Não era do feitio de mamãe deixar a torneira aberta com a
água correndo daquele jeito, pensei. Ela não gostava de esperdiçar nada.
- Corrie!
A voz dela soou muito baixa; era quase um murmúrio.
- O que foi, mamãe?
- Corrie! chamou de novo.
Foi então que ouvi o ruído da água que enchera a pia, a
cair no assoalho. Pulei da cadeira e corri à cozinha. Ela estava de pé, uma
das mãos na torneira, olhando-me com uma expressão estranha, enquanto a água se
derramava a seus pés e se espalhava pelo chão.
- O que houve, mamãe? gritei ao mesmo tempo que estendia
a mão para a torneira. Desprendi seus dedos, fechei a água e afastei-a da poça
que já se formava.
- Corrie, repetiu ela.
- Mamãe, a senhora está doente. Temos que levá-la para a
cama.
Segurei-a sob o braço, atravessei a sala de jantar com
ela e comecei a subir. A um grito meu, Tia Anna desceu correndo e pegou o outro
braço. Levamo-la para cima, e depois eu corri à loja, chamando papai e Betsie.
Durante a hora que se seguiu, nós ficamos ali, vendo os
efeitos de uma hemorragia cerebral se estenderem gradualmente a todo o seu
corpo. Primeiro, a paralisia chegou às mãos; e destas, passando pelos braços,
às pernas. O Dr. van Veen, a quem nosso aprendiz fora buscar, não pôde fazer
nada além do que nós mesmos havíamos feito.
A consciência foi a última coisa que ela perdeu. Seus
olhos permaneceram sempre bem abertos e atentos, demorando-se em cada um de nós
amorosamente. Afinal, fecharam-se devagar, e pensamos que ela se fora.
Entretanto, o Dr. van Veen assegurou-nos que se tratava de um estado de coma
profundo, do qual ela poderia sair para retornar à vida, ou morrer.
Mamãe ficou inconsciente naquela cama por dois meses, e
sempre havia um de nós a seu lado. (Nollie ficava à noite.) Certo dia a
consciência voltou-lhe, tão inesperadamente quanto o derrame se dera. Ela
abriu os olhos e espiou ao redor. Lentamente, recobrou o uso dos braços e
pernas o bastante para se mover um pouco sem ajuda de outrem, embora nunca
recuperasse toda a destreza dos dedos, necessária para o tricô ou crochê.
Nós a mudamos do quartinho, cuja janela dava para os fundos
de outra casa, para o quarto de Tia Jans, de onde ela poderia apreciar o movimento
da rua embaixo. Logo descobrimos que sua mente estava tão lúcida quanto antes;
não lhe voltou, porém, a fala, a não ser de três palavras. Ela conseguia dizer:
"sim", "não", e "Corrie", talvez por ter sido
esta a última palavra que disse. Por isso mamãe chamava todo mundo de Corrie.
Para nos comunicarmos, inventamos uma espécie de
joguinho.
- Corrie! ela me chamaria.
- O que é, mamãe? Está pensando em alguém?
- Sim.
- Da família?
- Não.
- Uma pessoa que a senhora viu na rua?
- Sim.
- Um homem?
- Não.
Era uma mulher que ela conhecia há muito tempo.
- Mamãe, aposto que é o aniversário dela.
Daí, eu diria muitos nomes até ouvi-la, toda satisfeita,
dizer sim. Então eu escrevia um bilhetinho para a pessoa, dizendo-lhe que
mamãe a vira pela janela e desejava-lhe um feliz aniversário. Depois eu
colocaria a caneta entre seus dedos rígidos, e ela assinaria. Um rabisco de
uma linha quebrada era tudo o que restava de sua caligrafia redonda e bonita.
Em pouco tempo, porém, tornou-se uma assinatura conhecida e amada por muitos.
Era realmente espantosa a qualidade de vida que ela conseguia
levar, naquele corpo paralítico. Observando-a naqueles três anos de
imobilidade, descobri outra verdade a respeito do amor.
Mamãe sempre expressara seu amor através de uma terrina
de sopa ou de uma peça de costura. Agora que essas coisas lhe haviam sido
tiradas, o seu amor, não obstante, continuava tão perfeito quanto antes. Ela
ficava sentada em sua cadeira junto à janela, dando seu amor a todos nós. Amava
o povo que via na rua e o que não via: seu amor abarcava toda a cidade, a
Holanda e o mundo. Foi assim que aprendi que o amor não pode ser aprisionado
dentro de quatro paredes.
A cada dia notávamos que a conversa de Nollie à mesa girava mais e mais em torno de um colega seu, um professor chamado Flip van Woerden. Quando este, afinal, fez sua visita oficial, papai já havia ensaiado seu pequeno discurso de aprovação e bênção, pelo menos uma dúzia de vezes. Na noite anterior ao casamento, quando eu e Betsie ajudávamos mamãe a voltar para a cama, ela, de repente, rompeu em lágrimas.
Com o uso do "joguinho", descobrimos que não,
ela não estava descontente com o casamento; sim, ela gostava de Flip. O
problema era que não seria realizada a solene e grave palestra entre mãe e
filha, que era prometida à jovem durante anos, e era também a única fonte de
educação sexual que nossa sociedade taciturna lhe permitia.
No fim, foi Tia Anna que, com olhos assustados e rosto em
brasa, subiu as escadas até o quarto de Nollie naquela noite. Alguns anos
antes, Nollie havia se mudado do nosso quartinho no topo da casa, para o de Tia
Bep, e ali, ela e Tia Anna se fecharam para passar a meia hora de praxe. Não
poderia existir, na Holanda, ninguém mais mal-informado sobre casamento do que
Tia Anna, mas isso era um ritual que datava de séculos - a mulher mais velha
tinha que instruir a mais jovem - e ninguém podia se casar sem passar por ele,
tanto quanto não poderia dispensar o anel de noivado.
Nollie estava maravilhosa em seu vestido branco e longo,
mas foi de mamãe que não tirei os olhos. Apesar de estar vestida de preto, como
sempre, ela me parecia subitamente juvenil. Seu olhar brilhava de alegria, pois
este era o maior dos eventos que a família ten Boom presenciava.
Eu e Betsie a levamos para a igreja cedo, e tenho a
certeza de que poucas pessoas da família van Woerden e seus amigos sabiam que a
graciosa e sorridente dama do primeiro banco não falava nem andava sozinha.
Foi somente quando Nollie e Flip já desciam pelo centro
da nave, que me lembrei de meus sonhos de um momento como aquele para mim e
Karel. Olhei para Betsie alta e bonita, sentada do outro lado de mamãe. Ela
sempre soubera que, por causa de sua saúde debilitada, nunca teria filhos, e
por isso decidira não se casar. Eu, agora, tinha vinte e sete anos e ela,
trinta e poucos. Naquele momento, senti com toda a certeza que nossa vida seria
sempre assim: eu e Betsie ficaríamos solteiras, vivendo no Beje.
Foi um pensamento alegre. Naquele instante, fiquei certa
de que Deus havia aceitado a hesitante oferta de minhas emoções, que lhe havia
feito quatro anos antes. Ao pensar em Karel com amor - que era como eu sempre
pensava nele desde que tinha quatorze anos - não senti o menor traço de
tristeza ou dor.
"Abençoa Karel, Senhor Jesus", orei em
silêncio. "E abençoa sua esposa também. Conserva-os unidos e perto de
ti."
Uma coisa era certa: eu nunca poderia ter feito aquela
oração antes, sem o auxílio divino.
O grande milagre do dia, porém, ocorreu mais tarde. Para
o término do culto, tínhamos programado que se cantasse o hino "O Formoso
Cristo" que era o predileto de mamãe. Ao cantá-lo agora, de pé, ouvi-a,
assentada no banco, cantar também. Palavra após palavra, verso após verso, ela
cantava; mamãe, que não conseguia dizer quatro palavras, cantava aquelas
linhas maravilhosas sem um tropeço. Sua voz, que tinha sido alta e clara, soava
agora rouca e áspera, mas para mim era como a voz de um anjo.
Ela cantou todo o hino e, durante todo o tempo em que
durou, fixei os olhos à minha frente. Não ousava voltar-me e olhar para ela com
medo de quebrar o encanto. Quando, por fim, todos se assentaram, eu, mamãe e
Betsie tínhamos os olhos marejados.
A princípio, pensamos que aquilo fosse o começo de uma
recuperação, porém, ela nunca conseguiu dizer de novo as palavras daquele hino,
e nem voltou a cantar. Tinha sido apenas um momento isolado, e nós entendemos
que fora um presente de Deus para nós, o seu presente de casamento. Um mês
depois, com um sorriso nos lábios, mamãe nos deixou para sempre, durante o
sono.
Foi no fim de novembro daquele ano, que um resfriado comum causou uma grande reviravolta na casa. Betsie começou a espirrar e a fungar, e papai achou melhor que ela se afastasse de sua mesa, a qual ficava bem diante da porta, recebendo em cheio o ar gelado do inverno.
Mas o Natal se aproximava - a época mais movimentada da
loja. Com Betsie acamada, tive que começar a correr à loja, de vez em quando,
para atender fregueses, fazer embrulhos e evitar que papai se deslocasse de
sua alta banca de trabalho dezenas de vezes por dia.
Tia Anna garantiu-me que poderia cozinhar e cuidar de
Betsie ao mesmo tempo. Foi assim que tomei lugar à mesa dela, anotando as
vendas e as contas de consertos, registrando as quantias gastas em peças e
acessórios, e folheando os registros já existentes, achando difícil crer no que
via.
Mas quê? Não havia ali nem sombra de organização. Não se
poderia saber se uma conta havia sido paga ou não, ou se o preço pedido era
justo. Não se podia saber se estávamos lucrando ou tendo prejuízo.
Numa tarde friorenta, fui à livraria da esquina e comprei
um livro-caixa, e parti para impor um pouco de método àquela confusão. Noites e
noites, após a porta estar fechada e as persianas descidas, eu ficava ali,
examinando listas de estoque e faturas de atacadistas.
Às vezes eu consultava papai.
- Quanto foi que o senhor cobrou do Sr. Hook por aquele
conserto, no mês passado?
Ele me olhava inexpressivamente.
- Por quê? Ah... não sei realmente.
- Era um Vacheron, papai; bem velho. O senhor teve que
mandar buscar peças da Suíça. A conta do fornecedor está aqui e...
Seu rosto se iluminou.
- Ah, agora eu me lembro. Um ótimo relógio, Corrie. Dava
prazer trabalhar nele. Era muito velho e o homem havia deixado acumular
poeira. Relógio bom tem que ser conservado limpo, filha.
- Quanto foi que o senhor cobrou, papai?
Criei um sistema de cobrança, e, pouco a pouco, a lista
de números começou a corresponder à de transações efetuadas. Gradualmente,
descobri, também, que eu adorava aquele trabalho. Sempre me sentira muito
feliz dentro daquela lojinha, com seus tique-taques e seus mostradores de faces
brilhantes. Agora, porém, eu percebi que gostava também do seu lado comercial.
Gostava dos catálogos, das relações de estoque. Gostava de todo esse
movimentado e vigoroso mundo dos negócios.
De vez em quando eu me lembrava de que o resfriado de
Betsie havia se alojado nos pulmões, e - como sempre acontecia - ameaçava
tornar-se pneumonia. Então eu me reprovava por não me sentir nem um pouco
amolada com a presente situação. À noite, porém, quando eu a ouvia tossir, orava
com todo o fervor para que sarasse logo.
Então, na antevéspera de Natal, quando eu já tinha fechado
a loja e trancava a porta do hall, vi Betsie entrar pela porta lateral que dava
para o beco, trazendo os braços cheios de flores. Quando me viu, ela me olhou
assustada, como uma criança apanhada em falta.
- Para o Natal, Corrie, explicou. Não podemos passar o
Natal sem flores.
- Betsie ten Boom, ralhei, há quanto tempo você está fazendo
isto? É por isto que você não sara.
- Eu fiquei a maior parte do tempo na cama! Verdade!...
interrompeu-se com um acesso de tosse. Só me levantei por causa de coisas
importantes.
Levei-a para a cama, e depois dei uma volta pela casa
toda, vendo-a com outros olhos, procurando as "coisas importantes"
de Betsie. Como eu tinha observado pouco! Betsie tinha feito mudanças. Voltei
ao seu quarto e apresentei-lhe as evidências.
- Betsie, era importante mudar a disposição da louça do
armário do canto?
Ela ergueu os olhos para mim.
- Era sim, respondeu em tom de desafio. Você punha de
qualquer jeito.
- E a porta do quarto de Tia Jans? O verniz está sendo
retirado, e a porta lixada. Isto é trabalho pesado.
- Mas aquela madeira é maravilhosa! Há muito tempo que eu
queria tirar aquele verniz e ver. Ah, Corrie, continuou em voz baixa e
penitente, sei que estou sendo egoísta deixando você na loja todos os dias.
Vou ser mais cuidadosa para você não ter que ficar lá mais tempo; mas tem sido
tão bom ficar aqui o dia todo, fazendo de conta que eu é que estou encarregada
da casa, planejando tudo...
Foi isso: nós tínhamos invertido a coisa. Foi espantoso,
como tudo andou bem depois que realizamos a troca. Sob meus cuidados, a casa
ficava arrumada; com Betsie, parecia brilhar. Ela descobria a beleza da
madeira, dos desenhos, das cores, e a mostrava a nós.
A pequena quantia de que dispúnhamos para alimentação,
sob meu controle, quase que se evaporava no açougue, e se acabava de todo na
padaria. Sob o de Betsie, que conseguia esticá-la mais, dava até para diversos
pratos especiais que nunca prováramos antes.
- Vocês precisam ver a sobremesa do almoço, dizia-nos ela
na hora do café. E durante toda a manhã a gente ficava pensando naquilo.
A panela de sopa e o bule de café, para os quais eu nunca
encontrava tempo, estavam de volta ao fogão, agora que Betsie supervisionava a
casa. Daí a pouco, um rio de gente - carteiros, policiais, velhos vagabundos,
rapazinhos de entrega, etc. - estava parando à nossa porta para desempoeirar os
pés e aquecer as mãos nas canecas de café - tudo exatamente como havia sido no
tempo da mamãe.
Enquanto isso, na loja, eu estava encontrando no trabalho
um gozo com que nunca tinha sonhado. Logo me vi fazer mais do que só atender os
fregueses e anotar registros. Queria aprender a consertar relógios.
Papai aceitou prontamente a tarefa de me ensinar. Aprendi
a reconhecer as peças móveis e fixas, a fazer uso adequado dos óleos e
soluções, e as técnicas do uso das ferramentas, do rebolo e do óculo de
aumento. Contudo a paciência de papai e sua devoção quase mística pela harmonia
dos mecanismos são coisas que não se aprendem.
Os relógios de pulso tinham surgido recentemente, e eu
fiz um curso especial para aprender a lidar com eles. Três anos após a morte de
mamãe, tornei-me a primeira mulher da Holanda a licenciar-se como fabricante de
relógios.
E foi assim que se estabeleceu o nosso padrão de vida, o
qual iria durar mais de vinte anos. Quando papai assentava a Bíblia de volta à
sua prateleira, após o café da manhã, eu e ele descíamos para a loja, enquanto
Betsie remexia a panela de sopa e fazia mágicas com três batatas e meio quilo
de carne de carneiro. Agora que meus olhos estavam atentos à receita e à
despesa da loja, esta começou a progredir, e logo, pudemos contratar uma
balconista para se encarregar do atendimento na parte da frente, enquanto eu e
papai trabalhávamos na oficina.
Havia sempre gente entrando e saindo deste compartimento
de trás. Às vezes, era um freguês; na maioria das vezes era simplesmente uma
visita - que ia desde o humilde operário calçado com nossos tradicionais
tamancos até o proprietário de uma frota de navios - todos confiando seus
problemas a papai. Ele sempre baixava a cabeça em oração, em busca da solução,
sem se perturbar com a presença de estranhos ou de nossos empregados.
Ele orava pelo seu trabalho também. Poucos eram os defeitos
que não conhecia. De vez em quando, porém, surgia um que o deixava confuso.
Então eu o ouvia dizer:
"Senhor, tu acionas as engrenagens das galáxias; tu
sabes o que é que faz os planetas girarem, e o que faz este relógio
funcionar..."
E ele estava sempre renovando suas afirmações, pois papai,
que amava a ciência, era leitor assíduo de uma dúzia de publicações científicas
de várias universidades. Durante anos, ele apresentou seus relógios àquele
"Que põe os átomos a dançar", "Que faz circularem as correntes
marítimas". A resposta a estas orações, algumas vezes, vinha bem no meio
da noite. Em várias ocasiões, quando eu chegava à minha banca pela manhã,
encontrava um relógio que havíamos deixado em centenas de pecinhas,
perfeitamente ajustado e tiquetaqueando alegremente.
Só havia uma coisa na loja que eu nunca aprendera a fazer
tão bem quanto Betsie: atender os fregueses e interessar-me pessoalmente por
cada pessoa que entrava. Várias vezes, quando alguém chegava, eu escapulia
pela porta e corria à cozinha.
- Betsie, quem é uma senhora gorda, de mais ou menos
cinqüenta anos, que tem um relógio de lapela, preso com uma fita de veludo
azul?
- É a Sra. van den Kenkel. O irmão dela voltou da
Indonésia com malária, e ela está cuidando dele. Corrie..., gritava quando eu
já ia correndo escada abaixo, pergunte-lhe pelo bebê da Sra. Rinker.
Alguns minutos depois, ao deixar a loja, a Sra. van den
Kenkel comentaria com o marido:
- Essa Corrie ten Boom é igualzinha à irmã.
Antes mesmo do falecimento da Tia Anna, no fim da década de vinte, as camas vazias do Beje começaram a ser ocupadas por uma longa sucessão de crianças que abrigávamos, e que por mais de dez anos alegraram o Beje com seus gritos e risos, e deixaram Betsie ocupada em abaixar bainhas de vestidos e calças.
Enquanto isso, as famílias de Willem e Nollie aumentavam
- Willem e Tine tinham quatro filhos; Nollie e Flip, seis. De há muito, Willem
havia deixado o pastorado, e abrira um abrigo de velhos em Hilversum, a 45
quilômetros de Haarlem.
Víamos a família de Nollie freqüentemente, já que a escola
em que estudavam - da qual Flip era o diretor - ficava em Haarlem. Era raro o
dia em que um deles não vinha ao Beje, para ver o vovô em sua oficina,
ou dar uma espiada para dentro das tigelas de Tia Betsie, ou então subir e
descer as escadas em companhia das crianças que estivessem morando conosco no
momento.
Foi no Beje que descobrimos o talento musical de
Peter. Aconteceu por causa do rádio. Nós traváramos conhecimento com essa
maravilha moderna em casa de um amigo.
"Uma orquestra completa", comentávamos.
Parecia-nos muito difícil conseguir tudo aquilo de uma
simples caixa. Começamos a economizar nossos tostões para adquirirmos um.
Muito antes de termos a quantia necessária, papai caiu
doente com uma forte hepatite que quase o levou. Durante o longo tempo de
hospitalização, sua barba se tornou branca como a neve. No dia em que
regressou, uma semana após ter completado setenta anos, um pequeno grupo de
amigos veio nos visitar. Representavam lojistas, garis, o dono de uma
indústria, um barqueiro do canal - pessoas que descobriram durante o período
de sua enfermidade o quanto papai significava para elas.
Haviam angariado dinheiro entre si, e comprado um rádio
de presente para ele. Era um desses modelos de mesa, antigos, grande com um
alto-falante em forma de concha. Ele veio nos trazer muitas alegrias nos anos
que se seguiram. Como nosso rádio pegava bem estações de toda a Europa, todos
os domingos, Betsie examinava os jornais ingleses, franceses e alemães, além
dos holandeses, para organizar nosso programa semanal de concertos e
recitais.
Num domingo, quando Nollie e sua família nos visitavam,
em meio a um concerto de Brahms, Peter falou de repente:
- Engraçado, o piano do rádio está desafinado.
- Ssssssss..., apressou-se Nollie.
Mas papai interveio:
- O que você quer dizer com isso, Peter?
- Uma nota está errada.
Trocamos olhares de espanto: que poderia saber um garoto
de oito anos? Papai levou-o ao velho piano de Tia Jans.
- Que nota, Peter?
Ele tocou uma escalinha ascendente até chegar ao Si que
vem logo acima do Dó central.
- Esta aqui.
Aí todos nós ouvimos perfeitamente: o Si do piano do concerto
realmente estava bemolizado. Passei o resto da tarde sentada ao piano com ele,
dando-lhe alguns testes musicais simples, e vi que era dono de uma
extraordinária memória musical; descobri que possuía também ouvido absoluto.
Daí em diante, ele se tornou meu aluno de música, e dentro de seis meses, já
assimilara tudo que eu poderia lhe ensinar, e passou a professores de técnica
mais apurada.
O rádio trouxe outras mudanças à nossa vida, a uma das
quais papai resistiu a princípio. De hora em hora ouvíamos as batidas do Big
Ben, pela BBC de Londres. Tendo na mão o seu cronômetro acertado pelo relógio
astronômico, papai afinal teve que concordar que a primeira batida do grande
relógio inglês coincidia mesmo com a hora exata.
Todavia ele se conservou ainda meio cético desse horário
inglês. Conhecia vários ingleses, e todos eles se atrasavam em seus
compromissos. Logo que se sentiu forte bastante para viajar de novo, recomeçou
suas idas semanais a Amsterdam para acertar o relógio pelo Observatório Naval.
Com o passar do tempo, notando que o Big Ben e o Observatório
Naval continuavam em perfeito acordo, ele começou a espaçar suas viagens, e
afinal, parou de vez. Por outro lado, o relógio astronômico estava sendo tão
sacudido e chocalhado pelo constante tráfego de carros na rua, que não era
mais o instrumento de precisão que havia sido. O auge da ignomínia aconteceu
quando papai acertou o relógio astronômico pelo rádio.
Apesar destas mudanças, a vida para nós três - eu, papai
e Betsie - continuou basicamente a mesma. As crianças que moravam conosco
cresceram e nos deixaram, ou para casar ou para trabalhar em outro lugar; mas
vinham nos visitar com freqüência. O centenário da loja chegou e passou; no
dia seguinte, eu e papai estávamos de volta à nossa banca de trabalho.
Até mesmo as pessoas que encontrávamos em nossa caminhada
diária eram sempre as mesmas. Embora a enfermidade de papai tivesse sido há
bastante tempo, o seu caminhar ainda era trôpego, e eu o acompanhava nesse seu
passeio diário pelas ruas do centro. Sempre o fazíamos à mesma hora. E como alguns
moradores de Haarlem tinham hábitos tão regulares quanto os nossos, sabíamos
exatamente a quem iríamos encontrar.
Muitos dos que cumprimentávamos já eram conhecidos ou
fregueses antigos; outros, víamos apenas nesse encontro diário: a mulher que
estaria varrendo a escada, o homem que estaria lendo o informativo comercial do
World Shipping News, no ponto do bonde, na Praça Grote Markt; e o
outro, a quem apelidáramos de "Buldogue", e que era o de quem mais
gostávamos.
Nós o chamávamos assim, não apenas porque sempre o víamos
acompanhado de dois enormes buldogues, seguros por uma trela, mas também
porque, sua pele enrugada, seu queixo proeminente, suas pernas curtas e
abauladas nos lembravam um de seus próprios animais. Sua afeição pelos cães era
o que mais nos impressionava. Enquanto caminhava, ele falava com eles e os
enchia de mimos. Papai e o "Buldogue" sempre tiravam o chapéu um
para o outro, cerimoniosamente, ao passarmos por ele.
Enquanto em Haarlem e no resto da Holanda passeávamos, cumprimentávamos amigos e varríamos escadas, nossos vizinhos do leste se preparavam para a guerra. Bem sabíamos o que estava acontecendo - não havia jeito de não se saber. Muitas vezes, à noite, girando o dial, captávamos uma "voz" da Alemanha. Não falava nem gritava: berrava. Estranhamente, na maioria das vezes, era a controlada Betsie quem reagia mais agressivamente - saltava da cadeira, e, correndo ao rádio, desligava-o bruscamente.
Nos intervalos, porém, nos esquecíamos daquilo. Mesmo
quando em suas visitas Willem nos vinha relembrar os fatos, ou quando nossas
cartas a fornecedores judeu-alemães retornavam carimbadas com "Endereço
ignorado", ainda nos esforçávamos para acreditar que o problema pertencia
apenas à Alemanha.
"Quanto tempo eles vão suportar?" indagávamos.
"Eles não vão agüentar muito tempo."
As transformações por que passava a Alemanha afetaram
nossa lojinha da Rua Barteljoris apenas uma vez. Foi na pessoa de um jovem
alemão. Era bastante comum aparecerem alemães para trabalharem algum tempo com
papai, pois sua reputação já transpusera os limites da Holanda.
Assim, quando aquele rapaz alto e simpático chegou à
loja com um certificado de aprendiz de uma boa firma de Berlim, papai contratou-o
sem hesitação. Otto revelou-nos orgulhosamente que pertencia à Juventude
Hitlerista. Uma incógnita para nós era a razão por que viera para a Holanda, já
que só encontrava defeitos nos holandeses e em nossos produtos.
- O mundo todo vai ver do que a Alemanha é capaz, dizia
muitas vezes.
Em seu primeiro dia de trabalho, veio à sala de jantar
para tomar café conosco e ouvir a leitura bíblica, com os outros empregados,
mas depois, nunca mais apareceu. Sempre ficava embaixo, sozinho. Quando lhe
perguntamos a razão, informou-nos que, embora não tivesse entendido a leitura,
por não saber holandês, percebera bem que papai havia lido o Velho Testamento,
que, disse-nos, era o "Livro de Mentiras" dos judeus.
Fiquei muito chocada, mas papai, apenas ressentido.
- Ele recebeu orientação errada, disse-me. Quando ele vir
que somos de confiança e que nós amamos este livro, vai compreender o seu erro.
Alguns dias depois, Betsie surgiu inesperadamente à porta
do hall que dava para a oficina e chamou-nos. Em cima, encontramos, sentada na
cadeira de mogno de Tia Jans, a dona da pensão onde Otto morava. Contou-nos
que, pela manhã, ao trocar sua roupa de cama, encontrara algo sob o
travesseiro. A seguir, retirou de sua sacola de feira uma faca curva de cerca
de trinta centímetros de comprimento. Outra vez, foi papai quem deu a
explicação mais caridosa.
- O pobre rapaz deve estar meio amedrontado, estando
sozinho num país estranho. Provavelmente, ele a comprou para se defender.
Era verdade que Otto estava sozinho. Não falava holandês,
nem fazia nenhuma tentativa para aprendê-lo, e, além de nossa família, poucas
pessoas falavam alemão ali naquela parte comercial da cidade. Nós o convidamos
várias vezes para nos visitar à noite, mas fosse porque não gostava de nossos
programas musicais, ou porque o dia sempre terminava como começara, isto é,
com oração e leitura da Bíblia, ele veio poucas vezes.
Afinal, papai teve que despedir Otto - o primeiro funcionário
que mandou embora em mais de sessenta anos de estabelecimento. E não foi por
causa da faca nem de seus sentimentos anti-semíticos, mas por sua
desconsideração para com Christofells, o velho consertador de relógios.
Logo nos primeiros dias, eu ficara espantada com sua descortesia.
Não que fizesse atos errados (pelo menos em nossa presença não fazia), mas
havia certas coisas que deixava de fazer. Tomava-lhe a dianteira ao entrar; não
o ajudava a tirar ou colocar o casaco, nunca se dispunha a pegar-lhe uma ferramenta
ou objeto que caísse. Era difícil precisar o que estava errado. Fomos a
Hilversum, num domingo, e, à mesa do almoço, comentei o fato, dizendo que o
julgava somente um caso de desatenção.
Willem balançou a
cabeça.
- É uma atitude bem deliberada, disse. Isto é porque
Christofells é velho. Os velhos não têm valor algum para o regime, pois é muito
difícil fazê-los aceitar a nova ideologia. Na Alemanha, estão até mesmo
ensinando o desrespeito aos mais velhos.
Olhamos para ele, espantados, tentando digerir tal idéia.
- Você deve estar enganado, Willem, disse papai. Otto é
muito cortês comigo; é até exagerado. E eu sou bem mais velho que Christofells.
- Com o senhor é diferente. O senhor é o patrão. Os velhos
e fracos é que têm que ser eliminados.
Fizemos a viagem de volta num silêncio abismado. Começamos
a observar Otto melhor. Como poderíamos adivinhar, na Holanda em 1939, que não
era na loja, onde era notado,' mas na rua, que Otto estava sujeitando
Christofells a uma verdadeira perseguição? Esbarrões e tropeções
"acidentais", um empurrão aqui, uma pisada ali, eram infligidos ao
pobre velho, e estavam tornando suas caminhadas, de casa para o serviço e
vice-versa, verdadeiros pesadelos.
Aquele velhinho aprumado e mal vestido era orgulhoso
demais para relatar-nos o que se passava. A verdade só veio à tona numa fria
manhã de fevereiro, quando Christofells apareceu na sala de jantar com o paletó
rasgado e o rosto em sangue. Mesmo então ele nada disse.
Desci à rua para apanhar seu chapéu que lá ficara, e
encontrei Otto cercado por um grupo de pessoas indignadas, que haviam
presenciado o ocorrido. Soube que, quando viravam a esquina para entrar no
beco, o rapaz tinha apertado o velho contra a parede lateral e raspado o rosto
dele na superfície áspera dos tijolos.
Ao despedi-lo, papai tentou argumentar com Otto e mostrar-lhe
por que tal procedimento era errado. Ele não respondeu. Sem dizer palavra,
apanhou as poucas ferramentas que lhe pertenciam, e, ainda em silêncio, deixou
a sala. À porta, voltou-se e olhou-nos - foi o mais profundo olhar de desprezo
que já vi.