O Centenário da Loja
Saltei da cama naquela manhã com uma preocupação - o dia seria claro ou não? Na Holanda, em janeiro, geralmente o tempo é úmido, frio e o céu fica nublado. De vez em quando, porém, num raro dia de magia e encanto, brilha um sol de inverno. Cheguei à janela do quarto, e me debrucei para fora até onde pude. Do Beje era sempre muito difícil ver o céu. Dei com a face vazia de uma parede de tijolos, fundo de outra das construções antigas desse atulhado centro de Haarlem. Esticando o pescoço ao máximo para enxergar melhor, consegui ver, lá em cima, uma nesga de céu cor-de-pérola, por sobre o emaranhado dos telhados malucos e chaminés tortas. O dia de nossa festa ia ser ensolarado.
Retirei meu vestido novo de nosso velho guarda-roupa de
pés oscilantes, encostado à parede, e ensaiei uns passos de valsa. O quarto de
papai era logo abaixo do meu, mas aos setenta e sete anos, ele dormia
pesadamente. Esta era uma das vantagens da velhice, pensei enquanto enfiava os
braços pelas mangas e dava uma olhadela no espelho para ver como estava. Embora
em 1937 algumas mulheres já estivessem usando as saias à altura dos joelhos, eu
ainda conservava as minhas acerca de dez centímetros do chão.
Você não está ficando mais jovem, comentei com a minha
imagem. Talvez fosse o fato de pôr um vestido novo que me levasse a olhar para
mim mesma com um pouco mais de autocrítica do que geralmente o fazia: quarenta
e cinco anos, solteira, e já meio pesadona.
Minha irmã Betsie, embora fosse sete anos mais velha do
que eu, ainda era graciosa e esbelta. Às vezes, as pessoas paravam na rua para
admirá-la. Sei muito bem que não era por causa da roupa. Nossa relojoaria nunca
nos permitira muito luxo, mas quando Betsie punha um vestido novo, parecia que
ele sofria uma transformação.
Comigo - antes que Betsie resolvesse me modificar - era
muito diferente: bainhas dependuradas, meias rasgadas, gola torta. Desta vez,
porém - pensei, afastando-me do espelho ao máximo que me permitia o exíguo
espaço do quarto - o efeito final daquele vestido novo, marrom-escuro, era excelente.
Lá embaixo a campainha
tocou. Convidados, já? Abri a porta e desci rapidamente pela escada espiralada
e íngreme. Essa escada não fora feita com a casa inicialmente. Na verdade,
havia duas casas. A da frente tinha a estrutura típica das casas de Haarlem -
três andares, dois cômodos na extensão e um na largura. A certa altura de sua
existência, a parede de trás havia sido derrubada para que ela fosse unida à
que lhe ficava aos fundos, a qual era ainda mais estreita e aprumada - tinha
apenas três cômodos, um sobre o outro. Espremida entre as duas, estava a escada
estreita, em caracol.
Embora eu houvesse descido depressa, Betsie chegou à
porta antes de mim. Um imenso buquê tapava a entrada. Assim que ela o apanhou,
o rapazinho da entrega surgiu de trás dele.
- Lindo dia para a festa, disse ele, procurando olhar
para dentro da sala como se o café e o bolo já estivessem servidos.
Mais tarde, ele viria, como também, ao que parecia, todo
o povo de Haarlem.
Procuramos o cartão por entre as flores.
- Pickwick! gritamos a um só tempo.
Pickwick era um freguês nosso, imensamente rico; era quem
comprava nossos melhores relógios. Muitas vezes, subia conosco à parte residencial
da casa, que ficava em cima da loja. Seu nome era, na verdade, Herman Sluring,
mas, entre nós, o apelidáramos de Pickwick, porque se parecia demais com o
desenho que ilustrava um de nossos volumes de Dickens. Herman era, sem
contestação, o homem mais feio de Haarlem. Baixo, muito gordo, calvo como um
queijo holandês e tão estrábico que, ao falarmos com ele, nunca sabíamos se
estava olhando para a gente ou para a pessoa ao lado; mas era tão bom e
generoso quanto feio.
As flores tinham sido entregues na porta lateral que era
utilizada pela família e que dava para uma ruela estreita. Levamos o buquê para
a loja. Primeiro chega-se à oficina de consertos. Ali se achava a banca elevada
de papai, sobre a qual ele se inclinara durante tantos anos, para executar o
seu trabalho delicado e minucioso, considerado um dos melhores da Holanda. No
centro havia minha banca; junto à minha, estava a de Hans, o aprendiz, e,
próximo à parede, a do velho Christoffels.
Na frente, ficava a parte comercial, com seu balcão de
tampo de vidro, cheio de relógios, e onde atendíamos os fregueses.
Todos os relógios de parede batiam sete horas quando ali
entramos com as flores e começamos a ver qual seria o melhor lugar para
colocá-las. Desde criança eu gostava muito de entrar naquela sala e ser saudada
pelo murmúrio agradável de centenas de tique-taques. O aposento estava escuro,
pois as persianas ainda se encontravam cerradas. Destranquei a porta e saí
para a rua. As outras lojas, a ótica que ficava ao lado, a de roupas, a padaria
e a peleteria do outro lado da rua, ainda estavam bem fechadas e sem sinal de
movimento.
Abri as persianas e fiquei algum tempo admirando a vitrine
de que, agora, tanto eu como Betsie gostávamos. Nós estávamos sempre debatendo
sobre qual seria a melhor maneira de arranjá-la. Eu gostaria de colocar ali
muitos relógios, tantos quantos ela comportasse, mas Betsie afirmava que seria
melhor expor apenas dois ou três dos mais bonitos, talvez sobre um fundo de
cetim ou seda, artisticamente drapeado. Esse arranjo, dizia ela, seria mais
elegante e atraente. Dessa vez, porém, nós estávamos de acordo.
Puséramos ali uma coleção de relógios - despertadores e
de bolso - todos com pelo menos cem anos de fabricação, que havíamos tomado
emprestado de amigos e conhecidos que possuíam lojas de antigüidades.
Comemorávamos nesse dia o centenário da loja. Fora nessa data em janeiro de
1837, que o pai de papai colocara na janela a placa: Relojoaria ten Boom.
Ouvi os sinos das igrejas de Haarlem baterem sete horas
durante os dez minutos seguintes, dando uma demonstração de completo desdém
para com a precisão do tempo. Por último, na pracinha a meio quarteirão
abaixo, o grande sino da Igreja de São Bavo deu suas sete pancadas. Deixei-me
ficar ali a contá-las, embora estivesse bem frio naquela manhã de janeiro.
Agora, em Haarlem, todo mundo tinha rádio, mas eu me lembrava do tempo em que
toda a vida da cidade era regulada pelo sino de São Bavo. Apenas os
funcionários da ferrovia e outras pessoas que precisavam saber a hora exata
vinham à nossa loja consultar o relógio astronômico. Toda semana, papai ia a
Amsterdam, de trem, para acertar o seu cronômetro pelo Observatório Naval. Ele
tinha muito orgulho do fato de que o relógio astronômico nunca se atrasava nem
adiantava mais que dois segundos por semana. Entrei de volta na loja. Lá estava
ele, rebrilhando no alto do seu pedestal de concreto, mas agora desvestido de
qualquer importância.
Novamente a campainha da porta: mais flores. Aquilo continuou
por cerca de uma hora - buquês grandes e pequenos, arranjos trabalhados e vasos
de cerâmica com plantas ornamentais. Embora a festa fosse em honra da loja, o
afeto da cidade era dirigido ao meu pai. "O bom velho de Haarlem" era
como o chamavam, e todos pareciam dispostos a provar que ele era querido.
Quando a sala da frente e a oficina ficaram cheias demais, começamos a
levá-las para os dois cômodos que ficavam diretamente acima da loja. Esses
cômodos eram conhecidos por nós como "os quartos da Tia Jans", embora
ela já tivesse falecido há vinte anos.
Tia Jans era a irmã mais velha de mamãe. Ela parecia
estar ainda ali, juntamente com a pesada mobília escura que nos deixara.
Betsie colocou no chão um vaso de tulipas de estufa, deu um passo para trás e
soltou uma exclamação de prazer.
- Corrie, veja como isto alegrou o ambiente!
Pobre Betsie! O Beje é tão cercado, tão comprimido
entre outras casas que as mudas de flores que ela plantava em caixas nas
janelas, todas as primaveras, nunca se desenvolviam o bastante para dar flores.
Às 7:45h, chegou Hans, o aprendiz, e às 8:00h, Toos, nossa
balconista e guarda-livros. Toos era uma dessas pessoas que estão sempre de
cara amarrada e triste. Seu mau humor constante a impedira de permanecer em um
emprego por muito tempo, até que, há dez anos, viera trabalhar conosco. A
gentil cortesia de papai a havia desarmado e abrandado seu gênio. Embora
preferisse morrer a admitir isso, ela gostava muito dele, tanto quanto
detestava o resto do mundo. Deixamos a porta a cargo de Hans e Toos e subimos
para tomar café.
Só três pratos, pensei enquanto punha a mesa. A sala de
jantar era na casa de trás, num nível mais elevado que o da loja. Subia-se a
ela por um lance de cinco degraus. Com sua única janela que dava para o beco
lateral, esta sala era, para mim, o coração da casa. Quando criança, recobrindo
a mesa com um grande cobertor, eu fazia dela minha tenda ou uma caverna de
piratas. Aqui fazia meus deveres, quando estudante. Aqui mamãe lia Dickens em
voz alta para nós, nas noites de inverno, enquanto as brasas de nossa lareira
de tijolos estalavam e cobriam de reflexos avermelhados o azulejo que tinha
entalhada a frase: "Jesus é vitorioso."
Utilizávamos apenas uma parte da mesa agora, eu, papai e
Betsie, mas, para mim, era como se o resto da família ainda se achasse ali. De
um lado a cadeira de mamãe, acolá o lugar das três tias (mais duas irmãs de
mamãe que, além de Tia Jans, haviam morado conosco). Minha irmã Nollie
sentava-se próximo de mim, e Willem, o único filho homem, ficava perto de papai.
Nollie e Willem já haviam se casado há vários anos e tinham
sua própria casa; mamãe e as tias já não se encontravam mais conosco, mas
ainda me parecia vê-los todos ali. Suas cadeiras não haviam permanecido vazias
por muito tempo. Papai não suportava a idéia de ter uma casa sem crianças, e
por isso, sempre que ouvia falar de um pequenino sem teto, uma carinha nova
surgia à nossa mesa. Com essa relojoaria que nunca rendia muito, ele deu um
jeito de alimentar, vestir e cuidar de mais onze crianças, depois que seus
quatro filhos estavam criados.
Agora, porém, também
estes onze haviam crescido e casado ou saído para trabalhar. Assim, coloquei
três pratos na mesa.
Betsie trouxe café da cozinha, que era ligada diretamente
à sala de jantar e pouco maior que um armário embutido, e tirou o pão da gaveta
do guarda-comida. Quando ela o colocava à mesa, ouvimos os passos de papai
descendo a escada. Agora ele sempre descia vagarosamente aqueles degraus
espiralados; mas pontual como um de seus próprios relógios, entrou na sala na
hora exata em que entrava desde que eu era bem pequena: às 8:10h.
- Papai, disse eu beijando-o e aspirando o aroma de charutos
que impregnava sua longa barba, o dia da nossa festa está lindo!
O cabelo e a barba de papai eram brancos como a nossa
melhor toalha, que Betsie colocara na mesa para este dia especial. Seus olhos
azuis, ao nos fitar com agrado através dos óculos grossos, eram meigos e
alegres.
- Querida Corrie, minha Betsie! Como vocês estão bonitas!
A seguir, sentou-se, inclinou a cabeça e deu graças pelo
pão, e depois continuou alegremente:
- Sua mãe teria adorado estes vestidos novos, e ficaria
alegre de ver as duas tão bonitas!
Nós duas fixamos os olhos no café para não rir. Estes
"vestidos novos" eram a tristeza de nossas sobrinhas que estavam
sempre querendo nos convencer a usar roupas de cores mais claras, saias mais
curtas e decotes mais baixos. Embora fôssemos bem conservadoras em nosso modo
de vestir, a verdade é que mamãe nunca tivera um vestido mais claro que esse
meu marrom-escuro ou que o azul-escuro de Betsie. No tempo de mamãe, as
mulheres casadas e as solteiras de uma "certa idade" só usavam
vestidos pretos. Nunca vi minha mãe nem minhas tias com vestidos de outra cor.
- Mamãe ia gostar de tudo hoje! interveio Betsie. Lembram-se
como ela gostava de festas?
Mamãe assava um bolo e passava um café em questão de
instantes. E já que ela conhecia quase todo mundo em Haarlem, principalmente os
pobres, doentes e abandonados, não havia um dia que não fosse - como diria ela
- "um dia de festa para alguém".
Nós ficamos conversando durante o café, como se deve
fazer em dias assim, e começamos a recordar o tempo em que mamãe vivia. Depois
retrocedemos mais e falamos do tempo em que papai era criança e morava nesta mesma
casa.
- Nasci bem nesta sala, disse ele como se já não nos
tivesse dito isto uma centena de vezes. Só que, naquela época, não era a sala
de jantar, era quarto. A cama era dentro de uma espécie de armário embutido na
parede; não havia janelas, nem iluminação direta, nem ar puro. Fui o primeiro
que conseguiu sobreviver. Não sei quantos nasceram antes de mim e morreram.
Minha mãe estava com tuberculose, e eles não conheciam as regras de higiene,
nem sabiam nada sobre o contágio pelo ar, e não pensavam em afastar as
criancinhas da pessoa doente.
Foi um dia cheio de recordações, um dia de invocação do
passado. Nunca poderíamos adivinhar, quando estávamos ali sentados - duas
solteironas de meia-idade e um velho - que, em vez de recordações, estávamos
para enfrentar acontecimentos com os quais nunca tínhamos sonhado. Desventuras
e angústias, horrores e alegrias, nos aguardavam para dentro em pouco, e não o
sabíamos.
Ah! Papai, Betsie, se eu soubesse, será que teria feito o
que fiz? Será que teria tido coragem?
Mas como eu poderia prever? Como poderia supor que esse
velhinho de cabelos brancos que todas as crianças de Haarlem chamavam de vovô,
seria sepultado por estranhos, num túmulo desconhecido? E Betsie, em seu
vestido de gola de renda e seu dom de difundir beleza ao seu redor, como
poderia pensar que a pessoa a quem eu mais queria, seria forçada a comparecer
nua diante de uma sala cheia de homens? Naquele momento, naquela sala de
jantar, tais possibilidades eram remotíssimas.
Papai levantou-se e pegou a velha Bíblia de cantoneiras
de bronze. Toos e Hans bateram na porta e entraram. Outro regulamento fixo no Beje
era a leitura da Bíblia às 8:30h em ponto, e a que deviam assistir todos os
que estivessem na casa.
Papai abriu o livro, e eu e Betsie contivemos a respiração.
Naturalmente, hoje, quando tínhamos tanta coisa a fazer, ele não leria um
capítulo inteiro! Mas ele já estava abrindo-a na passagem de Lucas onde havia
parado no dia anterior - e o livro de Lucas tinha capítulos tão longos! Com o
dedo no lugar, papai ergueu os olhos.
- Onde está Christofells? Perguntou
Christofells era o outro empregado da loja, um velhinho
encurvado e miúdo, que parecia mais velho que papai, embora fosse dez anos
mais jovem. Lembrei-me do primeiro dia em que aparecera em nossa casa, há seis
ou sete anos. Estava tão andrajoso e tinha uma aparência tão infeliz, que
pensei que fosse um dos mendigos que sabiam ser o Beje o lugar certo
para se conseguir uma boa refeição de graça. Estava a ponto de encaminhá-lo à
cozinha, onde Betsie tinha sempre uma panela de sopa borbulhando ao fogo,
quando solenemente ele me informou que estava procurando emprego e viera
primeiro a nós, para oferecer seus préstimos.
Fiquei sabendo, então, que Christofells pertencia a uma
classe já quase totalmente desaparecida, a dos relojoeiros ambulantes, que
percorriam o país a pé, regulando e consertando os relógios de pêndulo que
eram o orgulho de todas as fazendas holandesas. Mas se eu fiquei surpresa ao
ver o ar sério e grave daquele homenzinho de aspecto miserável, fiquei ainda
mais ao ver que papai lhe deu o emprego imediatamente.
"Esses consertadores ambulantes", disse-me mais
tarde, "são os melhores que existem. Conseguem consertar qualquer defeito
apenas com as ferramentas que carregam consigo."
E isto ficou provado nos anos seguintes, pois todo o povo
de Haarlem lhe trazia seus relógios. O que ele fazia com o dinheiro de seu
salário, nunca soubemos; ele continuava tão mal vestido como antes. Papai lhe
falou a respeito disso um pouco, mas não muito, pois, fora o seu
desalinho, o traço mais forte de sua personalidade era o orgulho.
Hoje, pela primeira vez,
Christofells estava atrasado.
Papai limpou os óculos no guardanapo e começou a ler,
fazendo sua voz grave se demorar prazerosamente em algumas palavras. Quando
ele chegou ao fim da página, ouvimos os passos arrastados de Christofells
subindo a escada. A porta se abriu, e todos nós levamos um susto: Christofells
estava impecável. Trajava um terno novo, preto e um colete xadrez, também novo,
camisa imaculadamente branca de colarinho engomado, e gravata estampada. Lutei
para desviar os olhos de tal espetáculo, pois a expressão de seu rosto nos
proibia qualquer comentário.
- Christofells, meu prezado amigo, disse papai em sua
maneira formal e antiquada, que alegria vê-lo neste... é... dia tão auspicioso.
E, apressadamente, retornou a leitura interrompida.
Antes que ele terminasse o capítulo, as campainhas - da
entrada lateral e da loja - começaram a tocar. Betsie correu a fazer café e a
meter as "tortas" no forno, enquanto eu e Toos corríamos às portas.
Parecia que cada pessoa de Haarlem queria ser a primeira a cumprimentar papai.
Daí a pouco, uma torrente de convidados estava subindo até o quarto de Tia
Jans, onde ele se encontrava, meio escondido por entre as flores.
Eu estava conduzindo um de nossos convidados mais idosos
escada acima, quando Betsie segurou-me o braço.
- Corrie, vamos precisar das xícaras de Nollie já. Como
vamos...?
- Vou buscar!!
Nollie e seu marido viriam à tarde, logo que seus filhos
chegassem da escola. Desci rapidamente, peguei o casaco e a bicicleta, e já a
empurrava pela porta quando a voz de Betsie me deteve:
- Corrie, seu vestido novo!
Dei meia-volta, subi ao quarto e troquei o vestido novo
pelo mais velho que possuía e saí pedalando pela rua acidentada. Eu gostava
imensamente de ir à casa de Nollie. Ela morava a quase dois quilômetros dali,
num bairro afastado daquele velho centro atulhado de prédios. Lá, as ruas eram
mais largas e retas, e até o céu parecia mais amplo. Atravessei a pracinha e
depois a ponte sobre o canal, e rodei pela estrada, deliciando-me com o fraco
sol de inverno. Nollie residia na Rua Bos en Hoven, em um conjunto residencial,
de casas gêmeas, todas iguais, com cortinas brancas e vasos de plantas na
janela.
Enquanto virava a esquina, nunca eu poderia imaginar que,
num dia de verão, quando os bulbos de jacinto de um viveiro próximo estariam
prontos para o plantio, eu frearia a bicicleta e ficaria ali parada com o
coração aos pulos, sem coragem de me aproximar mais, com receio de enfrentar o
que estava se passando no interior daquelas cortinas.
Hoje, porém, ziguezagueei pela calçada e entrei correndo,
sem bater.
- Nollie, a casa já está cheia! Você precisa ver!
Precisamos das xícaras agora.
Nollie veio da cozinha com o rosto redondo corado pelo
calor do forno.
- Já estão arrumadas perto da porta. Ah! eu queria ir com
você, mas tenho que acabar de assar os biscoitos, e prometi a Flip e às
crianças que esperaria por eles.
- Vocês todos vão, não?
- Sim, Corrie. Peter vai também.
E ela começou a colocar as xícaras no bagageiro. Como uma
boa tia eu queria amar meus sobrinhos igualmente, mas Peter... bem, Peter era
Peter. Com treze anos, ele era um prodígio musical - embora um bocado maroto -
mas era todo o meu orgulho.
- Ele até escreveu uma música especial para comemorar a
data, disse Nollie. Tome aqui. Você vai ter que carregar esta sacola na mão.
Tenha cuidado.
O Beje estava mais cheio do que nunca, quando
voltei. Na ruela lateral havia tantas bicicletas que tive que deixar a minha
na esquina da rua. O prefeito de Haarlem já estava lá, de casaca, e com a
corrente de ouro do relógio de bolso bem à vista. Lá estavam o chefe dos
correios, o condutor do bonde, e meia dúzia de guardas do centro policial que
ficava perto.
Após o almoço, começaram a chegar as crianças e, como
sempre faziam, foram direto para papai. As mais velhas sentavam-se no chão, ao
redor dele; as menores subiam ao seu colo. Isso porque, além de seus brilhantes
olhos azuis e sua longa barba cheirando a charuto, ele carregava consigo o tique-taque
de dezenas de relógios. Um relógio deixado numa prateleira funciona
diferentemente que quando em uso e, por isso, papai sempre carregava nos bolsos
os que estivesse regulando no momento.
Todos os seus paletós tinham quatro grandes bolsos
internos, cada um com doze divisões, para doze relógios. Assim, aonde quer que
ele fosse, ia com ele o alegre ruído de centenas de engrenagenzinhas. Agora,
com uma criança em cada perna, e mais dez ao redor, ele retirou de um dos
bolsos a cruzeta de dar corda, cujas quatro pontas eram de formatos diferentes
para servir a cada tipo. Com um piparote, fê-la girar rapidamente, brilhando...
brilhando...
Betsie parou à porta com uma bandeja de bolo nas mãos.
- Ele nem se dá conta da presença de outras pessoas, disse.
Eu estava descendo a escada com alguns pratos vazios,
quando alguém lá embaixo deixou escapar uma exclamação abafada de espanto, o
que me advertiu que Pickwick chegara. Nós que lhe queríamos bem, nunca nos
lembrávamos do choque que o seu aparecimento causava em outros.
Corri à porta, apresentei-o à esposa de um negociante de
Amsterdam, e depois conduzi-o para cima. Ele afundou seu corpanzil numa cadeira
ao lado da de papai, olhou-me - um olho em mim e outro no teto - e disse:
- Cinco torrões, por favor.
Pickwick adorava crianças tanto quanto papai, mas enquanto
estas gostavam de papai à primeira vista, ele tinha de lutar para
conquistá-las. Tinha, porém, um truque que nunca falhava. Entreguei-lhe sua
xícara de café bem doce - cinco torrões - e observei-o olhar ao redor,
simulando grande consternação.
- Mas, Cornélia, exclamou, não há uma mesa aqui para eu
colocar minha xícara.
Correu os olhos por perto mais uma vez para ver se as
crianças estavam lhe dando atenção.
- Por sorte eu trouxe a minha própria mesa!
Em seguida, plantou a xícara com o pires em sua
avantajada pança.
Nunca vi uma só criança que resistisse àquilo. Em poucos
momentos, um bom número delas havia se reunido em volta dele.
Mais tarde, Nollie chegou com sua família.
- Tia Corrie, gritou-me Peter com fingida inocência, mas
a senhora não aparenta cem anos.
Antes que eu pudesse responder-lhe com um tabefe, já
estava sentado ao piano de Tia Jans, enchendo a casa com suas melodias. Algumas
pessoas começaram a apresentar-lhe seus pedidos: canções populares, corais de
Bach, hinos. Daí a pouco, todo mundo estava cantando.
Quantos de nós que estávamos ali naquela tarde alegre,
iríamos, dentro em breve, nos encontrar novamente em circunstâncias bem
diferentes! Peter, os policiais, o feio e querido Pickwick, todos que estavam
ali - e ainda meu irmão Willem e sua família. Eu me indagava por que eles
estavam tão atrasados. Willem morava com sua esposa e filhos em Hilversum,
acerca de quarenta e cinco quilômetros de Haarlem, mas, mesmo assim, já deviam
ter chegado.
De repente, a música parou, e Peter, de seu posto elevado
na banqueta do piano, anunciou:
- Vovô, aí vem a concorrência!
Olhei para fora. O Sr. e Sra. Kan, proprietários da outra
relojoaria da rua, estavam justamente virando a esquina para entrar na ruela.
Pelos padrões de Haarlem eles eram novatos ali, pois tinham se estabelecido em
1910, há apenas 27 anos, portanto. Todavia, como eles vendiam muito mais que
nós, achei que o comentário de Peter era bem a expressão da verdade.
Papai, entretanto, não gostou.
- Concorrente não, Peter, disse-lhe com desaprovação, colega!
E tirando de sobre seus joelhos a criança que ali se achava,
colocou-se no topo da escada para receber os Kan.
Ele aceitava as freqüentes passagens do Sr. Kan pela loja
como visitas de um bom amigo.
- O senhor não está vendo o que ele quer? eu explodia
depois que o homem se afastava. Ele só quer saber nossos preços para vender mais
barato!
Na loja dele, os relógios exibiam os preços escritos em
algarismos bem grandes, e sempre cinco guílderes abaixo dos nossos.
O rosto de papai se iluminava com uma expressão de surpresa,
como sempre acontecia nos raros momentos em que ele pensava no lado comercial
do negócio.
- Mas Corrie, quem compra dele sai ganhando! e depois
acrescentava: Como é que ele consegue vender tão barato?
Meu pai, como o seu pai também; era totalmente sem
malícia para negócios. Às vezes, ele trabalhava dias seguidos em um relógio que
apresentava um defeito sério e depois se esquecia de cobrar. Quanto mais caro
fosse o relógio, mais difícil era para ele pensar nele em termos de dinheiro.
"A gente devia pagar para ter o privilégio de
consertar um relógio destes", dizia.
Quanto aos seus métodos de apresentação da mercadoria -
durante os primeiros oitenta anos de funcionamento da loja, as persianas que
davam para a rua eram cerradas todos os dias, às seis horas da tarde. Fora
somente quando eu entrara no negócio, há vinte anos, que notara que algumas
pessoas gostavam de passear pelas ruas estreitas e pelas calçadas, à noite, e
vira que outras lojas deixavam suas vitrines abertas e iluminadas. Quando
mencionei isto para papai, ele ficou encantado, como se eu tivesse feito uma
descoberta maravilhosa.
"E se as pessoas virem os relógios, pode ser que
desejem comprá-los. Ah! Corrie, que inteligência a sua!"
O Sr. Kan vinha em minha direção com seu pedaço de bolo e
suas congratulações. A consciência me doía por causa dos pensamentos de ciúme
que abrigara a seu respeito, e escapei escada abaixo, me tendo-me no meio do
povo. A oficina e a loja estavam mais cheias do que os cômodos de cima. Hans
estava servindo bolo na parte de trás, enquanto Toos fazia o mesmo na frente.
No seu rosto via-se a sombra de um sorriso - o máximo que
ela permitia aos seus lábios perpetuamente cerrados. Quanto a Christofells -
que surpresa! - ele simplesmente tinha se transfigurado! Era quase impossível
reconhecer naquela majestosa figura que saudava os nossos visitantes à porta,
levando-os para percorrer a loja, o homenzinho encurvado e mal vestido de
sempre. Estava bem claro que esse era o maior dia de sua vida.
Durante toda aquela tarde de inverno, recebemos pessoas
que se contavam entre os amigos de papai. Jovens e velhos, pobres e ricos,
homens cultos e mocinhas iletradas - só que, para papai, eram todos iguais.
Este era o seu segredo: não é que deixasse de se preocupar com as diferenças
entre indivíduos; meramente não sabia que existiam.
Willem ainda não tinha chegado. Acompanhei até a porta um
grupo de convidados que se retirava, e fiquei ali alguns instantes, olhando a
rua. Embora fossem apenas quatro da tarde, o crepúsculo já descia, e as luzes
das lojas já começavam a ser acesas. Eu ainda tinha um pouco daquela admiração
de irmã menor para com o irmão mais velho. Ele era cinco anos mais velho que
eu. Fora o único da família a cursar a universidade, e era ministro do
evangelho, pastor ordenado. Willem tinha grande percepção das coisas. Ele sabia
tudo que se passava no mundo.
Muitas vezes eu desejava que ele não tivesse tal visão,
pois muito do que meu irmão previa era aterrador. Há dez anos, em 1927, ele
tinha defendido tese de doutorado, na Alemanha, e tinha mencionado que havia
uma terrível ameaça pairando sobre aquele país. Ali mesmo na Universidade,
disse ele, estavam sendo lançadas as sementes de um grande desprezo pela vida
humana, tal como nunca se tinha visto antes. Os que leram seu trabalho,
zombaram.
Agora, naturalmente, ninguém mais ria quando se tratava
da Alemanha. Os melhores relógios vinham de lá, e, recentemente, algumas das
firmas com as quais havíamos negociado por vários anos, tinham misteriosamente
"cerrado as portas". Willem cria ser isso resultado de um amplo e
deliberado movimento anti-semítico. Todas as firmas fechadas eram de judeus.
Sendo um dos líderes do trabalho da Igreja Reformada entre os judeus, ele
estava bem em dia com tais assuntos.
Meu bom Willem, pensei, ao voltar para dentro e fechar a
porta; ele era tão fraco nos negócios da igreja, como papai o era no dos
relógios. Se já conseguira a conversão de um só judeu em vinte anos, eu não
soubera do fato. Willem não tentava modificar as pessoas, queria apenas
ajudá-las. Ele tinha economizado dinheiro e até sovinado um pouco, para
conseguir ajuntar o suficiente para construir em Hilversum um abrigo para
judeus idosos, que depois veio a ser para velhinhos de todos os credos, pois
ele era contrário a qualquer tipo de segregação.
Ultimamente, porém, o Lar tinha sido inundado por uma
onda de jovens refugiados - todos judeus, e todos da Alemanha. Ele e sua
família tinham cedido seus próprios aposentos e estavam dormindo nos
corredores. E mais e mais judeus, apavorados e desabrigados, estavam chegando, e
narravam fatos incríveis a respeito de uma crescente loucura.
Fui à cozinha, onde Nollie tinha acabado de coar mais
café, apanhei-o e subi para os quartos de Tia Jans.
- O que será que esse homem quer? perguntei a um grupo
de pessoas reunidas em torno da mesa, e colocando ali o bule. Esse homem da
Alemanha, ele está querendo guerra?
Sabia que era um péssimo tópico de conversação para um
dia de festa, mas a lembrança de Willem sempre levava meu pensamento a se
concentrar em assuntos perigosos.
Um silêncio pesado caiu sobre a mesa e se espalhou pela
sala.
- O que é que nos interessa isso? ouvi alguém perguntar.
Deixa esses países grandes lutarem entre si. Não vão nos atingir.
- Isso mesmo, falou um relojoeiro. Os alemães que não nos
incomodem com essa grande guerra. Para eles é melhor que fiquemos neutros.
- Você pode dizer isto, atalhou outro, que era nosso fornecedor
de peças. Você compra da Suíça; mas, e nós? O que eu faço se a Alemanha entrar
em guerra? Isso arrasaria meus negócios.
Naquele momento, Willem entrou na sala. Com ele vinham
sua esposa, Tine, e seus quatro filhos. Contudo quase todos os olhares se
fixaram no homem que Willem conduzia pelo braço. Era um judeu de trinta e
poucos anos. Usava o tradicional chapéu de abas largas e o longo sobretudo
preto. Os olhos de todos estavam colados à sua face, que apresentava uma
horrível queimadura. Perto da orelha direita via-se um anel de cabelos
grisalhos, como os de um velho. O resto do queixo era uma chaga viva.
- Quero apresentar-lhes o Sr. Gutlieber, disse Willem em
alemão. Ele chegou a Hilversum hoje cedo. Gutlieber, este é meu pai. E depois
de uma pausa, prosseguiu em holandês: Este homem fugiu da Alemanha escondido em
um caminhão de leite. Ele foi cercado na rua, em Munique, por uns rapazinhos
que puseram fogo em sua barba.
Papai levantou-se e apertou a mão do recém-chegado com
muita efusão. Eu trouxe-lhe uma xícara de café e um prato com os biscoitos de
Nollie. Nesse momento, senti-me grata pela insistência de papai em que seus
filhos aprendessem alemão e inglês e falassem estas línguas tão bem quanto
holandês.
Gutlieber sentou-se na beirada da cadeira meio teso,
olhando para o café em seu colo. Arrastei uma cadeira para junto dele e
comecei a falar sobre qualquer coisa, sobre o tempo em janeiro.
Imediatamente, a conversação se generalizou, retomando o
volume normal da conversa de um salão de festas: um murmúrio que se elevava e
depois abaixava. Ouvi um vendedor de relógios exclamar:
- Que miseráveis! Vagabundos! Está acontecendo o mesmo
em toda a parte. A polícia vai pegá-los. Afinal, a Alemanha é um país
civilizado.
E foi assim que uma nuvem desceu sobre nós naquela tarde de inverno de 1937, mas não pesou muito. Ninguém nem sonhava que aquela nuvenzinha cresceria tanto, que viria a escurecer todo o céu. Nenhum de nós imaginava que todos teríamos uma parte nela: papai, o Sr. Kan, Willem, e até esse velho Beje, com seus assoalhos desnivelados e antiquados.
À noite, depois que todos os convidados já haviam saído,
subi para o meu quarto pensando no passado. Meu vestido novo estava sobre a
cama; eu havia me esquecido de vesti-lo de novo.
- Nunca me preocupei mesmo com roupas, pensei, nem quando
era jovem...
Recordações da infância retornaram naquele instante
-estranhamente, elas pareciam atuais e muito relevantes. Agora eu sei que as
lembranças contêm o segredo do futuro; não do passado, mas do futuro. Sei que,
quando deixamos Deus usar nossas experiências passadas, elas se convertem em
instrumentos pelos quais o Senhor nos prepara para o trabalho que ele tem para
nós.
Mas eu não sabia disso naquele momento. Nem mesmo sabia - tendo uma vida tão pacata - que havia um futuro para o qual eu precisava de uma preparação especial. E ali deitada no meu quarto, na parte superior da casa, eu só sabia que certos momentos da minha infância e juventude começaram a se destacar da face nebulosa do passado, como se ainda os estivesse vivendo, como se eles ainda tivessem algo a me dizer...