Todos à Mesa
O ano era 1898, e eu tinha seis anos. Betsie me colocou diante do espelho do guarda-roupa, e passou-me um sermão.
- Olhe só seu sapato. Está faltando metade dos botões. E
essa meia rasgada logo no primeiro dia de aula! Veja como Nollie está!
Encontrávamo-nos em nosso quarto - meu e de Nollie -que
ficava no topo do Beje. Olhei para minha irmã, dois anos mais velha que
eu: era verdade. Seus sapatos estavam perfeitamente abotoados. Com relutância,
tirei o meu, enquanto Betsie dava uma busca pelo armário.
Betsie tinha treze anos, e, para mim, era quase adulta.
Ela sempre me parecera mesmo mais velha, pois nunca pudera correr e fazer
algazarra como as outras crianças. Sofria de anemia perniciosa desde o
nascimento. Assim, enquanto nós brincávamos de pique, rodávamos arco, ou apostávamos
corrida patinando pelos canais gelados no inverno, ela ficava sentada em casa,
fazendo coisas enfadonhas, bordando, por exemplo. Nollie, porém, brincava tanto
quanto qualquer outra criança, e era pouco mais velha que eu. Não me parecia
justo que ela sempre fizesse tudo certinho.
- Betsie, estava ela dizendo, eu não vou para a
escola com aquele chapelão horrível, só porque foi a Tia Jans quem o comprou.
No ano passado, foi aquele cinzento horroroso, e agora é este, que é ainda mais
feio.
Betsie olhou-a com um ar de compreensão.
- É, mas... bem, você não pode ir sem chapéu, e nós não
podemos comprar outro.
- Não vai ser preciso.
Dando uma rápida olhadela para a porta, Nollie
abaixou-se, enfiou a mão debaixo da cama estreita - que era a que o quarto
comportava - e puxou de lá uma caixa redonda e pequena. Dentro achava-se o
menor chapéu que eu já vira. Era de peles e tinha uma fita azul para atar sob o
queixo.
- Que coisinha mais linda! Betsie ergueu-o cuidadosamente
da caixa, para vê-lo melhor à luz da manhã que mal e mal penetrava no quarto.
- Onde foi que você...?
- Foi a Sra. van Dyer que me deu.
Os van Dyer eram os proprietários da chapelaria que ficava
duas portas abaixo da nossa casa.
- Ela viu que eu estava olhando para esse, e depois que a
Tia Jans já tinha comprado aquilo, ela veio aqui e me deu este.
Ao dizer "aquilo", Nollie havia apontado para
cima do guarda-roupa. Era um chapelão marrom, de abas largas, enfeitado com um
cacho de rosas de veludo roxo e que revelava claramente quem o escolhera. Tia
Jans, irmã de mamãe e mais velha que ela, viera morar conosco logo após o
falecimento de seu marido, para passar em nossa companhia, como dizia "os
poucos dias que me restam", embora tivesse apenas quarenta e poucos anos
de idade.
Sua vinda só fizera complicar ainda mais a vida da velha
casa - que já ficara apertada com a chegada, anteriormente, de mais duas irmãs
de mamãe, Tia Bep e Tia Anna - pois consigo ela trouxera várias peças de
mobília, todas grandes demais para os pequenos cômodos do Beje.
Tia Jans acomodara-se nos dois quartos do segundo andar
da casa da frente, os quais ficavam logo acima da loja e da oficina. O
primeiro, ela usava como seu escritório, onde produzia seus inflamados
folhetos evangélicos, pelos quais era conhecida em toda a Holanda. No outro
recebia a visita das damas ricas que sustentavam a obra. Tia Jans cria que
nossa felicidade no além dependia da quantidade de nossas realizações nesta
terra. Para dormir, ela fizera, no primeiro quarto, uma divisão em que cabia
apenas a cama. A morte, dizia ela, estava esperando para arrebatá-la de seu
trabalho, e, por isso, suas horas de descanso eram breves e poucas.
Não me recordo como era o Beje antes de Tia Jans
chegar, nem sei de quem eram aqueles quartos antes de ela os ocupar. Em cima
deles, tendo por teto a cúpula triangular do telhado, havia um longo sótão.
Desde quando me lembro, este espaço era dividido em quatro quartos bem
pequenos.
O primeiro, que dava para a rua e o único com janela, era
da Tia Bep. Atrás dele, enfileirados como os vagões de um trem de ferro, vinham
os quartos da Tia Anna, Betsie e Willem. Subindo-se os cinco degraus para a
residência de trás, chegava-se ao quarto que Nollie e eu ocupávamos. Logo
abaixo dele, estava o quarto de papai e mamãe, e embaixo deste, a sala de
jantar com aquela cozinha que parecia ter sido adicionada a ela como uma idéia
de última hora.
Nunca nos ocorreu que talvez a porção que coubera à Tia
Jans, na distribuição dos cômodos dessa casa superpopulada, fosse demais. O
mundo simplesmente "abria alas" para Tia Jans. O dia todo ouvíamos o
tropel do bonde puxado a cavalos que passava em frente à nossa casa, e parava
na pracinha, a meia quadra dali, ponto de parada para todos os passageiros.
Entretanto, para Tia Jans, era diferente. Quando ela desejava ir a algum lugar,
ela se postava na calçada em frente da loja e, quando os cavalos se
aproximavam, erguia um dos dedos da mão enluvada. Parecia-me ser mais fácil
deter o sol no céu do que fazer estacar aqueles animais, mas para Tia Jans eles
paravam. Os freios gemiam, os cavalos quase se amontoavam uns sobre os outros,
e o cocheiro inclinava seu chapéu num cumprimento enquanto ela subia a bordo.
Seria diante desse olhar dominador que Nollie teria que
passar com o chapeuzinho de peles. Desde que viera morar em nossa casa, Tia
Jans tomara a si a responsabilidade de comprar quase toda a roupa, para nós,
as três meninas. Seus presentes, porém, tinham um preço. Para a tia, o que
estava na moda quando ela fora jovem, representava a palavra final de Deus na
questão do vestuário. Todas as mudanças que ocorreram depois tinham vindo
diretamente dos figurinos do diabo. Aliás, em um dos seus conhecidos panfletos,
ela o indicava como sendo o inventor da manga afofada e da saia-culote.
- Já sei! gritei, enquanto os dedos ágeis de Betsie
corriam sobre meu pé, abotoando o sapato. Você poderia colocar primeiro o
chapéu de peles e depois o chapelão por cima dele. Quando chegasse lá fora,
você tirava o chapelão.
- Corrie! Nollie estava positivamente chocada. Isto não
seria honesto!
Com um olhar de raiva para o chapéu marrom, ela pegou o
chapeuzinho de peles e saiu atrás de Betsie para ir tomar café.
Peguei meu chapéu - o desprezado chapéu cinzento do ano
anterior - e desci após elas, uma das mãos no poste central, ao redor do qual
a escada dava suas voltas. Então deixa a Tia Jans ver o tal chapéu. Que me
importa? Eu nunca poderia mesmo compreender por que todo esse alvoroço só por
causa de roupas.
Uma coisa porém eu compreendia, um fato terrível e alarmante:
nesse dia eu começava a estudar. Deixava este velho e amado lar, deixava mamãe
e as tias, deixava tudo que representava segurança e carinho. Agarrei o poste
com tanta força que, ao contorná-lo, ouvi o rangido da palma da mão contra a
madeira. Era verdade que a escola ficava apenas a uma quadra e meia da casa, e
Nollie já a freqüentava havia dois anos sem dificuldades. Mas Nollie era
diferente de mim; ela era bonita, bem comportada e estava sempre arrumadinha.
E então, na última volta da escada, encontrei a solução.
Era tão simples, tão clara que ri em voz alta. Eu simplesmente não iria à
escola. Ficaria em casa e ajudaria a Tia Anna na cozinha. Mamãe me ensinaria a
ler e eu não precisaria nunca me aproximar daquele prédio feio e ameaçador.
Senti um grande alívio me invadir e desci os três últimos degraus de um salto.
- Ssssssssiiiuuu!
Betsie e Nollie estavam esperando por mim à porta da sala
de jantar.
- Por favor, Corrie, não faça nada para irritar Tia Jans,
disse Betsie. Tenho certeza de que papai, mamãe e Tia Anna vão gostar do chapéu
de Nollie, acrescentou com certa dúvida.
- Tia Bep não vai, respondi.
- Ela não gosta de nada, interveio Nollie. Ela não conta.
Tia Bep, com seu eterno ar de desaprovação, era a mais velha das tias, e a de
quem nós menos gostávamos. Ela havia trabalhado como governanta para algumas
famílias ricas e estava sempre nos comparando com as meninas e rapazinhos em
cujas casas trabalhara.
Betsie apontou para o relógio à parede, e com um dedo sobre
os lábios abriu silenciosamente a porta. Eram 8:12h. O café já fora servido.
- Dois minutos de atraso, gritou Willem em um tom de
triunfo.
- Os filhos dos Waller nunca se atrasavam, disse Tia Bep.
- Mas elas já chegaram! disse papai. E a sala até parece
que ficou mais alegre!
- Tia Jans vai ficar na cama hoje? perguntou Betsie esperançosamente,
enquanto pendurávamos os chapéus nos respectivos ganchos.
- Ela está na cozinha, preparando um tônico, disse mamãe.
Ela se inclinou para servir-nos café e disse em voz baixa:
- Hoje precisamos ter muita paciência com Tia Jans. É aniversário
da morte da irmã do marido dela ou é da prima?
- Achava que fosse da tia dele, disse Tia Anna.
- E da prima dele; e foi uma bênção, informou Tia Bep.
- Bom; não interessa, falou mamãe apressadamente, vocês
sabem que Jans fica muito nervosa nestes aniversários da morte de parentes;
então, vamos ajudá-la em tudo.
Betsie cortou três fatias de pão redondo, enquanto eu
olhava ao redor da mesa, tentando imaginar qual dos três adultos iria se
mostrar mais entusiasmado com meu projeto de não ir à escola. Papai, eu tinha
certeza, dava uma importância quase religiosa à educação. Ele tivera que parar
de estudar para trabalhar na relojoaria, quando ainda era bem jovem, e, embora
fosse um autodidata, tendo aprendido sozinho História, Teologia e Literatura de
cinco línguas, sempre se ressentia de não ter freqüentado a escola mais tempo.
Ele ia querer que eu fosse, e o que ele quisesse, mamãe também queria.
E Tia Anna? Ela havia falado várias vezes que não poderia
passar sem mim, para as subidas e descidas pela escada com alguns mandados. Já
que mamãe não era forte, Tia Anna se encarregava da maior parte do serviço
pesado para nossa família de nove pessoas. Ela era a irmã mais nova e tinha o
espírito tão generoso como o de mamãe. Havia uma crença em nossa família de que
Tia Anna recebia pagamento pelo seu trabalho. E era verdade: todo sábado, papai
lhe pagava, fielmente, um guílder. Na quarta-feira, porém, quando passava o
verdureiro, muitas vezes ele tinha que pedi-lo de volta, e ela ainda tinha
aquele dinheiro - guardado e intato. É! Ela poderia ser a aliada de que eu
precisava.
- Tia Anna, principiei, estou pensando na senhora trabalhando
tanto, o dia todo e eu na escola...
Ouvimos uma respiração profunda e ruidosa, e todos erguemos
os olhos. Tia Jans estava parada à porta da cozinha, tendo na mão um copo cheio
de um líquido marrom, xaroposo. Ela respirou fundo e fechou os olhos; levou o
copo à boca e bebeu de um gole. Depois deu um suspiro, pôs o copo sobre o
armário de louça, e sentou-se.
- Mas, realmente, disse, como se estivéssemos discutindo
o assunto, que é que os médicos sabem? O Dr. Blinker me receitou este tônico,
mas para que é que os remédios servem? Quando chega a hora final, nada
adianta!
Corri os olhos ao redor da mesa; ninguém sorria. A preocupação
da Tia Jans com a morte poderia até parecer cômica, mas não era. Mesmo sendo
tão jovem, eu sabia que o medo nunca era engraçado.
- Entretanto, Jans, falou papai gentilmente, a medicina
tem prolongado muitas vidas.
- Não valeu de nada para Zusje! E ela foi aos melhores
médicos de Roterdam. E foi no dia de hoje que ela morreu, e nem mais velha do
que sou agora ela era. Naquele dia, ela se levantou, vestiu-se e tomou café,
exatamente como eu fiz hoje.
Ela já ia se lançar num relato detalhado do último dia da
vida de Zusje, quando seus olhos deram com o chapéu novo de Nollie pendurado no
gancho.
- Um gorro de peles nesta época do ano? perguntou, cada
palavra vibrando de desconfiança.
- Não é um gorro, Tia Jans, explicou Nollie baixinho.
- E pode-se saber o que é?
- É um chapéu, respondeu Betsie. Foi um presente da Sra.
van Dyer. Não foi gentileza dela...
- Ah, não! O chapéu de Nollie tem uma boa aba, e é como
deve ser o chapéu de uma menina bem-educada. Eu sei disso. Fui eu quem o
comprou e pagou.
Os olhos de Tia Jans despendiam chispas; os de Nollie
marejavam. Mamãe veio em seu socorro.
- Não sei bem se este queijo está fresco!
Cheirou o pote de queijo amarelo, que estava sobre a
mesa, e empurrou-o para papai.
- Que é que você acha, Cásper?
Papai, que era incapaz de dissimular, e mesmo de entender
uma dissimulação, pegou-o, e cheirou-o aspirando profundamente.
- Está perfeito, querida. Está tão fresco quanto no dia
em que chegou. O queijo que o Sr. Steerwijk faz é... Depois, percebendo o
olhar de mamãe, voltou-se para a Tia Jans meio confuso. Ah... Jans, o que é que
você acha?
Tia Jans pegou o vidro e olhou-o com ardoroso zelo. Se
havia algo que atraía sua ira mais que as roupas modernas, era alimento
deteriorado. Afinal, e quase com relutância, pareceu-me, ela deu sua aprovação
do queijo, mas o chapéu estava esquecido. Ela já enveredara pelo caso de uma conhecida
sua - "de minha idade!" - que morrera após ter comido um peixe de
aparência meio duvidosa, e foi aí que os empregados da loja chegaram, e papai
retirou a Bíblia da estante.
Em 1898, havia apenas dois empregados na relojoaria: o
oficial relojoeiro e o aprendiz, que também era moço de recados. Depois que
mamãe os serviu de café, papai colocou seus óculos sem aro, e começou a ler:
"Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz,
para os meus caminhos... Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra, eu
espero."
Que tipo de refúgio? procurei imaginar, enquanto observava
sua barba abaixar-se e levantar, a cada palavra proferida. De que é que a
gente precisava se abrigar?
Era um salmo muito longo; a meu lado, Nollie começou a
remexer-se. Logo que papai fechou o livro, ela, Willem e Betsie se puseram de
pé prontamente e pegaram seus chapéus. No minuto seguinte, já desciam as
escadas, e saíam pela porta lateral.
Os dois empregados da loja levantaram-se também, embora
não tão prontamente, e os seguiram. Foi só então que os cinco adultos à mesa
deram comigo ainda sentada.
- Corrie, exclamou mamãe, esqueceu que agora você já é
uma menina crescida? Hoje você vai para a escola também. Depressa, senão terá
que atravessar a rua sozinha.
- Eu não vou!
Houve um curto silêncio de assombro, imediatamente
quebrado por todos ao mesmo tempo.
- Quando eu era menina... começou Tia Jans.
- Os filhos da Sra. Waller... era Tia Bep. A voz grave de
papai abafou as outras:
- É lógico que ela não vai sozinha. Nollie estava tão animada
que esqueceu de esperar, é só isso. Corrie vai comigo.
Então ele pegou meu chapéu, envolveu minha mão com a sua
e levou-me dali. A mão de meu pai! Isso significava o moinho de Spaarne ou os
cisnes do canal. Desta vez, porém, ele me levava aonde eu não queria ir. Havia
um corrimão na escadinha. Agarrei-me a ele e segurei firme. Seus habilidosos
dedos de relojoeiro fecharam-se sobre a minha mão e gentilmente fizeram-na
soltar-se. Lutando e gritando, fui carregada do mundo que eu amava para um
outro maior, estranho e perigoso...
Às segundas-feiras, papai ia a Amsterdam para ver a hora
certa no Observatório Naval. Agora que eu começava a estudar, só poderia
acompanhá-lo no verão. Eu descia correndo para a loja, cabelos escovados,
sapatos abotoados, depois de ter sido declarada passável por Betsie. Papai
estaria dando as instruções finais ao aprendiz.
"A Sra. Staal vem agora de manhã buscar o relógio
dela. Este aqui é para ser entregue ao Sr. Bakker em Bloemendaal."
Depois partiríamos de mãos dadas para a estação: eu alargando
meus passos e ele encurtando os seus, para podermos andar juntos. A viagem para
Amsterdam não levava mais que meia hora, mas era maravilhosa. Primeiro,
passavam os prédios velhos e aglomerados de Haarlem, que, em seguida, davam
lugar a casas mais esparsas, circundadas de pequenos quintais.
Depois, os espaços despovoados aumentavam. Finalmente,
encontrávamo-nos em pleno campo, na região das fazendas, plana até perder de
vista, e cortada de canais tão retos que pareciam traçados à régua. Por fim
chegávamos a Amsterdam, com a magia de suas ruas e canais, e maior ainda do
que Haarlem.
Papai sempre ia com uma ou duas horas de antecedência,
para visitar os atacadistas que lhe forneciam relógios e peças. Muitos deles
eram judeus, e era destes que nós mais gostávamos. Depois de resolver os
negócios, o que fazia no menor tempo possível, papai tirava uma Bíblia pequena
de sua maleta de viagem.
O negociante, cuja barba era geralmente mais longa e
cheia que a de papai, apanhava um livrinho ou rolo, e assentava um solidéu no
alto da cabeça. Assim os dois conversavam por muito tempo argumentando,
comparando textos, interrompendo-se mutuamente - cada um se deleitando mais
com a presença do outro.
Depois, quando eu já estava quase chegando à conclusão de
que havia sido totalmente esquecida, o homem erguia os olhos, via-me - como se
fosse a primeira vez - e batia na testa com a base da mão.
"Uma visita! Estou com uma visita em casa e não lhe
ofereci nada!"
Levantava-se de um salto, fazia uma busca rápida pelas estantes
e armários, e, daí a pouco, eu tinha no colo um prato cheio dos petiscos mais
deliciosos do mundo: bolos de mel e tâmaras, e uma espécie de docinho de nozes,
frutas e açúcar. Sobremesa no Beje era coisa rara; delícias como
aquelas eram completamente desconhecidas.
Às cinco para o meio-dia, estaríamos de volta à plataforma
da estação, aguardando, de um ponto estratégico, o sinal do Observatório Naval.
No topo da torre, de onde poderia ser vista por todos os navios ancorados no
porto, estava a coluna com os dois ponteiros. Ao meio-dia em ponto, o sinal era
dado. De sua posição privilegiada e tendo na mão o bloco, lápis e seu
cronômetro, papai aguardava o momento, quase na ponta dos pés de entusiasmo
pela precisão do aparelho. Aí está! Quatro segundos adiantado! Uma hora mais
tarde o relógio astronômico de nossa loja seria acertado com precisão de
segundos.
Na viagem de volta, não olhávamos pela janela. Conversávamos.
Falávamos a respeito de assuntos os mais diversos, que variavam com o passar
dos anos. A formatura de Betsie no ginásio, apesar das muitas aulas perdidas
por causa de doença. E quando Willem se formasse, será que conseguiria a bolsa
de estudos para cursar a Universidade? Betsie começando a trabalhar na nossa
loja como guarda-livros.
Muitas vezes, eu aproveitava aquelas viagens para discutir
assuntos que estivessem me perturbando, já que em casa, tudo que eu perguntava
era respondido pelas tias. Certa vez - eu devia ter dez ou onze anos -
interroguei-o acerca de um poema que havíamos lido na escola. Uma sentença falava
sobre "um jovem cujo rosto não fora marcado pelo pecado do sexo". Eu
me acanhara de perguntar à professora o que aquilo significava, e mamãe, quando
a interroguei, ficara toda vermelha. Naquela época, nos princípios do século
XX, nunca se conversava sobre sexo, nem mesmo em família.
A sentença ficara em minha mente. Pecado eu sabia, era
algo que irritava por demais a Tia Jans; sexo era a diferença entre meninos e
meninas. Os dois reunidos, porém, eu não sabia o que vinha a ser. Foi assim
que, sentada no trem ao lado de papai, perguntei-lhe de chofre:
- Pai, o que é "pecado do sexo"?
Ele olhou-me como sempre fazia ao responder uma pergunta,
mas, para minha surpresa, não disse nada. Levantou-se, tirou a maleta do porta-volumes
acima de nós, e colocou-a no chão.
- Quer carregá-la para mim, Corrie?
Pus-me de pé e peguei a alça. A maleta estava cheia de
relógios e peças que ele comprara nesse dia.
- É muito pesada, disse.
- É mesmo, confirmou ele. E eu seria um péssimo pai se
exigisse que minha filhinha carregasse todo esse peso. Com os conhecimentos
dá-se o mesmo, Corrie. Algumas coisas são pesadas demais para as crianças.
Quando você ficar maior, e mais forte, poderá suportá-las. Hoje, porém, tem que
confiar em mim e deixar que eu as carregue para você.
Fiquei satisfeita; mais que satisfeita, fiquei em paz.
Havia respostas para esta e todas as outras perguntas difíceis que eu tivesse,
mas por agora, eu estava tranqüila em entregá-las aos cuidados de meu pai.
As noites no Beje eram reservadas para se receber visitas e fazer música. Algumas pessoas traziam flautas, outras violinos, e como cada um da família ou cantava ou tocava um instrumento, formávamos quase uma orquestra ao redor do piano que havia num dos quartos de Tia Jans.
Somente quando havia um concerto na cidade é que não
tínhamos nossa pequena reunião musical. Não podíamos pagar o ingresso, mas
havia uma entrada lateral para o palco, de onde se conseguia ouvir bem. Do lado
de fora, nós e dezenas de outros amantes da boa música seguíamos o concerto
nota por nota. Mamãe e Betsie não eram muito fortes e não agüentavam ficar lá
muito tempo, mas nós ficávamos ali, sob a neve e sob a chuva ou geada. E,
enquanto dentro do salão ouviam-se tosses e ruído de gente que se movia, do
grupo que estava à porta não partia nem mesmo um sussurro.
Melhor ainda era quando havia um concerto na catedral,
pois um parente nosso era sacristão. Perto da entrada de serviço utilizada por
ele, havia um banco de madeira junto a uma parede. Nós nos sentávamos ali,
sentindo nas costas o frio das velhas pedras, mas com o coração aquecido pela
música.
O som de algumas notas daquele órgão velho, no qual
Mozart tocara, parecia vir diretamente do céu. Eu costumava pensar que o céu devia
ser como a catedral de São Bavo, e mais ou menos do mesmo tamanho. Eu sabia que
o inferno era quente, então o céu devia ser como este santuário, frio e úmido,
com a fumaça dos aquecedores de pés subindo como incenso. No céu, eu cria,
todos teriam direito a aquecedores. Até mesmo no verão, as lajes de mármore do
assoalho eram frias. Quando, porém, o organista tocava, a gente quase que se
esquecia delas, e se tocasse Bach, então é que se esquecia mesmo.
Eu estava subindo, com mamãe e Nollie, uma escada cheia de teias de aranha que se apegavam ao nosso cabelo, e de ratos que fugiam à nossa aproximação. Essa casa ficava a uma quadra e meia do Beje e sua construção era, pelo menos, um século mais recente, mas ali não havia uma Tia Anna para lavar e encerar.
Íamos visitar uma família pobre da vizinhança, uma das
muitas que mamãe "adotara". Nós, crianças, nunca percebêramos que
éramos pobres. Pobre era a família a quem se levava uma cesta de alimentos.
Mamãe estava sempre fazendo sopas ou mingaus para velhos semi-abandonados ou
jovens mães pálidas, isto é, nos dias em que ela própria não se sentia fraca
demais para ficar ao pé do fogão.
Na noite anterior, o bebê deles havia morrido e agora
mamãe fazia sua visita de praxe, levando pão fresco que ela mesma fizera. Subia
penosamente, parando várias vezes para recuperar o fôlego. Em cima, entramos
por uma porta que dava para um cômodo que era, ao mesmo tempo, quarto de
dormir, sala de jantar e cozinha. Várias pessoas já se encontravam ali, muitas
delas de pé, por falta de cadeiras. Mamãe encaminhou-se diretamente para a mãe,
mas eu parei à entrada, petrificada. À direita, em seu bercinho de fabricação
caseira, estava a criancinha.
É estranho como uma sociedade que escondia das crianças
as verdades sobre o sexo, nada fazia para escudá-las da realidade da morte.
Fiquei ali de olhos pregados no corpinho morto, com o coração batendo
fortemente. Nollie, sempre mais corajosa que eu, estendeu a mão e tocou o
rostinho branco como marfim. Desejei fazer o mesmo mas, amedrontada demais,
não conseguia. Por alguns instantes, dentro de mim, a curiosidade lutou contra
o pavor. Afinal, encostei um dedo na mãozinha cerrada.
Estava fria.
Estava fria quando caminhávamos de volta para o Beje, fria
enquanto me lavava para jantar, e fria ainda no aconchego da nossa sala de
jantar iluminada a gás. Aqueles dedinhos gelados se interpunham entre mim e
todos aqueles rostos queridos à mesa. Apesar de Tia Jans falar tanto na morte,
até então ela havia sido para mim apenas uma palavra. Agora eu sabia que era
algo real - se era real para aquele bebezinho, então podia ser para mamãe, para
papai, para Betsie.
Ainda tremendo por causa daquele frio, segui Nollie até
nosso quartinho e enfiei-me na cama ao seu lado. Por fim ouvimos os passos de
papai escada acima. Aquele momento era, para mim, o melhor do dia - ele vinha
ajeitar nossas cobertas. Nunca dormíamos antes que ele viesse arranjá-las a seu
modo, e colocar a mão em nossa cabeça por um instante. Depois, ficávamos
quietas e procurávamos não mover, nem mesmo um dedo.
Aquela noite, porém, assim que ele atravessou a porta,
rompi em lágrimas.
- Eu preciso do senhor, solucei. O senhor não pode morrer,
não pode!
Nollie sentou-se na cama.
- Fomos a casa da Sra. Hoog, explicou. Corrie não jantou
nem comeu nada.
Papai sentou-se na beira da nossa caminha estreita.
- Corrie, disse gentilmente, nos dias em que vamos a
Amsterdam, quando é que eu lhe entrego sua passagem?
Funguei duas ou três vezes, ponderando o fato.
- Ora, pouco antes de tomar o trem.
- Certo. Nosso Pai celestial é muito bom e ele sabe o momento certo em que iremos precisar das coisas. Não passe na frente dele, Corrie. Quando chegar a hora em que tivermos de morrer, você vai ver que seu coração terá a força de que você precisa. No momento exato.