segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 03


 Karel

             Conheci Karel em uma das famosas recepções de mamãe. Nunca consegui me lembrar se foi um aniversário, o nasci­mento de uma criança, um aniversário de casamento - ma­mãe arranjava uma festa por qualquer motivo. Willem apre­sentou-o como um amigo da cidade de Leiden, e ele apertou a mão de todos nós, um por um. Apertei sua mão forte, olhei aqueles olhos castanhos, e apaixonei-me no mesmo instante.

            Logo que todos já estavam servidos, sentei-me a fim de ficar olhando para ele. Ele parecia totalmente inconsciente de minha presença, mas isso era natural. Eu tinha quatorze anos, enquanto ele e Willem já eram universitários, as barbas ralas começando a despontar, a conversa entremeada de fu­maça de charuto.

            Para mim, era bastante estar na mesma sala que ele. Quanto a não ser notada, eu já estava acostumada. Nollie é que o era sempre, embora, como quase toda moça bonita, ela não des­se a mínima importância àquilo. Quando um rapaz lhe pedia uma mecha do seu cabelo - método então usado para se de­clarar amor - ela arrancava alguns fiapos do nosso velho ta­pete cinzento, amarrava com uma fitinha azul, e fazia de mim o seu portador. Por essa época, o tapete estava bem desbastado, e o coração de um bom número de rapazes, partido.

            Eu, ao contrário, apaixonei-me por todos os meninos da classe, um após outro, numa espécie de ciclo inevitável e cons­tante. Mas, como não fosse bonita, e, ainda por cima, tímida demais para externar meus sentimentos, toda aquela gera­ção de rapazes estava passando completamente despercebi­da da menina da cadeira 32.

            Com Karel, porém, seria diferente, pensei enquanto o via mexer o café com uma colherinha. Eu iria amá-lo para sem­pre.

            Foi somente dois anos depois, que o vi de novo. No inver­no de 1908 eu e Nollie fomos a Leiden, para visitar Willem na Universidade. Ele ocupava um quarto escassamente mobilia­do no quarto andar de uma residência familiar. Acolheu-nos a ambas com um só abraço, e depois correu à janela.

            - Olhem, disse retirando do peitoril um pãozinho doce recheado que pusera ali para gelar, comprei isto para vocês. É melhor comerem logo, antes que meus amigos esfaimados apareçam por aqui.

            Sentamo-nos a saborear o precioso pãozinho. Eu sabia que, para comprá-lo, Willem devia ter ficado sem almoço. Um minuto depois, a porta foi escancarada e quatro de seus cole­gas irromperam quarto adentro - altos, vozes graves, usando casacos de gola remendada e punho puído. Entre eles, Karel.

            Engoli o último pedacinho de pão, limpei as mãos na saia, e levantei-me. Willem apresentou-nos. Quando chegou a vez de Karel, este interrompeu-o.

            - Nós já nos conhecemos.

            Inclinou-se ligeiramente.

            - Lembra-se de mim? Eu a conheci naquela festa em sua casa.

            Olhei para Nollie - não, ele estava dirigindo-se era a mim mesmo. Do meu coração brotaram palavras de contentamento, mas minha boca continha ainda os restos do pãozinho doce, e elas nunca me conseguiram chegar aos lábios. Os ra­pazes se sentaram no assoalho, e começaram a falar anima­damente, todos de uma vez.

            Sentada na cama, ao meu lado, Nollie aderiu à conversa­ção com toda a naturalidade, como se visitar aquela escola fosse um evento diário em nossa vida. Uma razão era que ela parecia pertencer ao grupo: tinha dezoito anos e usava saias longas, enquanto eu estava dolorosamente cônscia dos vinte centímetros de meia escolar - grossa e preta - que me cobriam as pernas, da barra do vestido até o sapato.

            Outra coisa: Nollie sabia o que conversar. No ano anterior, ela começara a cursar a Escola Normal. Na verdade, ela não queria ser professora, mas, naquela época, as universidades não ofereciam bolsa de estudos para moças, e a escola nor­mal era bem menos dispendiosa. Bem, ela participou à von­tade, falando com facilidade sobre os assuntos de interesse dos rapazes - a nova teoria da relatividade, recentemente proposta por um tal de Einstein, e a probabilidade do Almi­rante Peary chegar ou não ao Pólo Norte.

            - E você, Corrie, vai ser professora também?

            Karel sorria para mim, sentado no chão a meus pés. Senti um calor subir-me ao rosto, começando do pescoço.

            - Quero dizer, no ano que vem, insistiu. Você está no últi­mo ano do curso secundário, não está?

            - Sim... quero dizer, não. Vou ficar em casa ajudando a mamãe e Tia Anna.

            Minha resposta saiu curta e seca. Por que é que eu não conseguia dizer nada, tendo tanto para dizer?

            Quando terminei o curso, na primavera, assumi a responsabilidade do trabalho da casa. De há muito isto fora delibe­rado em família, mas agora tínhamos mais uma razão: Tia Bep estava tuberculosa.

            A doença era, então, incurável. O único tratamento conhecido era repouso num sanatório, mas isso só para ricos. E assim, durante meses e meses, Tia Bep ficou deitada em seu quartinho, a vida se esvaindo em meio a acessos de tosse.

            Para diminuir o perigo de contágio, somente Tia Anna en­trava ali. Ela cuidava da irmã o dia todo, e, às vezes, a noite toda também. Assim, todo o serviço da casa - cozinhar, lavar, limpar - passou para mim. Eu adorava trabalhar, e, se não fosse pela doença de Tia Bep eu me sentiria completamente feliz. A sombra dela porém, obscurecia tudo, não só pela sua doença, mas também por causa de toda a sua vida triste e frustrada.

            Muitas vezes, ao passar a bandeja de alimento para Tia Anna, eu entrevia o interior do quarto. Via as pobres lembrancinhas, souvenirs de seus trinta anos passados nas casas em que trabalhara: vidros de perfume vazios há muito, pois as boas famílias sempre davam perfumes à governanta, no Natal. Fotografias desbotadas, velhos daguerreótipos de cri­anças que agora tinham seus próprios filhos e netos. Aí a porta se fechava e eu me deixava ficar ali, naquele corredor estreito, cujo teto era o beirai do telhado, desejando ardente­mente poder dizer alguma coisa, querendo poder ajudar um pouco, desejando amá-la melhor.

            Certa vez falei disso a mamãe. Ela também estava come­çando a passar mais e mais tempo de cama. Antes, sempre que a dor na vesícula ficava insuportável, ela se submetia a uma operação. Após a última, porém, ela sofrera um peque­no derrame e não poderia mais ser operada. Muitas vezes, ao preparar a bandeja de Tia Bep, fazia uma para ela também.

            Dessa vez, quando cheguei com seu almoço, ela escrevia cartas. Sempre que não estava trabalhando com suas velozes agulhas, fazendo gorros e roupas de bebê para toda a vizi­nhança, estava escrevendo mensagens de conforto para qua­se todos os entrevados e doentes de Haarlem. Nunca lhe ocor­ria que ela mesma passara a maior parte de sua vida na cama.

            - Esse pobre homem, Corrie, - disse-me no momento em que entrei, - está confinado ao quarto há três anos. Imagine só, fechado em casa, sem ver o céu.

            Dei uma espiada para fora, pela única janela do quarto.

            - Mamãe, comecei depois de colocar a bandeja na cama e sentar-me ao seu lado, será que a gente não pode fazer nada por Tia Bep? Quero dizer, é uma pena que ela tenha de viver seus últimos dias aqui, num lugar que sempre detestou, em vez de estar onde foi tão feliz, como na casa da família Waller, ou outra qualquer.

            Ela depôs a caneta e olhou para mim.

            - Corrie, disse por fim, Bep tem sido feliz aqui. Nem mais nem menos do que o foi em outro lugar.

            Fitei-a sem compreender.

            - Sabe quando foi que ela começou a elogiar os Waller? continuou. Foi no dia em que deixou a casa deles. Enquanto lá esteve, só tinha queixas. Os Waller nem se comparavam aos Hook, onde havia estado antes. Acontece, porém, que, quando ela estava com os Hook, tinha sido muito infeliz. A felicidade não depende do lugar onde nos encontramos, Corrie. É uma disposição que existe dentro de nós.

            A morte de Tia Bep teve um efeito muito forte sobre as três irmãs. Mamãe e Tia Anna redobraram seu trabalho de cozinhar e costurar para os pobres, como se tivessem perce­bido de novo como a vida humana é breve. Tia Jans, por sua vez, pareceu aproximar-se mais do seu próprio fim.

            - Minha própria irmã! dizia várias vezes por dia. Pois po­dia ter sido eu!

            Mais ou menos um ano após a morte de Tia Bep, um novo médico passou a se encarregar das visitas, antes fei­tas pelo Dr. Blinker. Seu nome era Dr. Jan van Veen. Com ele veio sua jovem irmã, Tine van Veen, que era enfermei­ra. Ele trouxe também uma novidade: um aparelho para tirar a pressão arterial. Não sabíamos o que era aquilo, mas todos se submeteram ao processo de enrolar aquele pedaço de lona ao redor do braço e bombear o ar para enchê-lo.

            Tia Jans, que adorava todo e qualquer instrumento médi­co, simpatizou-se bastante com o Dr. Veen, e daí por diante, passou a consultar com ele tantas vezes quantas lhe permitis­se sua situação financeira. Alguns anos depois, o Dr. Veen descobriu que Tia Jans tinha diabete.

            Naquela época, isso era, à semelhança da tuberculose, uma sentença de morte. Durante alguns dias toda a família ficou chocada. Depois de receá-la durante tantos anos, aí estava a temida presença da morte. Ao receber a notícia, Tia Jans foi direto para a cama.

            A inatividade, porém, não combinava com sua personali­dade vigorosa, e um dia ela nos surpreendeu a todos, apare­cendo para o café exatamente às 8:10h, informando-nos que os médicos muitas vezes se enganam.

            - Esses exames e análises, disse Tia Jans que neles cria piamente, o que é realmente que eles provam?

            A partir desse dia ela se atirou ao seu trabalho mais que nunca - escrevia, fazia palestras, formava clubes, iniciava proje­tos. Em 1914, a Holanda, assim como o resto da Europa, estava se mobilizando para a guerra, e, de um dia para o outro, as ruas de Haarlem encheram-se de soldados. De sua janela que dava para a rua, Tia Jans os via passeando e olhando as vitrines. Quase todos eram bem jovens, estavam sem dinheiro e saudo­sos do lar. Foi aí que teve a idéia de criar um centro para eles.

            Tal coisa era novidade naqueles dias, e Tia Jans pôs todo seu entusiasmo no projeto. O bonde à tração animal, que circulava pela nossa rua, fora substituído por um elétrico. Esse também parava, freios rangendo, fagulhas voando dos trilhos e do cabo aéreo, quando Tia Jans se punha majestosa­mente à porta do Beje. Ela subia a bordo segurando com uma das mãos a longa saia preta, e tendo na outra uma lista com o nome das ricas damas que poderiam vir a sustentar o novo projeto.

            Somente nós, que a conhecíamos, sabíamos que, debaixo de toda aquela atividade, havia um terror monstruo­so a impulsioná-la.

            Enquanto isso, sua enfermidade apresentava mais proble­mas financeiros. Toda semana era necessário um teste de verificação do nível do açúcar no sangue, teste esse que en­volvia um processo dispendioso, pois o Dr. Veen ou sua irmã tinham que vir à nossa casa.

            Depois de algum tempo, Tine me ensinou a fazer o teste. Tinha várias etapas, das quais a mais delicada era a final: aquecer a mistura até uma temperatura determinada. Era difícil conseguir que nosso fogão fizesse qualquer coisa com precisão, mas afinal, aprendi, e daí para a frente, todas as sextas-feiras, eu recolhia e misturava o material, e fazia o teste. Se a mistura depois de aquecida continuasse clara, tudo estava bem. Se escurecesse, eu devia notificar ao Dr. van Veen.

            Naquela primavera, Willem veio passar alguns dias conosco antes de sua ordenação. Ele se formara na universidade dois anos antes, e agora terminava seu último período na Facul­dade de Teologia. Em uma noite cálida, estávamos todos as­sentados à mesa da sala de jantar. Papai, com trinta relógios dispostos diante de si, fazia pequenas anotações em um ca­derno, com sua caligrafia precisa e elegante: "dois segundos atrasado, cinco segundos adiantado", e Willem lia em voz alta um trecho da história da reforma holandesa.

            De repente, a campainha da porta lateral soou. Havia um espelho do lado de fora da janela da sala, que nos permitia ver quem estava à porta, antes mesmo de abri-la. Dei uma espiada rápida, e levantei-me de um salto.

            - Corrie, gritou Betsie em tom de recriminação, olhe sua saia!

            Eu nunca me lembrava de que estava usando saias longas agora, e várias vezes Betsie teve que remendar os rasgões que eu arranjava, sempre que saía depressa demais. Dessa vez desci de um pulo os cinco degraus. À porta, com um ramalhete de margaridas na mão, estava Tine van Veen.

            - Para sua mãe, Corrie, disse ela assim que abri a porta, estendendo-me as flores. Espero que ela...

            - Não, não. Você mesma entrega. Está tão bonita assim!

            E sem mesmo ajudá-la a tirar o casaco, empurrei a espantada moça escada acima. Introduzi-a na sala, quase pisando seus calca­nhares, a fim de ver a expressão de Willem. Eu já sabia como ia ser. Até então, eu tinha vivido só de romances; retirava da biblio­teca pública livros em inglês e alemão, além de holandês, e, mui­tas vezes, os que eu gostava, lia nas três línguas. Havia lido milha­res de vezes a cena em que a mocinha conhece o herói.

            Willem pôs-se de pé com movimentos lentos, seus olhos presos aos de Tine. Papai também se levantou.

            - Tine van Veen, disse em seu estilo antigo, permita-me apresentá-la a nosso filho Willem. Willem, esta é a moça, cujo talento e bondade você já nos ouviu elogiar.

            Duvido que algum dos dois tenha escutado o que papai disse. Estavam se olhando, como se não houvesse mais nin­guém na sala, nem mesmo no mundo.

            Willem e Tine casaram-se dois meses após a ordenação dele. Durante todo o tempo da preparação, só um pensamen­to ocupava minha mente: Karel vai estar presente.

            O dia do casamento amanheceu frio, mas claro. Imediata­mente, meus olhos encontraram Karel no meio da pequena multidão parada em frente à igreja. Usava casaca e cartola, como todos os outros homens, mas era, sem dúvida, o mais simpático de todos.

            Quanto a mim, eu mudara muito desde que o vira pela última vez. A diferença de idade entre nós - cinco anos - não parecia mais tão grande quanto antes.

            Além disso, eu me sentia... não, bonita não. Mesmo em um instante tão romântico, eu não poderia me convencer dis­to. Sabia que meu queixo era quadrado demais, minhas per­nas muito compridas e minhas mãos muito grandes. Mas eu cria firmemente - todos os livros o afirmavam - que para o homem que me amasse eu seria linda.

            Betsie tinha arranjado meu cabelo. Depois de trabalhar durante uma hora com o ferro de anelar, conseguira ajeitá-lo todo no alto da cabeça. Por um milagre, até o momento, ain­da estava arrumado. Ela também havia confeccionado meu vestido de seda, assim como fizera os de todas da família, costurando a noite, à luz fraca da lâmpada, pois a loja ficava aberta de segunda a sábado, e ela não gostava de costurar aos domingos.

            Examinando as outras mulheres presentes, verifiquei que nossas roupas estavam tão elegantes quanto as de qualquer uma. Ninguém poderia supor, pensei ao me encaminhar jun­tamente com os outros para a entrada, que papai tinha aber­to mão de alguns charutos, e Tia Jans do carvão para o aque­cimento de seus aposentos, a fim de comprarmos a seda que agora nos envolvia, e ciciava quando caminhávamos.

            - Corrie?

            À minha frente estava Karel, alto, cartola nas mãos, com os olhos no meu rosto, parecendo meio indeciso.

            - Corrie?

            - Sim, sou eu! respondi sorrindo. Sou eu, Karel; e aí está você! E este é o momento com que sonhei tanto!

            - Mas você cresceu! Perdão, Corrie, naturalmente que cres­ceu. É que sempre pensei em você como a garotinha de gran­des olhos azuis.

            Olhou para mim um pouco mais, e depois prosseguiu sua­vemente:

            - ... e agora a garota é uma moça encantadora!

            De repente, pareceu-me que a música do órgão era tocada para nós, que o braço que ofereceu a mim era a lua, e a mi­nha mão enluvada apoiada nele era o único elo que me pren­dia ao chão, e me impedia de sair voando para o alto, acima dos angulosos telhados de Haarlem.

            Foi numa chuvosa e fria sexta-feira de janeiro que meus olhos me contaram algo que, a princípio, me recusei a aceitar. O líquido do exame, em seu recipiente de vidro sobre o fogão, estava turvo, bem escuro.

            Encostei-me à pia e fechei os olhos.

            "Ó Deus, concede que eu tenha cometido um engano!"

            Rememorei as etapas da análise; olhei os frascos de subs­tâncias e os utensílios de aferição. Não, eu havia feito tudo do mesmo jeito de sempre.

            Devia ser por causa desta cozinha, então. Era sempre tão escuro naquele quartinho minúsculo. Segurei a prove­ta com um pegador de panela, e fui até a janela da sala de jantar.

            Preto. Negro como o próprio medo.

            Ainda com o frasco na mão, desci os cinco degraus e atra­vessei a porta traseira para a oficina. Papai, com seu óculo de aumento preso ao olho, espiava por sobre o ombro do seu mais recente aprendiz, procurando, com toda a perícia, uma peça infinitamente pequena, por entre as que se encontra­vam espalhadas na banca de trabalho à sua frente.

            Olhei para dentro da loja, através do vidro da porta. Betsie, por detrás de sua mesa-caixa, falava com uma freguesa. Não; não era uma freguesa, corrigi-me, era uma importuna. Eu conhecia bem aquela senhora. Sempre vinha aqui pedir con­selhos sobre relógios, e depois comprava-os na nova loja da rua, na relojoaria dos Kan. Nem papai nem Betsie pareciam se preocupar com o fato de que coisas assim estavam aconte­cendo cada vez mais.

            Quando ela saiu, enveredei pela porta com o teste revelador na mão.

            - Betsie, disse, chorando, Betsie, está escuro. Como va­mos dizer isto a ela? O que vamos fazer?

            Betsie saiu de detrás da mesa apressadamente, e me abra­çou. Papai também veio e entrou na loja. Os olhos dele foram do vidro para Betsie e dela para mim.

            - Você fez tudo certinho, Corrie? em todos os detalhes?

            - Infelizmente, sim.

            - E acho que fez mesmo, filha; mas precisamos da pala­vra do médico também.

            - Vou levar lá agora, disse.

            Derramei o líquido escuro em um vidrinho e corri com ele pelas ruas molhadas e escorregadias de Haarlem.

            Havia uma nova enfermeira agora no consultório e tive que aguardar meia hora, na sala de espera, silenciosamente, sentindo-me horrivelmente apreensiva. Afinal, o paciente saiu e o Dr. van Veen pegou o vidrinho e levou para o seu labora­tório.

            - Não há dúvida, Corrie, disse ao regressar. Sua tia tem no máximo três semanas de vida.

            Quando voltei para casa, fizemos uma reunião de família: mamãe, Tia Anna, papai, Betsie e eu. Nollie só retornaria à noite. Todos concordamos em que ela precisava saber logo.

            - Vamos contar-lhe todos juntos, papai decidiu mas eu falarei as palavras necessárias. Talvez... seu rosto se ilumi­nou um pouco, talvez ela se alegre de pensar em tudo que já realizou. Ela dá tanta importância a realizações. E quem sabe se ela não está certa?

            Assim, subimos em fila a escada para os quartos de Tia Jans. Papai bateu à porta.

            - Entre, disse ela. E depois concluiu como sempre fazia, e feche a porta antes que eu pegue uma corrente de ar.

            Estava sentada à sua mesa redonda de mogno, escreven­do um novo apelo em favor do seu centro para soldados. Ao ver quantas pessoas entravam, largou a caneta. Olhou de um para outro até chegar em mim, e aí soltou uma exclamação sufocada. Era sexta-feira de manhã, e eu ainda não havia levado o resultado do exame.

            - Minha querida cunhada, começou papai gentilmente, há uma viagem feliz que cada filho de Deus tem que fazer mais cedo ou mais tarde. Sabe, Jans, alguns vão a ele de mãos vazias, mas você não!

            - Todos esses clubes..., aventurou-se Tia Anna.

            - Seus panfletos..., ajuntou mamãe.

            - O dinheiro que a senhora levantou..., disse Betsie.

            - Suas palestras..., comecei.

            Nossos bem intencionados esforços, porém, deram em nada.

            Aquele rosto orgulhoso abateu-se bem diante de nossos olhos. Tia Jans levou as mãos ao rosto e começou a chorar.

            - Vazia! disse por fim, entre lágrimas. Como é que se pode dar algo a Deus? Que lhe interessam nossas ninharias?

            Enquanto a observávamos quase sem poder acreditar, ela descobriu o rosto e, com lágrimas escorrendo, murmurou:

            - Senhor Jesus, eu te agradeço porque temos de ir a ti de mãos vazias. Eu te agradeço porque, na cruz, tu fizeste tudo, tudo mesmo; e é só isto que precisamos saber com certeza, na vida e na morte.

            Mamãe a abraçou e as duas ficaram unidas por um mo­mento. Eu estava presa ao solo. Sabia que havia presenciado um mistério.

            Era a passagem de trem de que meu pai falara, e que lhe era dada no momento exato.

            Com um rápido movimento do lenço e um ruidoso assoar do nariz, ela nos fez saber que o instante de sentimentalismos estava findo.

            - Se me deixarem a sós, disse, pode ser que eu ainda faça alguma coisa.

            Deu uma olhada para papai, e por aqueles olhos sérios passou, de leve, um brilho meio maroto.

            - Não que trabalho importe, Cásper; não importa mes­mo; mas - ela nos despachava dali - não vou deixar a mesa atravancada para alguém ter de arrumar para mim.

            O esperado convite para o primeiro sermão de Willem só chegou quatro meses após a morte de Tia Jans. Depois de ele ter trabalhado um ano como co-pastor de uma igreja, come­çou a pastorear, ele próprio, uma igreja em Brabant, a belíssi­ma região rural do sul da Holanda. Na Igreja Reformada

            Holandesa, o primeiro sermão de um pastor, em seu primeiro pastorado, era a ocasião mais solene, alegre e emocionante que um povo pouco emotivo como o nosso poderia ter. A família e os amigos viriam até de muito longe, e ficariam ali vários dias.

            Karel escreveu, do lugar onde estava servindo como co-pastor, dizendo que iria e que estava ansioso para rever a todos nós. Dei a esse "todos" um significado bem especial, e enquanto passava a roupa e fazia as malas, vibrava antegozando o encontro.

            Para mamãe, a viagem foi uma tortura. Ela acomodou-se bem no canto do nosso compartimento do trem, e ficou ali apertando a mão de papai, ao ponto de os nós dos seus dedos ficarem brancos, sempre que o trem balançava ou dava um arranco. Enquanto nós apreciávamos as ramagens verde-brilhante das árvores, ela não tirava os olhos do céu. O que para nós era um passeio pelos campos, para ela era um festim de nuvens e de uma imensidão azul.    

            Tanto a cidadezinha de Made quanto a congregação ti­nham sofrido grande declínio nos últimos anos. O templo, porém, que datava de épocas melhores, era bem grande, como também a casa pastoral, do outro lado da rua. Comparada com o Beje, era enorme.

            Nas primeiras noites, o teto me pare­cia absurdamente longe, tão longe que não consegui dormir. Todos os dias chegavam primos, tios e amigos, mas a casa nunca parecia lotada, não importava quantos mais se alojas­sem ali.

            Três dias após a nossa chegada, bateram a porta e fui abrir. Dei com Karel de pé à entrada, os ombros ainda salpicados com a cinza do trem. Atirou a maleta no corredor e agarrou uma de minhas mãos, puxando-me para fora.

            - O dia está lindo, Corrie, disse. Vamos dar uma volta.

            Daí em diante, pareceu ficar decidido que iríamos dar uma volta todos os dias. Nosso trajeto por aquelas trilhas sinuosas de terra batida, tão diferentes das ruas pavimentadas de Haarlem, era cada vez um pouco mais longo. Naqueles mo­mentos, era difícil de acreditar que o resto da Europa estives­se engajado na luta mais sangrenta da História. Aquela lou­cura, ao que parecia, tinha cruzado o oceano: a América, di­ziam os jornais, estava para entrar na guerra.

            Aqui na Holanda neutra, porém, a um dia ensolarado de verão, seguia-se outro. Apenas algumas pessoas - e entre elas Willem - asseguravam que a guerra significava tragédia para a Holanda também. E este foi o tema de seu primeiro ser­mão.

            Operava-se uma mudança tanto na Europa como no resto do mundo, disse. Aquele modo de vida estava se fin­dando, não importava o grupo que ganhasse a guerra. Olhei ao meu redor. Essa congregação composta de aldeões e fa­zendeiros vigorosos não ligava muito para tais idéias.

            Após o culto, os amigos e parentes mais distantes parti­ram. Karel, porém, ficou. Nossos passeios tornaram-se mais longos. Conversamos sobre o futuro dele, e, de repente, co­meçamos a falar não sobre o que ele faria, mas sobre o que nós faríamos... Nós nos imaginávamos tendo que decorar uma casa grande como aquela, e, com alegria, descobrimos que tínhamos o mesmo gosto quanto a mobiliário, flores, e até quanto a cores prediletas. Discordamos em apenas um pon­to: filhos. Karel queria quatro, e eu, firmemente, desejava seis.

            Durante todo o tempo, porém, a palavra "casamento" nun­ca foi pronunciada.

            Um dia quando Karel se ausentara, Willem aproximou-se de mim com duas xícaras de café na mão. Logo atrás dele, também com sua xícara de café, vinha Tine.

            - Corrie, disse ele entregando-me o café e falando como se isso lhe custasse muito, será que Karel lhe deu a entender que está...

            - Com intenções sérias? completou Tine.

            Aquele rubor que eu detestava e nunca conseguia contro­lar subiu-me ao rosto.

            - Eu... nós... não. Por quê?

            O rosto de Willem se avermelhou também.

            - Porque isto não deve acontecer. Você não conhece a fa­mília dele. Desde que ele era pequeno, eles só têm um dese­jo. Eles se sacrificaram muito, e já fizeram planos para ele; basearam toda a sua vida numa só coisa: querem que Karel faça um "casamento vantajoso".         Acho que é assim que eles dizem.

            De repente, aquela sala desataviada me pareceu ainda mais feia.

            - Mas... e o que Karel deseja, não vale nada? Ele não é mais criança!

            Willem fixou em mim seus olhos sérios e profundos.

            - Ele vai obedecer, Corrie. Não digo que ele queira esta situação; não, mas para ele isto já é coisa resolvida. Na facul­dade, quando conversávamos sobre moças de quem gostáva­mos, ele sempre dizia no fim: "Naturalmente, eu não poderia casar-me com ela; seria uma morte para minha mãe."

            Tomei o café rapidamente e quase queimei a boca. Saí para o jardim. Detestei aquela casa sombria, e quase comecei a odiar Willem também, por enxergar sempre a face escura e desagradável de tudo. No jardim, as coisas eram diferentes. Juntos, eu e ele havíamos apreciado cada plantinha, cada flor, e parecia que cada uma delas estava impregnada com um pouco do afeto que tínhamos um pelo outro.

            Willem po­dia saber mais do que eu a respeito de teologia, guerra e política, mas quanto a romances... Nos livros, estes proble­mas de dinheiro, prestígio social, planos de família, etc, sem­pre acabavam se desfazendo no ar como nuvens ligeiras.

            Karel foi embora mais ou menos uma semana depois. Suas últimas palavras soergueram meu coração. Somente alguns meses mais tarde foi que me lembrei de que elas tinham sido bem estranhas. Ele falara com certa ansiedade, quase com desespero. Estávamos de pé, à entrada, aguardando a charrete que o levaria, e que em Made ainda era a condução segura, quando se tinha que tomar o trem. Despedíramo-nos após o café da manhã.

            Em parte, eu esta­va triste, pois ele ainda não falara em casamento e, em par­te, eu estava contente só pelo fato de estar perto dele. De repente, ele segurou minhas mãos.

            - Corrie, escreva para mim, disse sem sorrir e num tom de súplica. Fale-me sobre o Beje. Quero saber tudo. Quero saber tudo daquela maravilhosa casa velha feia. Conte sobre seu pai, como ele esquece de mandar a conta dos consertos que faz. Corrie, o Beje é o lar mais alegre da Holanda.

            E era mesmo, quando todos nós: papai, mamãe, Betsie, Nollie, Tia Anna e eu voltamos para lá. Sempre fora um lugar feliz. Agora, porém, cada acontecimento parecia adquirir um novo brilho, porque agora eu contava tudo a Karel. Cada re­feição que eu preparava era uma homenagem a ele; cada panela que brilhava, um poema; cada meneio da vassoura, um gesto de amor.

            Suas cartas não eram tão freqüentes como as minhas. Lan­cei isso à conta do seu trabalho. O pastor a quem ele assesso­rava, escreveu Karel, havia lhe passado todo o trabalho de visitas. A congregação era rica e aqueles bons contribuintes esperavam visitas longas e repetidas do ministério da igreja.

            Com o decorrer do tempo, suas cartas se tornaram mais e mais escassas. Compensei essa falta escrevendo muito mais, e continuei na mesma vidinha, verão e outono adentro.

            Num maravilhoso dia de novembro, quando toda a Ho­landa cantava comigo, a campainha tocou. Eu estava na cozi­nha lavando a louça, mas atravessei correndo a sala de jantar e desci aqueles degraus antes que outra pessoa tivesse tido tempo de se mexer.

            Abri a porta depressa e lá estava Karel e, a seu lado, uma jovem. Ela sorria para mim. Meus olhos correram do chapeuzinho - com uma enorme pena - para a gola do casaco de arminho, para a mão enluvada de branco que se apoiava no braço dele.

            - Corrie, quero apresentar-lhe minha noiva, disse Karel, e imediatamente a cena ficou turva.

            Eu devo ter dito alguma coisa; devo tê-los conduzido para o quarto da Tia Jans, que agora usávamos como sala de visi­tas, mas só me lembro de que a família veio em meu socorro, falando, cumprimentando, pegando casacos, oferecendo ca­deiras, para que eu não tivesse que fazer isso nem dizer nada.

            Mamãe bateu seu próprio recorde de passar café. Tia Anna serviu o bolo. Betsie partiu para uma conversa com a moça sobre a moda de inverno, e papai apanhou Karel numa pales­tra de caráter bem impessoal sobre assuntos internacionais. O que é que ele pensava do fato de o Presidente Wilson, dos Estados Unidos, enviar tropas para a França?

            Afinal, a meia hora se escoou. De algum jeito, consegui apertar a mão dela, depois a dele, e desejar-lhes toda a sorte de felicidades. Betsie acompanhou-os até a porta, e antes que esta se fechasse de todo atrás das costas deles, eu já estava fugindo escada acima, para o meu quarto, onde poderia dei­xar as lágrimas correrem à vontade.

            Não sei quanto tempo fiquei ali a chorar por causa do amor de minha vida. Mais tarde, ouvi os passos de papai subindo. Por um momento, ocorreu-me que eu ainda era a garotinha cujas cobertas ele vinha ajeitar. O sofrimento de agora, po­rém, era de tal proporção, que nenhum cobertor poderia ame­nizar. Subitamente, tive medo do que papai iria dizer. Receei que dissesse: "Muito breve vai aparecer outro...", e que esta mentira ficasse entre nós, a nos separar a partir de então. Eu tinha certeza profunda de que nunca mais haveria outro amor em minha vida.

            O doce aroma do charuto de papai penetrou no quarto junto com ele. E, naturalmente, ele não disse a frase falsa e vã que eu temia.

            "Corrie", principiou ele, "sabe o que é que nos fere tanto numa situação destas? É o amor. O amor é a força mais pode­rosa do mundo, e, quando é bloqueada, causa dor.

            "Quando isto acontece, podemos fazer duas coisas: pode­mos destruir o amor para reprimir o sofrimento, e nesse caso, uma parte de nosso ser é destruída também; ou então, Corrie, podemos pedir a Deus para abrir uma outra estrada para o nosso amor se extravasar.

            "Deus ama Karel - muito mais do que você o ama - e, se você pedir ao Senhor, ele lhe dará desse amor. É um amor que não pode ser frustrado nem destruído. Quando não po­demos amar à maneira humana, Corrie, Deus nos dá capaci­dade de amar de modo perfeito."

            Naquele momento, e depois, quando ouvia as pisadas de papai descendo as escadas, eu não percebi que ele me revela­ra mais que um segredo para superar aquela ocasião difícil. Não sabia que ele colocava em minhas mãos a chave que abriria a porta de situações ainda mais tenebrosas que aque­la - de ocasiões em que não haveria, humanamente falando, nada e ninguém para se amar.

            Nestas questões de amor, eu ainda cursava o "jardim-de-infância". No momento, minha tarefa era desistir de meus sentimentos por Karel, sem me desfazer da alegria e do en­cantamento que ele me trouxera. Assim, naquele instante, deitada na cama, sussurrei uma "longa" prece.

            "Senhor, eu te entrego este meu sentimento por Karel, meus planos para o futuro - tu sabes! Dá-me a tua maneira de ver Karel. Ajuda-me a amá-lo do teu modo. Tanto quanto tu o amas!"

            Logo que pronunciei estas palavras, peguei no sono.