segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 04


 A Relojoaria

             De pé sobre uma cadeira, eu limpava a janela da sala de jantar, e, de vez em quando, acenava para algum passante ocasional. Na cozinha, mamãe descascava batatas para o al­moço. Estávamos em 1918. A guerra terminara. Parecia ha­ver uma nova esperança no ar que transparecia até mesmo no modo como as pessoas caminhavam.

            Não era do feitio de mamãe deixar a torneira aberta com a água correndo daquele jeito, pensei. Ela não gostava de esperdiçar nada.

            - Corrie!

            A voz dela soou muito baixa; era quase um murmúrio.

            - O que foi, mamãe?

            - Corrie! chamou de novo.

            Foi então que ouvi o ruído da água que enchera a pia, a cair no assoalho. Pulei da cadeira e corri à cozinha. Ela esta­va de pé, uma das mãos na torneira, olhando-me com uma expressão estranha, enquanto a água se derramava a seus pés e se espalhava pelo chão.

            - O que houve, mamãe? gritei ao mesmo tempo que es­tendia a mão para a torneira. Desprendi seus dedos, fechei a água e afastei-a da poça que já se formava.

            - Corrie, repetiu ela.

            - Mamãe, a senhora está doente. Temos que levá-la para a cama.

            Segurei-a sob o braço, atravessei a sala de jantar com ela e comecei a subir. A um grito meu, Tia Anna desceu correndo e pegou o outro braço. Levamo-la para cima, e depois eu corri à loja, chamando papai e Betsie.

            Durante a hora que se seguiu, nós ficamos ali, vendo os efeitos de uma hemorragia cerebral se estenderem gradual­mente a todo o seu corpo. Primeiro, a paralisia chegou às mãos; e destas, passando pelos braços, às pernas. O Dr. van Veen, a quem nosso aprendiz fora buscar, não pôde fazer nada além do que nós mesmos havíamos feito.

            A consciência foi a última coisa que ela perdeu. Seus olhos permaneceram sempre bem abertos e atentos, demorando-se em cada um de nós amorosamente. Afinal, fecharam-se de­vagar, e pensamos que ela se fora. Entretanto, o Dr. van Veen assegurou-nos que se tratava de um estado de coma profun­do, do qual ela poderia sair para retornar à vida, ou morrer.

            Mamãe ficou inconsciente naquela cama por dois meses, e sempre havia um de nós a seu lado. (Nollie ficava à noite.) Certo dia a consciência voltou-lhe, tão inesperadamente quanto o der­rame se dera. Ela abriu os olhos e espiou ao redor. Lentamente, recobrou o uso dos braços e pernas o bastante para se mover um pouco sem ajuda de outrem, embora nunca recuperasse toda a destreza dos dedos, necessária para o tricô ou crochê.

            Nós a mudamos do quartinho, cuja janela dava para os fun­dos de outra casa, para o quarto de Tia Jans, de onde ela pode­ria apreciar o movimento da rua embaixo. Logo descobrimos que sua mente estava tão lúcida quanto antes; não lhe voltou, porém, a fala, a não ser de três palavras. Ela conseguia dizer: "sim", "não", e "Corrie", talvez por ter sido esta a última palavra que disse. Por isso mamãe chamava todo mundo de Corrie.

            Para nos comunicarmos, inventamos uma espécie de joguinho.

            - Corrie! ela me chamaria.

            - O que é, mamãe? Está pensando em alguém?

            - Sim.

            - Da família?

            - Não.

            - Uma pessoa que a senhora viu na rua?

            - Sim.

            - Um homem?

            - Não.

            Era uma mulher que ela conhecia há muito tempo.

            - Mamãe, aposto que é o aniversário dela.

            Daí, eu diria muitos nomes até ouvi-la, toda satisfeita, di­zer sim. Então eu escrevia um bilhetinho para a pessoa, di­zendo-lhe que mamãe a vira pela janela e desejava-lhe um feliz aniversário. Depois eu colocaria a caneta entre seus de­dos rígidos, e ela assinaria. Um rabisco de uma linha quebra­da era tudo o que restava de sua caligrafia redonda e bonita. Em pouco tempo, porém, tornou-se uma assinatura conheci­da e amada por muitos.

            Era realmente espantosa a qualidade de vida que ela conse­guia levar, naquele corpo paralítico. Observando-a naqueles três anos de imobilidade, descobri outra verdade a respeito do amor.

            Mamãe sempre expressara seu amor através de uma terrina de sopa ou de uma peça de costura. Agora que essas coi­sas lhe haviam sido tiradas, o seu amor, não obstante, conti­nuava tão perfeito quanto antes. Ela ficava sentada em sua cadeira junto à janela, dando seu amor a todos nós. Amava o povo que via na rua e o que não via: seu amor abarcava toda a cidade, a Holanda e o mundo. Foi assim que aprendi que o amor não pode ser aprisionado dentro de quatro paredes.

            A cada dia notávamos que a conversa de Nollie à mesa girava mais e mais em torno de um colega seu, um professor chamado Flip van Woerden. Quando este, afinal, fez sua visi­ta oficial, papai já havia ensaiado seu pequeno discurso de aprovação e bênção, pelo menos uma dúzia de vezes. Na noite anterior ao casamento, quando eu e Betsie ajudávamos ma­mãe a voltar para a cama, ela, de repente, rompeu em lágri­mas.        

            Com o uso do "joguinho", descobrimos que não, ela não estava descontente com o casamento; sim, ela gostava de Flip. O problema era que não seria realizada a solene e grave pa­lestra entre mãe e filha, que era prometida à jovem durante anos, e era também a única fonte de educação sexual que nossa sociedade taciturna lhe permitia.

            No fim, foi Tia Anna que, com olhos assustados e rosto em brasa, subiu as escadas até o quarto de Nollie naquela noite. Alguns anos antes, Nollie havia se mudado do nosso quartinho no topo da casa, para o de Tia Bep, e ali, ela e Tia Anna se fecharam para passar a meia hora de praxe. Não poderia existir, na Holanda, ninguém mais mal-informado sobre casamento do que Tia Anna, mas isso era um ritual que datava de séculos - a mulher mais velha tinha que ins­truir a mais jovem - e ninguém podia se casar sem passar por ele, tanto quanto não poderia dispensar o anel de noi­vado.

            Nollie estava maravilhosa em seu vestido branco e longo, mas foi de mamãe que não tirei os olhos. Apesar de estar vestida de preto, como sempre, ela me parecia subitamente juvenil. Seu olhar brilhava de alegria, pois este era o maior dos eventos que a família ten Boom presenciava.

            Eu e Betsie a levamos para a igreja cedo, e tenho a certeza de que poucas pessoas da família van Woerden e seus amigos sabiam que a graciosa e sorridente dama do primeiro banco não falava nem andava sozinha.

            Foi somente quando Nollie e Flip já desciam pelo centro da nave, que me lembrei de meus sonhos de um momento como aquele para mim e Karel. Olhei para Betsie alta e boni­ta, sentada do outro lado de mamãe. Ela sempre soubera que, por causa de sua saúde debilitada, nunca teria filhos, e por isso decidira não se casar. Eu, agora, tinha vinte e sete anos e ela, trinta e poucos. Naquele momento, senti com toda a certeza que nossa vida seria sempre assim: eu e Betsie ficaría­mos solteiras, vivendo no Beje. 

            Foi um pensamento alegre. Naquele instante, fiquei certa de que Deus havia aceitado a hesitante oferta de minhas emoções, que lhe havia feito quatro anos antes. Ao pensar em Karel com amor - que era como eu sempre pensava nele desde que tinha quatorze anos - não senti o menor traço de tristeza ou dor.

            "Abençoa Karel, Senhor Jesus", orei em silêncio. "E aben­çoa sua esposa também. Conserva-os unidos e perto de ti."

            Uma coisa era certa: eu nunca poderia ter feito aquela oração antes, sem o auxílio divino.

            O grande milagre do dia, porém, ocorreu mais tarde. Para o término do culto, tínhamos programado que se cantasse o hino "O Formoso Cristo" que era o predileto de mamãe. Ao cantá-lo agora, de pé, ouvi-a, assentada no banco, cantar tam­bém. Palavra após palavra, verso após verso, ela cantava; ma­mãe, que não conseguia dizer quatro palavras, cantava aque­las linhas maravilhosas sem um tropeço. Sua voz, que tinha sido alta e clara, soava agora rouca e áspera, mas para mim era como a voz de um anjo.

            Ela cantou todo o hino e, durante todo o tempo em que durou, fixei os olhos à minha frente. Não ousava voltar-me e olhar para ela com medo de quebrar o encanto. Quando, por fim, todos se assentaram, eu, mamãe e Betsie tínhamos os olhos marejados.

            A princípio, pensamos que aquilo fosse o começo de uma recuperação, porém, ela nunca conseguiu dizer de novo as palavras daquele hino, e nem voltou a cantar. Tinha sido ape­nas um momento isolado, e nós entendemos que fora um presente de Deus para nós, o seu presente de casamento. Um mês depois, com um sorriso nos lábios, mamãe nos deixou para sempre, durante o sono.

            Foi no fim de novembro daquele ano, que um resfriado comum causou uma grande reviravolta na casa. Betsie começou a espirrar e a fungar, e papai achou melhor que ela se afastasse de sua mesa, a qual ficava bem diante da porta, recebendo em cheio o ar gelado do inverno.

            Mas o Natal se aproximava - a época mais movimentada da loja. Com Betsie acamada, tive que começar a correr à loja, de vez em quando, para atender fregueses, fazer embru­lhos e evitar que papai se deslocasse de sua alta banca de trabalho dezenas de vezes por dia.

            Tia Anna garantiu-me que poderia cozinhar e cuidar de Betsie ao mesmo tempo. Foi assim que tomei lugar à mesa dela, anotando as vendas e as contas de consertos, registran­do as quantias gastas em peças e acessórios, e folheando os registros já existentes, achando difícil crer no que via.

            Mas quê? Não havia ali nem sombra de organização. Não se poderia saber se uma conta havia sido paga ou não, ou se o preço pedido era justo. Não se podia saber se estávamos lucrando ou tendo prejuízo.

            Numa tarde friorenta, fui à livraria da esquina e comprei um livro-caixa, e parti para impor um pouco de método àquela confusão. Noites e noites, após a porta estar fechada e as persianas descidas, eu ficava ali, examinando listas de esto­que e faturas de atacadistas.

            Às vezes eu consultava papai.

            - Quanto foi que o senhor cobrou do Sr. Hook por aquele conserto, no mês passado?

            Ele me olhava inexpressivamente.

            - Por quê? Ah... não sei realmente.

            - Era um Vacheron, papai; bem velho. O senhor teve que mandar buscar peças da Suíça. A conta do fornecedor está aqui e...

            Seu rosto se iluminou.

            - Ah, agora eu me lembro. Um ótimo relógio, Corrie. Dava prazer trabalhar nele. Era muito velho e o homem havia dei­xado acumular poeira. Relógio bom tem que ser conservado limpo, filha.

            - Quanto foi que o senhor cobrou, papai?

            Criei um sistema de cobrança, e, pouco a pouco, a lista de números começou a corresponder à de transações efetuadas. Gradualmente, descobri, também, que eu adorava aquele tra­balho. Sempre me sentira muito feliz dentro daquela lojinha, com seus tique-taques e seus mostradores de faces brilhantes. Agora, porém, eu percebi que gostava também do seu lado co­mercial. Gostava dos catálogos, das relações de estoque. Gosta­va de todo esse movimentado e vigoroso mundo dos negócios.

            De vez em quando eu me lembrava de que o resfriado de Betsie havia se alojado nos pulmões, e - como sempre acon­tecia - ameaçava tornar-se pneumonia. Então eu me repro­vava por não me sentir nem um pouco amolada com a pre­sente situação. À noite, porém, quando eu a ouvia tossir, ora­va com todo o fervor para que sarasse logo.

            Então, na antevéspera de Natal, quando eu já tinha fecha­do a loja e trancava a porta do hall, vi Betsie entrar pela porta lateral que dava para o beco, trazendo os braços cheios de flores. Quando me viu, ela me olhou assustada, como uma criança apanhada em falta.

            - Para o Natal, Corrie, explicou. Não podemos passar o Natal sem flores.

            - Betsie ten Boom, ralhei, há quanto tempo você está fa­zendo isto? É por isto que você não sara.

            - Eu fiquei a maior parte do tempo na cama! Verdade!... interrompeu-se com um acesso de tosse. Só me levantei por causa de coisas importantes.

            Levei-a para a cama, e depois dei uma volta pela casa toda, vendo-a com outros olhos, procurando as "coisas importan­tes" de Betsie. Como eu tinha observado pouco! Betsie tinha feito mudanças. Voltei ao seu quarto e apresentei-lhe as evi­dências.

            - Betsie, era importante mudar a disposição da louça do armário do canto?

            Ela ergueu os olhos para mim.

            - Era sim, respondeu em tom de desafio. Você punha de qualquer jeito.

            - E a porta do quarto de Tia Jans? O verniz está sendo retirado, e a porta lixada. Isto é trabalho pesado.

            - Mas aquela madeira é maravilhosa! Há muito tempo que eu queria tirar aquele verniz e ver. Ah, Corrie, continuou em voz baixa e penitente, sei que estou sendo egoísta deixan­do você na loja todos os dias. Vou ser mais cuidadosa para você não ter que ficar lá mais tempo; mas tem sido tão bom ficar aqui o dia todo, fazendo de conta que eu é que estou encarregada da casa, planejando tudo...

            Foi isso: nós tínhamos invertido a coisa. Foi espantoso, como tudo andou bem depois que realizamos a troca. Sob meus cuidados, a casa ficava arrumada; com Betsie, parecia brilhar. Ela descobria a beleza da madeira, dos desenhos, das cores, e a mostrava a nós.

            A pequena quantia de que dispúnhamos para alimentação, sob meu controle, quase que se evaporava no açougue, e se acabava de todo na padaria. Sob o de Betsie, que conseguia esticá-la mais, dava até para di­versos pratos especiais que nunca prováramos antes.

            - Vocês precisam ver a sobremesa do almoço, dizia-nos ela na hora do café. E durante toda a manhã a gente ficava pensando naquilo.

            A panela de sopa e o bule de café, para os quais eu nunca encontrava tempo, estavam de volta ao fogão, agora que Betsie supervisionava a casa. Daí a pouco, um rio de gente - cartei­ros, policiais, velhos vagabundos, rapazinhos de entrega, etc. - estava parando à nossa porta para desempoeirar os pés e aquecer as mãos nas canecas de café - tudo exatamente como havia sido no tempo da mamãe.

            Enquanto isso, na loja, eu estava encontrando no trabalho um gozo com que nunca tinha sonhado. Logo me vi fazer mais do que só atender os fregueses e anotar registros. Que­ria aprender a consertar relógios.

            Papai aceitou prontamente a tarefa de me ensinar. Aprendi a reconhecer as peças móveis e fixas, a fazer uso adequado dos óleos e soluções, e as técnicas do uso das ferramentas, do rebolo e do óculo de aumento. Contudo a paciência de papai e sua devoção quase mística pela harmonia dos mecanismos são coisas que não se aprendem.

            Os relógios de pulso tinham surgido recentemente, e eu fiz um curso especial para aprender a lidar com eles. Três anos após a morte de mamãe, tornei-me a primeira mulher da Holanda a licenciar-se como fabricante de relógios.

            E foi assim que se estabeleceu o nosso padrão de vida, o qual iria durar mais de vinte anos. Quando papai assentava a Bíblia de volta à sua prateleira, após o café da manhã, eu e ele descía­mos para a loja, enquanto Betsie remexia a panela de sopa e fazia mágicas com três batatas e meio quilo de carne de carnei­ro. Agora que meus olhos estavam atentos à receita e à despesa da loja, esta começou a progredir, e logo, pudemos contratar uma balconista para se encarregar do atendimento na parte da frente, enquanto eu e papai trabalhávamos na oficina.

            Havia sempre gente entrando e saindo deste compartimen­to de trás. Às vezes, era um freguês; na maioria das vezes era simplesmente uma visita - que ia desde o humilde operário calçado com nossos tradicionais tamancos até o proprietário de uma frota de navios - todos confiando seus problemas a papai. Ele sempre baixava a cabeça em oração, em busca da solução, sem se perturbar com a presença de estranhos ou de nossos empregados.

            Ele orava pelo seu trabalho também. Poucos eram os de­feitos que não conhecia. De vez em quando, porém, surgia um que o deixava confuso. Então eu o ouvia dizer:

            "Senhor, tu acionas as engrenagens das galáxias; tu sabes o que é que faz os planetas girarem, e o que faz este relógio funcionar..."

            E ele estava sempre renovando suas afirmações, pois pa­pai, que amava a ciência, era leitor assíduo de uma dúzia de publicações científicas de várias universidades. Durante anos, ele apresentou seus relógios àquele "Que põe os átomos a dançar", "Que faz circularem as correntes marítimas". A res­posta a estas orações, algumas vezes, vinha bem no meio da noite. Em várias ocasiões, quando eu chegava à minha banca pela manhã, encontrava um relógio que havíamos deixado em centenas de pecinhas, perfeitamente ajustado e tiquetaqueando alegremente.

            Só havia uma coisa na loja que eu nunca aprendera a fazer tão bem quanto Betsie: atender os fregueses e interessar-me pessoalmente por cada pessoa que entrava. Várias vezes, quan­do alguém chegava, eu escapulia pela porta e corria à cozinha.

            - Betsie, quem é uma senhora gorda, de mais ou menos cinqüenta anos, que tem um relógio de lapela, preso com uma fita de veludo azul?

            - É a Sra. van den Kenkel. O irmão dela voltou da Indonésia com malária, e ela está cuidando dele. Corrie..., gritava quan­do eu já ia correndo escada abaixo, pergunte-lhe pelo bebê da Sra. Rinker.

            Alguns minutos depois, ao deixar a loja, a Sra. van den Kenkel comentaria com o marido:

            - Essa Corrie ten Boom é igualzinha à irmã.

            Antes mesmo do falecimento da Tia Anna, no fim da déca­da de vinte, as camas vazias do Beje começaram a ser ocupa­das por uma longa sucessão de crianças que abrigávamos, e que por mais de dez anos alegraram o Beje com seus gritos e risos, e deixaram Betsie ocupada em abaixar bainhas de ves­tidos e calças.

            Enquanto isso, as famílias de Willem e Nollie aumenta­vam - Willem e Tine tinham quatro filhos; Nollie e Flip, seis. De há muito, Willem havia deixado o pastorado, e abrira um abrigo de velhos em Hilversum, a 45 quilômetros de Haarlem.

            Víamos a família de Nollie freqüentemente, já que a esco­la em que estudavam - da qual Flip era o diretor - ficava em Haarlem. Era raro o dia em que um deles não vinha ao Beje, para ver o vovô em sua oficina, ou dar uma espiada para dentro das tigelas de Tia Betsie, ou então subir e descer as escadas em companhia das crianças que estivessem morando conosco no momento.

            Foi no Beje que descobrimos o talento musical de Peter. Aconteceu por causa do rádio. Nós traváramos conhecimen­to com essa maravilha moderna em casa de um amigo.

            "Uma orquestra completa", comentávamos.

            Parecia-nos muito difícil conseguir tudo aquilo de uma sim­ples caixa. Começamos a economizar nossos tostões para ad­quirirmos um.

            Muito antes de termos a quantia necessária, papai caiu doente com uma forte hepatite que quase o levou. Durante o longo tempo de hospitalização, sua barba se tornou bran­ca como a neve. No dia em que regressou, uma semana após ter completado setenta anos, um pequeno grupo de amigos veio nos visitar. Representavam lojistas, garis, o dono de uma indústria, um barqueiro do canal - pessoas que desco­briram durante o período de sua enfermidade o quanto pa­pai significava para elas.

            Haviam angariado dinheiro entre si, e comprado um rádio de presente para ele. Era um des­ses modelos de mesa, antigos, grande com um alto-falante em forma de concha. Ele veio nos trazer muitas alegrias nos anos que se seguiram. Como nosso rádio pegava bem esta­ções de toda a Europa, todos os domingos, Betsie examina­va os jornais ingleses, franceses e alemães, além dos holan­deses, para organizar nosso programa semanal de concer­tos e recitais.

            Num domingo, quando Nollie e sua família nos visitavam, em meio a um concerto de Brahms, Peter falou de repente:

            - Engraçado, o piano do rádio está desafinado.

            - Ssssssss..., apressou-se Nollie.

            Mas papai interveio:

            - O que você quer dizer com isso, Peter?

            - Uma nota está errada.

            Trocamos olhares de espanto: que poderia saber um garo­to de oito anos? Papai levou-o ao velho piano de Tia Jans.

            - Que nota, Peter?

            Ele tocou uma escalinha ascendente até chegar ao Si que vem logo acima do Dó central.

            - Esta aqui.

            Aí todos nós ouvimos perfeitamente: o Si do piano do con­certo realmente estava bemolizado. Passei o resto da tarde sentada ao piano com ele, dando-lhe alguns testes musicais simples, e vi que era dono de uma extraordinária memória musical; descobri que possuía também ouvido absoluto. Daí em diante, ele se tornou meu aluno de música, e dentro de seis meses, já assimilara tudo que eu poderia lhe ensinar, e passou a professores de técnica mais apurada.

            O rádio trouxe outras mudanças à nossa vida, a uma das quais papai resistiu a princípio. De hora em hora ouvíamos as batidas do Big Ben, pela BBC de Londres. Tendo na mão o seu cronômetro acertado pelo relógio astronômico, papai afi­nal teve que concordar que a primeira batida do grande reló­gio inglês coincidia mesmo com a hora exata.

            Todavia ele se conservou ainda meio cético desse horário inglês. Conhecia vários ingleses, e todos eles se atrasavam em seus compromissos. Logo que se sentiu forte bastante para viajar de novo, recomeçou suas idas semanais a Amsterdam para acertar o relógio pelo Observatório Naval.

            Com o passar do tempo, notando que o Big Ben e o Obser­vatório Naval continuavam em perfeito acordo, ele começou a espaçar suas viagens, e afinal, parou de vez. Por outro lado, o relógio astronômico estava sendo tão sacudido e chocalha­do pelo constante tráfego de carros na rua, que não era mais o instrumento de precisão que havia sido. O auge da ignomí­nia aconteceu quando papai acertou o relógio astronômico pelo rádio.

            Apesar destas mudanças, a vida para nós três - eu, papai e Betsie - continuou basicamente a mesma. As crianças que moravam conosco cresceram e nos deixaram, ou para casar ou para trabalhar em outro lugar; mas vinham nos visitar com freqüên­cia. O centenário da loja chegou e passou; no dia seguinte, eu e papai estávamos de volta à nossa banca de trabalho.

            Até mesmo as pessoas que encontrávamos em nossa cami­nhada diária eram sempre as mesmas. Embora a enfermidade de papai tivesse sido há bastante tempo, o seu caminhar ainda era trôpego, e eu o acompanhava nesse seu passeio diário pelas ruas do centro. Sempre o fazíamos à mesma hora. E como al­guns moradores de Haarlem tinham hábitos tão regulares quanto os nossos, sabíamos exatamente a quem iríamos encontrar.

            Muitos dos que cumprimentávamos já eram conhecidos ou fregueses antigos; outros, víamos apenas nesse encontro diário: a mulher que estaria varrendo a escada, o homem que estaria lendo o informativo comercial do World Shipping News, no pon­to do bonde, na Praça Grote Markt; e o outro, a quem apelidára­mos de "Buldogue", e que era o de quem mais gostávamos.

            Nós o chamávamos assim, não apenas porque sempre o víamos acom­panhado de dois enormes buldogues, seguros por uma trela, mas também porque, sua pele enrugada, seu queixo proemi­nente, suas pernas curtas e abauladas nos lembravam um de seus próprios animais. Sua afeição pelos cães era o que mais nos impressionava. Enquanto caminhava, ele falava com eles e os enchia de mimos. Papai e o "Buldogue" sempre tiravam o cha­péu um para o outro, cerimoniosamente, ao passarmos por ele.

            Enquanto em Haarlem e no resto da Holanda passeáva­mos, cumprimentávamos amigos e varríamos escadas, nos­sos vizinhos do leste se preparavam para a guerra. Bem sabía­mos o que estava acontecendo - não havia jeito de não se saber. Muitas vezes, à noite, girando o dial, captávamos uma "voz" da Alemanha. Não falava nem gritava: berrava. Estra­nhamente, na maioria das vezes, era a controlada Betsie quem reagia mais agressivamente - saltava da cadeira, e, correndo ao rádio, desligava-o bruscamente.

            Nos intervalos, porém, nos esquecíamos daquilo. Mesmo quando em suas visitas Willem nos vinha relembrar os fatos, ou quando nossas cartas a fornecedores judeu-alemães retornavam carimbadas com "Endereço ignorado", ainda nos esforçávamos para acreditar que o problema pertencia apenas à Alemanha.

            "Quanto tempo eles vão suportar?" indagávamos. "Eles não vão agüentar muito tempo."

            As transformações por que passava a Alemanha afetaram nossa lojinha da Rua Barteljoris apenas uma vez. Foi na pes­soa de um jovem alemão. Era bastante comum aparecerem alemães para trabalharem algum tempo com papai, pois sua reputação já transpusera os limites da Holanda.

            Assim, quan­do aquele rapaz alto e simpático chegou à loja com um certi­ficado de aprendiz de uma boa firma de Berlim, papai con­tratou-o sem hesitação. Otto revelou-nos orgulhosamente que pertencia à Juventude Hitlerista. Uma incógnita para nós era a razão por que viera para a Holanda, já que só encontrava defeitos nos holandeses e em nossos produtos.

            - O mundo todo vai ver do que a Alemanha é capaz, dizia muitas vezes.

            Em seu primeiro dia de trabalho, veio à sala de jantar para tomar café conosco e ouvir a leitura bíblica, com os outros em­pregados, mas depois, nunca mais apareceu. Sempre ficava em­baixo, sozinho. Quando lhe perguntamos a razão, informou-nos que, embora não tivesse entendido a leitura, por não saber holandês, percebera bem que papai havia lido o Velho Testa­mento, que, disse-nos, era o "Livro de Mentiras" dos judeus.

            Fiquei muito chocada, mas papai, apenas ressentido.

            - Ele recebeu orientação errada, disse-me. Quando ele vir que somos de confiança e que nós amamos este livro, vai compreender o seu erro.

            Alguns dias depois, Betsie surgiu inesperadamente à por­ta do hall que dava para a oficina e chamou-nos. Em cima, encontramos, sentada na cadeira de mogno de Tia Jans, a dona da pensão onde Otto morava. Contou-nos que, pela manhã, ao trocar sua roupa de cama, encontrara algo sob o travesseiro. A seguir, retirou de sua sacola de feira uma faca curva de cerca de trinta centímetros de comprimento. Outra vez, foi papai quem deu a explicação mais caridosa.

            - O pobre rapaz deve estar meio amedrontado, estando sozinho num país estranho. Provavelmente, ele a comprou para se defender.

            Era verdade que Otto estava sozinho. Não falava holan­dês, nem fazia nenhuma tentativa para aprendê-lo, e, além de nossa família, poucas pessoas falavam alemão ali naquela parte comercial da cidade. Nós o convidamos várias vezes para nos visitar à noite, mas fosse porque não gostava de nossos programas musicais, ou porque o dia sempre termina­va como começara, isto é, com oração e leitura da Bíblia, ele veio poucas vezes.

            Afinal, papai teve que despedir Otto - o primeiro funcio­nário que mandou embora em mais de sessenta anos de esta­belecimento. E não foi por causa da faca nem de seus senti­mentos anti-semíticos, mas por sua desconsideração para com Christofells, o velho consertador de relógios.

            Logo nos primeiros dias, eu ficara espantada com sua des­cortesia. Não que fizesse atos errados (pelo menos em nossa presença não fazia), mas havia certas coisas que deixava de fazer. Tomava-lhe a dianteira ao entrar; não o ajudava a tirar ou colocar o casaco, nunca se dispunha a pegar-lhe uma fer­ramenta ou objeto que caísse. Era difícil precisar o que estava errado. Fomos a Hilversum, num domingo, e, à mesa do al­moço, comentei o fato, dizendo que o julgava somente um caso de desatenção.

Willem balançou a cabeça.

            - É uma atitude bem deliberada, disse. Isto é porque Christofells é velho. Os velhos não têm valor algum para o regime, pois é muito difícil fazê-los aceitar a nova ideologia. Na Alemanha, estão até mesmo ensinando o desrespeito aos mais velhos.

            Olhamos para ele, espantados, tentando digerir tal idéia.

            - Você deve estar enganado, Willem, disse papai. Otto é muito cortês comigo; é até exagerado. E eu sou bem mais velho que Christofells.

            - Com o senhor é diferente. O senhor é o patrão. Os ve­lhos e fracos é que têm que ser eliminados.

            Fizemos a viagem de volta num silêncio abismado. Come­çamos a observar Otto melhor. Como poderíamos adivinhar, na Holanda em 1939, que não era na loja, onde era notado,' mas na rua, que Otto estava sujeitando Christofells a uma verdadeira perseguição? Esbarrões e tropeções "acidentais", um empurrão aqui, uma pisada ali, eram infligidos ao pobre velho, e estavam tornando suas caminhadas, de casa para o serviço e vice-versa, verdadeiros pesadelos.

            Aquele velhinho aprumado e mal vestido era orgulhoso demais para relatar-nos o que se passava. A verdade só veio à tona numa fria manhã de fevereiro, quando Christofells apareceu na sala de jantar com o paletó rasgado e o rosto em sangue. Mesmo então ele nada disse.

            Desci à rua para apanhar seu chapéu que lá ficara, e encontrei Otto cercado por um grupo de pes­soas indignadas, que haviam presenciado o ocorrido. Soube que, quando viravam a esquina para entrar no beco, o rapaz tinha apertado o velho contra a parede lateral e raspado o rosto dele na superfície áspera dos tijolos.

            Ao despedi-lo, papai tentou argumentar com Otto e mos­trar-lhe por que tal procedimento era errado. Ele não respon­deu. Sem dizer palavra, apanhou as poucas ferramentas que lhe pertenciam, e, ainda em silêncio, deixou a sala. À porta, voltou-se e olhou-nos - foi o mais profundo olhar de despre­zo que já vi.