segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 02

Todos à Mesa

             O ano era 1898, e eu tinha seis anos. Betsie me colocou diante do espelho do guarda-roupa, e passou-me um sermão.

            - Olhe só seu sapato. Está faltando metade dos botões. E essa meia rasgada logo no primeiro dia de aula! Veja como Nollie está!

            Encontrávamo-nos em nosso quarto - meu e de Nollie -que ficava no topo do Beje. Olhei para minha irmã, dois anos mais velha que eu: era verdade. Seus sapatos estavam perfei­tamente abotoados. Com relutância, tirei o meu, enquanto Betsie dava uma busca pelo armário.

            Betsie tinha treze anos, e, para mim, era quase adulta. Ela sempre me parecera mesmo mais velha, pois nunca pudera correr e fazer algazarra como as outras crianças. Sofria de anemia perniciosa desde o nascimento. Assim, enquanto nós brincávamos de pique, rodávamos arco, ou apostávamos cor­rida patinando pelos canais gelados no inverno, ela ficava sentada em casa, fazendo coisas enfadonhas, bordando, por exemplo. Nollie, porém, brincava tanto quanto qualquer ou­tra criança, e era pouco mais velha que eu. Não me parecia justo que ela sempre fizesse tudo certinho.

            - Betsie, estava ela dizendo, eu não vou para a escola com aquele chapelão horrível, só porque foi a Tia Jans quem o comprou. No ano passado, foi aquele cinzento horroroso, e agora é este, que é ainda mais feio.

            Betsie olhou-a com um ar de compreensão.

            - É, mas... bem, você não pode ir sem chapéu, e nós não podemos comprar outro.

            - Não vai ser preciso.

            Dando uma rápida olhadela para a porta, Nollie abaixou-se, enfiou a mão debaixo da cama estreita - que era a que o quarto comportava - e puxou de lá uma caixa redonda e pe­quena. Dentro achava-se o menor chapéu que eu já vira. Era de peles e tinha uma fita azul para atar sob o queixo.

            - Que coisinha mais linda! Betsie ergueu-o cuidadosamen­te da caixa, para vê-lo melhor à luz da manhã que mal e mal penetrava no quarto.

            - Onde foi que você...?

            - Foi a Sra. van Dyer que me deu.

            Os van Dyer eram os proprietários da chapelaria que fica­va duas portas abaixo da nossa casa.

            - Ela viu que eu estava olhando para esse, e depois que a Tia Jans já tinha comprado aquilo, ela veio aqui e me deu este.

            Ao dizer "aquilo", Nollie havia apontado para cima do guarda-roupa. Era um chapelão marrom, de abas largas, en­feitado com um cacho de rosas de veludo roxo e que revelava claramente quem o escolhera. Tia Jans, irmã de mamãe e mais velha que ela, viera morar conosco logo após o faleci­mento de seu marido, para passar em nossa companhia, como dizia "os poucos dias que me restam", embora tivesse apenas quarenta e poucos anos de idade.

            Sua vinda só fizera complicar ainda mais a vida da velha casa - que já ficara apertada com a chegada, anteriormente, de mais duas irmãs de mamãe, Tia Bep e Tia Anna - pois consigo ela trouxera várias peças de mobília, todas grandes demais para os pequenos cômodos do Beje.

            Tia Jans acomodara-se nos dois quartos do segundo andar da casa da frente, os quais ficavam logo acima da loja e da oficina. O primeiro, ela usava como seu escritório, onde pro­duzia seus inflamados folhetos evangélicos, pelos quais era conhecida em toda a Holanda. No outro recebia a visita das damas ricas que sustentavam a obra. Tia Jans cria que nossa felicidade no além dependia da quantidade de nossas reali­zações nesta terra. Para dormir, ela fizera, no primeiro quar­to, uma divisão em que cabia apenas a cama. A morte, dizia ela, estava esperando para arrebatá-la de seu trabalho, e, por isso, suas horas de descanso eram breves e poucas.

            Não me recordo como era o Beje antes de Tia Jans chegar, nem sei de quem eram aqueles quartos antes de ela os ocu­par. Em cima deles, tendo por teto a cúpula triangular do telhado, havia um longo sótão. Desde quando me lembro, este espaço era dividido em quatro quartos bem pequenos.

            O primeiro, que dava para a rua e o único com janela, era da Tia Bep. Atrás dele, enfileirados como os vagões de um trem de ferro, vinham os quartos da Tia Anna, Betsie e Willem. Subindo-se os cinco degraus para a residência de trás, chega­va-se ao quarto que Nollie e eu ocupávamos. Logo abaixo dele, estava o quarto de papai e mamãe, e embaixo deste, a sala de jantar com aquela cozinha que parecia ter sido adicio­nada a ela como uma idéia de última hora.

            Nunca nos ocorreu que talvez a porção que coubera à Tia Jans, na distribuição dos cômodos dessa casa superpopulada, fosse demais. O mundo simplesmente "abria alas" para Tia Jans. O dia todo ouvíamos o tropel do bonde puxado a cava­los que passava em frente à nossa casa, e parava na pracinha, a meia quadra dali, ponto de parada para todos os passagei­ros. Entretanto, para Tia Jans, era diferente. Quando ela desejava ir a algum lugar, ela se postava na calçada em frente da loja e, quando os cavalos se aproximavam, erguia um dos dedos da mão enluvada. Parecia-me ser mais fácil deter o sol no céu do que fazer estacar aqueles animais, mas para Tia Jans eles paravam. Os freios gemiam, os cavalos quase se amontoavam uns sobre os outros, e o cocheiro inclinava seu chapéu num cumprimento enquanto ela subia a bordo.

            Seria diante desse olhar dominador que Nollie teria que passar com o chapeuzinho de peles. Desde que viera morar em nossa casa, Tia Jans tomara a si a responsabilidade de com­prar quase toda a roupa, para nós, as três meninas. Seus pre­sentes, porém, tinham um preço. Para a tia, o que estava na moda quando ela fora jovem, representava a palavra final de Deus na questão do vestuário. Todas as mudanças que ocorreram depois tinham vindo diretamente dos figurinos do diabo. Aliás, em um dos seus conhecidos panfletos, ela o indicava como sendo o inventor da manga afofada e da saia-culote.

            - Já sei! gritei, enquanto os dedos ágeis de Betsie corriam sobre meu pé, abotoando o sapato. Você poderia colocar pri­meiro o chapéu de peles e depois o chapelão por cima dele. Quando chegasse lá fora, você tirava o chapelão.

            - Corrie! Nollie estava positivamente chocada. Isto não seria honesto!

            Com um olhar de raiva para o chapéu marrom, ela pegou o chapeuzinho de peles e saiu atrás de Betsie para ir tomar café.

            Peguei meu chapéu - o desprezado chapéu cinzento do ano anterior - e desci após elas, uma das mãos no poste cen­tral, ao redor do qual a escada dava suas voltas. Então deixa a Tia Jans ver o tal chapéu. Que me importa? Eu nunca pode­ria mesmo compreender por que todo esse alvoroço só por causa de roupas.

            Uma coisa porém eu compreendia, um fato terrível e alar­mante: nesse dia eu começava a estudar. Deixava este velho e amado lar, deixava mamãe e as tias, deixava tudo que representava segurança e carinho. Agarrei o poste com tan­ta força que, ao contorná-lo, ouvi o rangido da palma da mão contra a madeira. Era verdade que a escola ficava ape­nas a uma quadra e meia da casa, e Nollie já a freqüentava havia dois anos sem dificuldades. Mas Nollie era diferente de mim; ela era bonita, bem comportada e estava sempre arrumadinha.

            E então, na última volta da escada, encontrei a solução. Era tão simples, tão clara que ri em voz alta. Eu simplesmente não iria à escola. Ficaria em casa e ajudaria a Tia Anna na cozinha. Mamãe me ensinaria a ler e eu não precisaria nunca me apro­ximar daquele prédio feio e ameaçador. Senti um grande alí­vio me invadir e desci os três últimos degraus de um salto.

            - Ssssssssiiiuuu!

            Betsie e Nollie estavam esperando por mim à porta da sala de jantar.

            - Por favor, Corrie, não faça nada para irritar Tia Jans, disse Betsie. Tenho certeza de que papai, mamãe e Tia Anna vão gostar do chapéu de Nollie, acrescentou com certa dúvida.

            - Tia Bep não vai, respondi.

            - Ela não gosta de nada, interveio Nollie. Ela não conta. Tia Bep, com seu eterno ar de desaprovação, era a mais velha das tias, e a de quem nós menos gostávamos. Ela havia trabalhado como governanta para algumas famílias ricas e estava sempre nos comparando com as meninas e rapazinhos em cujas casas trabalhara.

            Betsie apontou para o relógio à parede, e com um dedo sobre os lábios abriu silenciosamente a porta. Eram 8:12h. O café já fora servido.

            - Dois minutos de atraso, gritou Willem em um tom de triunfo.

            - Os filhos dos Waller nunca se atrasavam, disse Tia Bep.

            - Mas elas já chegaram! disse papai. E a sala até parece que ficou mais alegre!

            - Tia Jans vai ficar na cama hoje? perguntou Betsie espe­rançosamente, enquanto pendurávamos os chapéus nos res­pectivos ganchos.

            - Ela está na cozinha, preparando um tônico, disse mamãe. Ela se inclinou para servir-nos café e disse em voz baixa:

            - Hoje precisamos ter muita paciência com Tia Jans. É ani­versário da morte da irmã do marido dela ou é da prima?

            - Achava que fosse da tia dele, disse Tia Anna.

            - E da prima dele; e foi uma bênção, informou Tia Bep.

            - Bom; não interessa, falou mamãe apressadamente, vocês sabem que Jans fica muito nervosa nestes aniversários da morte de parentes; então, vamos ajudá-la em tudo.

            Betsie cortou três fatias de pão redondo, enquanto eu olha­va ao redor da mesa, tentando imaginar qual dos três adultos iria se mostrar mais entusiasmado com meu projeto de não ir à escola. Papai, eu tinha certeza, dava uma importância qua­se religiosa à educação. Ele tivera que parar de estudar para trabalhar na relojoaria, quando ainda era bem jovem, e, em­bora fosse um autodidata, tendo aprendido sozinho História, Teologia e Literatura de cinco línguas, sempre se ressentia de não ter freqüentado a escola mais tempo. Ele ia querer que eu fosse, e o que ele quisesse, mamãe também queria.

            E Tia Anna? Ela havia falado várias vezes que não poderia passar sem mim, para as subidas e descidas pela escada com alguns mandados. Já que mamãe não era forte, Tia Anna se encarregava da maior parte do serviço pesado para nossa fa­mília de nove pessoas. Ela era a irmã mais nova e tinha o espírito tão generoso como o de mamãe. Havia uma crença em nossa família de que Tia Anna recebia pagamento pelo seu trabalho. E era verdade: todo sábado, papai lhe pagava, fielmente, um guílder. Na quarta-feira, porém, quando pas­sava o verdureiro, muitas vezes ele tinha que pedi-lo de vol­ta, e ela ainda tinha aquele dinheiro - guardado e intato. É! Ela poderia ser a aliada de que eu precisava.

            - Tia Anna, principiei, estou pensando na senhora traba­lhando tanto, o dia todo e eu na escola...

            Ouvimos uma respiração profunda e ruidosa, e todos er­guemos os olhos. Tia Jans estava parada à porta da cozinha, tendo na mão um copo cheio de um líquido marrom, xaroposo. Ela respirou fundo e fechou os olhos; levou o copo à boca e bebeu de um gole. Depois deu um suspiro, pôs o copo sobre o armário de louça, e sentou-se.

            - Mas, realmente, disse, como se estivéssemos discutindo o assunto, que é que os médicos sabem? O Dr. Blinker me receitou este tônico, mas para que é que os remédios ser­vem? Quando chega a hora final, nada adianta!

            Corri os olhos ao redor da mesa; ninguém sorria. A preo­cupação da Tia Jans com a morte poderia até parecer cômi­ca, mas não era. Mesmo sendo tão jovem, eu sabia que o medo nunca era engraçado.

            - Entretanto, Jans, falou papai gentilmente, a medicina tem prolongado muitas vidas.

            - Não valeu de nada para Zusje! E ela foi aos melhores médicos de Roterdam. E foi no dia de hoje que ela morreu, e nem mais velha do que sou agora ela era. Naquele dia, ela se levantou, vestiu-se e tomou café, exatamente como eu fiz hoje.

            Ela já ia se lançar num relato detalhado do último dia da vida de Zusje, quando seus olhos deram com o chapéu novo de Nollie pendurado no gancho.

            - Um gorro de peles nesta época do ano? perguntou, cada palavra vibrando de desconfiança.

            - Não é um gorro, Tia Jans, explicou Nollie baixinho.

            - E pode-se saber o que é?

            - É um chapéu, respondeu Betsie. Foi um presente da Sra. van Dyer. Não foi gentileza dela...

            - Ah, não! O chapéu de Nollie tem uma boa aba, e é como deve ser o chapéu de uma menina bem-educada. Eu sei dis­so. Fui eu quem o comprou e pagou.

            Os olhos de Tia Jans despendiam chispas; os de Nollie marejavam. Mamãe veio em seu socorro.

            - Não sei bem se este queijo está fresco!

            Cheirou o pote de queijo amarelo, que estava sobre a mesa, e empurrou-o para papai.

            - Que é que você acha, Cásper?

            Papai, que era incapaz de dissimular, e mesmo de enten­der uma dissimulação, pegou-o, e cheirou-o aspirando pro­fundamente.

            - Está perfeito, querida. Está tão fresco quanto no dia em que chegou. O queijo que o Sr. Steerwijk faz é... Depois, per­cebendo o olhar de mamãe, voltou-se para a Tia Jans meio confuso. Ah... Jans, o que é que você acha?

            Tia Jans pegou o vidro e olhou-o com ardoroso zelo. Se havia algo que atraía sua ira mais que as roupas modernas, era alimento deteriorado. Afinal, e quase com relutância, pareceu-me, ela deu sua aprovação do queijo, mas o chapéu estava esquecido. Ela já enveredara pelo caso de uma co­nhecida sua - "de minha idade!" - que morrera após ter comido um peixe de aparência meio duvidosa, e foi aí que os empregados da loja chegaram, e papai retirou a Bíblia da estante.

            Em 1898, havia apenas dois empregados na relojoaria: o oficial relojoeiro e o aprendiz, que também era moço de reca­dos. Depois que mamãe os serviu de café, papai colocou seus óculos sem aro, e começou a ler:

            "Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz, para os meus caminhos... Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra, eu espero."

            Que tipo de refúgio? procurei imaginar, enquanto obser­vava sua barba abaixar-se e levantar, a cada palavra proferi­da. De que é que a gente precisava se abrigar?

            Era um salmo muito longo; a meu lado, Nollie começou a remexer-se. Logo que papai fechou o livro, ela, Willem e Betsie se puseram de pé prontamente e pegaram seus chapéus. No minuto seguinte, já desciam as escadas, e saíam pela porta lateral.

            Os dois empregados da loja levantaram-se também, em­bora não tão prontamente, e os seguiram. Foi só então que os cinco adultos à mesa deram comigo ainda sentada.

            - Corrie, exclamou mamãe, esqueceu que agora você já é uma menina crescida? Hoje você vai para a escola também. Depressa, senão terá que atravessar a rua sozinha.

            - Eu não vou!

            Houve um curto silêncio de assombro, imediatamente quebrado por todos ao mesmo tempo.

            - Quando eu era menina... começou Tia Jans.

            - Os filhos da Sra. Waller... era Tia Bep. A voz grave de papai abafou as outras:

            - É lógico que ela não vai sozinha. Nollie estava tão ani­mada que esqueceu de esperar, é só isso. Corrie vai comigo.

            Então ele pegou meu chapéu, envolveu minha mão com a sua e levou-me dali. A mão de meu pai! Isso significava o moi­nho de Spaarne ou os cisnes do canal. Desta vez, porém, ele me levava aonde eu não queria ir. Havia um corrimão na escadinha. Agarrei-me a ele e segurei firme. Seus habilidosos dedos de relojoeiro fecharam-se sobre a minha mão e gentilmente fizeram-na soltar-se. Lutando e gritando, fui carregada do mundo que eu amava para um outro maior, estranho e perigoso...

            Às segundas-feiras, papai ia a Amsterdam para ver a hora certa no Observatório Naval. Agora que eu começava a estu­dar, só poderia acompanhá-lo no verão. Eu descia correndo para a loja, cabelos escovados, sapatos abotoados, depois de ter sido declarada passável por Betsie. Papai estaria dando as instruções finais ao aprendiz.

            "A Sra. Staal vem agora de manhã buscar o relógio dela. Este aqui é para ser entregue ao Sr. Bakker em Bloemendaal."

            Depois partiríamos de mãos dadas para a estação: eu alar­gando meus passos e ele encurtando os seus, para podermos andar juntos. A viagem para Amsterdam não levava mais que meia hora, mas era maravilhosa. Primeiro, passavam os pré­dios velhos e aglomerados de Haarlem, que, em seguida, da­vam lugar a casas mais esparsas, circundadas de pequenos quintais.

            Depois, os espaços despovoados aumentavam. Fi­nalmente, encontrávamo-nos em pleno campo, na região das fazendas, plana até perder de vista, e cortada de canais tão retos que pareciam traçados à régua. Por fim chegávamos a Amsterdam, com a magia de suas ruas e canais, e maior ain­da do que Haarlem.

            Papai sempre ia com uma ou duas horas de antecedência, para visitar os atacadistas que lhe forneciam relógios e pe­ças. Muitos deles eram judeus, e era destes que nós mais gos­távamos. Depois de resolver os negócios, o que fazia no me­nor tempo possível, papai tirava uma Bíblia pequena de sua maleta de viagem.

            O negociante, cuja barba era geralmente mais longa e cheia que a de papai, apanhava um livrinho ou rolo, e assentava um solidéu no alto da cabeça. Assim os dois conversavam por muito tempo argumentando, comparando textos, interrompendo-se mutuamente - cada um se delei­tando mais com a presença do outro.

            Depois, quando eu já estava quase chegando à conclusão de que havia sido totalmente esquecida, o homem erguia os olhos, via-me - como se fosse a primeira vez - e batia na testa com a base da mão.

            "Uma visita! Estou com uma visita em casa e não lhe ofe­reci nada!"

            Levantava-se de um salto, fazia uma busca rápida pelas estantes e armários, e, daí a pouco, eu tinha no colo um pra­to cheio dos petiscos mais deliciosos do mundo: bolos de mel e tâmaras, e uma espécie de docinho de nozes, frutas e açú­car. Sobremesa no Beje era coisa rara; delícias como aquelas eram completamente desconhecidas.

            Às cinco para o meio-dia, estaríamos de volta à platafor­ma da estação, aguardando, de um ponto estratégico, o sinal do Observatório Naval. No topo da torre, de onde poderia ser vista por todos os navios ancorados no porto, estava a coluna com os dois ponteiros. Ao meio-dia em ponto, o sinal era dado. De sua posição privilegiada e tendo na mão o bloco, lápis e seu cronômetro, papai aguardava o momento, quase na ponta dos pés de entusiasmo pela precisão do aparelho. Aí está! Quatro segundos adiantado! Uma hora mais tarde o relógio astronômico de nossa loja seria acertado com preci­são de segundos.

            Na viagem de volta, não olhávamos pela janela. Conversávamos. Falávamos a respeito de assuntos os mais diversos, que variavam com o passar dos anos. A formatura de Betsie no ginásio, apesar das muitas aulas perdidas por causa de doença. E quando Willem se formasse, será que conseguiria a bolsa de estudos para cursar a Universidade? Betsie come­çando a trabalhar na nossa loja como guarda-livros.

            Muitas vezes, eu aproveitava aquelas viagens para discu­tir assuntos que estivessem me perturbando, já que em casa, tudo que eu perguntava era respondido pelas tias. Certa vez - eu devia ter dez ou onze anos - interroguei-o acerca de um poema que havíamos lido na escola. Uma sentença fala­va sobre "um jovem cujo rosto não fora marcado pelo peca­do do sexo". Eu me acanhara de perguntar à professora o que aquilo significava, e mamãe, quando a interroguei, fi­cara toda vermelha. Naquela época, nos princípios do sécu­lo XX, nunca se conversava sobre sexo, nem mesmo em fa­mília.

            A sentença ficara em minha mente. Pecado eu sabia, era algo que irritava por demais a Tia Jans; sexo era a diferença entre meninos e meninas. Os dois reunidos, porém, eu não sabia o que vinha a ser. Foi assim que, sentada no trem ao lado de papai, perguntei-lhe de chofre:

            - Pai, o que é "pecado do sexo"?

            Ele olhou-me como sempre fazia ao responder uma per­gunta, mas, para minha surpresa, não disse nada. Levantou-se, tirou a maleta do porta-volumes acima de nós, e colocou-a no chão.

            - Quer carregá-la para mim, Corrie?

            Pus-me de pé e peguei a alça. A maleta estava cheia de relógios e peças que ele comprara nesse dia.

            - É muito pesada, disse.

            - É mesmo, confirmou ele. E eu seria um péssimo pai se exigisse que minha filhinha carregasse todo esse peso. Com os conhecimentos dá-se o mesmo, Corrie. Algumas coisas são pesadas demais para as crianças. Quando você ficar maior, e mais forte, poderá suportá-las. Hoje, porém, tem que confiar em mim e deixar que eu as carregue para você.

            Fiquei satisfeita; mais que satisfeita, fiquei em paz. Havia respostas para esta e todas as outras perguntas difíceis que eu tivesse, mas por agora, eu estava tranqüila em entregá-las aos cuidados de meu pai.

            As noites no Beje eram reservadas para se receber visitas e fazer música. Algumas pessoas traziam flautas, outras violi­nos, e como cada um da família ou cantava ou tocava um instrumento, formávamos quase uma orquestra ao redor do piano que havia num dos quartos de Tia Jans.

            Somente quando havia um concerto na cidade é que não tínhamos nossa pequena reunião musical. Não podíamos pa­gar o ingresso, mas havia uma entrada lateral para o palco, de onde se conseguia ouvir bem. Do lado de fora, nós e deze­nas de outros amantes da boa música seguíamos o concerto nota por nota. Mamãe e Betsie não eram muito fortes e não agüentavam ficar lá muito tempo, mas nós ficávamos ali, sob a neve e sob a chuva ou geada. E, enquanto dentro do salão ouviam-se tosses e ruído de gente que se movia, do grupo que estava à porta não partia nem mesmo um sussurro.

            Melhor ainda era quando havia um concerto na catedral, pois um parente nosso era sacristão. Perto da entrada de servi­ço utilizada por ele, havia um banco de madeira junto a uma parede. Nós nos sentávamos ali, sentindo nas costas o frio das velhas pedras, mas com o coração aquecido pela música.

            O som de algumas notas daquele órgão velho, no qual Mozart tocara, parecia vir diretamente do céu. Eu costumava pensar que o céu devia ser como a catedral de São Bavo, e mais ou menos do mesmo tamanho. Eu sabia que o inferno era quente, então o céu devia ser como este santuário, frio e úmido, com a fumaça dos aquecedores de pés subindo como incenso. No céu, eu cria, todos teriam direito a aquecedores. Até mesmo no ve­rão, as lajes de mármore do assoalho eram frias. Quando, porém, o organista tocava, a gente quase que se esquecia delas, e se tocasse Bach, então é que se esquecia mesmo.

            Eu estava subindo, com mamãe e Nollie, uma escada cheia de teias de aranha que se apegavam ao nosso cabelo, e de ratos que fugiam à nossa aproximação. Essa casa ficava a uma quadra e meia do Beje e sua construção era, pelo menos, um século mais recente, mas ali não havia uma Tia Anna para lavar e encerar.

            Íamos visitar uma família pobre da vizinhança, uma das muitas que mamãe "adotara". Nós, crianças, nunca percebê­ramos que éramos pobres. Pobre era a família a quem se le­vava uma cesta de alimentos. Mamãe estava sempre fazendo sopas ou mingaus para velhos semi-abandonados ou jovens mães pálidas, isto é, nos dias em que ela própria não se sen­tia fraca demais para ficar ao pé do fogão.

            Na noite anterior, o bebê deles havia morrido e agora mamãe fazia sua visita de praxe, levando pão fresco que ela mesma fizera. Subia penosamente, parando várias vezes para recuperar o fôlego. Em cima, entramos por uma porta que dava para um cômodo que era, ao mesmo tempo, quarto de dormir, sala de jantar e cozinha. Várias pessoas já se encon­travam ali, muitas delas de pé, por falta de cadeiras. Mamãe encaminhou-se diretamente para a mãe, mas eu parei à en­trada, petrificada. À direita, em seu bercinho de fabricação caseira, estava a criancinha.

            É estranho como uma sociedade que escondia das crian­ças as verdades sobre o sexo, nada fazia para escudá-las da realidade da morte. Fiquei ali de olhos pregados no corpinho morto, com o coração batendo fortemente. Nollie, sempre mais corajosa que eu, estendeu a mão e tocou o rostinho bran­co como marfim. Desejei fazer o mesmo mas, amedrontada demais, não conseguia. Por alguns instantes, dentro de mim, a curiosidade lutou contra o pavor. Afinal, encostei um dedo na mãozinha cerrada.

            Estava fria.

            Estava fria quando caminhávamos de volta para o Beje, fria enquanto me lavava para jantar, e fria ainda no aconche­go da nossa sala de jantar iluminada a gás. Aqueles dedinhos gelados se interpunham entre mim e todos aqueles rostos queridos à mesa. Apesar de Tia Jans falar tanto na morte, até então ela havia sido para mim apenas uma palavra. Agora eu sabia que era algo real - se era real para aquele bebezinho, então podia ser para mamãe, para papai, para Betsie.

            Ainda tremendo por causa daquele frio, segui Nollie até nosso quartinho e enfiei-me na cama ao seu lado. Por fim ouvimos os passos de papai escada acima. Aquele momento era, para mim, o melhor do dia - ele vinha ajeitar nossas cobertas. Nunca dormíamos antes que ele viesse arranjá-las a seu modo, e colocar a mão em nossa cabeça por um instante. Depois, ficávamos quietas e procurávamos não mover, nem mesmo um dedo.

            Aquela noite, porém, assim que ele atravessou a porta, rompi em lágrimas.

            - Eu preciso do senhor, solucei. O senhor não pode mor­rer, não pode!

            Nollie sentou-se na cama.

            - Fomos a casa da Sra. Hoog, explicou. Corrie não jantou nem comeu nada.

            Papai sentou-se na beira da nossa caminha estreita.

            - Corrie, disse gentilmente, nos dias em que vamos a Amsterdam, quando é que eu lhe entrego sua passagem?

            Funguei duas ou três vezes, ponderando o fato.

            - Ora, pouco antes de tomar o trem.

            - Certo. Nosso Pai celestial é muito bom e ele sabe o mo­mento certo em que iremos precisar das coisas. Não passe na frente dele, Corrie. Quando chegar a hora em que tivermos de morrer, você vai ver que seu coração terá a força de que você precisa. No momento exato.