Logo que todos já estavam servidos, sentei-me a fim de
ficar olhando para ele. Ele parecia totalmente inconsciente de minha presença,
mas isso era natural. Eu tinha quatorze anos, enquanto ele e Willem já eram
universitários, as barbas ralas começando a despontar, a conversa entremeada de
fumaça de charuto.
Para mim, era bastante estar na mesma sala que ele.
Quanto a não ser notada, eu já estava acostumada. Nollie é que o era sempre,
embora, como quase toda moça bonita, ela não desse a mínima importância
àquilo. Quando um rapaz lhe pedia uma mecha do seu cabelo - método então usado
para se declarar amor - ela arrancava alguns fiapos do nosso velho tapete
cinzento, amarrava com uma fitinha azul, e fazia de mim o seu portador. Por
essa época, o tapete estava bem desbastado, e o coração de um bom número de
rapazes, partido.
Eu, ao contrário, apaixonei-me por todos os meninos da
classe, um após outro, numa espécie de ciclo inevitável e constante. Mas, como
não fosse bonita, e, ainda por cima, tímida demais para externar meus
sentimentos, toda aquela geração de rapazes estava passando completamente
despercebida da menina da cadeira 32.
Com Karel, porém, seria diferente, pensei enquanto o via
mexer o café com uma colherinha. Eu iria amá-lo para sempre.
Foi somente dois anos depois, que o vi de novo. No inverno de 1908 eu e Nollie fomos a Leiden, para visitar Willem na Universidade. Ele ocupava um quarto escassamente mobiliado no quarto andar de uma residência familiar. Acolheu-nos a ambas com um só abraço, e depois correu à janela.
- Olhem, disse retirando do peitoril um pãozinho doce
recheado que pusera ali para gelar, comprei isto para vocês. É melhor comerem
logo, antes que meus amigos esfaimados apareçam por aqui.
Sentamo-nos a saborear o precioso pãozinho. Eu sabia que,
para comprá-lo, Willem devia ter ficado sem almoço. Um minuto depois, a porta
foi escancarada e quatro de seus colegas irromperam quarto adentro - altos,
vozes graves, usando casacos de gola remendada e punho puído. Entre eles,
Karel.
Engoli o último pedacinho de pão, limpei as mãos na saia,
e levantei-me. Willem apresentou-nos. Quando chegou a vez de Karel, este
interrompeu-o.
- Nós já nos conhecemos.
Inclinou-se ligeiramente.
- Lembra-se de mim? Eu a conheci naquela festa em sua
casa.
Olhei para Nollie - não, ele estava dirigindo-se era a
mim mesmo. Do meu coração brotaram palavras de contentamento, mas minha boca
continha ainda os restos do pãozinho doce, e elas nunca me conseguiram chegar
aos lábios. Os rapazes se sentaram no assoalho, e começaram a falar animadamente,
todos de uma vez.
Sentada na cama, ao meu lado, Nollie aderiu à conversação
com toda a naturalidade, como se visitar aquela escola fosse um evento diário
em nossa vida. Uma razão era que ela parecia pertencer ao grupo: tinha dezoito
anos e usava saias longas, enquanto eu estava dolorosamente cônscia dos vinte
centímetros de meia escolar - grossa e preta - que me cobriam as pernas, da
barra do vestido até o sapato.
Outra coisa: Nollie sabia o que conversar. No ano
anterior, ela começara a cursar a Escola Normal. Na verdade, ela não queria ser
professora, mas, naquela época, as universidades não ofereciam bolsa de estudos
para moças, e a escola normal era bem menos dispendiosa. Bem, ela participou à
vontade, falando com facilidade sobre os assuntos de interesse dos rapazes - a
nova teoria da relatividade, recentemente proposta por um tal de Einstein, e a
probabilidade do Almirante Peary chegar ou não ao Pólo Norte.
- E você, Corrie, vai ser professora também?
Karel sorria para mim, sentado no chão a meus pés. Senti
um calor subir-me ao rosto, começando do pescoço.
- Quero dizer, no ano que vem, insistiu. Você está no
último ano do curso secundário, não está?
- Sim... quero dizer, não. Vou ficar em casa ajudando a
mamãe e Tia Anna.
Minha resposta saiu curta e seca. Por que é que eu não
conseguia dizer nada, tendo tanto para dizer?
Quando terminei o curso, na primavera, assumi a responsabilidade do trabalho da casa. De há muito isto fora deliberado em família, mas agora tínhamos mais uma razão: Tia Bep estava tuberculosa.
A doença era, então, incurável. O único tratamento
conhecido era repouso num sanatório, mas isso só para ricos. E assim, durante
meses e meses, Tia Bep ficou deitada em seu quartinho, a vida se esvaindo em
meio a acessos de tosse.
Para diminuir o perigo de contágio, somente Tia Anna entrava
ali. Ela cuidava da irmã o dia todo, e, às vezes, a noite toda também. Assim,
todo o serviço da casa - cozinhar, lavar, limpar - passou para mim. Eu adorava
trabalhar, e, se não fosse pela doença de Tia Bep eu me sentiria completamente
feliz. A sombra dela porém, obscurecia tudo, não só pela sua doença, mas também
por causa de toda a sua vida triste e frustrada.
Muitas vezes, ao passar a bandeja de alimento para Tia
Anna, eu entrevia o interior do quarto. Via as pobres lembrancinhas, souvenirs
de seus trinta anos passados nas casas em que trabalhara: vidros de perfume
vazios há muito, pois as boas famílias sempre davam perfumes à governanta, no
Natal. Fotografias desbotadas, velhos daguerreótipos de crianças que agora
tinham seus próprios filhos e netos. Aí a porta se fechava e eu me deixava
ficar ali, naquele corredor estreito, cujo teto era o beirai do telhado,
desejando ardentemente poder dizer alguma coisa, querendo poder ajudar um
pouco, desejando amá-la melhor.
Certa vez falei disso a mamãe. Ela também estava começando
a passar mais e mais tempo de cama. Antes, sempre que a dor na vesícula ficava
insuportável, ela se submetia a uma operação. Após a última, porém, ela sofrera
um pequeno derrame e não poderia mais ser operada. Muitas vezes, ao preparar a
bandeja de Tia Bep, fazia uma para ela também.
Dessa vez, quando cheguei com seu almoço, ela escrevia
cartas. Sempre que não estava trabalhando com suas velozes agulhas, fazendo
gorros e roupas de bebê para toda a vizinhança, estava escrevendo mensagens de
conforto para quase todos os entrevados e doentes de Haarlem. Nunca lhe ocorria
que ela mesma passara a maior parte de sua vida na cama.
- Esse pobre homem, Corrie, - disse-me no momento em que
entrei, - está confinado ao quarto há três anos. Imagine só, fechado em casa,
sem ver o céu.
Dei uma espiada para fora, pela única janela do quarto.
- Mamãe, comecei depois de colocar a bandeja na cama e
sentar-me ao seu lado, será que a gente não pode fazer nada por Tia Bep? Quero
dizer, é uma pena que ela tenha de viver seus últimos dias aqui, num lugar que
sempre detestou, em vez de estar onde foi tão feliz, como na casa da família
Waller, ou outra qualquer.
Ela depôs a caneta e olhou para mim.
- Corrie, disse por fim, Bep tem sido feliz aqui. Nem
mais nem menos do que o foi em outro lugar.
Fitei-a sem compreender.
- Sabe quando foi que ela começou a elogiar os Waller?
continuou. Foi no dia em que deixou a casa deles. Enquanto lá esteve, só tinha
queixas. Os Waller nem se comparavam aos Hook, onde havia estado antes.
Acontece, porém, que, quando ela estava com os Hook, tinha sido muito infeliz.
A felicidade não depende do lugar onde nos encontramos, Corrie. É uma
disposição que existe dentro de nós.
A morte de Tia Bep teve um efeito muito forte sobre as três irmãs. Mamãe e Tia Anna redobraram seu trabalho de cozinhar e costurar para os pobres, como se tivessem percebido de novo como a vida humana é breve. Tia Jans, por sua vez, pareceu aproximar-se mais do seu próprio fim.
- Minha própria irmã! dizia várias vezes por dia. Pois podia
ter sido eu!
Mais ou menos um ano após a morte de Tia Bep, um novo
médico passou a se encarregar das visitas, antes feitas pelo Dr. Blinker. Seu
nome era Dr. Jan van Veen. Com ele veio sua jovem irmã, Tine van Veen, que era
enfermeira. Ele trouxe também uma novidade: um aparelho para tirar a pressão
arterial. Não sabíamos o que era aquilo, mas todos se submeteram ao processo de
enrolar aquele pedaço de lona ao redor do braço e bombear o ar para enchê-lo.
Tia Jans, que adorava todo e qualquer instrumento médico,
simpatizou-se bastante com o Dr. Veen, e daí por diante, passou a consultar com
ele tantas vezes quantas lhe permitisse sua situação financeira. Alguns anos
depois, o Dr. Veen descobriu que Tia Jans tinha diabete.
Naquela época, isso era, à semelhança da tuberculose, uma
sentença de morte. Durante alguns dias toda a família ficou chocada. Depois de
receá-la durante tantos anos, aí estava a temida presença da morte. Ao receber
a notícia, Tia Jans foi direto para a cama.
A inatividade, porém, não combinava com sua personalidade
vigorosa, e um dia ela nos surpreendeu a todos, aparecendo para o café
exatamente às 8:10h, informando-nos que os médicos muitas vezes se enganam.
- Esses exames e análises, disse Tia Jans que neles cria
piamente, o que é realmente que eles provam?
A partir desse dia ela se atirou ao seu trabalho mais que
nunca - escrevia, fazia palestras, formava clubes, iniciava projetos. Em 1914,
a Holanda, assim como o resto da Europa, estava se mobilizando para a guerra,
e, de um dia para o outro, as ruas de Haarlem encheram-se de soldados. De sua
janela que dava para a rua, Tia Jans os via passeando e olhando as vitrines.
Quase todos eram bem jovens, estavam sem dinheiro e saudosos do lar. Foi aí
que teve a idéia de criar um centro para eles.
Tal coisa era novidade naqueles dias, e Tia Jans pôs todo
seu entusiasmo no projeto. O bonde à tração animal, que circulava pela nossa rua,
fora substituído por um elétrico. Esse também parava, freios rangendo, fagulhas
voando dos trilhos e do cabo aéreo, quando Tia Jans se punha majestosamente à
porta do Beje. Ela subia a bordo segurando com uma das mãos a longa saia preta,
e tendo na outra uma lista com o nome das ricas damas que poderiam vir a
sustentar o novo projeto.
Somente nós, que a conhecíamos, sabíamos que, debaixo de
toda aquela atividade, havia um terror monstruoso a impulsioná-la.
Enquanto isso, sua enfermidade apresentava mais problemas
financeiros. Toda semana era necessário um teste de verificação do nível do
açúcar no sangue, teste esse que envolvia um processo dispendioso, pois o Dr.
Veen ou sua irmã tinham que vir à nossa casa.
Depois de algum tempo, Tine me ensinou a fazer o teste.
Tinha várias etapas, das quais a mais delicada era a final: aquecer a mistura
até uma temperatura determinada. Era difícil conseguir que nosso fogão fizesse
qualquer coisa com precisão, mas afinal, aprendi, e daí para a frente, todas as
sextas-feiras, eu recolhia e misturava o material, e fazia o teste. Se a
mistura depois de aquecida continuasse clara, tudo estava bem. Se escurecesse,
eu devia notificar ao Dr. van Veen.
Naquela primavera, Willem veio passar alguns dias conosco
antes de sua ordenação. Ele se formara na universidade dois anos antes, e agora
terminava seu último período na Faculdade de Teologia. Em uma noite cálida,
estávamos todos assentados à mesa da sala de jantar. Papai, com trinta
relógios dispostos diante de si, fazia pequenas anotações em um caderno, com
sua caligrafia precisa e elegante: "dois segundos atrasado, cinco segundos
adiantado", e Willem lia em voz alta um trecho da história da reforma
holandesa.
De repente, a campainha da porta lateral soou. Havia um espelho
do lado de fora da janela da sala, que nos permitia ver quem estava à porta,
antes mesmo de abri-la. Dei uma espiada rápida, e levantei-me de um salto.
- Corrie, gritou Betsie em tom de recriminação, olhe sua
saia!
Eu nunca me lembrava de que estava usando saias longas
agora, e várias vezes Betsie teve que remendar os rasgões que eu arranjava,
sempre que saía depressa demais. Dessa vez desci de um pulo os cinco degraus. À
porta, com um ramalhete de margaridas na mão, estava Tine van Veen.
- Para sua mãe, Corrie, disse ela assim que abri a porta,
estendendo-me as flores. Espero que ela...
- Não, não. Você mesma entrega. Está tão bonita assim!
E sem mesmo ajudá-la a tirar o casaco, empurrei a
espantada moça escada acima. Introduzi-a na sala, quase pisando seus calcanhares,
a fim de ver a expressão de Willem. Eu já sabia como ia ser. Até então, eu
tinha vivido só de romances; retirava da biblioteca pública livros em inglês e
alemão, além de holandês, e, muitas vezes, os que eu gostava, lia nas três
línguas. Havia lido milhares de vezes a cena em que a mocinha conhece o herói.
Willem pôs-se de pé com movimentos lentos, seus olhos
presos aos de Tine. Papai também se levantou.
- Tine van Veen, disse em seu estilo antigo, permita-me
apresentá-la a nosso filho Willem. Willem, esta é a moça, cujo talento e
bondade você já nos ouviu elogiar.
Duvido que algum dos dois tenha escutado o que papai
disse. Estavam se olhando, como se não houvesse mais ninguém na sala, nem
mesmo no mundo.
Willem e Tine casaram-se dois meses após a ordenação
dele. Durante todo o tempo da preparação, só um pensamento ocupava minha
mente: Karel vai estar presente.
O dia do casamento amanheceu frio, mas claro. Imediatamente,
meus olhos encontraram Karel no meio da pequena multidão parada em frente à
igreja. Usava casaca e cartola, como todos os outros homens, mas era, sem
dúvida, o mais simpático de todos.
Quanto a mim, eu mudara muito desde que o vira pela
última vez. A diferença de idade entre nós - cinco anos - não parecia mais tão
grande quanto antes.
Além disso, eu me sentia... não, bonita não. Mesmo em um
instante tão romântico, eu não poderia me convencer disto. Sabia que meu
queixo era quadrado demais, minhas pernas muito compridas e minhas mãos muito
grandes. Mas eu cria firmemente - todos os livros o afirmavam - que para o
homem que me amasse eu seria linda.
Betsie tinha arranjado meu cabelo. Depois de trabalhar
durante uma hora com o ferro de anelar, conseguira ajeitá-lo todo no alto da
cabeça. Por um milagre, até o momento, ainda estava arrumado. Ela também havia
confeccionado meu vestido de seda, assim como fizera os de todas da família,
costurando a noite, à luz fraca da lâmpada, pois a loja ficava aberta de
segunda a sábado, e ela não gostava de costurar aos domingos.
Examinando as outras mulheres presentes, verifiquei que
nossas roupas estavam tão elegantes quanto as de qualquer uma. Ninguém poderia
supor, pensei ao me encaminhar juntamente com os outros para a entrada, que
papai tinha aberto mão de alguns charutos, e Tia Jans do carvão para o aquecimento
de seus aposentos, a fim de comprarmos a seda que agora nos envolvia, e ciciava
quando caminhávamos.
- Corrie?
À minha frente estava Karel, alto, cartola nas mãos, com
os olhos no meu rosto, parecendo meio indeciso.
- Corrie?
- Sim, sou eu! respondi sorrindo. Sou eu, Karel; e aí
está você! E este é o momento com que sonhei tanto!
- Mas você cresceu! Perdão, Corrie, naturalmente que cresceu.
É que sempre pensei em você como a garotinha de grandes olhos azuis.
Olhou para mim um pouco mais, e depois prosseguiu suavemente:
- ... e agora a garota é uma moça encantadora!
De repente, pareceu-me que a música do órgão era tocada
para nós, que o braço que ofereceu a mim era a lua, e a minha mão enluvada apoiada
nele era o único elo que me prendia ao chão, e me impedia de sair voando para
o alto, acima dos angulosos telhados de Haarlem.
Foi numa chuvosa e fria sexta-feira de janeiro que meus olhos me contaram algo que, a princípio, me recusei a aceitar. O líquido do exame, em seu recipiente de vidro sobre o fogão, estava turvo, bem escuro.
Encostei-me à pia e fechei os olhos.
"Ó Deus, concede que eu tenha cometido um
engano!"
Rememorei as etapas da análise; olhei os frascos de substâncias
e os utensílios de aferição. Não, eu havia feito tudo do mesmo jeito de sempre.
Devia ser por causa desta cozinha, então. Era sempre tão
escuro naquele quartinho minúsculo. Segurei a proveta com um pegador de
panela, e fui até a janela da sala de jantar.
Preto. Negro como o próprio medo.
Ainda com o frasco na mão, desci os cinco degraus e atravessei
a porta traseira para a oficina. Papai, com seu óculo de aumento preso ao olho,
espiava por sobre o ombro do seu mais recente aprendiz, procurando, com toda a
perícia, uma peça infinitamente pequena, por entre as que se encontravam
espalhadas na banca de trabalho à sua frente.
Olhei para dentro da loja, através do vidro da porta.
Betsie, por detrás de sua mesa-caixa, falava com uma freguesa. Não; não era uma
freguesa, corrigi-me, era uma importuna. Eu conhecia bem aquela senhora. Sempre
vinha aqui pedir conselhos sobre relógios, e depois comprava-os na nova loja
da rua, na relojoaria dos Kan. Nem papai nem Betsie pareciam se preocupar com o
fato de que coisas assim estavam acontecendo cada vez mais.
Quando ela saiu, enveredei pela porta com o teste
revelador na mão.
- Betsie, disse, chorando, Betsie, está escuro. Como vamos
dizer isto a ela? O que vamos fazer?
Betsie saiu de detrás da mesa apressadamente, e me abraçou.
Papai também veio e entrou na loja. Os olhos dele foram do vidro para Betsie e
dela para mim.
- Você fez tudo certinho, Corrie? em todos os detalhes?
- Infelizmente, sim.
- E acho que fez mesmo, filha; mas precisamos da palavra
do médico também.
- Vou levar lá agora, disse.
Derramei o líquido escuro em um vidrinho e corri com ele
pelas ruas molhadas e escorregadias de Haarlem.
Havia uma nova enfermeira agora no consultório e tive que
aguardar meia hora, na sala de espera, silenciosamente, sentindo-me
horrivelmente apreensiva. Afinal, o paciente saiu e o Dr. van Veen pegou o
vidrinho e levou para o seu laboratório.
- Não há dúvida, Corrie, disse ao regressar. Sua tia tem
no máximo três semanas de vida.
Quando voltei para casa, fizemos uma reunião de família:
mamãe, Tia Anna, papai, Betsie e eu. Nollie só retornaria à noite. Todos
concordamos em que ela precisava saber logo.
- Vamos contar-lhe todos juntos, papai decidiu mas eu
falarei as palavras necessárias. Talvez... seu rosto se iluminou um pouco,
talvez ela se alegre de pensar em tudo que já realizou. Ela dá tanta
importância a realizações. E quem sabe se ela não está certa?
Assim, subimos em fila a escada para os quartos de Tia
Jans. Papai bateu à porta.
- Entre, disse ela. E depois concluiu como sempre fazia,
e feche a porta antes que eu pegue uma corrente de ar.
Estava sentada à sua mesa redonda de mogno, escrevendo
um novo apelo em favor do seu centro para soldados. Ao ver quantas pessoas
entravam, largou a caneta. Olhou de um para outro até chegar em mim, e aí
soltou uma exclamação sufocada. Era sexta-feira de manhã, e eu ainda não havia
levado o resultado do exame.
- Minha querida cunhada, começou papai gentilmente, há
uma viagem feliz que cada filho de Deus tem que fazer mais cedo ou mais tarde.
Sabe, Jans, alguns vão a ele de mãos vazias, mas você não!
- Todos esses clubes..., aventurou-se Tia Anna.
- Seus panfletos..., ajuntou mamãe.
- O dinheiro que a senhora levantou..., disse Betsie.
- Suas palestras..., comecei.
Nossos bem intencionados esforços, porém, deram em nada.
Aquele rosto orgulhoso abateu-se bem diante de nossos
olhos. Tia Jans levou as mãos ao rosto e começou a chorar.
- Vazia! disse por fim, entre lágrimas. Como é que se
pode dar algo a Deus? Que lhe interessam nossas ninharias?
Enquanto a observávamos quase sem poder acreditar, ela
descobriu o rosto e, com lágrimas escorrendo, murmurou:
- Senhor Jesus, eu te agradeço porque temos de ir a ti de
mãos vazias. Eu te agradeço porque, na cruz, tu fizeste tudo, tudo mesmo; e é
só isto que precisamos saber com certeza, na vida e na morte.
Mamãe a abraçou e as duas ficaram unidas por um momento.
Eu estava presa ao solo. Sabia que havia presenciado um mistério.
Era a passagem de trem de que meu pai falara, e que lhe
era dada no momento exato.
Com um rápido movimento do lenço e um ruidoso assoar do
nariz, ela nos fez saber que o instante de sentimentalismos estava findo.
- Se me deixarem a sós, disse, pode ser que eu ainda faça
alguma coisa.
Deu uma olhada para papai, e por aqueles olhos sérios
passou, de leve, um brilho meio maroto.
- Não que trabalho importe, Cásper; não importa mesmo;
mas - ela nos despachava dali - não vou deixar a mesa atravancada para alguém
ter de arrumar para mim.
O esperado convite para o primeiro sermão de Willem só chegou quatro meses após a morte de Tia Jans. Depois de ele ter trabalhado um ano como co-pastor de uma igreja, começou a pastorear, ele próprio, uma igreja em Brabant, a belíssima região rural do sul da Holanda. Na Igreja Reformada
Holandesa, o primeiro sermão de um pastor, em seu
primeiro pastorado, era a ocasião mais solene, alegre e emocionante que um povo
pouco emotivo como o nosso poderia ter. A família e os amigos viriam até de
muito longe, e ficariam ali vários dias.
Karel escreveu, do lugar onde estava servindo como
co-pastor, dizendo que iria e que estava ansioso para rever a todos nós. Dei a
esse "todos" um significado bem especial, e enquanto passava a roupa
e fazia as malas, vibrava antegozando o encontro.
Para mamãe, a viagem foi uma tortura. Ela acomodou-se bem
no canto do nosso compartimento do trem, e ficou ali apertando a mão de papai,
ao ponto de os nós dos seus dedos ficarem brancos, sempre que o trem balançava
ou dava um arranco. Enquanto nós apreciávamos as ramagens verde-brilhante das
árvores, ela não tirava os olhos do céu. O que para nós era um passeio pelos
campos, para ela era um festim de nuvens e de uma imensidão azul.
Tanto a cidadezinha de Made quanto a congregação tinham
sofrido grande declínio nos últimos anos. O templo, porém, que datava de épocas
melhores, era bem grande, como também a casa pastoral, do outro lado da rua.
Comparada com o Beje, era enorme.
Nas primeiras noites, o teto me parecia absurdamente
longe, tão longe que não consegui dormir. Todos os dias chegavam primos, tios e
amigos, mas a casa nunca parecia lotada, não importava quantos mais se alojassem
ali.
Três dias após a nossa chegada, bateram a porta e fui
abrir. Dei com Karel de pé à entrada, os ombros ainda salpicados com a cinza do
trem. Atirou a maleta no corredor e agarrou uma de minhas mãos, puxando-me para
fora.
- O dia está lindo, Corrie, disse. Vamos dar uma volta.
Daí em diante, pareceu ficar decidido que iríamos dar uma
volta todos os dias. Nosso trajeto por aquelas trilhas sinuosas de terra
batida, tão diferentes das ruas pavimentadas de Haarlem, era cada vez um pouco
mais longo. Naqueles momentos, era difícil de acreditar que o resto da Europa
estivesse engajado na luta mais sangrenta da História. Aquela loucura, ao que
parecia, tinha cruzado o oceano: a América, diziam os jornais, estava para
entrar na guerra.
Aqui na Holanda neutra, porém, a um dia ensolarado de
verão, seguia-se outro. Apenas algumas pessoas - e entre elas Willem - asseguravam
que a guerra significava tragédia para a Holanda também. E este foi o tema de
seu primeiro sermão.
Operava-se uma mudança tanto na Europa como no resto do
mundo, disse. Aquele modo de vida estava se findando, não importava o grupo
que ganhasse a guerra. Olhei ao meu redor. Essa congregação composta de aldeões
e fazendeiros vigorosos não ligava muito para tais idéias.
Após o culto, os amigos e parentes mais distantes partiram.
Karel, porém, ficou. Nossos passeios tornaram-se mais longos. Conversamos sobre
o futuro dele, e, de repente, começamos a falar não sobre o que ele faria, mas
sobre o que nós faríamos... Nós nos imaginávamos tendo que decorar uma
casa grande como aquela, e, com alegria, descobrimos que tínhamos o mesmo gosto
quanto a mobiliário, flores, e até quanto a cores prediletas. Discordamos em
apenas um ponto: filhos. Karel queria quatro, e eu, firmemente, desejava seis.
Durante todo o tempo, porém, a palavra
"casamento" nunca foi pronunciada.
Um dia quando Karel se ausentara, Willem aproximou-se de
mim com duas xícaras de café na mão. Logo atrás dele, também com sua xícara de
café, vinha Tine.
- Corrie, disse ele entregando-me o café e falando como
se isso lhe custasse muito, será que Karel lhe deu a entender que está...
- Com intenções sérias? completou Tine.
Aquele rubor que eu detestava e nunca conseguia controlar
subiu-me ao rosto.
- Eu... nós... não. Por quê?
O rosto de Willem se avermelhou também.
- Porque isto não deve acontecer. Você não conhece a família
dele. Desde que ele era pequeno, eles só têm um desejo. Eles se sacrificaram
muito, e já fizeram planos para ele; basearam toda a sua vida numa só coisa:
querem que Karel faça um "casamento vantajoso". Acho que é assim que eles dizem.
De repente, aquela sala desataviada me pareceu ainda mais
feia.
- Mas... e o que Karel deseja, não vale nada? Ele não é
mais criança!
Willem fixou em mim seus olhos sérios e profundos.
- Ele vai obedecer, Corrie. Não digo que ele queira esta
situação; não, mas para ele isto já é coisa resolvida. Na faculdade, quando
conversávamos sobre moças de quem gostávamos, ele sempre dizia no fim:
"Naturalmente, eu não poderia casar-me com ela; seria uma morte para minha
mãe."
Tomei o café rapidamente e quase queimei a boca. Saí para
o jardim. Detestei aquela casa sombria, e quase comecei a odiar Willem também,
por enxergar sempre a face escura e desagradável de tudo. No jardim, as coisas
eram diferentes. Juntos, eu e ele havíamos apreciado cada plantinha, cada flor,
e parecia que cada uma delas estava impregnada com um pouco do afeto que
tínhamos um pelo outro.
Willem podia saber mais do que eu a respeito de
teologia, guerra e política, mas quanto a romances... Nos livros, estes problemas
de dinheiro, prestígio social, planos de família, etc, sempre acabavam se
desfazendo no ar como nuvens ligeiras.
Karel foi embora mais ou menos uma semana depois. Suas últimas palavras soergueram meu coração. Somente alguns meses mais tarde foi que me lembrei de que elas tinham sido bem estranhas. Ele falara com certa ansiedade, quase com desespero. Estávamos de pé, à entrada, aguardando a charrete que o levaria, e que em Made ainda era a condução segura, quando se tinha que tomar o trem. Despedíramo-nos após o café da manhã.
Em parte, eu estava triste, pois ele ainda não falara em
casamento e, em parte, eu estava contente só pelo fato de estar perto dele. De
repente, ele segurou minhas mãos.
- Corrie, escreva para mim, disse sem sorrir e num tom de
súplica. Fale-me sobre o Beje. Quero saber tudo. Quero saber tudo
daquela maravilhosa casa velha feia. Conte sobre seu pai, como ele esquece de
mandar a conta dos consertos que faz. Corrie, o Beje é o lar mais alegre
da Holanda.
E era mesmo, quando todos nós: papai, mamãe, Betsie, Nollie, Tia Anna e eu voltamos para lá. Sempre fora um lugar feliz. Agora, porém, cada acontecimento parecia adquirir um novo brilho, porque agora eu contava tudo a Karel. Cada refeição que eu preparava era uma homenagem a ele; cada panela que brilhava, um poema; cada meneio da vassoura, um gesto de amor.
Suas cartas não eram tão freqüentes como as minhas. Lancei
isso à conta do seu trabalho. O pastor a quem ele assessorava, escreveu Karel,
havia lhe passado todo o trabalho de visitas. A congregação era rica e aqueles
bons contribuintes esperavam visitas longas e repetidas do ministério da
igreja.
Com o decorrer do tempo, suas cartas se tornaram mais e
mais escassas. Compensei essa falta escrevendo muito mais, e continuei na mesma
vidinha, verão e outono adentro.
Num maravilhoso dia de novembro, quando toda a Holanda
cantava comigo, a campainha tocou. Eu estava na cozinha lavando a louça, mas
atravessei correndo a sala de jantar e desci aqueles degraus antes que outra
pessoa tivesse tido tempo de se mexer.
Abri a porta depressa e lá estava Karel e, a seu lado,
uma jovem. Ela sorria para mim. Meus olhos correram do chapeuzinho - com uma
enorme pena - para a gola do casaco de arminho, para a mão enluvada de branco
que se apoiava no braço dele.
- Corrie, quero apresentar-lhe minha noiva, disse Karel,
e imediatamente a cena ficou turva.
Eu devo ter dito alguma coisa; devo tê-los conduzido para
o quarto da Tia Jans, que agora usávamos como sala de visitas, mas só me
lembro de que a família veio em meu socorro, falando, cumprimentando, pegando
casacos, oferecendo cadeiras, para que eu não tivesse que fazer isso nem dizer
nada.
Mamãe bateu seu próprio recorde de passar café. Tia Anna
serviu o bolo. Betsie partiu para uma conversa com a moça sobre a moda de inverno,
e papai apanhou Karel numa palestra de caráter bem impessoal sobre assuntos
internacionais. O que é que ele pensava do fato de o Presidente Wilson, dos
Estados Unidos, enviar tropas para a França?
Afinal, a meia hora se escoou. De algum jeito, consegui
apertar a mão dela, depois a dele, e desejar-lhes toda a sorte de felicidades.
Betsie acompanhou-os até a porta, e antes que esta se fechasse de todo atrás
das costas deles, eu já estava fugindo escada acima, para o meu quarto, onde
poderia deixar as lágrimas correrem à vontade.
Não sei quanto tempo fiquei ali a chorar por causa do
amor de minha vida. Mais tarde, ouvi os passos de papai subindo. Por um
momento, ocorreu-me que eu ainda era a garotinha cujas cobertas ele vinha
ajeitar. O sofrimento de agora, porém, era de tal proporção, que nenhum
cobertor poderia amenizar. Subitamente, tive medo do que papai iria dizer.
Receei que dissesse: "Muito breve vai aparecer outro...", e que esta
mentira ficasse entre nós, a nos separar a partir de então. Eu tinha certeza
profunda de que nunca mais haveria outro amor em minha vida.
O doce aroma do charuto de papai penetrou no quarto junto
com ele. E, naturalmente, ele não disse a frase falsa e vã que eu temia.
"Corrie", principiou ele, "sabe o que é
que nos fere tanto numa situação destas? É o amor. O amor é a força mais poderosa
do mundo, e, quando é bloqueada, causa dor.
"Quando isto acontece, podemos fazer duas coisas:
podemos destruir o amor para reprimir o sofrimento, e nesse caso, uma parte de
nosso ser é destruída também; ou então, Corrie, podemos pedir a Deus para abrir
uma outra estrada para o nosso amor se extravasar.
"Deus ama Karel - muito mais do que você o ama - e,
se você pedir ao Senhor, ele lhe dará desse amor. É um amor que não pode ser frustrado
nem destruído. Quando não podemos amar à maneira humana, Corrie, Deus nos dá
capacidade de amar de modo perfeito."
Naquele momento, e depois, quando ouvia as pisadas de papai descendo as escadas, eu não percebi que ele me revelara mais que um segredo para superar aquela ocasião difícil. Não sabia que ele colocava em minhas mãos a chave que abriria a porta de situações ainda mais tenebrosas que aquela - de ocasiões em que não haveria, humanamente falando, nada e ninguém para se amar.
Nestas questões de amor, eu ainda cursava o
"jardim-de-infância". No momento, minha tarefa era desistir de meus
sentimentos por Karel, sem me desfazer da alegria e do encantamento que ele me
trouxera. Assim, naquele instante, deitada na cama, sussurrei uma "longa"
prece.
"Senhor, eu te entrego este meu sentimento por
Karel, meus planos para o futuro - tu sabes! Dá-me a tua maneira de ver Karel.
Ajuda-me a amá-lo do teu modo. Tanto quanto tu o amas!"
Logo que pronunciei estas palavras, peguei no sono.