, a respos­ta foi: muitos. A cada mês que passava, o Partido Nacional Socialista, a organização nazista holandesa, mais crescia e mais ousado se tornava.

            Alguns se uniram a ele apenas para receber os benefícios decorrentes: mais alimento, mais cu­pons para roupas, melhores empregos, melhores moradias. Outros, porém, o faziam por convicção. O nazismo era uma enfermidade contra a qual muitos holandeses não tinham imunidade; os que já possuíam preconceitos anti-semíticos logo sofreram contágio.

            Em nossa caminhada diária, eu e papai víamos os sinto­mas da doença se propagarem. Ora era uma placa numa casa de comércio: Não atendemos judeus, ou na entrada do parque público: Proibida a entrada de judeus, ou na porta da bibliote­ca pública, em restaurantes, teatros, e até no Salão de Con­certos, cuja entrada lateral conhecíamos melhor que seus as­sentos estofados.

            Uma sinagoga foi incendiada e o carro de bombeiros che­gou, mas apenas para ficar alerta e impedir que as chamas se alastrassem aos prédios vizinhos.

            Um dia, quando caminhávamos pela nossa rota costumei­ra, notamos que as calçadas pareciam mais alegres e colori­das, e logo vimos por quê - várias pessoas traziam uma estre­la amarela de seis pontas presa à lapela do casaco ou paletó. Homens, mulheres e crianças, todos usavam uma estrela com a palavra Jood (judeu) escrita no centro.

            Ficamos surpresos ao constatar que muitas das pessoas pelas quais passávamos diariamente eram judias. O homem que lia o boletim comer­cial na praça trazia uma estrela em seu paletó, cuidadosa­mente passado a ferro. Também o "Buldogue", com seu rosto mais enrugado que nunca. Sua voz, ao falar com os cães, soava aguda pela tensão.

            O pior de tudo eram os desaparecimentos. Um relógio consertado ficou na loja muitos meses, prontinho, dependu­rado na parede, à espera do dono; uma casa do bairro onde Nollie morava, parecia misteriosamente abandonada, a gra­ma crescendo junto às roseiras. Em outro dia, foi a loja do Sr. Kan, perto da nossa, que não se abriu.

            Quando por lá passamos em nosso passeio, papai bateu à porta para per­guntar se alguém estava doente. Não houve resposta. A loja ficou fechada, as janelas às escuras, silenciosas durante vári­as semanas. Depois, embora a loja nunca mais fosse reaber­ta, uma família de adeptos do PNS mudou-se para o aparta­mento da sobreloja.

            Nunca ficamos sabendo se a família tinha sido levada pela Gestapo ou se tinha fugido. As detenções em público, sem qualquer tentativa de disfarce, tornaram-se mais e mais fre­qüentes. Certo dia, quando regressávamos de nossa caminha­da, vimos que a Praça Grote Markt estava rodeada por uma fila dupla de soldados e policiais.

            Havia um caminhão para­do junto ao mercado de peixes, e a ele subiam homens, mu­lheres e crianças, todos ostentando no peito a estrela amare­la. Não víamos a razão por que haviam escolhido aquele lo­cal e hora.

            - Papai, coitado desse povo! exclamei.

            O círculo de policiais se desfez em um ponto e por ele o caminhão deixou a praça. Ficamos a olhá-lo até desaparecer de vista.

            - Coitado desse povo! repetiu papai.

            Para minha surpresa, porém, ele olhava para os soldados que agora se formavam em fileiras para irem embora.

            - Tenho pena desses alemães, Corrie. Estão tocando na menina dos olhos de Deus.

            Muitas vezes, eu, papai e Betsie conversávamos sobre o que faríamos se tivéssemos uma chance de ajudar alguns de nossos amigos judeus. Sabíamos que, no começo da ocupa­ção, Willem tinha procurado esconderijos para os judeus alemães que estavam morando em sua casa. Ultimamente, tam­bém, tinha afastado do abrigo alguns judeus-holandeses mais jovens.

            - Os velhinhos ficam, dizia. Certamente eles não vão in­comodar os meus velhinhos.

            Willem conhecia muitos lugares para esconderijos. Ele sabia de fazendas na zona rural, onde as tropas de ocupa­ção eram mais escassas. Era a ele que eu deveria me diri­gir.

            Numa nevoenta manhã de novembro de 1941, ano e meio após a invasão, saí à calçada para levantar as persianas que cobriam a vitrina da loja. Vi um grupo de quatro soldados alemães descendo a rua. Usavam capacete de combate, que lhes chegava às orelhas, e traziam fuzis pendurados ao om­bro. Escondi-me no vão da porta, e fiquei observando. Esta­vam procurando um número. Pararam exatamente na loja em frente à nossa - a peleteria do Sr. Weil.

            Um dos homens bateu à porta violentamente com a coro­nha do rifle. Ia bater de novo, mas a porta se abriu, e os quatro se arremeteram para dentro.

            Corri à sala de jantar, onde Betsie estava pondo a mesa.

            - Betsie, venha. Está acontecendo uma coisa horrível com os Weil.

            Chegamos à rua em tempo de ver um soldado empurrando o Sr. Weil que vinha de costas, encostando-lhe uma arma no estômago. Depois de deixá-lo ali fora, o policial regressou à loja, batendo a porta. Então, não o estavam prendendo...

            Ouvimos o ruído de vidro se quebrando dentro da casa. Os homens começaram a sair com os braços cheios de peles. Apesar da hora matinal, uma pequena multidão estava se formando. O Sr. Weil não se movera do lugar onde o soldado o deixara.

            Abriu-se uma janela do segundo andar, e roupas começa­ram a chover sobre ele: pijamas, camisas, roupas de baixo. Vagarosa e mecanicamente, o Sr. Weil inclinou-se e começou

a ajuntar suas coisas. Eu e Betsie atravessamos a rua corren­do para ajudá-lo.

            - Onde está sua esposa? perguntou-lhe Betsie nervosa­mente.

            Ele somente olhou-a e pestanejou.

            - Venha conosco, disse eu pegando mais alguns lenços e meias do chão. Depressa!

            E empurramos o pobre e atordoado homem para o Beje. Ele estava aterrado. Quando entramos na sala de jantar, pa­pai se achava ali e cumprimentou o Sr. Weil sem mostrar sur­presa alguma. Sua atitude calma e natural fez com que o pobre homem relaxasse um pouco a tensão. Sua esposa esta­va em Amsterdam, em visita à irmã dela, informou-nos.

            - Temos que telefonar-lhe para que não venha aqui.

            Nosso telefone havia sido desligado no começo da ocupa­ção, como aliás a maioria dos telefones particulares. Havia telefones públicos em várias partes da cidade, mas, certa­mente, a conexão era feita para um posto central. Seria certo envolver uma família de Amsterdam em um problema da­qui? E se a Sra. Weil não podia voltar para casa, para onde deveria ir? Onde os Weil iriam morar? Logicamente não po­deria ser com a irmã, onde seriam encontrados com facilida­de. Eu, papai e Betsie nos entreolhamos.

            - Willem! dissemos quase que ao mesmo tempo.

            Mas isto também não era questão que se pudesse resolver pelo telefone público. Alguém teria que ir lá, e eu era a pes­soa mais indicada.

            Na época da ocupação, os trens estavam sempre superlota­dos e muito sujos. A viagem que deveria ter levado menos de meia hora, durou quase três. Cheguei ao grande prédio do abri­go pouco depois do meio-dia, e Willem não estava, mas Tine e Kik, seu filho de vinte e dois anos, me receberam. Contei-lhes o acontecido e dei-lhes o endereço da família de Amsterdam.

            - Diga ao Sr. Weil para estar pronto logo que escurecer, disse Kik.

            Já eram quase nove da noite - novo horário do toque de recolher - quando Kik bateu à porta lateral. Pegou o peque­no pacote de roupas do Sr. Weil, colocou-o debaixo do bra­ço, e depois afastou-se com o velhinho para dentro da noi­te.

            Cerca de duas semanas depois, encontrei-me com Kik e perguntei-lhe o que havia acontecido. Ele olhou para mim, com aquele sorriso amplo e vagaroso de que eu tanto gostava desde que ele era bem pequenino.

            - Se vai trabalhar clandestinamente, Tia Corrie, tem que aprender a não fazer perguntas.

            Trabalho clandestino?! "Se vai trabalhar clandestinamen­te..." Será que Kik estava trabalhando com aquele grupo se­creto e ilegal? E será que Willem estava?

            Todos nós sabíamos da existência de um grupo clandesti­no na Holanda - ou pelo menos suspeitávamos. Os atos de sabotagem, em sua maioria, não eram mencionados em nos­sa imprensa censurada, mas havia abundância de rumores. Uma fábrica explodira. Um trem que levava prisioneiros tinha sido detido e sete - ou dezessete, ou setenta - deles haviam escapado.

            Cada vez que se ouvia o relato, esse parecia mais extraordinário. Esses rumores, porém, eram sempre a respei­to de fatos que críamos ser contrários à vontade de Deus: roubos, fraudes, mortes. Será que Deus queria isto para um tempo como este? Como deveria um crente agir, quando o mal domina?

            Um mês depois da batida na loja de peles, dando nossa caminhada habitual, eu e papai notamos algo que nos pare­ceu tão estranho, que nós paramos. Andando em nossa dire­ção, como tantas vezes, vinha o "Buldogue", com suas pernas curtas e seu jeitão engraçado. Por essa altura, já nos havía­mos acostumado à estrela amarela; então, o que estava dife­rente? Num instante vi o que era: os cães. Ele não estava acompanhado de seus cães.

            O "Buldogue" passou por nós, aparentemente sem nos ver. Como se tivéssemos combinado, eu e papai nos voltamos e começamos a segui-lo. Ele virou uma porção de esquinas, e nós atrás dele, embora um pouco acanhados por não termos uma razão plausível para segui-lo. Apesar de que ele e papai se tinham cumprimentado com um aceno de chapéu muitas vezes, nunca se tinham falado, e nem ao menos sabíamos o seu nome.

            Por fim, ele parou diante de uma lojinha de artigos de segunda mão, tirou uma penca de chaves, abriu a porta e entrou. Olhamos através da janela, para o interior da loja atulhada de objetos. Logo à primeira vista, vimos que não se tratava de um desses ajuntamentos de quinquilharias e ca­deiras sem assento. Aquelas peças haviam sido escolhidas por uma pessoa que amava a beleza.

            - Precisamos trazer Betsie aqui, falei.

            Um sininho tiniu por sobre a porta quando entramos. Lá estava o "Buldogue", sem chapéu, abrindo uma gaveta, ao fundo do aposento.

            - Permita-me apresentar-me, senhor, principiou papai. Meu nome é Cásper ten Boom, e esta é minha filha Cornélia.

            O "Buldogue" apertou-nos as mãos e notei novamente as profundas rugas de seu rosto.

            - Harry de Vries, disse.

            - Sr. Vries, nós temos muitas vezes admirado sua... é... afeição pelos seus cães. Esperamos que estejam bem.

            O homenzinho olhou-nos, primeiro um e depois o outro. Seus olhos empapuçados encheram-se lentamente de lágri­mas.

            - Se estão bem? repetiu. Creio que estão. Espero que es­tejam bem. Estão mortos.

            - Mortos?! perguntamos juntos.

            - Eu mesmo pus o veneno na tigela de comida, e depois os pus a dormir; meus queridos animais! Os meus pequenos! Se vocês tivessem podido vê-los a comer... Eu esperei até ajuntarmos bastante cupons de carne. Eles estavam acostumados a sempre ter carne.

            Olhamos para ele sem compreender ainda.

            - Foi por causa do racionamento? sugeri.

            Com um aceno, ele convidou-nos a passar para uma saleta dos fundos e ofereceu-nos assentos.

            - Minha senhora, eu sou judeu. Ninguém sabe quando eles vão aparecer aqui para nos levar, a mim e a minha espo­sa - embora ela seja gentia. Ela corre perigo por ter se casado comigo.

            O "Buldogue" ergueu o rosto e seu queixo ficou mais pro­eminente.

            - Nós não nos preocupamos muito conosco. Nós somos crentes, eu e Cato. Quando morrermos, iremos ficar com Je­sus, e isto é tudo que nos interessa. Mas eu falei com ela: "E os cachorros? Se formos presos, quem os alimentará? Quem vai dar-lhes água ou levá-los a passear? Eles vão ficar espe­rando e não irão entender." Agora, porém, não tenho mais que me preocupar.

            - Prezado amigo, disse papai, agarrando uma das mãos dele com ambas as suas, agora que seus queridos compa­nheiros não podem mais passear com você, não quer dar a mim e à minha filha a honra de nos acompanhar?

            Ele não queria.

            - Isto faria com que corressem perigo, insistiu. Aceitou, porém, um convite para nos visitar.

            - Depois que escurecer, afirmou.

            Foi assim que, na semana seguinte, o Sr. Vries bateu à nossa porta lateral, trazendo consigo sua meiga e tímida esposa, Cato. Dentro em pouco, ambos eram visitas habituais para nós.

            A maior alegria do "Buldogue" em nossa casa, depois de conversar com papai, eram os volumes de teologia judaica que agora ocupavam a estante de mogno de Tia Jans. Ele se tornara cristão há quarenta anos, sem no entanto deixar de ser judeu.

            - Um judeu completo, dizia. Seguidor daquele judeu per­feito.

            Os livros haviam pertencido ao rabino de Haarlem. Ele os trouxera para papai "... para o caso de eu não poder continuar cuidando deles... por tempo indeterminado". Depois acenou para uma fileira de garotos que vinham atrás dele, e que entraram tropeçando ao peso dos enormes livros.

            - Meu passatempo - colecionar livros. E, sabe, meu velho amigo, os livros não envelhecem como nós. Depois que nos formos, eles ainda falarão a gerações futuras, que não vere­mos. É, os livros têm que ser preservados.

            O rabino fora o primeiro a desaparecer de Haarlem.

            Estranho como, às vezes, é um evento insignificante que acaba sendo um marco decisivo. À medida que as prisões de judeus se tornavam mais e mais freqüentes, comecei a bus­car e entregar serviços para nossos fregueses judeus, para que não precisassem vir ao centro. Assim foi que uma noite cheguei à casa de um médico. Era de uma tradicional famí­lia holandesa: os retratos de seus antepassados, nas pare­des, poderiam ter sido tirados de um livro de História da Holanda.

            Estávamos conversando sobre assuntos que sempre surgiam quando gente se reunia naqueles dias - racionamento, notí­cias da Inglaterra - quando, do alto da escada, uma vozinha infantil gritou:

            - Papai, o senhor não veio nos cobrir.

            O Dr. Heemstra levantou-se imediatamente. Pediu licen­ça, e correu escada acima. Daí a pouco, ouvimo-lo brincar com as crianças, e escutamos as risadas agudas dos dois pe­quenos.

            Foi só isto, nada mais. A Sra. Heemstra estava me ensi­nando a aumentar a ração de chá com folhas de roseira. No entanto tudo havia mudado. Naquele instante, a realidade dos fatos sacudiu o torpor que parecia envolver-me desde a invasão. A qualquer momento, haveria uma batida na porta. Essas crianças, o pai e a mãe subiriam a um caminhão...

            O Dr. Heemstra voltou e nossa palestra continuou. Ainda conversando, elevei uma oração silenciosa a Deus. "Senhor Jesus, eu me ofereço para ajudar o teu povo. Em qualquer parte. A qualquer hora."

            Foi então que se deu um fato extraordinário. Enquanto orava, aquela visão passou diante de meus olhos novamente. Vi aqueles quatro cavalos pretos e a praça. Como fizera na noite da invasão, procurei divisar quem eram os passageiros. Eu, papai, Betsie, Willem, saindo de Haarlem, deixando o lugar que para nós significava segurança e estabilidade, e partindo... para onde?