segunda-feira, 10 de maio de 2021

O refugio secreto - Capítulo 01

O Centenário da Loja

            Saltei da cama naquela manhã com uma preocupação - o dia seria claro ou não? Na Holanda, em janeiro, geralmente o tempo é úmido, frio e o céu fica nublado. De vez em quan­do, porém, num raro dia de magia e encanto, brilha um sol de inverno. Cheguei à janela do quarto, e me debrucei para fora até onde pude. Do Beje era sempre muito difícil ver o céu. Dei com a face vazia de uma parede de tijolos, fundo de outra das construções antigas desse atulhado centro de Haarlem. Esticando o pescoço ao máximo para enxergar me­lhor, consegui ver, lá em cima, uma nesga de céu cor-de-pérola, por sobre o emaranhado dos telhados malucos e chami­nés tortas. O dia de nossa festa ia ser ensolarado.

            Retirei meu vestido novo de nosso velho guarda-roupa de pés oscilantes, encostado à parede, e ensaiei uns passos de valsa. O quarto de papai era logo abaixo do meu, mas aos setenta e sete anos, ele dormia pesadamente. Esta era uma das vantagens da velhice, pensei enquanto enfiava os braços pelas mangas e dava uma olhadela no espelho para ver como estava. Embora em 1937 algumas mulheres já estivessem usando as saias à altura dos joelhos, eu ainda conservava as minhas acerca de dez centímetros do chão.

            Você não está ficando mais jovem, comentei com a minha imagem. Talvez fosse o fato de pôr um vestido novo que me levasse a olhar para mim mesma com um pouco mais de autocrítica do que geralmente o fazia: quarenta e cinco anos, solteira, e já meio pesadona.

            Minha irmã Betsie, embora fosse sete anos mais velha do que eu, ainda era graciosa e esbelta. Às vezes, as pessoas paravam na rua para admirá-la. Sei muito bem que não era por causa da roupa. Nossa relojoaria nunca nos permitira muito luxo, mas quando Betsie punha um vestido novo, pa­recia que ele sofria uma transformação.

            Comigo - antes que Betsie resolvesse me modificar - era muito diferente: bainhas dependuradas, meias rasgadas, gola torta. Desta vez, porém - pensei, afastando-me do espelho ao máximo que me permitia o exíguo espaço do quarto - o efeito final daquele vestido novo, marrom-escuro, era exce­lente.

Lá embaixo a campainha tocou. Convidados, já? Abri a porta e desci rapidamente pela escada espiralada e íngreme. Essa escada não fora feita com a casa inicialmente. Na verda­de, havia duas casas. A da frente tinha a estrutura típica das casas de Haarlem - três andares, dois cômodos na extensão e um na largura. A certa altura de sua existência, a parede de trás havia sido derrubada para que ela fosse unida à que lhe ficava aos fundos, a qual era ainda mais estreita e aprumada - tinha apenas três cômodos, um sobre o outro. Espremida entre as duas, estava a escada estreita, em caracol.

            Embora eu houvesse descido depressa, Betsie chegou à porta antes de mim. Um imenso buquê tapava a entrada. Assim que ela o apanhou, o rapazinho da entrega surgiu de trás dele.

            - Lindo dia para a festa, disse ele, procurando olhar para dentro da sala como se o café e o bolo já estivessem servidos.

            Mais tarde, ele viria, como também, ao que parecia, todo o povo de Haarlem.

            Procuramos o cartão por entre as flores.

            - Pickwick! gritamos a um só tempo.

            Pickwick era um freguês nosso, imensamente rico; era quem comprava nossos melhores relógios. Muitas vezes, su­bia conosco à parte residencial da casa, que ficava em cima da loja. Seu nome era, na verdade, Herman Sluring, mas, entre nós, o apelidáramos de Pickwick, porque se parecia demais com o desenho que ilustrava um de nossos volumes de Dickens. Herman era, sem contestação, o homem mais feio de Haarlem. Baixo, muito gordo, calvo como um queijo holandês e tão estrábico que, ao falarmos com ele, nunca sabíamos se estava olhando para a gente ou para a pessoa ao lado; mas era tão bom e generoso quanto feio.

            As flores tinham sido entregues na porta lateral que era utilizada pela família e que dava para uma ruela estreita. Levamos o buquê para a loja. Primeiro chega-se à oficina de consertos. Ali se achava a banca elevada de papai, sobre a qual ele se inclinara durante tantos anos, para executar o seu trabalho delicado e minucioso, considerado um dos melho­res da Holanda. No centro havia minha banca; junto à mi­nha, estava a de Hans, o aprendiz, e, próximo à parede, a do velho Christoffels.

            Na frente, ficava a parte comercial, com seu balcão de tampo de vidro, cheio de relógios, e onde atendíamos os fre­gueses.

            Todos os relógios de parede batiam sete horas quando ali entramos com as flores e começamos a ver qual seria o melhor lugar para colocá-las. Desde criança eu gostava muito de entrar naquela sala e ser saudada pelo murmúrio agra­dável de centenas de tique-taques. O aposento estava escu­ro, pois as persianas ainda se encontravam cerradas. Des­tranquei a porta e saí para a rua. As outras lojas, a ótica que ficava ao lado, a de roupas, a padaria e a peleteria do outro lado da rua, ainda estavam bem fechadas e sem sinal de movimento.

            Abri as persianas e fiquei algum tempo admirando a vitri­ne de que, agora, tanto eu como Betsie gostávamos. Nós es­távamos sempre debatendo sobre qual seria a melhor manei­ra de arranjá-la. Eu gostaria de colocar ali muitos relógios, tantos quantos ela comportasse, mas Betsie afirmava que se­ria melhor expor apenas dois ou três dos mais bonitos, talvez sobre um fundo de cetim ou seda, artisticamente drapeado. Esse arranjo, dizia ela, seria mais elegante e atraente. Dessa vez, porém, nós estávamos de acordo.

            Puséramos ali uma coleção de relógios - despertadores e de bolso - todos com pelo menos cem anos de fabricação, que havíamos tomado emprestado de amigos e conhecidos que possuíam lojas de antigüidades. Comemorávamos nesse dia o centenário da loja. Fora nessa data em janeiro de 1837, que o pai de papai colo­cara na janela a placa: Relojoaria ten Boom.

            Ouvi os sinos das igrejas de Haarlem baterem sete horas durante os dez minutos seguintes, dando uma demonstração de completo desdém para com a precisão do tempo. Por últi­mo, na pracinha a meio quarteirão abaixo, o grande sino da Igreja de São Bavo deu suas sete pancadas. Deixei-me ficar ali a contá-las, embora estivesse bem frio naquela manhã de janeiro. Agora, em Haarlem, todo mundo tinha rádio, mas eu me lembrava do tempo em que toda a vida da cidade era regulada pelo sino de São Bavo. Apenas os funcionários da ferrovia e outras pessoas que precisavam saber a hora exata vinham à nossa loja consultar o relógio astronômico. Toda semana, papai ia a Amsterdam, de trem, para acertar o seu cronômetro pelo Observatório Naval. Ele tinha muito orgu­lho do fato de que o relógio astronômico nunca se atrasava nem adiantava mais que dois segundos por semana. Entrei de volta na loja. Lá estava ele, rebrilhando no alto do seu pedestal de concreto, mas agora desvestido de qualquer im­portância.

            Novamente a campainha da porta: mais flores. Aquilo con­tinuou por cerca de uma hora - buquês grandes e pequenos, arranjos trabalhados e vasos de cerâmica com plantas orna­mentais. Embora a festa fosse em honra da loja, o afeto da cidade era dirigido ao meu pai. "O bom velho de Haarlem" era como o chamavam, e todos pareciam dispostos a provar que ele era querido. Quando a sala da frente e a oficina fica­ram cheias demais, começamos a levá-las para os dois cômo­dos que ficavam diretamente acima da loja. Esses cômodos eram conhecidos por nós como "os quartos da Tia Jans", embora ela já tivesse falecido há vinte anos.

            Tia Jans era a irmã mais velha de mamãe. Ela parecia estar ainda ali, junta­mente com a pesada mobília escura que nos deixara. Betsie colocou no chão um vaso de tulipas de estufa, deu um passo para trás e soltou uma exclamação de prazer.

            - Corrie, veja como isto alegrou o ambiente!

            Pobre Betsie! O Beje é tão cercado, tão comprimido entre outras casas que as mudas de flores que ela plantava em cai­xas nas janelas, todas as primaveras, nunca se desenvolviam o bastante para dar flores.

            Às 7:45h, chegou Hans, o aprendiz, e às 8:00h, Toos, nos­sa balconista e guarda-livros. Toos era uma dessas pessoas que estão sempre de cara amarrada e triste. Seu mau humor constante a impedira de permanecer em um emprego por muito tempo, até que, há dez anos, viera trabalhar conosco. A gentil cortesia de papai a havia desarmado e abrandado seu gênio. Embora preferisse morrer a admitir isso, ela gosta­va muito dele, tanto quanto detestava o resto do mundo. Deixamos a porta a cargo de Hans e Toos e subimos para tomar café.

            Só três pratos, pensei enquanto punha a mesa. A sala de jantar era na casa de trás, num nível mais elevado que o da loja. Subia-se a ela por um lance de cinco degraus. Com sua única janela que dava para o beco lateral, esta sala era, para mim, o coração da casa. Quando criança, recobrindo a mesa com um grande cobertor, eu fazia dela minha tenda ou uma caverna de piratas. Aqui fazia meus deveres, quando estudante. Aqui mamãe lia Dickens em voz alta para nós, nas noites de inverno, enquanto as brasas de nossa lareira de tijolos estalavam e cobriam de reflexos avermelhados o azu­lejo que tinha entalhada a frase: "Jesus é vitorioso."

            Utilizávamos apenas uma parte da mesa agora, eu, papai e Betsie, mas, para mim, era como se o resto da família ainda se achasse ali. De um lado a cadeira de mamãe, acolá o lugar das três tias (mais duas irmãs de mamãe que, além de Tia Jans, haviam morado conosco). Minha irmã Nollie sentava-se próximo de mim, e Willem, o único filho homem, ficava perto de papai.

            Nollie e Willem já haviam se casado há vários anos e ti­nham sua própria casa; mamãe e as tias já não se encontra­vam mais conosco, mas ainda me parecia vê-los todos ali. Suas cadeiras não haviam permanecido vazias por muito tem­po. Papai não suportava a idéia de ter uma casa sem crianças, e por isso, sempre que ouvia falar de um pequenino sem teto, uma carinha nova surgia à nossa mesa. Com essa relojoaria que nunca rendia muito, ele deu um jeito de alimentar, vestir e cuidar de mais onze crianças, depois que seus quatro filhos estavam criados.

Agora, porém, também estes onze haviam crescido e casa­do ou saído para trabalhar. Assim, coloquei três pratos na mesa.

            Betsie trouxe café da cozinha, que era ligada diretamente à sala de jantar e pouco maior que um armário embutido, e tirou o pão da gaveta do guarda-comida. Quando ela o colo­cava à mesa, ouvimos os passos de papai descendo a escada. Agora ele sempre descia vagarosamente aqueles degraus espiralados; mas pontual como um de seus próprios relógios, entrou na sala na hora exata em que entrava desde que eu era bem pequena: às 8:10h.

            - Papai, disse eu beijando-o e aspirando o aroma de cha­rutos que impregnava sua longa barba, o dia da nossa festa está lindo!

            O cabelo e a barba de papai eram brancos como a nossa melhor toalha, que Betsie colocara na mesa para este dia es­pecial. Seus olhos azuis, ao nos fitar com agrado através dos óculos grossos, eram meigos e alegres.

            - Querida Corrie, minha Betsie! Como vocês estão boni­tas!

            A seguir, sentou-se, inclinou a cabeça e deu graças pelo pão, e depois continuou alegremente:

            - Sua mãe teria adorado estes vestidos novos, e ficaria alegre de ver as duas tão bonitas!

            Nós duas fixamos os olhos no café para não rir. Estes "ves­tidos novos" eram a tristeza de nossas sobrinhas que estavam sempre querendo nos convencer a usar roupas de cores mais claras, saias mais curtas e decotes mais baixos. Embora fôs­semos bem conservadoras em nosso modo de vestir, a verda­de é que mamãe nunca tivera um vestido mais claro que esse meu marrom-escuro ou que o azul-escuro de Betsie. No tem­po de mamãe, as mulheres casadas e as solteiras de uma "certa idade" só usavam vestidos pretos. Nunca vi minha mãe nem minhas tias com vestidos de outra cor.

            - Mamãe ia gostar de tudo hoje! interveio Betsie. Lem­bram-se como ela gostava de festas?

            Mamãe assava um bolo e passava um café em questão de instantes. E já que ela conhecia quase todo mundo em Haarlem, principalmente os pobres, doentes e abandonados, não havia um dia que não fosse - como diria ela - "um dia de festa para alguém".

            Nós ficamos conversando durante o café, como se deve fazer em dias assim, e começamos a recordar o tempo em que mamãe vivia. Depois retrocedemos mais e falamos do tempo em que papai era criança e morava nesta mesma casa.

            - Nasci bem nesta sala, disse ele como se já não nos tives­se dito isto uma centena de vezes. Só que, naquela época, não era a sala de jantar, era quarto. A cama era dentro de uma espécie de armário embutido na parede; não havia janelas, nem iluminação direta, nem ar puro. Fui o primeiro que conseguiu sobreviver. Não sei quantos nasceram antes de mim e morreram. Minha mãe estava com tuberculose, e eles não conheciam as regras de higiene, nem sabiam nada sobre o contágio pelo ar, e não pensavam em afastar as criancinhas da pessoa doente.

            Foi um dia cheio de recordações, um dia de invocação do passado. Nunca poderíamos adivinhar, quando estávamos ali sentados - duas solteironas de meia-idade e um velho - que, em vez de recordações, estávamos para enfrentar aconteci­mentos com os quais nunca tínhamos sonhado. Desventuras e angústias, horrores e alegrias, nos aguardavam para dentro em pouco, e não o sabíamos.

            Ah! Papai, Betsie, se eu soubesse, será que teria feito o que fiz? Será que teria tido coragem?

            Mas como eu poderia prever? Como poderia supor que esse velhinho de cabelos brancos que todas as crianças de Haarlem chamavam de vovô, seria sepultado por estranhos, num túmulo desconhecido? E Betsie, em seu vestido de gola de renda e seu dom de difundir beleza ao seu redor, como poderia pensar que a pessoa a quem eu mais queria, seria forçada a comparecer nua diante de uma sala cheia de ho­mens? Naquele momento, naquela sala de jantar, tais possi­bilidades eram remotíssimas.

            Papai levantou-se e pegou a velha Bíblia de cantoneiras de bronze. Toos e Hans bateram na porta e entraram. Outro re­gulamento fixo no Beje era a leitura da Bíblia às 8:30h em ponto, e a que deviam assistir todos os que estivessem na casa.

            Papai abriu o livro, e eu e Betsie contivemos a respira­ção. Naturalmente, hoje, quando tínhamos tanta coisa a fa­zer, ele não leria um capítulo inteiro! Mas ele já estava abrindo-a na passagem de Lucas onde havia parado no dia anterior - e o livro de Lucas tinha capítulos tão longos! Com o dedo no lugar, papai ergueu os olhos.

            - Onde está Christofells? Perguntou

            Christofells era o outro empregado da loja, um velhinho encurvado e miúdo, que parecia mais velho que papai, embo­ra fosse dez anos mais jovem. Lembrei-me do primeiro dia em que aparecera em nossa casa, há seis ou sete anos. Estava tão andrajoso e tinha uma aparência tão infeliz, que pensei que fosse um dos mendigos que sabiam ser o Beje o lugar certo para se conseguir uma boa refeição de graça. Estava a ponto de encaminhá-lo à cozinha, onde Betsie tinha sempre uma panela de sopa borbulhando ao fogo, quando solene­mente ele me informou que estava procurando emprego e viera primeiro a nós, para oferecer seus préstimos.

            Fiquei sabendo, então, que Christofells pertencia a uma classe já quase totalmente desaparecida, a dos relojoeiros ambulantes, que percorriam o país a pé, regulando e conser­tando os relógios de pêndulo que eram o orgulho de todas as fazendas holandesas. Mas se eu fiquei surpresa ao ver o ar sério e grave daquele homenzinho de aspecto miserável, fi­quei ainda mais ao ver que papai lhe deu o emprego imedia­tamente.

            "Esses consertadores ambulantes", disse-me mais tarde, "são os melhores que existem. Conseguem consertar qual­quer defeito apenas com as ferramentas que carregam consigo."

            E isto ficou provado nos anos seguintes, pois todo o povo de Haarlem lhe trazia seus relógios. O que ele fazia com o dinheiro de seu salário, nunca soubemos; ele continuava tão mal vestido como antes. Papai lhe falou a respeito disso um pouco, mas não muito, pois, fora o seu desalinho, o traço mais forte de sua personalidade era o orgulho.

Hoje, pela primeira vez, Christofells estava atrasado.

            Papai limpou os óculos no guardanapo e começou a ler, fazendo sua voz grave se demorar prazerosamente em algu­mas palavras. Quando ele chegou ao fim da página, ouvimos os passos arrastados de Christofells subindo a escada. A por­ta se abriu, e todos nós levamos um susto: Christofells estava impecável. Trajava um terno novo, preto e um colete xadrez, também novo, camisa imaculadamente branca de colarinho engomado, e gravata estampada. Lutei para desviar os olhos de tal espetáculo, pois a expressão de seu rosto nos proibia qualquer comentário.

            - Christofells, meu prezado amigo, disse papai em sua maneira formal e antiquada, que alegria vê-lo neste... é... dia tão auspicioso.

            E, apressadamente, retornou a leitura interrompida.

            Antes que ele terminasse o capítulo, as campainhas - da entrada lateral e da loja - começaram a tocar. Betsie correu a fazer café e a meter as "tortas" no forno, enquanto eu e Toos corríamos às portas. Parecia que cada pessoa de Haarlem queria ser a primeira a cumprimentar papai. Daí a pouco, uma torrente de convidados estava subindo até o quarto de Tia Jans, onde ele se encontrava, meio escondido por entre as flores.

            Eu estava conduzindo um de nossos convidados mais ido­sos escada acima, quando Betsie segurou-me o braço.

            - Corrie, vamos precisar das xícaras de Nollie já. Como vamos...?

            - Vou buscar!!

            Nollie e seu marido viriam à tarde, logo que seus filhos chegassem da escola. Desci rapidamente, peguei o casaco e a bicicleta, e já a empurrava pela porta quando a voz de Betsie me deteve:

            - Corrie, seu vestido novo!

            Dei meia-volta, subi ao quarto e troquei o vestido novo pelo mais velho que possuía e saí pedalando pela rua aciden­tada. Eu gostava imensamente de ir à casa de Nollie. Ela morava a quase dois quilômetros dali, num bairro afastado daquele velho centro atulhado de prédios. Lá, as ruas eram mais largas e retas, e até o céu parecia mais amplo. Atraves­sei a pracinha e depois a ponte sobre o canal, e rodei pela estrada, deliciando-me com o fraco sol de inverno. Nollie residia na Rua Bos en Hoven, em um conjunto residencial, de casas gêmeas, todas iguais, com cortinas brancas e vasos de plantas na janela.

            Enquanto virava a esquina, nunca eu poderia imaginar que, num dia de verão, quando os bulbos de jacinto de um viveiro próximo estariam prontos para o plantio, eu frearia a bicicle­ta e ficaria ali parada com o coração aos pulos, sem coragem de me aproximar mais, com receio de enfrentar o que estava se passando no interior daquelas cortinas.

            Hoje, porém, ziguezagueei pela calçada e entrei correndo, sem bater.

            - Nollie, a casa já está cheia! Você precisa ver! Precisamos das xícaras agora.

            Nollie veio da cozinha com o rosto redondo corado pelo calor do forno.

            - Já estão arrumadas perto da porta. Ah! eu queria ir com você, mas tenho que acabar de assar os biscoitos, e prometi a Flip e às crianças que esperaria por eles.

            - Vocês todos vão, não?

            - Sim, Corrie. Peter vai também.

            E ela começou a colocar as xícaras no bagageiro. Como uma boa tia eu queria amar meus sobrinhos igualmente, mas Peter... bem, Peter era Peter. Com treze anos, ele era um pro­dígio musical - embora um bocado maroto - mas era todo o meu orgulho.

            - Ele até escreveu uma música especial para comemorar a data, disse Nollie. Tome aqui. Você vai ter que carregar esta sacola na mão. Tenha cuidado.

            O Beje estava mais cheio do que nunca, quando voltei. Na ruela lateral havia tantas bicicletas que tive que deixar a mi­nha na esquina da rua. O prefeito de Haarlem já estava lá, de casaca, e com a corrente de ouro do relógio de bolso bem à vista. Lá estavam o chefe dos correios, o condutor do bonde, e meia dúzia de guardas do centro policial que ficava perto.

            Após o almoço, começaram a chegar as crianças e, como sempre faziam, foram direto para papai. As mais velhas sen­tavam-se no chão, ao redor dele; as menores subiam ao seu colo. Isso porque, além de seus brilhantes olhos azuis e sua longa barba cheirando a charuto, ele carregava consigo o tique-taque de dezenas de relógios. Um relógio deixado numa prateleira funciona diferentemente que quando em uso e, por isso, papai sempre carregava nos bolsos os que estives­se regulando no momento.

            Todos os seus paletós tinham quatro grandes bolsos internos, cada um com doze divisões, para doze relógios. Assim, aonde quer que ele fosse, ia com ele o alegre ruído de centenas de engrenagenzinhas. Agora, com uma criança em cada perna, e mais dez ao redor, ele retirou de um dos bolsos a cruzeta de dar corda, cujas qua­tro pontas eram de formatos diferentes para servir a cada tipo. Com um piparote, fê-la girar rapidamente, brilhando... brilhando...

            Betsie parou à porta com uma bandeja de bolo nas mãos.

            - Ele nem se dá conta da presença de outras pessoas, dis­se.

            Eu estava descendo a escada com alguns pratos vazios, quando alguém lá embaixo deixou escapar uma exclamação abafada de espanto, o que me advertiu que Pickwick chega­ra. Nós que lhe queríamos bem, nunca nos lembrávamos do choque que o seu aparecimento causava em outros.

            Corri à porta, apresentei-o à esposa de um negociante de Amsterdam, e depois conduzi-o para cima. Ele afundou seu corpanzil numa cadeira ao lado da de papai, olhou-me - um olho em mim e outro no teto - e disse:

            - Cinco torrões, por favor.

            Pickwick adorava crianças tanto quanto papai, mas en­quanto estas gostavam de papai à primeira vista, ele tinha de lutar para conquistá-las. Tinha, porém, um truque que nunca falhava. Entreguei-lhe sua xícara de café bem doce - cinco torrões - e observei-o olhar ao redor, simulando grande cons­ternação.

            - Mas, Cornélia, exclamou, não há uma mesa aqui para eu colocar minha xícara.

            Correu os olhos por perto mais uma vez para ver se as crianças estavam lhe dando atenção.

            - Por sorte eu trouxe a minha própria mesa!

            Em seguida, plantou a xícara com o pires em sua avantajada pança.

            Nunca vi uma só criança que resistisse àquilo. Em poucos momentos, um bom número delas havia se reunido em volta dele.

            Mais tarde, Nollie chegou com sua família.

            - Tia Corrie, gritou-me Peter com fingida inocência, mas a senhora não aparenta cem anos.

            Antes que eu pudesse responder-lhe com um tabefe, já estava sentado ao piano de Tia Jans, enchendo a casa com suas melodias. Algumas pessoas começaram a apresentar-lhe seus pedidos: canções populares, corais de Bach, hinos. Daí a pouco, todo mundo estava cantando.

            Quantos de nós que estávamos ali naquela tarde alegre, iríamos, dentro em breve, nos encontrar novamente em cir­cunstâncias bem diferentes! Peter, os policiais, o feio e querido Pickwick, todos que estavam ali - e ainda meu irmão Willem e sua família. Eu me indagava por que eles estavam tão atrasa­dos. Willem morava com sua esposa e filhos em Hilversum, acerca de quarenta e cinco quilômetros de Haarlem, mas, mes­mo assim, já deviam ter chegado.

            De repente, a música parou, e Peter, de seu posto elevado na banqueta do piano, anunciou:

            - Vovô, aí vem a concorrência!

            Olhei para fora. O Sr. e Sra. Kan, proprietários da outra relojoaria da rua, estavam justamente virando a esquina para en­trar na ruela. Pelos padrões de Haarlem eles eram novatos ali, pois tinham se estabelecido em 1910, há apenas 27 anos, por­tanto. Todavia, como eles vendiam muito mais que nós, achei que o comentário de Peter era bem a expressão da verdade.

            Papai, entretanto, não gostou.

            - Concorrente não, Peter, disse-lhe com desaprovação, co­lega!

            E tirando de sobre seus joelhos a criança que ali se acha­va, colocou-se no topo da escada para receber os Kan.

            Ele aceitava as freqüentes passagens do Sr. Kan pela loja como visitas de um bom amigo.

            - O senhor não está vendo o que ele quer? eu explodia depois que o homem se afastava. Ele só quer saber nossos preços para vender mais barato!

            Na loja dele, os relógios exibiam os preços escritos em algarismos bem grandes, e sempre cinco guílderes abaixo dos nossos.

            O rosto de papai se iluminava com uma expressão de sur­presa, como sempre acontecia nos raros momentos em que ele pensava no lado comercial do negócio.

            - Mas Corrie, quem compra dele sai ganhando! e depois acrescentava: Como é que ele consegue vender tão barato?

            Meu pai, como o seu pai também; era totalmente sem malícia para negócios. Às vezes, ele trabalhava dias seguidos em um relógio que apresentava um defeito sério e depois se esquecia de cobrar. Quanto mais caro fosse o relógio, mais difícil era para ele pensar nele em termos de dinheiro.

            "A gente devia pagar para ter o privilégio de consertar um relógio destes", dizia.

            Quanto aos seus métodos de apresentação da mercado­ria - durante os primeiros oitenta anos de funcionamento da loja, as persianas que davam para a rua eram cerradas todos os dias, às seis horas da tarde. Fora somente quando eu entrara no negócio, há vinte anos, que notara que algu­mas pessoas gostavam de passear pelas ruas estreitas e pe­las calçadas, à noite, e vira que outras lojas deixavam suas vitrines abertas e iluminadas. Quando mencionei isto para papai, ele ficou encantado, como se eu tivesse feito uma descoberta maravilhosa.

            "E se as pessoas virem os relógios, pode ser que desejem comprá-los. Ah! Corrie, que inteligência a sua!"

            O Sr. Kan vinha em minha direção com seu pedaço de bolo e suas congratulações. A consciência me doía por causa dos pensamentos de ciúme que abrigara a seu respeito, e escapei escada abaixo, me tendo-me no meio do povo. A oficina e a loja estavam mais cheias do que os cômodos de cima. Hans estava servindo bolo na parte de trás, enquanto Toos fazia o mesmo na frente.

            No seu rosto via-se a sombra de um sorriso - o máximo que ela permitia aos seus lábios perpetuamente cerrados. Quanto a Christofells - que surpresa! - ele simples­mente tinha se transfigurado! Era quase impossível reconhe­cer naquela majestosa figura que saudava os nossos visitan­tes à porta, levando-os para percorrer a loja, o homenzinho encurvado e mal vestido de sempre. Estava bem claro que esse era o maior dia de sua vida.

            Durante toda aquela tarde de inverno, recebemos pessoas que se contavam entre os amigos de papai. Jovens e velhos, pobres e ricos, homens cultos e mocinhas iletradas - só que, para papai, eram todos iguais. Este era o seu segredo: não é que deixasse de se preocupar com as diferenças entre indiví­duos; meramente não sabia que existiam.

            Willem ainda não tinha chegado. Acompanhei até a porta um grupo de convidados que se retirava, e fiquei ali alguns instantes, olhando a rua. Embora fossem apenas quatro da tarde, o crepús­culo já descia, e as luzes das lojas já começavam a ser acesas. Eu ainda tinha um pouco daquela admiração de irmã menor para com o irmão mais velho. Ele era cinco anos mais velho que eu. Fora o único da família a cursar a universidade, e era ministro do evangelho, pastor ordenado. Willem tinha grande percepção das coisas. Ele sabia tudo que se passava no mundo.

            Muitas vezes eu desejava que ele não tivesse tal visão, pois muito do que meu irmão previa era aterrador. Há dez anos, em 1927, ele tinha defendido tese de doutorado, na Alema­nha, e tinha mencionado que havia uma terrível ameaça pairando sobre aquele país. Ali mesmo na Universidade, disse ele, estavam sendo lançadas as sementes de um grande des­prezo pela vida humana, tal como nunca se tinha visto antes. Os que leram seu trabalho, zombaram.

            Agora, naturalmente, ninguém mais ria quando se tratava da Alemanha. Os melhores relógios vinham de lá, e, recente­mente, algumas das firmas com as quais havíamos negocia­do por vários anos, tinham misteriosamente "cerrado as por­tas". Willem cria ser isso resultado de um amplo e deliberado movimento anti-semítico. Todas as firmas fechadas eram de judeus. Sendo um dos líderes do trabalho da Igreja Reforma­da entre os judeus, ele estava bem em dia com tais assuntos.

            Meu bom Willem, pensei, ao voltar para dentro e fechar a porta; ele era tão fraco nos negócios da igreja, como papai o era no dos relógios. Se já conseguira a conversão de um só judeu em vinte anos, eu não soubera do fato. Willem não tentava modificar as pessoas, queria apenas ajudá-las. Ele tinha econo­mizado dinheiro e até sovinado um pouco, para conseguir ajuntar o suficiente para construir em Hilversum um abrigo para judeus idosos, que depois veio a ser para velhinhos de todos os credos, pois ele era contrário a qualquer tipo de segregação.

            Ultimamente, porém, o Lar tinha sido inundado por uma onda de jovens refugiados - todos judeus, e todos da Alemanha. Ele e sua família tinham cedido seus próprios aposentos e estavam dormindo nos corredores. E mais e mais judeus, apavorados e desabrigados, estavam chegando, e narravam fatos incríveis a respeito de uma crescente loucura.

            Fui à cozinha, onde Nollie tinha acabado de coar mais café, apanhei-o e subi para os quartos de Tia Jans.

            - O que será que esse homem quer? perguntei a um gru­po de pessoas reunidas em torno da mesa, e colocando ali o bule. Esse homem da Alemanha, ele está querendo guerra?

            Sabia que era um péssimo tópico de conversação para um dia de festa, mas a lembrança de Willem sempre levava meu pensamento a se concentrar em assuntos perigosos.

            Um silêncio pesado caiu sobre a mesa e se espalhou pela sala.

            - O que é que nos interessa isso? ouvi alguém perguntar. Deixa esses países grandes lutarem entre si. Não vão nos atin­gir.

            - Isso mesmo, falou um relojoeiro. Os alemães que não nos incomodem com essa grande guerra. Para eles é melhor que fiquemos neutros.

            - Você pode dizer isto, atalhou outro, que era nosso for­necedor de peças. Você compra da Suíça; mas, e nós? O que eu faço se a Alemanha entrar em guerra? Isso arrasaria meus negócios.

            Naquele momento, Willem entrou na sala. Com ele vinham sua esposa, Tine, e seus quatro filhos. Contudo quase todos os olhares se fixaram no homem que Willem conduzia pelo braço. Era um judeu de trinta e poucos anos. Usava o tradicio­nal chapéu de abas largas e o longo sobretudo preto. Os olhos de todos estavam colados à sua face, que apresentava uma horrível queimadura. Perto da orelha direita via-se um anel de cabelos grisalhos, como os de um velho. O resto do queixo era uma chaga viva.

            - Quero apresentar-lhes o Sr. Gutlieber, disse Willem em alemão. Ele chegou a Hilversum hoje cedo. Gutlieber, este é meu pai. E depois de uma pausa, prosseguiu em holandês: Este homem fugiu da Alemanha escondido em um caminhão de leite. Ele foi cercado na rua, em Munique, por uns rapazi­nhos que puseram fogo em sua barba.

            Papai levantou-se e apertou a mão do recém-chegado com muita efusão. Eu trouxe-lhe uma xícara de café e um prato com os biscoitos de Nollie. Nesse momento, senti-me grata pela insistência de papai em que seus filhos aprendessem ale­mão e inglês e falassem estas línguas tão bem quanto holan­dês.

            Gutlieber sentou-se na beirada da cadeira meio teso, olhan­do para o café em seu colo. Arrastei uma cadeira para junto dele e comecei a falar sobre qualquer coisa, sobre o tempo em janeiro.

            Imediatamente, a conversação se generalizou, retomando o volume normal da conversa de um salão de fes­tas: um murmúrio que se elevava e depois abaixava. Ouvi um vendedor de relógios exclamar:

            - Que miseráveis! Vagabundos! Está acontecendo o mes­mo em toda a parte. A polícia vai pegá-los. Afinal, a Alema­nha é um país civilizado.

             E foi assim que uma nuvem desceu sobre nós naquela tar­de de inverno de 1937, mas não pesou muito. Ninguém nem sonhava que aquela nuvenzinha cresceria tanto, que viria a escurecer todo o céu. Nenhum de nós imaginava que todos teríamos uma parte nela: papai, o Sr. Kan, Willem, e até esse velho Beje, com seus assoalhos desnivelados e antiquados.

            À noite, depois que todos os convidados já haviam saído, subi para o meu quarto pensando no passado. Meu vestido novo estava sobre a cama; eu havia me esquecido de vesti-lo de novo.

            - Nunca me preocupei mesmo com roupas, pensei, nem quando era jovem...

            Recordações da infância retornaram naquele instante -estranhamente, elas pareciam atuais e muito relevantes. Agora eu sei que as lembranças contêm o segredo do futuro; não do passado, mas do futuro. Sei que, quando deixamos Deus usar nossas experiências passadas, elas se convertem em instru­mentos pelos quais o Senhor nos prepara para o trabalho que ele tem para nós.

            Mas eu não sabia disso naquele momento. Nem mesmo sa­bia - tendo uma vida tão pacata - que havia um futuro para o qual eu precisava de uma preparação especial. E ali deitada no meu quarto, na parte superior da casa, eu só sabia que certos momentos da minha infância e juventude começaram a se des­tacar da face nebulosa do passado, como se ainda os estivesse vivendo, como se eles ainda tivessem algo a me dizer...